Intervenção na Assembleia do MFA

Vasco Gonçalves

25 de Julho de 1975


Fonte: Vasco Gonçalves - Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas. Organização e Edição Augusto Paulo da Gama.
Transcrição: João Filipe Freitas
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Fernando A. S. Araújo.

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Nós temos avançado combatendo os nossos inimigos. Os obstáculos têm-nos obrigado a avançar, pois é esse o único modo de vencer as contradições. Assim cito a «questão Palma Carlos», o 28 de Setembro, o 11 de Março. Devemos ao analisar, por exemplo, estas três questões ter em atenção a graduação destas manobras: primeiro foi uma questão a nível de gabinete, a «questão Palma Carlos»; depois trata-se já de uma movimentação de marchas sobre Lisboa; ao final, o 11 de Março é já uma acção violenta. Estas coisas não acontecem por acaso e a gente deve ter bem a noção de quem são os nossos inimigos e quem são os nossos amigos. Dadas as características do monopolismo (do capital monopolista de Estado existente entre nós), aqui eu noto que muitos camaradas e muitas pessoas em Portugal não compreendem isto e acusam-nos de estar a impor ritmo acelerado à Revolução.

Esse capitalismo afundou-se, de facto, após o 11 de Março. Ele estava já em larga parte destruído, dada a acção de sabotagem económica que o capital nos moveu. Esse capitalismo, de facto, afundou-se de uma maneira que não se afundaria qualquer outro capitalismo noutra parte da Europa e, então, para preencher este vazio, nós não tínhamos outra alternativa do que ir para as nacionalizações. Não podíamos ir arranjar capitais aqui e ali, ir buscar uns capitalistas, uns gestores e dizer assim: meus amigos, agora que o grupo do Quina está em fase de destruição, agora que o grupo Pinto & Sotto Mayor, o Champalimaud está na mesma, o grupo CUF, etc. e tal, nós agora vamos chamar os meus amigos. Os meus amigos vêm para aqui com capitais, vão agora restabelecer o sistema capitalista ou semelhante. Mas não estávamos em condições, nem podíamos fazer isto. Isto é que é uma característica original do processo português que é preciso ter em vista: é que nós não tínhamos alternativa para o capitalismo «monopolista» de Estado que não fosse o socialismo, que não fosse a nacionalização dos sectores básicos da produção. Portanto, isto põe-se aqui como a questão fundamental do ritmo da Revolução.

Até uma determinada fase, o ritmo não podia deixar de ser este. Aliás as revoluções não se fazem com ensaios gerais, é o próprio desenvolvimento histórico que nos ensina os ritmos. Evidentemente que nós devemos procurar dominar o ritmo de uma revolução. Estamos nessa fase e ao fim de 14 meses nós temos essa noção. Isso é bom porque, era muito pior, se não tivéssemos essa noção das classes do tal bloco social histórico que nos deve apoiar. Tudo isso é muito bom. Mas eu pergunto: onde é que terá havido uma revolução no Mundo que, ao fim de 14 meses, tivesse conciliado de certo modo os interesses das classes trabalhadoras, os interesses da pequena burguesia e tivesse esta coisa a marchar? As críticas que nos fazem é de que nós afastamos a pequena burguesia, nós não vamos ao encontro dos pequenos proprietários e médios proprietários, etc..

Há críticas muito correctas que nos fazem, mas eu pergunto: qual é a revolução que numa fase destas não tenha passado por períodos destes? Falam-nos na questão da nossa base de apoio, e eu pergunto, também: qual era a revolução que em determinado momento histórico não teve um estrangulamento na sua base de apoio, e quando há esse estrangulamento de apoio, uma revolução tem forçosamente que ter um poder de Estado forte, autoritário, de modo que essa Revolução não seja perdida e que permita depois, ao longo do tempo e com medidas correctas de apoio aos tais que devem ser os nossos aliados (como a pequena burguesia, como os pequenos proprietários rurais, os pequenos comerciantes, etc.), que levemos medidas a esses sectores que lhes dêem provas insofismáveis que estamos com eles.

Este problema só se pode resolver com medidas concretas a tomar pelo Governo, pelas autoridades do Estado, no sentido de ir ao encontro das suas necessidades. Mas eu penso que isto é um problema que se passou em todas as revoluções e nós temos que ter isto presente.

