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«Logo à partida, o Programa do Movimento das Forças Armadas não se limitava a ser um programa de democratização política da sociedade portuguesa. Era também um programa de democratização económica e social. Ele falava no lançamento de uma nova política económica e social ao serviço das camadas mais desfavorecidas da população, numa melhoria da qualidade de Vida dos portugueses — e isso implica também aspectos culturais — e falava ainda na necessidade de uma estratégia anti-monopolista. Era portanto um programa de democratização política, económica, social e cultural. Esse Programa foi posto em prática ao longo do processo.»
A conhecida formulação heideggeriana o homem está no mundo tem servido de base a numerosas análises filosóficas, políticas e até científicas. Destas, umas são mais ou menos profundas, outras mais ou menos sofisticadas. Não é isso, porém, o que particularmente agora nos importa.
O que interessa, de momento, é notar que se trata de uma formulação verdadeira. O homem está, efectivamente, no mundo. Dele constitui sua parte integrante, como ser da natureza que é. Mas para o homem concreto, para a pessoa de cada qual, a afirmação de Heidegger não passa daquilo a que poderíamos chamar uma evidência vazia.
Com O Ser e o Tempo o fundador do existencionalismo alemão atingiu o grau máximo do pessimismo moderno e, como tal, o extremo de uma filosofia reaccionária. Esta «define» o homem, como preso a um destino sem conteúdo social, visto que, para captarmos o sentido da existência, devemos renunciar, segundo Heidegger, a todo e qualquer princípio que nos conduza à consecução prática de algum fim.
Eis, por outras palavras, uma filosofia que representa a vontade inoperante. E mais ainda: eis como, afirmando-se que o homem está no mundo (o inegável), ao mesmo tempo se nega a Revolução. Heidegger é bem aquele que aderiu ao nazismo e ao seu autocratismo. Ao contrário, porém, só no campo das lutas pela conquista da liberdade social, da emancipação económica e da dignidade cívica, percebemos que nos pertence a missão de transformarmos o mundo, transformando-nos.
Que o angelismo — o comportamento angélico ou puro — é a única atitude lógica do revolucionário, quiseram há poucos anos os jovens ex-maoistas Christian Jambert e Guy Lardreau. L'Ange foi o seu livro-tese, no polo oposto da teoria de Gilles Deleuze e de Lyotard(139), para quem o desejo é a grande força revolucionária(140).
Creio que ambas as posições — a do purismo angélico e a do impulso coagente do desejo — nos conduzem afinal, ainda que por caminhos diferentes e opostos, a um ponto de chegada algo semelhante. Para o efeito que pretendo, prefiro dar relevo ao facto de a Revolução ser antes um estar no mundo a nível da consciência (mais do que ao nível cego do desejo), defrontando-se o homem com uma realidade concreta, exercitando, enfim, a sua indomável vontade de mudar ou transformar. Quero crer, aliás, que tudo vem enunciado desde Marx, precisamente com a décima primeira (e última) das suas famosas Teses sobre Feuerbach:
«Os filósofos não têm feito mais do que interpretar o mundo de diferentes maneiras; mas o que importa agora é transformá-lo.»(141)
Repito, se permitem, esta minha fórmula, a qual de sobremaneira me agrada: estar em revolução é estar no mundo a nível da consciência. É esta, quero crer, a ideia fundamental de um Lénine. E também o ponto decisivo ou fulcral que o conexiona a Marx. Na linha de tal pensamento poderíamos dizer, julgo sem risco de cometermos algum erro, que, apesar de a Revolução ter sido sempre, como tal, o facto-primeiro do homem (aquele que o distinguiu do animal-animal), ela só viu posta a questão da sua permanente actividade a partir das citadas Teses sobre Feuerbach, de 1845, e do Manifesto Comunista, de 1848.
A actualidade da Revolução não é apenas, como notou alguém, um horizonte da História Universal, pairando sobre as classes trabalhadoras em vias de emancipação. A Revolução tomou-se a ordem do dia no movimento mundial dos trabalhadores. Ela aponta, nas palavras precisas de Lukács, «a nota dominante de uma época».
Sigo de perto os ensinamentos do filósofo marxista húngaro, enunciados na sequência desta frase. A actualidade da Revolução não significa que os seus objectivos sejam encarados como se acaso pudessem ser realizados, ou num presente ou dado próximo futuro, de modo qualquer e em qualquer momento. As reacções insuladas têm de inter-relacionar-se através de uma cuidada análise da totalidade histórica.
Repare-se, a este propósito, numa passagem da «Análise da Situação Política», de Julho de 1975, enquanto nos adverte que
«não é através de juízos de valor para casos isolados que se caracteriza a revolução ou a contra-revolução»(142).
E veja-se como Lukács afirmou que
«só a relação das acções isoladas com esse núcleo central, que apenas pode ser encontrado pela análise precisa do conjunto histórico-social, faz que essas acções isoladas sejam revolucionárias ou contra-revolucionárias».
A actualidade da Revolução significa, por conseguinte, centralmente isto: todos os problemas particulares quotidianamente são tratados em ligação concreta com a totalidade histórica e considerados como momentos da emancipação dos trabalhadores. E o enriquecimento que o marxismo ficou a dever a Lénine consiste, simplesmente, numa ligação mais intima, mais visível, mais rica de consequências, das acções isoladas com o destino geral — «com o destino revolucionário de toda a classe operária». Significa assim, simplesmente, que cada questão actual (como uma questão na ordem do dia) se tornou, ao mesmo tempo, um problema da Revolução.
É certo — e será também, do mesmo passo, errado — aproximar em demasia, as pessoas, e compará-las. Sobretudo quando são figuras de Histórias diferentes no espaço, no tempo, na densidade das condições concretas, do seu dia-a-dia. Mesmo assim, pensando na sua generosidade, na sua viva luta contra os disfarces da hipocrisia e da malfeitoria burguesas, arrisco pelo menos uma evocação.
Veremos mais de perto as semelhanças e diferenças de concepção teórico-práticas entre Lénine e Vasco Gonçalves, no capítulo «A Questão da Vanguarda» que seguirá a este. Seja, porém, como for, quem não reconhecerá, no retrato de Lénine segundo Lukács, o reflexo de um aceitável retrato do Companheiro General? Quem não verá em ambos a mesma coragem, nos antípodas do revolucionarismo só de cartilha e de cobardia de tantos «construtores do socialismo»?!(143)
Volto entretanto, uma vez mais, às minhas palavras de há pouco. As da tese de que estar em revolução é estar no mundo a nível de consciência. E pergunto-me se isto acaso quer dizer que em todos os momentos da vida, porque o homem é um animal consciente, uma pessoa está na Revolução.
Nota-se desde logo, como é evidente, a diferença nos dois modos de dizer que vim usando: estar em revolução e estar na Revolução.
Eis uma dualidade que nos permite fixarmos melhor o campo deste capítulo. Porque julgo que, com o aceitá-la, estou implicitamente a acolher também a natureza excepcional da Revolução. A Revolução constitui uma excepção nos domínios da História — eis o que nos parece afirmar Jean-Paul Dollé, o discípulo de Althusser(144).
Recordo a posição de Lénine sobre este problema, aliás já abordada quando atrás referi a questão das unidades de ruptura.
Vejamos.
«A lei fundamental da revolução — escreveu Lénine no nono capítulo de Esquerdismo, doença infantil do comunismo — lei confirmada por todas as revoluções, e em particular pelas três revoluções russas do século XX, consiste no seguinte : para a revolução não basta que as massas exploradas e oprimidas tenham consciência da impossibilidade de continuar a viver como vivem e exijam transformações; para a revolução é necessário que os exploradores não possam continuar a viver e a governar como vivem e governam. Só quando os "de baixo” não querem e os “de cima” não podem continuar vivendo à maneira antiga é que a Revolução pode triunfar. Por outras palavras, esta verdade exprime-se do seguinte modo: a revolução é impossível sem uma crise nacional geral (que afecte explorados e exploradores). Por consequência, para fazer a Revolução é preciso conseguir, em primeiro lugar, que a maioria dos operários (ou, em todo o caso, a maioria dos operários conscientes, pensantes, politicamente activos) compreenda a fundo a necessidade da revolução e esteja disposta a sacrificar a vida por ela; e, em segundo lugar, é preciso que as classes dirigentes atravessem uma crise governamental que atraia à política inclusive as massas mais atrasadas (o sintoma de toda a revolução verdadeira é a decuplicação ou centuplicação do número de homens aptos para a luta política, homens pertencentes à massa trabalhadora e oprimida, antes apática), que reduza o Governo à impotência e torne possível a sua rápida derrocada pelos revolucionários.»(145)
Estes são, a meu ver, os traços fundamentais da teoria do carácter excepcional da Revolução. E Vasco Gonçalves tem nitidamente, consciência desse carácter. Mostrou-o em vários momentos.
Em particular, Vasco Gonçalves sintetizou esta ideia na sua intervenção junto da Assembleia do MFA, em 25 de Julho de 1975:
«Não podemos pensar que uma revolução vai como um sistema estabilizado. Uma revolução desenvolve-se em crise.»(146)
Neste mesmo discurso, riquíssimo de afirmações teóricas e de coerências práticas, o Companheiro General produziu a afirmação que, no final de contas, é a determinante do título do presente capítulo:
«Antes de tudo, estamos numa revolução.»(147)
Uma interrogação resulta, entretanto, e por força, à evidência: se as revoluções constituem tempos históricos demarcáveis entre um começo e um fim e se, por isto mesmo, cada uma delas se concretiza em determinado estar na Revolução, ocorre muito logicamente perguntar se a Revolução do 25 de Abril terminou e, na hipótese afirmativa, quando terminou.
Pode-se pensar, e há na verdade quem assim já tenha pensado, que a Revolução findou.
Segundo uns, com a queda de Vasco Gonçalves e a correlativa tomada de posse do VI Governo.
Segundo outros, com o 25 de Novembro.
Segundo ainda outros, com a entrada em vigor da Constituição da República, ou seja, em 25 de Abril de 1976. Em tal data, sustentam estes últimos, consumou-se a transformação constitucional democrática, a qual representa um facto jurídico extintivo do estado revolucionário.
Mas que podemos (ou devemos) pensar acerca do problema?
Da resposta que dermos, é evidente que dependerá o estarmos ou não estarmos — hoje e agora — em Revolução. Trata-se de uma resposta decisiva e vamos procurá-la.
A institucionalização democrática configurou-se juridicamente, a nível constitucional, em 25 de Abril de 1976. Isso está fora de dúvida. Não é este, todavia, o único factor que deverá considerar-se na investigação do assunto. O problema, em boa verdade, não se limita às suas coordenadas jurídico-constitucionais. Outro dos seus parâmetros, por exemplo, o estrutural (que se desdobra nos seus três planos económico, cultural e político), está também forçosamente em causa.
O fenómeno revolucionário, tenhamos o facto em atenção, não se processa única e exclusivamente no hemisfério político do aparelho do Estado. As transformações no aparelho administrativo constituem, igualmente, uma outra fase da Revolução — isto, no correcto sentido das palavras. Com efeito, a transformação das estruturas administrativas, que é sempre bastante menos espectaculosa do que a substituição dos órgãos ou dos suportes políticos do Estado, continua na mesma a ser revolução. Nesta linha de esclarecimento terá, a meu ver, de ser encarado o disposto no artigo 10.° da Constituição, que alguns reaccionários, ansiosos de um regresso de desencanto ao seu «paraíso perdido», pretendem ter necessariamente caducado.
Mas não é assim. Semelhante pretensão (reaccionária, não é demais reafirmá-lo) vem desde logo negada, do ponto de vista estritamente jurídico, pelo chamado princípio da plenitude do sistema de uma ordem jurídica — princípio que não admite que a lei vigente comporte categorias ou institutos excrescentes.
A Constituição da República quer, explicitamente, que continuemos na Revolução: aí está o seu artigo 1.° a apontar, como meta, uma «sociedade sem classes»; e, do mesmo passo, o artigo 2.° a indicar, como rota, a transição para o socialismo. Aliás, o ainda há pouco citado artigo 10.° determina, categórico, no seu n.° 2: «O desenvolvimento do processo revolucionário impõe, no plano económico, a apropriação colectiva dos principais meios de produção.»
Mas mais longe do que a simples «caducidade» de um preceito constitucional como este, sabe-se existirem até aqueles que sustentam ou pretendem ter grande parte da nossa Constituição nascido morta. Segundo esses estranhos juristas, a um certo núcleo das regras jurídicas da Constituição da República de 1976 nada de real corresponderia na vida político-social. Esta é a tese deles.
Manuel de Lucena, por exemplo, foi assim que escreveu a defendê-la:
«Antes de prosseguir, parece-me (...) oportuno notar que esta problemática da ultrapassagem (e esta problemática ultrapassagem) de um regime e das respectivas leis, se afigura entre nós, duplamente actual. Pois não diz apenas respeito às instituições do “Estado Novo”, também invade as da vigente democracia, de tão incerto destino. Com efeito — remata o autor de O Estado da Revolução —, a Constituição de 1976 representa um compromisso cuja consistência ideológica não é grande; e está cheia de normas para não cumprir.»(148)
É sabido que os preceitos constitucionais foram sendo votados e aprovados ao longo de conhecidas variações na correlação de forças. Reflectem-se assim, nos sectores sequentes do seu texto global, a marca e a marcha do processo revolucionário e, naturalmente, os seus acidentes. Tais oscilações, vistas como causas remotas de um percurso passado, têm constituído um pretexto para já se terem produzido afirmações decididamente reaccionárias a propósito da Constituição de 76 — pondo-se, designadamente em dúvida a superação relativa, mas sempre revolucionária, do capitalismo(149).
Só mesmo quem pretenda que o Socialismo se não alcance em Portugal desdenhará o princípio da crise geral do capitalismo. Só então se poderá, como vimos, lançar a singular ideia de que alguma parte das normas constitucionais de 76 são «para não se cumprir».
Que estranha concepção! Que estranhos Eolos soltaram os primeiros ventos a soprar no sentido de uma revisão constitucional antecipada! Sustentar, por exemplo, que a norma que assegura o prosseguimento do processo revolucionário não é um imperativo da Constituição da República, vale uma atitude por definição contrária à teoria do Estado de Direito que dizem defender, e dificulta o concurso de vontades políticas orientadas no sentido de que o Estado concretize, por efectivas acções, as suas tarefas fundamentais, especialmente a anunciada na alínea c) do artigo 9.°.
Continuamos jurídica e politicamente a estar na Revolução, por muito que isso custe a certa gente. A Constituição exige — indeclinavelmente, ela própria — a sequência do processo de transformação estrutural; transformação no plano económico (artigos 10.°, n.° 2, 80.°, 81.° e 96.°); transformação no plano cultural (artigos 73.° e 74.°, n.° 2); e transformação no plano político (artigos 50.°, 81.° e 286.°).
A qualquer um destes três diferenciados, mas convergentes, aspectos de transformação estrutural da sociedade portuguesa se referiu Vasco Gonçalves a cada passo. Indico, de entre os inúmeros possíveis, alguns exemplos mais significativos.
Quanto à revolução económica considere-se esta passagem do seu discurso na Sorefame, em 17 de Maio de 75:
«O tempo da Revolução portuguesa depende decisivamente dos triunfos no campo económico, de relançamento em moldes socialistas, de uma economia empobrecida pelas distorções do processo, pela dependência do capitalismo internacional em crise aguda, pelos obstáculos semeados constantemente no caminho que até agora percorremos.»(150)
Quanto à revolução cultural, atentemos nesta passagem que se colhe das suas palavras na Assembleia do Movimento das Forças Armadas, em 25 de Julho do mesmo ano:
«Nós precisamos de fazer uma revolução cultural. Essa revolução cultural, esse chavão, essa palavra, corresponde a quê? Corresponde, de facto, a pôr-se a consciência social de acordo com a via de transição para o socialismo. Isto não é fácil, é muito difícil. Leva anos e anos de serviço. Isto necessita de um Estado forte, de autoridade, de disciplina revolucionária, uma autoridade revolucionária que esteja de facto polarizada para caminhar para o socialismo.»(151)
No que concerne, finalmente, à revolução continuada (e a continuar) no plano político, Vasco Gonçalves teve frases também decisivas. Uma primeira, a do discurso proferido em 8 de Maio de 1975, no aniversário da queda do fascismo na Europa:
«Uma revolução no sentido do socialismo, como a nossa, implica o controle progressivo dos meios de produção pelos trabalhadores bem como a garantia de que as mais-valias criadas se aplicam em benefício da colectividade. Implica também a existência duma democracia real, aberta a todas as liberdades, excepto à liberdade de explorar. Nenhuma via socialista pode assentar em benefícios salariais imediatos, nenhum povo revolucionário consciente pode centrar a sua luta sobre o empolamento reivindicativo de tais benefícios.»(152)
Na «Análise da Situação Política» situava-se, entretanto, o problema político do poder na visão revolucionária:
«A questão central do socialismo é a questão do poder. Só a tomada do poder pelos trabalhadores permite estabelecer uma sociedade socialista (...). Ao afirmar-se que a questão principal do socialismo é a tomada do poder pelos trabalhadores faz-se uma afirmação estritamente baseada na análise lógica da realidade. De facto, a luta de classes não termina com a destituição do governo burguês, tal como a reprodução das relações sociais burguesas não cessa automaticamente ao nível das empresas e dos diversos aparelhos políticos e ideológicos com a simples estatização dos meios de produção.»(153)
É possível desmontar em vários momentos significativamente diferenciados a circunstância de se estar na Revolução. Vimos que tal facto complexo se constitui, fundamentalmente, com o estarmos no mundo ao nível da consciência.
Vou, porém, desbravar esta situação subjectiva (estar na revolução) na multiplicidade de faces do seu real e na gama de caminhos em que ela se gera, estrutura e justifica. Mais uma vez desenho o respectivo esquema, fazendo uma sequência organizada de passagens extraídas dos discursos, conferências de imprensa e entrevistas do Companheiro General. Vasco Gonçalves só formulou conceitos ou expendeu ideias (como salientei a abrir este livro, nos «parâmetros sobre um dizer-fazendo»), a propósito dos momentos concretos da sua actuação política. Nesta conformidade, estudar a pessoa intelectual e política do Primeiro-Ministro dos II ao V Governos Provisórios exige de nós um constante trabalho de procura, de dissecação e de remontagem.
Estar no mundo ao nível da consciência é questão que implica, desde logo, o confronto entre a realidade objectiva e o pensamento. Aquela constitui a matéria-prima sobre a qual este trabalha. Não é o ponto de vista que produz o objecto porque é, ao contrário, o objecto que provoca o ponto de vista.
Por outras palavras: a realidade existe independentemente da nossa consciência; os conceitos não nos nascem arbitrariamente na cabeça.
Mais de uma vez assinalou Karl Marx que os homens não começam por estar em relações teóricas com o real.
Ora Vasco Gonçalves representa um exemplo extremamente notório desta verdade. Uma relação prática (que ele sempre guardou) com a realidade histórico-política, eis aquilo que constitui o ponto de partida e o fundamento da sua dispersa e circunstancial actividade teórica. Os conceitos ao Companheiro General, nasceram-lhe da prática política, sintetizando o que previamente na realidade se tinha verificado.
Julgo que estabelecerei assim, muito correctamente, e nos seus particulares momentos teóricos, o esquema da acção política de Vasco Gonçalves:
Este esquema é, com efeito, o de uma sequência que vou documentar. E vale também, desde já, a afirmação importante de que Vasco Gonçalves não incorreu nunca no vício voluntarista de forçar a realidade. Muitos dos ataques que lhe fizeram, andaram injustamente à volta deste ponto.
Face à «alternativa» histórica portuguesa com que se defrontou — ou Revolução ou reacção — Vasco Gonçalves mediu-lhe, corajosamente, as condições e a força. Andou para a frente, em suma, mas com a ousadia adequada às exigências concretas do processo.
Só que não foram na verdade poucos os que, apostados «filosoficamente» no remanso da sua situação de classe, se assustaram, se apavoraram mesmo, com tal marcha. Para eles o Primeiro-Ministro era um «descarrilado», da realidade. Diziam que ele, em vez de se limitar a pensar (ou a repensar, como agora está na moda escrevente de uns tantos nefelibatas da Cultura), o que pretendia era transformar e transformar. Vasco Gonçalves — parece-me que nos quis assegurar, neste sentido, Eduardo Lourenço — teria sido um insuperável cego.
Cito e transcrevo, uma vez mais, de O Fascismo nunca existiu.
Em dado passo o seu autor caracterizava (?) assim a actuação política do então ainda Primeiro-Ministro, reportando-se ao total do seu efectivo governo:
«... o seu comportamento tem pouco a ver com razão e lógica e tudo com a paixão revolucionária concebida como guia infalível da acção. Bem português nisso, Vasco Gonçalves irá até às últimas consequências da sua lógica revolucionária, não por incapacidade teratológica de perder um poder que visivelmente o transfigura como a um ídolo do estádio, mas porque em política, como no resto, reina, soberana, a lei da inércia. Não se espere que o General Gonçalves se converta a uma mais realista visão do projecto revolucionário.»(154)
Mas que atestado foi este?
Acaso o «passou» Eduardo Lourenço a propósito de Vasco Gonçalves, como pessoa esquerdista ou imatura? Ou apresentou-se ele, o que até parece que resulta dos seus termos algo generalizantes, como relativo à própria maneira de ser de todo um povo?
Eis de novo, é o que é, a gratuitidade inteligente. De novo incorreu nela o autor de Heterodoxia, a respeito de um homem simples que tão capaz foi de lhe perturbar a paz ordenada das ideias. E — coisa curiosa, que desnuda a fraqueza tão comum aos intelectuais perante as duas realidades da vida! — sendo indiscutivelmente um probo intelectual de esquerda, Eduardo Lourenço incorreu nesta grave injustiça precisamente a partir do momento em que a Revolução de Abril ganhou decisivo rumo a favor das classes oprimidas.
Bem ao contrário, porém (e que se se me perdoe a vaidade), eu julgo pertencer ao número daqueles que entenderam o papel objectivo, concreto, revolucionário, do sucessor-opositor de Palma Carlos. Implacavelmente lúcido, com um elevado grau de captação do real português e a coragem necessária para assumir as gigantescas tarefas do Movimento em que tomou parte, Vasco Gonçalves fomentou e promoveu a Revolução. Pelo menos com a verdade, daqui não há que sair.
Para não as dizermos gratuitas, necessário era que ao escrever aquelas palavras nos tivesse Eduardo Lourenço demonstrado, sem sombra de hesitação, que Vasco Gonçalves fora o tal cego insuperável; que, por consequência, tinha agido em desacordo com as leis objectivas da História, que introduzira elementos de perturbadora casualidade no processo; que havia desrespeitado a aptidão das forças produtivas para uma nova estrutura; e que, em suma, tinha atentado contra a luta de classes nos termos em que esta sucessivamente se definiu ao tempo da sua governação.
Pretender-se, como ao contrário fez Eduardo Lourenço, que o comportamento de Vasco Gonçalves pouco teve a ver com a «razão» e a «lógica», não passando de «paixão» descontrolada, e que, como governante, este foi pessoa incapaz de se converter a uma «visão realista» do projecto revolucionário, vale o não se ter entendido nada desta coisa simples: que as grandes e irreversíveis conquistas da Revolução de Abril (as nacionalizações, o controle operário, a Reforma Agrária) muito e inesquecivelmente lhe devem. E é de extrema importância termos a noção de que, sob certas condições históricas, lá aparece a personalidade política conveniente ao avanço das forças progressistas.
Aliás, o 28 de Setembro — etapa do processo que, contraditoriamente aos desígnios da reacção, consagrou Vasco Gonçalves no poder — decerto não foi uma aventura fortuita. É, por isso, verdadeiramente grande este homem que, ajudando (como ele fez) as classes de vanguarda, para se consolidar um regime progressista, altamente contribuiu com todos os seus actos para o avanço revolucionário da sociedade portuguesa.
Contra a abstracta acusação de Eduardo Lourenço, a realidade manifestou-se outra. Só um homem como o Companheiro Vasco, dotado de grande capacidade e de qualidades pessoais extraordinárias, de viva inteligência, de inesgotável energia, de espírito de iniciativa, de resolução e de audácia intrépidas, podia ter executado, sem nunca vacilar, as duras tarefas que a História lhe reservou.
A História mostrará... (mas que digo eu, se ela o vem mostrando já?!) como o comportamento de Vasco Gonçalves tinha, rigorosamente, a ver com a razão e a lógica. Não, é óbvio, com estes conceitos assim atirados para o leitor na insignificância do vazio. A razão e a lógica de Vasco Gonçalves não eram, como continuam a não ser, duas categorias neutras. Elas representavam (e representam) a razão e a lógica dos oprimidos e explorados.