Antes de tudo, estamos numa revolução. Agora uma revolução não quer dizer desordem nem quer dizer indisciplina. Um dos grandes perigos da nossa revolução e a desordem e a indisciplina. Não é verdade que existe no próprio seio das Forças Armadas, devido a questões de ordem política, de ordem ideológica e propriamente até de interesses de classes, porque nós temos de enfrentar isso com toda a clareza? E não sei se todos os camaradas, quando aprovaram aqui as directrizes sobre a opção do MFA pelo socialismo, estavam bem conscientes do que isso representa. Não basta a gente dizer que optámos pelo socialismo. Há toda uma ganga, todo o meio em que nós vivemos, toda a nossa vida, os estratos sociais a que pertencemos e de que nos temos de libertar, se queremos, de facto, optar pelo socialismo e caminhar nesse sentido. Mas mesmo nós, até como somos em larga escala pequenos burgueses, estamos ligados a esses interesses; uns são filhos de pequenos comerciantes, outros são de pequenos lavradores, outros de funcionários, etc.. Nós também podemos fazer parte deste tal bloco histórico de apoio. O que é preciso é que tenhamos a noção disso, que estas coisas não se fazem por varinhas de condão, nem por milagres, e que se desenrolam todas no seio de uma aguda luta de classes.

Não é uma palavra vã o facto de aquilo que o brigadeiro Corvacho disse no Porto de que o capital nos move uma luta de morte. A gente ou tem a noção disto ou não tem. Se a gente pensa que as lutas entre o Partido Socialista e o Partido Comunista são lutas entre o Benfica e o Sporting, então não há dúvida nenhuma que nós estamos afundados e vamos para o fundo. Agora se pensarmos que são lutas muito mais profundas, são lutas através das quais se manifestam as lutas de classes e os objectivos finais dos seus estratos sociais, então já podemos ver com muito mais lucidez essas lutas.

Aliás, eu gostaria que me explicassem se o processo viveu muito depressa até agora, como é que poderia ter sido vivido mais devagar, (por exemplo como é que poderia ter vivido mais devagar até ao 28 de Setembro. Como é que poderia ter vivido mais devagar até ao 11 de Março). Penso que agora, neste momento, estão criadas as condições mínimas para o socialismo. É que nós temos o problema de dominar o processo. Estamos na sua fase de construção. Agora, sim, põe-se essa questão do ritmo e, de facto, temos de ter muito cuidado com esses ritmo, porque nós não podemos deslocar a nossa vanguarda daqueles que devem ser a nossa base de apoio, porque às duas por três, de facto, o pelotão está deslocado da base de apoio.

Agora sim, põe-se essa questão do ritmo. Daqui para a frente. Mas até ao 11 de Março, até mesmo sobre as medidas que temos tomado até ao 11 de Março, eu gostaria que me explicassem que outro ritmo poderia ser. Como gostaria que me explicassem que outras maneiras nós poderíamos ter tido para abalar o capital monopolista. Eu gostaria de saber como poderíamos ter dominado as gentes do capital monopolista se a gente ainda hoje não domina. Hoje, o capital move-nos uma luta, uma luta digamos científica, isto é, estrategicamente ponderada. Há casos, como os de Medézio e da Handy Portuguesa, que mostram essa estratégia.

Talvez seja bom os camaradas conhecerem documentos desses, que é para se fazer lucidez sobre essa questão, que hão se trata do Benfica-Sporting entre o P.S. e o P.C., mas coisas muito mais profundas. Há pessoas que até falam que a gente já podia ter feito uma revolução cultural depois do 11 de Março. Três meses se passaram sobre essa data e as pessoas não têm a consciência, não têm a ideia que a consciência social não acompanha automaticamente os processos materiais de desenvolvimento. Todos nós sabemos isso da vida quotidiana, quando observamos certas coisas na rua e vamos pensar nelas para casa. Isso não é um atraso na consciência, em relação ao facto material que observámos?

Então, nos processos históricos muito mais; se a gente pensasse quantas centenas de anos levou a descobrirem-se as leis fundamentais do capitalismo depois do capitalismo existir, quantas centenas de anos levou a descoberta dessas leis, isso não representa o tal atraso da consciência social em relação aos processos económicos e sociais? Para que estamos admirados até pelas incompreensões do nosso Povo? Agora diz-se muito que o povo está contra nós. Isto também não é mais que um atraso da consciência social em relação aos processos materiais. É claro que esse atraso tem que se colmatar pelas vias do desenvolvimento, até por processos materiais, mas também pela tal via de revolução cultural.

Mas onde é que há algum país do Mundo que ao fim de três meses ou quatro meses depois de um 11 de Março pudesse ter feito uma revolução cultural, de maneira que a consciência social das pessoas compreendesse perfeitamente o nosso processo? Eu gostaria, também, que me indicassem essa via, ao fim de quantos anos, ao fim de quantos e largos anos, foram feitas as primeiras revoluções culturais na China e as condições especiais de uma China com 700 milhões de habitantes, com aquelas fronteiras todas, podendo dar-se quase ao luxo de fazer uma revolução cultural, diminuindo fortemente a sua produção. Nós precisamos de fazer essa revolução cultural. Essa revolução cultural, esse chavão, essa palavra, corresponde a quê? Corresponde, de facto, a pôr-se a consciência social de acordo com a via de transição para o socialismo. Isto não é fácil, é muito difícil. Leva anos e anos de serviço. Isto necessita de um Estado forte, de autoridade, de disciplina, mas é uma disciplina revolucionária, uma autoridade revolucionária que esteja de facto polarizada para caminhar para o socialismo.

Face à crise económica que se vive, em grande parte provocada pela destruição do aparelho de Estado e das estruturas da economia capitalista, a alternativa é sempre a mesma: ou adoptamos medidas estruturais, ou adoptamos medidas conjunturais.

Eu parece-me que um país nas nossas condições para caminhar para a frente, para se desenvolver, tem que adoptar medidas de ordem estrutural. Portanto, são medidas que vão à base, à base económica fundamental e não medidas de ordem conjuntural. Por exemplo, medidas de ordem conjuntural, que impediriam reformas estruturais. É o que se passou no pós-guerra nos países capitalistas da Europa, com o «Plano Marshall». A gente também gostaria de vir a ter aqui uma coisa dessas. Aparecer aí um «Plano Marshall», aparecer um milagre português sustentado com dólares americanos ou com os marcos alemães. Nós tomaríamos de facto, medidas conjunturais. Não seria tão difícil o caminho do povo português.

A curto prazo constituir-se-ia, digamos, uma economia de tipo capitalista mitigado com algumas nacionalizações. Nos países capitalistas também há nacionalizações. E vocês sabem que as nacionalizações nos países capitalistas servem os monopólios. As nacionalizações são encaminhadas para os sectores menos rentáveis ao capital monopolista, como sejam os transportes, a educação, a electricidade, que é vendida mais barata aos monopólios do que é vendida por exemplo ao tipo que tem que ter a luz acesa lá em casa para ver de noite. Portanto, nós temos esta alternativa; ou tomamos medidas conjunturais ou tomamos medidas estruturais. As medidas conjunturais quanto a mim são aquelas do tipo da social-democracia.

E eu pergunto se isso é possível entre nós, se isso é o caminho do desenvolvimento. É claro que o facto de tomar as medidas estruturais não significa que não vamos tomar medidas conjunturais, porque nós temos de tomar medidas imediatas conjunturais para salvar a balança de pagamentos, para obviar ao desemprego, para aumentar a produção. Portanto, as medidas estruturais para mim levam de facto ao socialismo, à libertação nacional e à libertação dos trabalhadores e das outras classes aliadas dos trabalhadores, da própria pequena burguesia. Eu insisto que se nós conseguirmos impor a nossa revolução, se a nossa revolução durar, ela verificará, na prática, que os interesses dela estão mais com os interesses dos trabalhadores do que com os interesses da média ou da grande burguesia ou do capital monopolista.

A segunda, a das medidas conjunturais, quanto a mim, leva à social-democracia com as suas contradições típicas de todo o sistema capitalista com optimização de lucros, optimização da exploração dos trabalhadores, da população geral, e à dependência internacional.

E eu penso que um país subdesenvolvido tem que avançar pela via estrutural. Os partidos da direita têm falado com insistência numa espécie de «Plano Marshall» em Portugal. E eu considero que isso é uma via conjuntural. E a gente viu que em França, na Itália e Alemanha não se operaram no após-guerra modificações estruturais de fundo como os povos ao sair dessa guerra pretendiam. Toda a gente sabe que havia frentes patrióticas unitárias dos partidos que saíam da resistência, na esperança de uma vida diferente e que, depois, precisamente o exercício das medidas conjunturais com o restabelecimento de uma vida que era a anterior à guerra e que era melhor que a vida da guerra, conduziram a que de facto nestes países se desenvolvesse um forte capitalismo monopolista de Estado, mas não se desenvolveram medidas de ordem estrutural conducentes ao socialismo.

Eu penso que é necessário resolver essas dificuldades no sentido da nossa unidade, no seio das várias estruturas do MFA prioritariamente, até aqui também no seio desta assembleia.