Posto isto, afigura-se-me a altura de voltarmos sem mais delongas, e agora ilustradamente, ao esquema da política de Vasco Gonçalves enquanto desdobrável nos momentos em que ele a definiu. Começarei, como é evidente, por assinalar algumas passagens de textos e declarações de circunstância em que por ele nos é colocado o problema de se estar na Revolução como acção de esclarecimento ao mesmo tempo próprio e recíproco.
Ficou dito e redito: a primeira necessidade prática e teórica do revolucionário é a de estar consciente. Advertia, pois, o Primeiro-Ministro do então II Governo Provisório, no fecho da comunicação que pela RTP fez em 18 de Agosto de 1974:
«A primeira condição para vencer as dificuldades é conhecê-las, é ter bem consciência delas, o que exige, em todos os instantes, uma política de verdade por parte dos dirigentes.
É com base nessa política de verdade e no esforço de todos os portugueses, qualquer que seja a classe social a que pertençam, que se construirá o Portugal democrático, próspero e independente, que desejamos.»(155)
A mesma ideia Vasco Gonçalves a expendeu em 28 de Novembro seguinte, durante a abertura solene das aulas na Academia Militar:
«Nós devemos consciencializarmo-nos dos nossos problemas, chamar a atenção para eles.»(156)
Só a consciencialização permite que ultrapassemos a visão extremamente elementar, falsa, ou até anedótica, das circunstâncias. Só ela consente que captemos o sentido do real. E querendo assim, o mais singelamente possível, fazer ver esta verdade linear, cerca de um ano depois, em 25 de Julho de 1975 o Companheiro General lançou na Assembleia do MFA este curioso apelo para que os seus camaradas de armas —para que todos os portugueses, enfim— procurassem ver para além do simplismo enganatório:
«Se a gente pensa que as lutas entre o Partido Socialista e o Partido Comunista são lutas entre o Benfica e o Sporting, não há dúvida nenhuma de que nós estamos afundados e vamos para o fundo. Agora se pensarmos que são lutas muito mais profundas, são lutas através das quais se manifestam as lutas de classes e os objectivos finais dos seus estratos sociais, então já podemos ver com muito mais nitidez essas lutas.»(157)
A aquisição de uma determinada consciência, eis o que se converte em poder material da classe que se propõe à luta. O trabalhador só é revolucionário, na medida em que tem consciência da sua necessária hegemonia social e a leva à prática. Daí poderá provir-lhe, e decerto lhe provém, um conto renovado, transformado, não burguês, de patriotismo.
Acontece também com os outros sentimentos humanos: o patriotismo é engendrado, como elemento da consciência, por condições sociais e económicas. Por isso, ele constitui um fenómeno cujo conteúdo varia consoante as épocas históricas, tendo ganho particularíssima importância no tempo em que os Estados nacionais se começaram a formar. Foi o período de ascensão do capitalismo, quando a burguesia, tendo destruído o modo de produção feudal, unificou as nações.
Dizer «patriotismo», nesse tempo cujas culminâncias foram Mancini, Garibaldi, Bismarck e outros, significou dizer «espírito de nação» ou «sentimento nacional». À medida, porém, que as contradições antagónicas verificadas entre as classes burguesa e operária se foram agudizando, o patriotismo burguês caiu numa vileza cada vez mais inumana. Sob a capa disfarçante de constituir um sentimento digno, aferrou-se a burguesia a uma política de conquistas, semeando ódios entre os povos e conflituando as nações.
Aliás, para conservar incólume a sua pretensão de lucros máximos, a burguesia acabou por atraiçoar os interesses da sua própria comunidade nacional. A sujeição (patriótica?!) ao imperialismo é, nos tempos modernos, o facto histórico que melhor caracteriza o comportamento das burguesias dos vários países capitalistas. Isso mesmo afirmou Lénine a propósito da Revolução de 17 e dos futriqueiros que a entravavam:
«A Revolução Russa — escreveu ele — demonstrou, uma vez mais, que as classes exploradoras, quando se trata do seu poder e da sua propriedade, esquecem todas as suas frases sobre o amor da pátria e da independência, vendem mesmo a pátria e, contra o seu próprio povo, mercadejam negociações com as forças reaccionárias de outras partes, quaisquer que elas sejam.»(158)
No que a Portugal concerne, ficou bem saliente este facto e não passaria despercebido aos olhos de críticos e observadores. O modo característico de agir de um sector da burguesia portuguesa, que só em palavras optou pela demanda do Socialismo, mereceu a Louis Althusser este reparo em carta escrita no Verão quente de 75 a Luís-Francisco Rebello:
«Não posso nem quero entrar no pormenor dos conflitos existentes entre o PCP e o PS. É possível que o PCP tenha cometido erros de juízo de valor. Por outro lado, é absolutamente evidente que Mário Soares, por anti-comunismo ou cegueira, forneceu uma caução inesperada à campanha imperialista internacional contra a Revolução portuguesa e contribuiu para desencadear no país uma ofensiva que se pode tomar incontrolável, isto é, perfeitamente controlada pela reacção e pelo fascismo. E seria ingenuidade pensar que o próprio MFA possa escapar às iniciativas da reacção, capazes de surgir no seu próprio seio.»(159)
Os destinos da pátria, a sua emancipação relativamente à exploração internacional, a criação de condições favoráveis ao seu pleno desenvolvimento, tudo é inalienavelmente próprio de um interesse vital das massas trabalhadoras. Ninguém se lembrará, por certo, de interpretar à letra, e isoladamente aquelas palavras do Manifesto de 1848, que enunciam o princípio de que «os trabalhadores não têm pátria». Quaisquer equívocos sobre o sentido desta declaração unicamente poderão ter resultado de nem sempre se observar a leitura no contexto integral. Este recusa, evidentemente, um conceito chauvinista ou social-chauvinista de patriotismo(160).
Ao começar o seu discurso no Congresso dos Sindicatos, dois dias após a intervenção que tivera na Assembleia do MFA há pouco referida, sustentaria também Vasco Gonçalves uma categoria revolucionária de patriotismo. Segundo ele,
«o fortalecimento da consciência de classe dos trabalhadores portugueses é o fortalecimento do patriotismo português»(161).
Não alimentemos, porém, fáceis ilusões. A caminhada é árdua e exigente.
Em primeiro lugar, muitos não têm noção da objectividade das leis do desenvolvimento social. Nem todos vislumbram, em cada acontecimento, como se verificou a sua acção determinante. Não abundam, enfim, os capazes de confrontar os factos com as leis sociológicas — quer com as leis mais gerais, as que regem todas as formações económico-sociais, ainda que actuem distintamente, de acordo com as condições históricas concretas da formação de que se trata, quer com as específicas desta ou daquela formação, como é o caso da lei da luta de classes, a propulsora da História, que evidentemente só actua nas sociedades em que existem classes antagónicas.
Em segundo lugar, no que se prende ao quotidiano de cada um e por circunstâncias ligadas a nós próprios, a consciência a cada passo se atrasa. Nós estamos condicionados, dando ou não por isso, pela «inércia» que, como se sabe, não é casual. E a burguesia, classe dominante, utiliza-se de todos os meios para que a sua ideologia penetre e estabilize fundo nos corpos e nas almas de todos os membros da sociedade. Aliás, se cada classe tem uma atitude diferente face à chamada herança ideológica do passado, as classes reaccionárias, por exemplo, pegam nas ideias conservadoras do pretérito, ideias socialmente paralisantes e vão de adaptá-las às novas condições históricas e aos seus interesses. É bem sabido como os ideólogos do imperialismo não hesitam em aproveitar-se da escolástica e do misticismo mediavalista para escravizarem espiritual e materialmente os trabalhadores.
Este é, pois, um dos pontos delicados e esquivos, mas irrecusável, de todas as revoluções. Há que promover o acertamento da consciência com a situação concreta do desenvolvimento material da sociedade.
Recordaria como O Capital consagra esta verdade através de uma imagem singular:
«Dom Quixote — escreveu Karl Marx — teve de arrepender-se por haver acreditado que a cavalaria errante era compatível com todas as formas económicas da sociedade.»(162)
A questão, na verdade, está em verificarmos que a consciência social das massas trabalhadoras deve procurar o compasso com o desenvolvimento material da sociedade.
Em vários trechos dos seus discursos, conferências de imprensa e entrevistas, mostrou Vasco Gonçalves as suas preocupações relativamente a este problema. Reconhece o Companheiro General que, por vezes, a consciência social se atrasa em relação ao desenvolvimento social. E detecta as respectivas causas, de entre elas o peso daquela inércia a que há pouco me referia.
Veja-se, por exemplo, esta passagem da entrevista que deu ao Diário de Notícias em 25 de Abril de 1975 — isto é, pouco mais de um mês sobre a nacionalização da banca e dos seguros:
«Pergunta — As recentes decisões do Conselho da Revolução definiram para o nosso país um futuro socialista. Que forças e perigos pensa que podem opor-se à concretização dessa linha?
«Resposta — São principalmente as forças ligadas ao capital monopolista nacional e internacional, que tem levado fortes golpes, mas não está inteiramente destruído. É por isso que a nossa primeira finalidade reside na destruição do poder dos monopólios e dos latifúndios. Por outro lado há certas camadas e sectores da média burguesia, e mesmo da pequena burguesia, que não compreendem este processo. Há todo o peso de uma cultura centenária e portanto com muita influência no desenrolar deste processo. O problema da consciência social que, de um modo geral, se atrasa em relação ao desenvolvimento dos processos a nível económico, a nível das relações materiais de produção, etc. A consciência social atrasa-se e este desajustamento faz que as pessoas também possam aderir a movimentos reaccionários. Esses interesses, que estão sendo combatidos e destruídos, não cedem facilmente.»(163)
Na Conferência de Imprensa de Bruxelas, que teve lugar em 31 de Maio seguinte, voltaria ainda Vasco Gonçalves a abordar a mesma questão:
«A consciência social das classes trabalhadoras não reage automaticamente à evolução e às transformações que se operam à sua volta. De resto, isto passa-se com todas as pessoas. Todas as pessoas são naturalmente conservadoras; nós também somos conservadores nos nossos hábitos, nos costumes, até nas nossas ideias.»(164)
E na intervenção de 25 de Julho, feita como se sabe na Assembleia do MFA, reafirmaria mais uma vez o Companheiro General o teor destas ideias. Insistia, então, sobre o problema do ritmo da Revolução e sobre a necessidade de se levar a cabo uma revolução cultural:
«Há pessoas que até falam que a gente já podia ter feito uma revolução cultural depois do 11 de Março. Três meses se passaram sobre essa data e as pessoas não têm consciência, não têm ideia de que a consciência social não acompanha automaticamente os processos materiais de desenvolvimento. Todos nós sabemos isso, da vida quotidiana, quando observamos certas coisas na rua e vamos pensar nelas para casa. Isso não é um atraso na consciência, em relação ao facto material que observamos?
Então, nos processos históricos muito mais; se a gente pensasse quantas centenas de anos levou a descobrirem-se as leis fundamentais do capitalismo depois do capitalismo existir, quantas centenas de anos levou a descoberta dessas leis, isso não representa o tal atraso da consciência social em relação aos problemas económicos e sociais? Para que estamos admirados, até pelas incompreensões do nosso povo? Agora diz-se muito que o povo está contra nós. Isto também não é mais do que um atraso da consciência social em relação aos processos materiais. E claro que esse atraso tem de se colmatar pelas vias do desenvolvimento, até por processos materiais, mas também pelas vias da relação cultural.»
E depois, afirmando e interrogando-se simultaneamente, rematou Vasco Gonçalves a questão do confronto entre a consciência e a realidade social objectiva com esta frase (que já reproduzi atrás, mas agora completo):
«Nós precisamos de fazer essa revolução cultural. Mas essa revolução cultural, esse chavão, essa palavra, corresponde a quê? Corresponde, de facto, a pôr-se a consciência social de acordo com a via de transição para o socialismo. E isto não é muito fácil, é muito difícil. Leva anos e anos de serviço. Isto necessita de um Estado forte, de autoridade, de disciplina, mas uma disciplina revolucionária, uma autoridade revolucionária que seja de facto polarizada para caminhar para o socialismo.»(165)
Gramsci mostrou-nos que produzir uma nova cultura não vale apenas o fazermos, individualmente, descobertas originais. Significa, muito mais até, o difundirmos criticamente as verdades já de nós conhecidas. Isto é: produzir uma cultura nova significa socializar as descobertas que são nosso património(166).
Esta foi, aliás, a posição constante do Primeiro-Ministro dos II, III, IV e V Governos Provisórios. As palavras da sua intervenção na Assembleia do MFA constituíram, neste sentido, o eco de uma persistência que vinha de muito antes.
Repare-se, com efeito, nas que já tinham sido proferidas em 30 de Novembro de 1974, na Estação Agronómica de Oeiras:
«Quero dizer: se cada homem que daqui sair, ou cada mulher, forem polos de irradiação de ideias positivas que aqui se forjarem, que se formularem, irão transmitir essas ideias a outros homens e contribuir para uma verdadeira revolução cultural entre os portugueses, que é preciso realizar. Porque nós precisamos de realizar uma revolução cultural para combater as sequelas do fascismo.»(167)
Mas aquela afirmação de Gramsci (mais completamente no teor da nota de rodapé n.° 166) pode implicar uma melindrosa questão. Até que ponto, com efeito, uma revolução cultural se arrisca a esmagar a autonomia consciencial de cada um?
Esta a pergunta. Porém, com a clara noção das acusações clássicas feitas nessa matéria, designadamente agora polarizadas contra ele, ir-lhe-ia responder Vasco Gonçalves no seu discurso do Dia Mundial do Trabalho:
«É necessário promover uma autêntica revolução cultural no seio do nosso Povo, abrir o nosso Povo a ideias novas.
E que quer isto dizer?
Quer dizer que pretendemos lavar o cérebro dos portugueses?
Não, não queremos isso. Queremos que vos torneis cada vez mais instruídos, mais conscientes, que deiteis fora mitos ancestrais, medos temerosos, preconceitos que vos foram metidos no vosso próprio ser, logo a partir de criancinhas, logo a partir do berço. Isso é difícil de retirar, mas com esforço, com ajuda mútua, com um trabalho comum, com o exemplo próprio do trabalho, com a crítica dos actos quotidianos, vós podeis revolucionar as vossas mentalidades, vós podeis abarcar as novas ideias, pelas quais é necessário que nos guiemos para a construção do Portugal do futuro.»(168)
Ecoou, depois, nessa memorável jornada do Estádio 1.° de Maio, um apelo às consequências últimas da consciência iluminada:
«Há que ver as coisas com calma, com lucidez. Há que se estar disposto a sacrificar-se pela revolução — é necessário que os trabalhadores e o Povo Português se consciencializem de que nós seremos a geração do sacrifício, a geração que se sacrifica pela revolução portuguesa. Sois vós, somos nós aqui, ali, a começar no Presidente da República e a terminar no trabalhador mais modesto.»(169)
Uma Revolução Cultural, enfim, o que nos propôs Vasco Gonçalves para submetermos as sequelas do fascismo. E quais sequelas ? — perguntaremos nós.
Elas são muitas, claro.
Identifico, entretanto, mais genericamente três:
No que respeita à apoliticidade das massas lembrarei aquilo que Vasco Gonçalves declarou à revista brasileira Manchete, em 27 de Julho de 1974, pouco mais de uma semana sobre a sua posse como Primeiro-Ministro do II Governo Provisório.
Então ele pensava já, decerto, em termos de uma exigência democrática de esclarecimento cívico:
«A apoliticidade dos portugueses, era um dos mitos de que o fascismo lançava mão para oprimir o nosso Povo.
Não irei ao ponto de afirmar, evidentemente, que existe uma grande “consciência política” em Portugal, mas acredito que o povo português e os partidos mais representativos saberão no prazo indicado, adquirir a maturidade suficiente para poderem exprimir conscientemente, por meio de voto, a sua vontade.»(170)
Sobre a demagogia dos opressores, referiu-se a ela o Companheiro General, por exemplo, no discurso comemorativo do 5 de Outubro. Foi na Câmara Municipal do Porto.
Contra essa demagogia opôs Vasco Gonçalves o alerta de um lúcido entendimento dos factos:
«O Povo tem de estar atento contra os demagogos, contra aqueles que se servem de figuras da nossa Pátria ou de valores que calam fundo no nosso coração, como a nossa bandeira ou como o nosso hino. É preciso que o Povo português não se deixe arrastar pelos demagogos que se servem, precisamente, do que lhes é mais caro para enganar, para o levar por maus caminhos...»(171)
Finalmente, sobre esse tal utilitarismo capaz de distorcer os objectivos fulcrais da Revolução, evoco uma significativa passagem das palavras de Vasco Gonçalves, proferidas no Teatro de S. Luís, em 8 de Maio de 1975, na sessão comemorativa da queda do nazismo na Europa:
«Uma revolução, por mais pura que seja a sua linha teórica, não sobrevive à completa degradação económica e, particularmente, a economia portuguesa não comporta mais encontrões. Quem são as vítimas principais, e quem recolhe os benefícios da desintegração económica do País? É suficientemente claro, e os trabalhadores devem analisá-lo com a cabeça fria.
A consciência revolucionária do Povo, demonstrada em 28 de Setembro e em 11 de Março, não deve permitir que se deixe espartilhar a Revolução por baias imediatas e exclusivamente utilitárias.»(172)
Ainda a propósito deste primeiro momento lógico da acção política de Vasco Gonçalves (esclarecer-se e esclarecer) seria possível abordarmos muitos outros aspectos. O do esquerdismo, por exemplo. Antes de mais, ele está estreitamente ligado ao problema do esclarecimento político.
Na Conferência de Imprensa que deu em 8 de Abril de 1975, salientou Vasco Gonçalves, efectivamente, que o esquerdismo é um dos resultados da falta de esclarecimento:
«Penso que o esquerdismo, digamos assim, no seu mau sentido, é um dos problemas que enfrentamos no nosso País, e não só aqui no nosso País; julgo que ele é um trago da nossa falta de politização; quer dizer: as pessoas não estudam convenientemente as realidades; as pessoas são muito novas, ouvem os slogans atiram-nos cá para fora sem preparação.»(173)
Mas não desenvolverei este aspecto, que só por si daria um volume. Com o que ficou dito, e com aquilo que, relativamente aos momentos lógicos posteriores (que estruturam a ideia de estar na Revolução), ainda vem para se sujeitar ao processo documentarial que sigo neste livro, ficaria desmesuradamente grande o presente capítulo.
Passo, portanto, ao segundo momento dos que encontro em Vasco Gonçalves como significativos de se estar na Revolução. Progressivamente formada a consciência, fica o sujeito nas condições de se decidir, de preferir, de eleger.
A sequência lógica é assim esta: depois de conhecer, vem o momento de optar.
Há, todavia, quanto a este ponto, um risco de equívoco que importa desfazer de imediato.
O problema, sem dúvida, é o da ligação das ideias com o mundo. De modo nenhum, porém, eu quero afirmar que, sendo a opção, na ordem cronológica, um momento posterior à formação da consciência, constitua esta o ponto de partida. Sabemos — e repetimos — que não é a consciência que gera o mundo real, mas este, como externa objectividade, é que determina o pensamento.
Nesta maneira de solucionar a velha questão das relações entre o «ser» e a «consciência» se exprimiu a revolução operada por Marx na Filosofia — a da grande inversão da especulação para a prática.
E daí a conhecida «regra» de que a consciência não poderá ser outra coisa mais do que o ser consciente. E daí também esse fulcro do materialismo histórico cujo tema central já surpreendemos em O 18 Brumário:
«Os homens fazem a sua própria História, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam directamente...»(174)
Que margem subsiste, então, para nós optarmos?
Isto é: que limites se nos impõem para actuarmos em escolha, momento lógico que secunda o da consciencialização ?
O levantar do Sol pela manhã, disse alguém, é um fenómeno da natureza que não se encontra ligado, nem como causa nem como efeito, às relações humanas. Por isso mesmo, ele não pode ser oposto, enquanto facto natural, às aspirações conscientes. Mas outro é, evidentemente, o caso dos factos sociais: a História é feita pelos homens de uma maneira e não de outra, em consequência de determinada necessidade objectiva.
Seria oportuno enveredarmos aqui pelo estudo das relações entre a liberdade e a necessidade. Teríamos então de falar de Espinoza. E de Hegel. E também no Engels do Anti-Dühring(175).
Isso levar-nos-ia à conclusão segura de que Vasco Gonçalves tem exacta noção da concepção dialéctica da liberdade. Mostrou-o falando de «quadros» e das reacções entre estes e os trabalhadores, designadamente sob o jugo do fascismo:
«Eles julgavam que eram livres, ou mais livres que os trabalhadores, mas não eram, porque uma pessoa é livre na medida em que conhece mais, em que é mais instruída, em que conhece melhor os processos, não é na medida em que tem mais automóveis, mais sofás, ou mais frigoríficos.»(176)
O verdadeiro conteúdo dos sistemas que fazem época são as necessidades do seu tempo.
Por exemplo: com a queda política do fascismo, em 25 de Abril de 1974, sentiu-se mais vigorosamente, como necessidade irrecusável, dar-se livre curso à lei social da luta de classes, agora já não reprimida pela força «policiária» da PIDE/DGS — manifestando-se, portanto, como única forma capaz de propulsionar a revolução económico-social da jacente formação capitalista. A opção das massas trabalhadoras portuguesas mais conscientes correspondeu, logo após o 25 de Abril, à acção determinante das forças produtivas, ampliadas no país, designadamente, como resultado das guerras coloniais.
Abordou Vasco Gonçalves este tema da opção em vários ensejos da sua intensíssima acção política. Estar na Revolução é não ser neutral. Optar de acordo com as condições objectivas, que fortemente nos determinam, não é (como equivocamente já quis Cornélius Castoriadis, que foi alma da extinta revista Socialisme et Barbarie) esmagar a luta de classes.
Antes pelo contrário.
Na aludida sessão comemorativa da queda do nazismo na Europa, em 8 de Maio de 1975, Vasco Gonçalves contrapôs a Revolução à reacção, e o Socialismo ao capitalismo:
«Sob pena de que a Revolução se perca, o Povo Português tem de saber distinguir as suas verdadeiras opções e estas são:
— Revolução ou reacção.
Não se põem neste momento, tal como desde o início, questões de pormenor. Não estamos perante problemas que digam respeito à roupagem da via para o socialismo. Tais questões podem levantar-se para camuflar o problema de fundo, para criar divisões entre os trabalhadores, para confundir as mentes. Mas o problema é ainda:
— Socialismo ou capitalismo.»(177)
E dias depois, a 17 do mesmo mês, reafirmou o Companheiro Vasco, perante os trabalhadores da Sorefame, a mesma alternativa:
«Mas, repito, a revolução só suporta duas situações: ou se está com ela ou contra ela. Não há tipos que possam dizer “eu sou neutral, não me interessa nada a política”. Não, hoje não se pode dizer isso; só há duas posições, ou estamos na Revolução, ou estamos contra a Revolução. Os quadros, portanto, também têm de fazer a sua opção, se não a fizeram já. Não há meio caminho nesta tarefa em que nos metemos e que põe a nossa própria vida, o nosso futuro, em jogo. Não há meios caminhos nem meias tintas; há só um caminho ou há a rejeição desse caminho. E nós estamos apostados em seguir nesse caminho, em seguir para a frente, para os destinos gloriosos, para os destinos radiosos, de uma pátria que seja de todos os portugueses.»(178)
Obviamente, nunca é demais encarecer a extrema importância da passagem do primeiro momento revolucionário — «esclarecer-se» e «esclarecer» — para o segundo — «optar conscientemente». A contra-revolução apercebe-se dela e procura influenciar os modos em que os indivíduos se fixam. Foi assim que o fascismo conseguiu usufruir verdadeiro impacto popular em alguns países, designadamente na Itália e na Alemanha. Tomou-se aí possível tal fenómeno por múltiplas coordenadas explicativas, todas se reconduzindo às motivações de uma opção política cuidadosamente provocada. Nicos Poulantzas, por exemplo, estudou em particular a ingerência de engrenagens estatais especificamente constituídas para o efeito(179).
No ponto 2.1 da «Análise da Situação Política», de Julho de 1975, abordou-se também a questão da opção — salientando-se, aliás, a necessidade da sua maior amplitude. Essa, forçoso é reconhecer, constitui a única forma eficaz de combater tais engrenagens:
«A ideologia da revolução socialista, porque a revolução visa a libertação de toda a sociedade, não se restringe aos produtores directos, mas também a todos os elementos, procedentes embora doutras classes, que renunciem aos interesses estreitos da sua classe de origem e lutem concretamente pela vitória do socialismo.»(180)
Aliás, asseverava Vasco Gonçalves na Assembleia do MFA, de 27 desse mesmo mês, como Primeiro-Ministro do então IV Governo Provisório:
«A opção de classe (...) implica a opção pelo socialismo. Uma coisa é falar em opções de classe, outra coisa é assumi-la.»
E depois, referindo-se
«à necessidade de ultrapassar preconceitos que estão ligados à origem de classe, de quem pretende defender os interesses de uma classe historicamente antagónica»,
Vasco Gonçalves concluía:
«É o nosso caso. Nós, com o nosso idealismo, com a nossa generosidade, com a nossa inteligência, nós desejamos defender as classes desfavorecidas. Essas classes, evidentemente, são historicamente antagónicas das classes a que nós pertencemos. Mas nós, por um esforço de lucidez, de vontade política, poderemos vencer, ou poderemos não vencer, se não fizermos esse esforço.»(181)
Todas as lutas históricas, que se desenvolvem no terreno político, religioso, filosófico, ou noutro campo ideológico qualquer, não são mais do que a expressão de conflitos de classe. Esta, a grande lei descoberta por Marx e Engels. Para as Ciências Sociais ela tem relevância paralela à lei da transformação da energia para as Ciências Naturais.
Disse-o também Vasco Gonçalves e já o transcrevi páginas atrás. Durante 74-75, as contendas que se processaram entre o PS e o PCP não constituíram, repito, meras lutas entre um Sporting e um Benfica. Não se tratava de conflitos vazios de sentido político-social.
As alternativas propostas pelo Companheiro General entre Revolução ou reacção, e entre Socialismo ou Capitalismo, significaram no momento (e continuam, evidentemente, a significar) os termos de uma opção profunda.
Não duvido que foi por força de uma incapacidade voluntariamente assumida que se mostrou o PS inibido de entender as raízes daquelas dicotomias. Neste sentido, Eduardo Lourenço aludiria, em finais de Agosto de 1975, a uma «incapacidade do PS de se aperceber de que estamos em revolução, detectada relativamente a «gente», tão parecida ou tão diferente como Álvaro Cunhal, Rosa Coutinho, Vasco Lourenço, Otelo de Carvalho e, creio mesmo, Melo Antunes(182).
Incapaz, o PS, por incapacidade voluntária — não hesitarei em repetir. E aqui fica assinalado o melhor exemplo de uma dessas farisaicas atitudes em que a direcção do Partido Socialista tão frequentemente se desdobrou.
Revolução ou reacção — tinha contraposto Vasco Gonçalves como vias politicamente opostas e irredutíveis. Todavia, numa carta dirigida em 8 de Agosto ao então Presidente da República, General Costa Gomes, afirmava o secretário-geral do Partido Socialista:
«Nós, socialistas, que somos revolucionários, sem que para o sermos precisemos de pedir licença a ninguém (...), recusamos esse falso dilema, simplista e deformante da realidade portuguesa (...). O que está em jogo são duas concepções diferentes da revolução: uma, democrática, aberta a todas as novas, experiências autogestionárias e de democracia de base; a outra, totalitária, baseada num aparelho autocrático e burocrático de partido único, liberticida, autárquica e concentracionária.»(183)
Mas — Revolução de um lado e reacção do outro — acaso constitui já isto um dilema, seja verdadeiro ou falso?!
Poderá representar uma dilemática angústia, para quem expressamente se diz revolucionário, o optar por uma de duas posições antagónicas, significando Revolução precisamente uma delas?!
Parece, no teor dessas palavras da carta ao General Costa Gomes, que fugiu a boca para a verdade, ao Dr. Mário Soares, secretário-geral do PS. Isto é categórico: só poderia ter divisado a existência de um dilema (quero dizer, de um embaraço de que não haveria saída ou possível ou fácil) aquele a quem não agradasse nenhum dos termos da alternativa.
Nem Revolução, nem reacção!!!
Para o Dr. Mário Soares, enquanto ele próprio se dizia revolucionário, Revolução e reacção o que valiam era o constituírem dois polos opostos de um dilema, termos de uma contradição em que cada um se afigurava tão mau, tão detestável quanto o outro. Em linguagem muito directa, significou isto que o mais alto dirigente do Partido Socialista pôs no mesmo saco (de uma difícil desejabilidade) a via revolucionária e a não-revolucionária.
Tristes acidentes políticos, estes que acontecem sempre com os «revolucionários» da inconsequência! Com aqueles, enfim, que só pretendem a panaceira da democracia formal, as mezinhas da social-democracia!
Mais ainda, porém, se poderia dizer a propósito desta carta do Dr. Mário Soares.
O que sugere, por exemplo, a sua referência à democracia de base — uma invocação que constituiu um artifício demagógico que a prática dos dirigentes do PS, uma vez no poder (refiro-me, em parte, ao VI Governo Provisório e aos I e II Governos Constitucionais) desmentiria de todo?
Escusado será, com efeito, recordar toda a política anti-operária dos governos de predominância socialista.
E a recuperação capitalista e latifundista que favorecem.
E as largas que deram à acção do imperialismo, em grave prejuízo da independência nacional.
Aliás, no que concerne propriamente à «autocracia», ao «concentracionismo» e ao «executivo totalitário» que a tal carta dirigida ao Senhor General Costa Gomes tão «pressurosamente» imputa ao procedimento gonçalvista, quantos inequívocos exemplos disso tudo nos não deu a política dos governos do Dr. Mário Soares, a cada passo gravemente ofensiva dos trabalhadores?!(184)
Ou Revolução ou reacção — contrapôs, decisivamente, Vasco Gonçalves.
Nem Revolução, nem reacção — contrariaram, afinal, estes «revolucionários» formais, em negativa que foi também, para lá de tudo o que ficou dito, um modo de se confirmar a conhecida e insidiosa teoria do Portugal ferido pela tradição de uma passividade crónica.
Seríamos, enfim, um povo de ociosos, de boémios e de calaceiros! Estaríamos, psicológica e sociologicamente, condenados à demora, ao retardamento, à dilacção!
Mas não há entre nós estigmas desses, evidentemente. Trata-se antes de uma ideia pequeno-burguesa alheia às explicações básica e materialmente determinantes do nosso atraso social. Ideia, aliás, que a História pode contrariar no que se refere a certos períodos da existência portuguesa como Povo, mas que nas últimas décadas, por exemplo, o existencialismo sartreano favoreceu nos espíritos de alguns. Refiro-me ao conceito de «prática-inerte» que Sartre expendeu na sua Critica da razão Dialéctica: o utensílio apoderando-se do operário e impondo-lhe as suas exigências, apanhado o trabalhador, nas sociedades industriais, pela engrenagem da prática maquinal a pontos de ele resultar afectado de uma contumaz inércia.
Mas, inércias e passividades à margem, «avançar sempre no caminho da restituição deste país ao seu povo»(185) foi o lema da Revolução de Abril.
Vasco Gonçalves, por sua parte, insistiria sempre: a questão de avançar — aquela que coloco como terceiro momento lógico de toda uma prática revolucionária — representa-se como a consequência de se ter optado. E, por seu turno, tal consequência mostra-se o resultado do esclarecimento social e político.
Eis Vasco Gonçalves falando aos emigrantes portugueses em Bruxelas:
«A nossa consciência tem que se ir preparando para os passos que vamos dando em frente. E a gente deve dar os passos em frente que possam ser compreendidos pelo nosso Povo, para que ele acompanhe em cada instante a sua revolução. Nós não podemos dar passos em frente que não sejam compreendidos pelo nosso Povo. Ele tem que ir compreendendo, porque é ele o construtor desta revolução.»(186)
Por aqui se vê, além do mais, que a teoria política de Vasco Gonçalves está isenta do vício de dirigismo, que alguns tão reiteradamente lhe apontaram. Sem cair no populismo, e no espontaneismo, sem aceitar como princípio que as massas avançam sem necessidade de esperar por quaisquer coordenações políticas de governo(187), de modo nenhum o Primeiro-Ministro de quatro Governos Provisórios subtraiu à acção do povo o seu papel de motor(188).
Vasco Gonçalves significa, neste capítulo, pese a quem pesar, a busca da harmonia entre a acção dos homens do povo e a acção dos governantes. Por isso mesmo, ele afirmou mais de uma vez — assim também no discurso da Sorefame — que não haveria, com o 25 de Abril, diferença alguma entre uns e outros:
«Deverão os trabalhadores participar nos planos anuais das empresas, no estabelecimento dos preços dos produtos, na solução dos problemas salariais, na organização técnica da produção, na aplicação dos capitais, no estudo da distribuição e da colocação dos produtos (...). Para a realização das tarefas apontadas pelo Ministério da Indústria é indispensável a vossa participação, porque esta revolução é uma revolução de nós todos. Não há hoje, não deve haver, uma divisão entre governantes e governados. Esta Revolução é a nossa Revolução. Nós estamos aqui, mas estamos prontos a ir para aí, para o vosso lugar, e vós vindes para aqui. Isto é uma Revolução de todos nós.»(189)
«Dialéctica» é palavra que quer dizer «movimento» ou, talvez ainda melhor, «marcha para a frente». Avançar, portanto, é o que ela significa. Por isso, os revisionistas, os reformistas e a social-democracia rejeitam-na — compreensivelmente, aliás. Não tenho quaisquer dúvidas de que a supressão da dialéctica, relativamente ao método do pensamento socialista, retira o próprio Socialismo do processo histórico da luta de classes. Eis, assim, aquilo que um verdadeiro revolucionário não aceita e não pode mesmo admitir.
A intervenção de 15 de Julho de 1975, na Assembleia do MFA, abriria com a célebre expressão que nesta ordem de ideias, pode considerar-se ter ficado a caracterizar, entre nós, a teoria do avanço necessário como processo único de uma revolução:
«Nós temos avançado combatendo os nossos inimigos. Os obstáculos têm-nos obrigado a avançar, pois é esse o único modo de vencer as contradições. Assim cito a “questão Palma Carlos”, o 28 de Setembro, o 11 de Março. Devemos, ao analisar, por exemplo, estas três questões ter em atenção a graduação destas manobras: primeiro foi uma questão a nível de gabinete, a “questão Palma Carlos”; depois tratasse já de uma movimentação de marchas sobre Lisboa; ao final, o 11 de Março é já uma acção violenta. Estas coisas não acontecem por acaso e a gente deve ter bem a noção de quem são os nossos inimigos e quem são os nossos amigos. Dadas as características do monopolismo (do capital monopolista de Estado existente entre nós), aqui eu noto que muitos camaradas e muitas pessoas em Portugal não compreendem isto e acusam-nos de estar a impor ritmo acelerado à Revolução.»(190)
Com a queda política a que os seus múltiplos adversários obrigaram Vasco Gonçalves, dificultaram-se, sem dúvida, os avanços da Revolução de Abril. Observadores atentos hoje até diriam que tais avanços nem sequer existem — antes pelo contrário. Mas é do povo que parte em primeira mão o desenvolvimento do processo revolucionário.
Foi essa — sempre — a tese do Companheiro General, e ainda recentemente a reafirmou:
«Como já tive ocasião de referir, este período da vida portuguesa é um período raro, quase único na nossa História. Um período, repito, em que as massas populares estão em movimento, animadas de um projecto próprio de renovação da sociedade, de transformação da sua vida, de conquista da felicidade. É, portanto, um período que muito poucos portugueses têm tido a felicidade de viver ao longo dos oito séculos da nossa História. E eu, como cidadão, como português que esteve ligado a este processo, que o vivi tão intensamente, e que continuo a viver tão intensamente, não posso deixar de considerar que fui um homem feliz, foi uma grande felicidade para mim ter oportunidade de viver nestas circunstâncias, na minha Pátria.»(191)
Avançar — vimo-lo, designadamente quanto ao sentido eficaz de um processo continuado — constitui pois uma irrecusável exigência revolucionária. E uma imposição que expressamente decorre da nossa Constituição, como já o dissemos.
Promover medidas estruturais de cariz socialista representaria, assim, uma obrigação coerentemente básica do Partido Socialista. Nunca, porém, os dirigentes do PS cessaram de encontrar pretextos ditos de ordem prática, e motivações de algum modo teóricas, para exibirem as suas esquivas políticas. Contra as evidentes exigências de um avanço revolucionário, eles opuseram, por exemplo, a conhecida tese da não socialização da miséria.
Mas o que foi (o que é) semelhante coisa? Que signicado pode dela decorrer?
Que «originalidade» criou o PS invocando tal expressão pela forma negativa?
Foi um socialista francês, Charles Rapoport, quem declarou pela primeira vez, em 1917, a propósito da Revolução Soviética, esta regra política (?!), apresentada como necessária:
«Não se socializa a miséria!» — sentenciou Rapoport(192).
Falsa na sua proposta, ainda assim tal «regra» sempre tinha lugar admissível, para discussões mais ou menos académicas e numa polémica desse tempo. É que, na altura, estava em causa a oportunidade ou a inoportunidade da Revolução conforme os graus de desenvolvimento e a concentração da grande indústria neste ou naquele país. Invocada, porém, em 1974-1975 pelo PS português, com o seu indisfarçável ar de todo canastrão e despropositado, isso só por graça!
É preciso, na verdade, que se fale claro. O Partido Socialista — foi o que foi!... —, receando o avanço da Revolução em Portugal, não fez nada mais do que plagiar a fórmula de Rapoport. Aliás ridiculamente, porque a situou fora do seu tempo histórico. Já mesmo Victor Serge denunciara o seu artifício burlante no que concernia à Rússia de 17:
«Impossível o socialismo da miséria, nada resta senão deixar que a burguesia (...) organize em seu proveito, sobre as ruínas causadas pela guerra, a miséria dos trabalhadores. Esta, a triste lógica do reformismo.»(193)
Pretender-se (hoje) que, revolucionariamente falando, só é possível socializar a riqueza (dizer que a Revolução só é viável em países onde a burguesia haja percorrido o seu «ciclo normal», alcançados pois o desenvolvimento e a concentração do capital financeiro e o correspectivo aumento e fortalecimento do proletariado) equivale, pelo menos, a ignorar (ou a fingir que se ignora) a História. Sustentando a falsa regra da «não socialização da miséria», o PS voltou costas a todas as experiências revolucionárias ocorridas de 1917 para cá. O Partido Socialista —a nível das suas cúpulas, entenda-se — incorreu numa tosca desculpa de mau pagador, corolário da sua real vontade de não fazer socialismo algum.
Mas estar na Revolução é complexa situação dinâmica que, entretanto, tem — segundo o esquema que surpreendemos na teoria política de Vasco Gonçalves — um quarto momento lógico: avançar, sim, mas colectivamente.
Pouco adiantarei, porém, sobre ele, não obstante a sua decisiva importância. A acção colectiva é uma evidência de todas as revoluções.
Se o «golpe» de 25 de Abril se deu, sem dúvida, conforme um plano militar de oficiais, logo se verificou uma maciça participação popular, movendo-se as gentes. Foram os trabalhadores, os soldados, os marinheiros. Foi um frémito geral que nos atravessou em convergência de comportamentos. Aí estava o resultado de uma enorme adesão, puramente entusiasta no seu início, mas depois progressivamente consciente.
É conhecida e é típica, como fenómeno, esta convergência. Foi particularmente examinada por Lénine. O trabalhador, ao contrário do que acontece com o intelectual, nada é enquanto permanece isolado. Toda a sua capacidade de progresso ele a tira da organização, da acção sistemática comum, da acção colectiva.
Escreveu-se deste modo em 17 de Julho de 1975, no «Boletim» do MFA:
«O processo revolucionário em curso não é propriedade de nenhum partido político, nem sequer do MFA. O processo revolucionário terá de ser principalmente obra das massas populares e não poderá compadecer com políticas partidárias que não sobreponham o interesse nacional aos interesses dos partidos.»
E acrescentou-se:
«Vale a pena, num momento em que o processo revolucionário se afirma, e por esse facto enquadra novas contradições, vale a pena relembrar este pedaço da mensagem do Conselho da Revolução aos trabalhadores portugueses. Porque o povo é o motor e o agente da Revolução, ou ela não será Revolução, porque o Socialismo exige uma real participação popular em todos os escalões de decisão; porque uma sociedade que se apresente a caminhar para o Socialismo pressupõe, de quem detém a responsabilidade do poder (seja em que grau for), uma ligação permanente às massas, uma compreensão perfeita das suas ideias e necessidades e o estabelecimento de discussões democráticas, de formas de controle popular que sejam o necessário contrapeso da disciplina e autoridade necessárias a um regime que inicia, num país de características subdesenvolvidas, a marcha para o “Socialismo”.»(194)
Este texto, que sem dúvida diz não à chamada «revolução (burocrática) dos aparelhos», de modo nenhum apontava — como erradamente se chegou a aventar — a institucionalização do poder popular. Ele só fazia a advertência de que as «grandes lições de prática revolucionária nos vêm do povo» e que «o povo é a força principal de qualquer processo revolucionário». Ele recordava, em suma, a natureza necessariamente colectiva da acção revolucionária.
Aliás, um mês antes da sua publicação o mesmo fizera Vasco Gonçalves. Face aos trabalhadores da Sorefame, o Companheiro General apelou uma vez mais para o reforço da unidade como única forma de se avançar:
«Eu penso que vós deveis defender a vossa unidade como aquilo de mais precioso que hoje, neste momento tem a nossa Revolução. Vós tendes o direito e tendes o dever de terdes ideias políticas, diferentes uns dos outros. Mas acima das vossas divergências políticas temos os grandes objectivos nacionais a atingir. E os trabalhadores devem sobretudo ver o que é essencial na sua luta, ver o que é principal e não se deixarem enredar por questões e por lutas de pormenor e lutas de carácter secundário. A vossa unidade é aquilo que de mais precioso deveis defender. A vossa unidade forja-se no contacto quotidiano, nas discussões entre vós sobre os grandes problemas nacionais, sobre as tarefas que tendes de realizar. A vossa unidade resolve-se na crítica aberta, construtiva, desassombrada, no falar frente a frente com lealdade, com coragem, com franqueza...»(195)
Destas palavras se vê que a unidade dos trabalhadores não pode ser uma unidade cega. Ao diálogo plural, à crítica sem peias, à polémica das contradições (que não representam antagonismos de classe, mas perspectivas diferenciadas) a tudo isto incitava democraticamente Vasco Gonçalves. Ditas aos trabalhadores da Sorefame, mas proferidas para todo o país, tais palavras estabeleciam, uma vez mais, a ligação lógica entre os quatro primeiros momentos da acção revolucionária: consciencialização, opção e avanço — mas avanço massivo.
Era, afinal, a reafirmação daquilo que o Companheiro Vasco havia dito na entrevista à RTP, em 21 de Novembro de 1974:
«Se se quer, de facto, fazer progredir um país, fazer progredir o curso da democracia —económica e política— em todos os seus aspectos, as pessoas têm é que ser cada vez mais conscientes, mais lúcidas, mais trabalhadoras, para que possam transmitir essa lucidez, essa aplicação ao trabalho dos outros, e, assim, engrossar as suas fileiras, engrossar o campo daqueles que defendem verdadeiramente a democracia.»(196)
É sabido que a melhor formação teórica não servirá para nada, se se limita ao geral. Para que uma consciência teorizada se mostre eficaz na prática, torna-se necessário que ela exprima, justamente, a solução de problemas particulares. Aquele que espera uma revolução social pura, dizia Lénine, jamais a verá — e não é senão um revolucionário em palavras, um revolucionário que não compreende a Revolução. Daí a tentação da mescla, diríamos assim.
Empenhou-se, por exemplo, um Ernest Bloch em demonstrar a relevância prática da quimera utópica nas tentativas insurreccionais. Bloch fez isso numa atitude mista de fantasia e de realismo, quer em O Sentido da Utopia, de 1918, quer em Thomas Mumzer, de 1921. Para ele, o mito da emancipação define, uma vez conjugado com a análise das condições históricas, o duplo fulcro donde poderá sair a faísca com que deflagra uma revolta.
Evitarei negar que seja ou que possa ser assim. Esta duplicidade de causas (reais e míticas) invocada por Bloch não prejudica a Revolução. Antes a poderá auxiliar, se o entusiasmo não esquecer a análise e a descoberta dos alvos.
Com efeito, o mito da emancipação não deve ir a pontos de tal sorte desgarrados que percamos a definição do inimigo, que é «única e exclusivamente o capitalismo» — como se escreveu no ponto 1.2 da «Análise da Situação Política». Porque
«só é possível avançar através de acções concretas, cuja responsabilidade de realização depende estritamente daquela definição política». Isto, porém, não impede uma relativa aceitação, restrita embora, da teoria de Bloch, já que «o idealismo e o voluntarismo têm uma importância muito limitada na criação de condições de avanço para o socialismo, que são determinadas essencialmente pela luta de classes»(197).
E, assim, nos termos que acabo de referir, passamos obviamente àquele a que chamei o quinto momento lógico do «estar na Revolução»: agir concretamente.
A tal propósito, porém, gostaria de assinalar uma passagem de Vasco Gonçalves a que atribuo particular importância. Ela faz parte do capítulo intitulado «Do socialismo e do processo revolucionário português», o qual, por seu turno, se integra na longa entrevista com que abre o volume colectivo Companheiro Vasco.
Reparou o General para o seu entrevistador:
«Temos estado a falar apenas num plano de ideias gerais. A alusão que fiz às medidas mais salientes tomadas até à queda do II Governo Provisório era só para lhe chamar a atenção para a justeza dessas ideias gerais. Na prática, o processo era extremamente complicado e sinuoso. Aquilo que nesta conversa aparece com um determinado encadeamento lógico, ou melhor, a ordem e a extensão das medidas concretas tomadas no período mais criador do nosso processo revolucionário, têm de facto uma lógica interna, objectiva, determinada pelas leis gerais do desenvolvimento social. Contudo, a prática, como sabe, não é feita de uma acção linear e unidimensional, nem numa cadência antecipadamente definida, nem com um ritmo determinado prévia e rigorosamente. O movimento social, como sabe, é muito mais complicado do que o movimento da natureza. Sofre, muitas vezes, ondulações imprevistas cujos condicionantes provêm frequentemente de áreas subjectivas difíceis de enquadrar matematicamente. É sabido que o homem domina o mundo através do conhecimento das suas leis. Ora, a verdade é que as leis da natureza são definidas a partir de um número de parâmetros muito mais restrito e muito menos aleatório que o necessário para a definição das leis que presidem à dinâmica social. No caso do movimento da natureza, o homem, desde que conheça as suas leis, pode provocar, com relativa facilidade, os fenómenos desejados, isto é, os fenómenos que conduzem à utilização dessas leis em seu benefício. No caso, porém, do movimento social, é incomparavelmente mais complicado preencher as condições para que se alcancem determinados objectivos.»(198).
Actuar face às leis naturais é, portanto, um empreendimento objectivamente mais fácil. É um trabalho de laboratório. Um resultado de medidas, de quantificações, de pesagens. O concreto aí se nos revela e apresenta como um espaço, uma área, um volume, uma densidade, um peso.
O mesmo não acontece, porém, quando lidamos com leis sociais (leis do desenvolvimento social) cujo «manejo» é muito diferente, bastante mais dificultoso, como reparou Vasco Gonçalves. Dir-se-ia que, em matéria de Ciências Sociais, os fenómenos ocultam o real. Eis uma verdade menos estranha do que à primeira vista poderá parecer.
E porquê? — ocorre perguntar.
A resposta está implícita no trecho de Vasco Gonçalves que acabo de transcrever. Julgo, entretanto, que vale a pena completá-la por uma outra via — talvez, no final de contas, até a mesma.
O que pretendo notar é, frontalmente, isto: que o concreto social, mais facilmente que o concreto natural, corre o risco de ser um pseudoconcreto. Daí provém o estrondo e o exótico de muitos erros políticos. Aliás, a prova de que o concreto é, como fenómeno que se nos apresenta aos sentidos, um pseudoconcreto que oculta a real concreticidade da coisa, no-la deu Karl Marx enquanto observou que toda
«a ciência seria supérflua se a forma fenoménica e a essência coincidissem directamente»(199).
Nas Ciências Sociais é que vivem as criações fetichizadas, que são formas pseudoconcretas do real. E a destruição da pseudoconcreticidade, com vista a se alcançar o real, foi o trabalho fundamental de Marx.
Em boa verdade, O Capital está todo ele metodologicamente construído sobre a distinção entre o pseudoconcreto e o real, estabelecendo assim a dicotomia entre a falsa consciência e a compreensão real da coisa. Pelo que as categorias principais da compreensão conceptual da realidade investigada apresentam-se ali aos pares: fenómeno e essência; mundo da aparência e mundo real; aparência externa dos fenómenos e lei dos fenómenos; movimento visível e movimento real interno; ciência e ideologia; etc., etc.(200)
Poderei, julgo, dizer com isto que a dialéctica —que considera o real concreto como uma soma crítica de inumeráveis aspectos conhecidos na sua unidade — foi o que presidiu à prática política de Vasco Gonçalves. E aquilo que preside, como se vê, à sua teoria. O fenómeno social revela e, ao mesmo tempo, esconde — tanto mais que só dificilmente consegue de todo, libertar-se de uma dupla subjectividade: a de quem o causa e a de quem o verifica. A destruição da pseudoconcreticidade significa que a verdade não é nem inatingível, nem alcançável de uma vez para sempre.
Aqui reside, muito fundamentalmente, se bem entendo, a base desse são relativismo político que, ao contrário de tantas e tão dolosas acusações que repetidas vezes lhe foram feitas (por exemplo, e uma por todas, a de um totalitarismo absorvente), honra e honrará o pensamento de Vasco Gonçalves.
Estamos, com estas observações, praticamente no fim deste capítulo. Faltará reafirmar que o sexto e último momento lógico que integra o conceito de «estar na Revolução» consiste em agir com originalidade. Só assim um processo é verdadeiramente revolucionário. A Revolução não se realiza, com frases feitas, nem as estruturas do capitalismo se transformam por meio de «receitas» cegamente copiadas dos clássicos do marxismo.
Vê-se daqui, portanto, como a originalidade se prende, no final de contas, com a própria concreticidade.
Em Novembro de 1974 expressava Vasco Gonçalves, ao Jornal do Brasil, a preocupação de uma via específica, de uma via nossa:
«Os elementos do MFA têm vindo a afirmar desde o 25 de Abril que não têm modelos, nem se regem por cartilhas.»(201)
Meses depois, em 8 de Abril de 1975, reafirmava o Companheiro General na Conferência de Imprensa da Gulbenkian:
«Eu penso que uma pessoa que esteja atenta à História, a como se desenvolve a vida quotidiana, e a como se desenvolvem os processos de transformação, tem de concluir que não há dois países que percorram a mesma via para o Socialismo. Por mais aproximados que sejam os modelos e por mais chapas que se queira seguir, até nós já tivemos a experiência de ver que, quando se quer uma determinada chapa sem a apropriar ao seu próprio País, isso pode conduzir a logros muito graves.»(202)
No Estádio 1.° de Maio, na celebração do Dia do Trabalho, voltaria o Camarada Vasco a declarar a preocupação de um caminho específico. Por outras palavras, a vontade de um trânsito político e social não decalcado de outras experiências:
«A opção socialista é difícil de trilhar, pois há muitas vezes que conciliar o que parece inconciliável, desfazer contradições que parecem irredutíveis, arranjar unidade onde parece haver desunião. Temos de observar a nossa realidade, descobrir soluções originais. Na História não há factos repetidos, e o nosso caso é único. A realidade que temos perante nós é a que vemos e vivemos, são as contradições e as dificuldades que sentimos, e mais nada.»(203)
Depois ainda, em 14 de Maio, numa resposta ao jornal El Sol de Méjico esclarecia Vasco Gonçalves que o estudo, a análise, a reflexão sobre outras experiências só poderia servir-nos de ensinamento crítico, não de convite ao decalque:
«Não temos receitas a apresentar aos trabalhadores. Estudamos outras experiências históricas revolucionárias sobretudo com a perspectiva de evitarmos os erros por elas cometidos e estamos prontos a sancionar e incentivar as experiências que os trabalhadores portugueses estão em vias de encontrar para a nossa realidade.»(204)
Ao mesmo tempo, porém, advertia-nos de quanto a originalidade é difícil. Estas as suas palavras, a propósito do tema, no Congresso dos Sindicatos, em 27 de Julho de 1975:
«As revoluções não se fazem a compasso e esquadro, não se fazem com ensaios gerais, todos os revolucionários devem ter a consciência de que um período conturbado é um período de crise, crise que se reflecte até no seio dos nossos lares.»(205)
E, por fim, em declarações que o semanário francês Le Monde deu à estampa em 29 de Agosto seguinte, o então Primeiro-Ministro do V Governo Provisório explicava a razão de ser das calúnias demolidoras:
«Nós vivemos agora uma luta encarniçada pela direcção do processo revolucionário. A pequena burguesia tenta apoderar-se dele. Não seguramente para o conduzir ao Socialismo, mas para enganar o povo, usando uma linguagem socialista, e fazer uma política contrária.
É uma etapa bem conhecida de todas as revoluções. À medida que avançamos na construção duma sociedade socialista, encontramos resistências cada vez mais fortes. As opções decisivas são mais difíceis de tomar, quando as diferentes camadas da pequena burguesia lutam desesperadamente para se opor à direcção do processo e desviá-lo dos seus fins.
Os nossos inimigos exploram o arsenal clássico da propaganda reaccionária, utilizam a mentira e querem fazer crer que nós queremos construir um Estado totalitário, copiar o modelo soviético.»(206)
Mas não deixou de haver quem tivesse acusado de «montagem mais ou menos confusa» a originalidade do processo português. Estou a pensar na «tese» de António Reis, do Partido Socialista, publicamente exposta em intervenção na Constituinte, sessão de 10 de Dezembro de 1975. Afirmou aquele deputado do PS que
«a tão apregoada originalidade da Revolução portuguesa parece (...) dissolver-se numa amálgama (?) de revoluções estrangeiras, (...) montagem de cópias e, ainda por cima, más cópias de modelos estrangeiros.»(207)
Afirmações complicadamente gratuitas, como esta, fê-las o PS António Reis para concluir, peregrinamente — e agora, sim, muitíssimo original!... — que a verdadeira originalidade portuguesa estaria no facto de que «a direcção política do processo revolucionário compete, pois, em última instância, aos órgãos de soberania legislativa e executiva»(208).
Montesquieu ficaria perplexo com esta tão grande originalidade do Sr. António Reis!
Quanto a mim, remeto-me só à curiosa observação de ver que o PS votou a aprovação do n.° 2 do artigo 3.° da Constituição da República, aliás tão coincidente com uma decisiva afirmação de Vasco Gonçalves ao jornal Risospastis, em 1 de Maio de 1975.
Diz, na verdade, aquele preceito constitucional:
«O Movimento das Forças Armadas, como garante das conquistas democráticas e do processo revolucionário, participa, em aliança com o povo, no exercício da soberania, nos termos da Constituição.»
E afirmou Vasco Gonçalves, ao citado órgão central do Partido Comunista Grego:
«... é justamente na aliança do Povo com o MFA que repousa a originalidade do processo português...»(209)
Notas de rodapé:
(139) L'Ange contém uma crítica particularmente violenta ao Livro de Lyotard, L'Economie Libidinale. (retornar ao texto)
(140) A tese de Deleuze — a da universalidade do desejo— constitui o fulcro do seu livro Capitalisme et Schizophrénie— L’Anti-Oedipe, Les Éditions de Minuit, 1972, escrito em colaboração com o psiquiatra Felix Guattari. A p. 352, por exemplo: «Le désir est de l’ordre de la production, toute production est à la fois désirante et sociale». (retornar ao texto)
(141) Karl Marx, Teses sobre Feuerbach, v. g., apud Marx e Engels, Obras Escolhidas, em três tomos, Progresso, Moscovo, tomo I, 1973, p. 10. Estas teses foram escritas por Marx na primavera de 1845, e publicadas por Engels, pela primeira vez, em 1888, como apêndice à edição do seu texto Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã. A este propósito é oportuno referir que o primeiro capítulo de A Ideologia Alemã versa precisamente Feuerbach e a oposição entre as concepções materialista e idealista. (retornar ao texto)
(142) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, p. 418. (retornar ao texto)
(143) George Lukács, O Pensamento de Lénine, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1975, pp. 16-17. Repare-se nesta passagem da p. 17: «A evolução do capitalismo fez da revolução proletária uma questão na ordem do dia. Lénine não foi o único a ver a aproximação desta revolução. Ele distingue-se todavia pela sua coragem, o seu devotamento e a sua abnegação, não somente daqueles que, no momento em que a revolução proletária por eles proclamada como actual em teoria, entrou na sua fase prática, se esquivam cobardemente; distingue-se também pela sua clareza técnica, dos melhores, dos mais lúcidos, dos mais devotados revolucionários contemporâneos. Porque mesmo estes não reconheceram a revolução proletária senão do modo que Marx, na sua época, a percebeu: como o problema fundamental de todo o período. Mas foram incapazes de fazer deste conhecimento exacto — exacto na perspectiva da História mundial — o fio condutor correcto para regular todas as questões de momento, tanto as questões políticas como as económicas, tanto as teóricas como as tácticas, tanto as de agitação como as de organização. Só Lénine se adiantou no sentido da concretização do marxismo, tornado doravante inteiramente prático. Por isso ele é, à escala histórica mundial, o único teórico à altura de Marx que a luta pela emancipação do proletariado produziu desde então.» (retornar ao texto)
(144) Jean-Paul Dollé, Le Désir de Révolution, 1972. (retornar ao texto)
(145) Lénine, Obras, edição em francês, 1973, tomo XXXI, pp. 80-81; Obras Escolhidas, edição em espanhol, 1961, tomo 3.°, pp. 405-406; e Esquerdismo, doença infantil do Comunismo, edição Latitude, 2.ª edição, Porto, pp. 98-99. (retornar ao texto)
(146) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, p. 443. (retornar ao texto)
(147) Idem, p. 431. (retornar ao texto)
(148) Manuel de Lucena. O Estado da Revolução — a Constituição de 1976, Edições Jornal Expresso, 1978, p. 83. (retornar ao texto)
(149) Idem, ibidem, onde a p. 75 se põe em causa de uma penada, toda a dialéctica histórica: «Contrariamente a uma previsão de Marx — pretende Manuel de Lucena — a superação do capitalismo não aparece como inevitável e “natural” senão num muito restrito sentido. Com efeito, este modo de produção evolui e supera-se constantemente: capitalismo liberal, capitalismo monopolista, capitalismo de Estado, formas mistas (...). Mas é difícil pretender que a sua lógica profunda (a do capital) variou; ou que a sua “decadência” (da qual não há provas cabais) suscita no âmago das massas uma cultura radicalmente distinta.» (retornar ao texto)
(150) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, p. 308. (retornar ao texto)
(151) Idem, p. 433. (retornar ao texto)
(152) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, pp. 283-284. (retornar ao texto)
(153) In Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, pp. 429 e 422. Sublinhados meus. (retornar ao texto)
(154) Eduardo Lourenço, O Fascismo nunca existiu, p, 155. (retornar ao texto)
(155) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, p. 45. (retornar ao texto)
(156) Idem, p. 130. (retornar ao texto)
(157) Idem, pp. 431-432. (retornar ao texto)
(158) Lénine, Obras, 4.ª edição, Moscovo, 1941-1950, volume XXVII, p. 14. (retornar ao texto)
(159) Louis Althusser e Luís-Francisco Rebello, Cartas sobre a Revolução Portuguesa, Argumentos, Seara Nova, 1976, pp. 24-25. Sublinhado meu. (retornar ao texto)
(160) Cf. de Marx e Engels, O Manifesto Comunista de 1848, tradução em língua portuguesa, Zahar Editores, 1967, p. 110: «Os trabalhadores não têm pátria. Não podemos tomar deles aquilo que não possuem. Como o proletário pretende adquirir a supremacia política, torna-se a classe dirigente da nação, torna-se a própria nação, é, nesse sentido, ele mesmo nacional, embora não no sentido burguês da palavra.» (retornar ao texto)
(161) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, p. 449. (retornar ao texto)
(162) Karl Marx, O Capital, In «Oeuvres de Karl Marx, Economie» — I, Plêiade, Gallimard, 1965, p. 617. Pode ler-se esta passagem em O Capital, volume I, Civilização Brasileira, pp. 90-91, nota de rodapé n.° 33; ou ainda na edição «Centelha», Coimbra, 1974, Livro V (volume 1.°), pp. 128-129. Estranhamente, porém, não obstante se afirmar, de modo expresso, uma «versão integral», esta nota não se encontra na edição «Delfos», tradução de António Dias Gomes, como poderá verificar-se (pela ausência) a p. 48 do respectivo 1.° volume. (retornar ao texto)
(163) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, pp. 238-239. Sublinhado meu. (retornar ao texto)
(164) Idem, pp. 347-348. Sublinhado meu. (retornar ao texto)
(165) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, pp. 432-433. Sublinhados meus. (retornar ao texto)
(166) António Gramsci, Concepção Dialéctica da História, tradução de Carlos Nelson Coutinho, do original italiano 11 Materialismo Storico e la Filosofia di Benedetto Croce, Civilização Brasileira, 1966, pp.13-14: «Criar uma nova cultura não significa apenas fazer, individualmente, descobertas “originais”; significa também, e sobretudo, difundir criticamente verdades já descobertas, socializá-las, por assim dizer; transformá-las, portanto, em base de acções vitais, em elemento de coordenação e de ordem intelectual e moral. O facto de uma multidão de homens ser conduzida a pensar coerentemente, e de maneira unitária, a realidade presente, é um facto filosófico bem mais importante e original que a descoberta, por parte de um génio filosófico, de uma nova verdade que permaneça como património de pequenos grupos intelectuais.» (retornar ao texto)
(167) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, p. 135. Sublinhado meu. (retornar ao texto)
(168) Discursos, Conferências de Imprecisa, Entrevistas, pp. 276-277. (retornar ao texto)
(169) Idem, p. 277. Sublinhado meu. (retornar ao texto)
(170) Discursos, Conferências de Imprensa,, Entrevistas, p. 30. (retornar ao texto)
(171) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, p. 75. (retornar ao texto)
(172) Idem, p. 284. Sublinhado meu. (retornar ao texto)
(173) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, p. 232. (retornar ao texto)
(174) Karl Marx, O 18 Brumário, edição brasileira, «Paz e Terra», 1969, p. 17. (retornar ao texto)
(175) Frederico Engels, O Anti-Dühring, capítulo XI, «A Moral e o Direito. Liberdade e Necessidade», colecção «Ensaio-Documentos», n.º 1, Edições Afrodite, Lisboa, 1971, pp. 143-144. Incapaz de compreender os «mistérios» da natureza, o homem primitivo foi escravo da necessidade não conhecida. Não era livre. Porém, quanto mais foi progredindo no conhecimento das leis objectivas do mundo, tanto mais consciente e livre se tornou. A liberdade não é o subjectivismo extremo de existencialistas como Sartre e Jaspers. A liberdade explica-se pela sua interconexão dialéctica com a necessidade. Aliás, a primeira tentativa para esclarecer esta conexão coube a Espinoza, que definiu a liberdade como a necessidade que se tornou consciência. As leis objectivas do mundo, quando não conhecidas pelo homem, manifestam-se como necessidade cega — logo, como não-liberdade.
Nos Princípios da Filosofia do Direito — primeira parte, n.°s 34 e segs., pp, 52 e segs. da 2.ª edição de Guimarães Editores, 1976 — Hegel igualmente dirá que o Direito é a existência da vontade livre. A importância de Hegel para a solução deste problema provém de que — como escreveu Engels no Anti-Dühring — foi ele o primeiro que completamente expôs a relação da liberdade com a necessidade. A liberdade não consiste numa sonhada independência do homem relativamente às leis naturais, reafirmou Engels, mas no conhecimento dessas leis e na possibilidade de fazê-las actuar com vista a determinados fins. (retornar ao texto)
(176) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, p. 316. Sublinhado meu. (retornar ao texto)
(177) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, p. 283. (retornar ao texto)
(178) Idem, pp. 318-319. (retornar ao texto)
(179) Nicos Poulantzas, Fascisme et Dictature, e o texto Acerca do impacto popular do fascismo, incluído por Maria Antonietta Macciocchi no 1.° volume de Elementos para un analisis del fascismo, edição espanhola «En Viejo Topo», pp. 44 e segs.: «O impacto popular do fascismo é um fenómeno real — escreve Poulantzas: trata-se, antes de mais, de uma das características essenciais do fascismo em relação a outros regimes de Estado capitalista de excepção, de guerra aberta contra as massas populares (ditaduras militares, bonapartistas, etc.). Efectivamente, o fascismo conseguiu montar aparelhos de Estado específicos de mobilização de massas (partidos, sindicatos, etc.), fenómeno que não se encontra em geral pelo menos na mesma medida, ou sob a mesma forma institucional (condicionando a própria forma de Estado), noutros regimes de excepção. Isso explica, precisamente, que o fascismo tenha conseguido, entre as massas populares, um assentimento que designarei, provisoriamente, com o termo descritivo e neutro de impacto, posto que, de facto, o que se deve estudar é a própria natureza do fenómeno.» (retornar ao texto)
(180) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, p. 425. (retornar ao texto)
(181) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, p. 438. (retornar ao texto)
(182) Eduardo Lourenço, O Fascismo nunca existiu, pp. 134-135. (retornar ao texto)
(183) No Diário de Notícias de 8 de Agosto de 1975. (retornar ao texto)
(184) O totalitarismo a nível dos Governos socialistas foi objecto de artigos que publiquei em O Diário, destacando: «A Ditadura Fiscal do Primeiro-Ministro» (23/9/1976); «A Burocardia» (8/10/1976); «A Preversão Totalitária das Obrigações do Tesouro» (15/11/1976); e «Quem Perverte a Reforma Agrária?» (5/1/1977). (retornar ao texto)
(185) In MFA, Motor da Revolução Portuguesa, Diabril, p. 111. (retornar ao texto)
(186) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, p. 363. (retornar ao texto)
(187) Ver, por exemplo, de João Martins Ferreira, O Socialismo, a transição e o caso português, p. 209: «Com este esboço — diz-se aí — queremos apenas referir que as massas não esperaram pelas alterações profundas subsequentes ao 11 de Março para afirmarem uma “nova legalidade" para se afirmarem como poder efectivo face ao poder de Estado». (retornar ao texto)
(188) A posição contrária à que afirmo no texto vem, por exemplo, sustentada por Manuel de Lucena, em O Estado da Revolução — a Constituição de 1976, designadamente neste ponto: «Fruto do 11 de Março, e portanto decretadas a quente, as nacionalizações e a Reforma Agrária constituíram, todavia um golpe frio, militar e burocrático, muito mais do que uma conquista das classes trabalhadoras». Ora isto, como se sabe, é falso. (retornar ao texto)
(189) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, pp. 310-311. Sublinhado meu. (retornar ao texto)
(190) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, p. 429. Assinale-se que David Caute, citado pelo professor Joaquim Teixeira Ribeiro no prefácio deste livro de Vasco Gonçalves, diz em La Gaúche en Europe depuis 1789, Paris, 1966, p. 172, que uma revolução não pode ficar parada: tem de avançar ou recuar. (retornar ao texto)
(191) Cf. Diário de Lisboa de 4 de Maio de 1978. (retornar ao texto)
(192) Ver junto de Victor Serge, L’ An 1.° de la Revolution Russe, volume III, p. 70, nota n.° 20. (retornar ao texto)
(193) Victor Serge, idemi íbidem. Aliás, a lógica do reformismo (?!) tem persistido no espírito dos dirigentes do PS português a pontos de se reconhecer em afirmações reiteradas, de que esta (do sr. Maldonado Gonelha a O Jornal, de 12/1/1979) constitui singular exemplo. Perguntou-lhe o entrevistador: «Agora uma pergunta que já não é dirigida ao militante sindicalista, mas ao dirigente socialista. Estamos a dois meses do Congresso do PS; pensa que esse Congresso vai ser muito importante, que vai significar uma viragem no partido, vai significar o revigoramento do partido? Ao que retorquiu Gonelha, “vocacionado” socialista da abundância: “Penso que sim. O PS — e é a primeira vez que o digo em público — teve uma grande fatalidade,, a maior fatalidade da sua vida depois do 25 de Abril, que foi ter ganho as eleições em 1976. Os socialistas não têm vocação para gerir crises. Os socialistas têm vocação para gerir a abundância, para repartir melhor, para fazer justiça. Ora nós tivemos que ‘gerir’ uma crise económica, mas isso deu-nos experiência. Tem vantagens, tem inconvenientes, como tudo na vida”. O PS seria, pelos vistos excelente Executivo num país onde jorrasse, das alturas, o maná celeste.» (retornar ao texto)
(194) In Nós e a Revolução, p. 155 de MFA -Motor da Revolução Portuguesa, Diabril, 1975. Sublinhado meu. (retornar ao texto)
(195) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, p. 309. (retornar ao texto)
(196) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, p. 121. (retornar ao texto)
(197) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, pp. 419-420. Sublinhado meu. (retornar ao texto)
(198) In Companheiro Vasco, p. 70. Sublinhado meu. (retornar ao texto)
(199) Karl Marx, O Capital, III, Secção VII, capítulo XLVIII, III. (retornar ao texto)
(200) O mundo da Pseudoconcreticidade, que é o domínio da reificação (da coisificação), da praxis fetichizada, foi objecto de um livro fundamental de Karel Kosic, Dialéctica do concreto, com tradução em língua portuguesa, «Paz e Terra»; Rio de Janeiro, 1969. Ver, em particular, a nota 5, de p. 17 onde se diz: «O marxismo é um esforço feito com o objectivo de se ler, para lá da pseudo-imediaticidade do mundo económico reificado, as relações inter-humanas que o edificaram, e se dissimularam por detrás da sua obra» — isto escreveu A. de Walhens em «L'idée phénoménologique d’intentionalité», in Husserl et la pensée moderne, Haia, 1959, pp. 127-128. Tal definição, aliás de um autor não marxista, constitui sintomático testemunho da problemática filosófica do século XX2 para a qual a destruição da pseudoconcreticidade e das mais variadas formas de alienação se transformou numa das questões essenciais». (retornar ao texto)
(201) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, p. 113. (retornar ao texto)
(202) Idem, p. 224. (retornar ao texto)
(203) Idem, idem, p. 272. (retornar ao texto)
(204) Idem, idem, p. 303. (retornar ao texto)
(205) Idem, idem, p. 457. (retornar ao texto)
(206) Idem, idem, p. 501. (retornar ao texto)
(207) A frase em causa (onde sublinhei o deslize morfológico daquele que viria a ser futuro Secretário de Estado da Cultura do II Governo Constitucional, passando a feminino «um amálgama» que sempre se prezou da sua masculinidade) integra-se neste contexto que extraio de p. 2995 do n.° 92 do Diário da Assembleia Constituinte: «Há dias, nesta Assembleia, o Sr. Deputado Freitas do Amaral afirmou, com o rigor e a frontalidade que o caracterizam, estarmos em presença, desde o 25 de Abril, não de uma, mas de três revoluções diferentes: a democrática, a comunista e a socialista-militar. Não contesto a perspectiva da análise, como é óbvio, pelo que afirmei antes, mas permito-me chamar a atenção para o excessivo esquematismo desta classificação. Com efeito, já no mês de Julho deste ano, num colóquio promovido pela SEDES, tive ocasião de apresentar um outro esquema classificativo das várias revoluções em curso, delineado com base nos modelos estrangeiros que, mais ou menos incisivamente, exerceram a sua sedução sobre os políticos e os militares portugueses: 1 — A revolução militar-nacionalista, anti-imperialista, de que o exemplo mais recente anterior ao 25 de Abril é o Peru; 2 — A revolução anticolonialista e anti-imperialista dos movimentos de libertação do Terceiro Mundo, com especial relevância para os movimentos de libertação anti-imperialistas da Guiné, Angola e Moçambique; 3 — A revolução soviética e, mais rigorosamente, os seus sucedâneos na Europa Oriental do pós-guerra; 4 — A revolução basista dos conselhos operários, de feição anarquizante e sucessivamente abortada ao longo da história contemporânea; 5 — A revolução democrático-parlamentar sob controle político-económico da grande burguesia.» E rematava assim o deputado António Reis: «A tão apregoada originalidade da Revolução Portuguesa parece, pois, dissolver-se nesta amálgama de revoluções [...falha no original] lução soviética e, mais rigorosamente, os seus sucedâneos na Europa de modelos estrangeiros.» (retornar ao texto)
(208) Cf. junto do Jornal Novo, de 12 de Dezembro de 1975, esta apologia exclusivista da democracia política. Contrariamente dissera, por exemplo, Vasco Gonçalves na sessão de dinamização cultural do Sabugo, em 20 de Fevereiro de 1975 (p. 161 de Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas): «Nós desejamos, de facto, que o nosso País seja construído com firmeza através dum caminho verdadeiro para a democracia política, económica e social; não só para a democracia política, mas para aquelas também.» Aliás, o intentado decurso para uma solução de democracia política pura — que a Constituição da República recusa — analisou-o o professor Teixeira Ribeiro no prefácio dos Discursos, como pode ver-se a p. 16, no contexto onde se integram estas palavras: «O projecto de democracia socialista, que remontava ao Programa do MFA, fora seguidamente consagrado no Plano de Acção Política, subsistira no Documento dos Nove e ainda estivera presente, através das palavras de Pinheiro de Azevedo, no acto de posse do VI Governo, aparece agora substituído, a todos os níveis do Poder, pelo projecto de democracia formal. E o facto é que, entre os responsáveis por este novo curso, se contam militares e civis que são partidários da democracia socialista.» (retornar ao texto)
(209) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, p. 260. (retornar ao texto)
Inclusão | 25/04/2015 |