Já há bocado aflorei a questão da base social de apoio da revolução. Eu não tenho dúvidas de que uma revolução não pode ir para a frente com uma base social de apoio restrita. Nós não podemos continuar indefinidamente assim com esta base de apoio. Esta base de apoio tem de alargar-se. Só podemos considerar que isto seja para uma via transitória, por um tempo curto, relativamente curto e transitório, no qual temos, se queremos andar para a frente, que aguentar esta revolução com esta base de apoio mais apertada. No entanto, devemos procurar alargá-la com as medidas concretas, que devemos tomar com a ligação directa Povo-MFA e com o chamar de todas as forças políticas, cívicas e sociais, para uma frente de apoio ao socialismo. Temos de fazer esforços para alargar essa base de apoio. Mas penso que não devemos ficar demasiado perturbados com isso, nem alarmados, uma vez que isto não é um caso virgem, isto passou-se em todas as revoluções.

Temos é que ter a noção que esta base tem que ser alargada e que devemos fazer esforços nesse sentido. E isso até passa pela nossa própria consciencialização. Passa pela modificação da própria dinamização cultural. Se nós sentimos que afugentamos as pessoas falando-lhes em marxismos e outras palavras que assustam muito as pessoas, nós podemos fazer avançar a revolução sem lhes falar em nada disso, indo directos aos problemas concretos dos trabalhadores, não lançando teorias e verbalismo, mas antes uma acção prática e correcta. Temos que alargar a base de apoio, mas temos que fazer isso com a consciência de que isto é um processo que se desenrola e que o alargamento da base de apoio deve ser feito sem prejudicar os nossos objectivos a longo prazo. Isso não significa que nós não tenhamos que nos adaptar às circunstâncias de cada momento.

O poder do Estado, a unidade política no seio do MFA e ao nível dos seus órgãos dirigentes; é preciso que esta unidade política exista. E põe-se até este problema: se não estamos numa iminência ou à beira duma ruptura que tem de ser analisada se ao nível dos centros do Poder ou se ao nível cá de fora, na rua, como isso que nós estamos a ver com essas batalhas campais que se estão a desenrolar. Os camaradas têm que meditar nisto.

Há questões que são diferenças de opinião e outras divergências profundas. Eu, para mim, as divergências profundas centram-se nas questões sociais, nas questões centrais do socialismo. Eu mesmo peço licença aos camaradas para chegar a pensar se todos teremos ideia do que significa caminhar para o socialismo. Eu devo dizer que estou convencido que a social-democracia é a fase de transição para o fascismo em Portugal.

E isto também deve ser meditado e deve ser assumido pelos camaradas. Isto não é uma palavra vã. Basta pensar nas correlações de forças existentes, basta pensar, que a imposição de relações, de novas relações de trabalho, sem perspectivas de socialismo para o futuro, os desajustamentos que isso daria, a necessidade de uma ordem pública forte, duma intervenção que acabaria por ser uma intervenção de direita e se a gente não iria parar de novo ao fascismo.

Por vezes há camaradas que falam naquela coisa de um passo atrás e dois à frente. Esses problemas põem-se quando as bases de apoio, por exemplo, estão reduzidas, quando há graves problemas económicos. Mas, para que isso se faça, é preciso que haja um poder forte, que seja capaz de dar um passo para trás e depois dois passos à frente. Agora, se a gente não tem um poder forte, suficientemente instruído, se só porque leu nos livros e sabe verbalmente que há um tipo que disse «um passo atrás e dois passos adiante», a gente então não domina o processo, a gente então não é capaz de dar passos atrás, para dar passos à frente. Tudo isto tem de ser feito com cabeça, com estratégia. Não basta tirar cá para fora isso. Não há exemplo histórico duma revolução que tenha resolvido ao fim de catorze meses a questão da base social de apoio.

Devemos colocar no seu devido lugar a questão da originalidade da revolução portuguesa. Estes processos históricos obedecem a leis científicas que não têm o mesmo — os camaradas sabem isso, — não têm o mesmo carácter das leis da física ou da química, mas são leis científicas que presidem também aos processos históricos, económicos, sociais e isso também é preciso ver.

Já falei sobre contradições, nas esperanças abertas pela revolução, nas camadas mais desfavorecidas e as dificuldades que se abrem a uma revolução qualquer que seja, mesmo uma revolução a sério. A questão da substituição do velho pelo novo reflecte-se a diversos níveis, perspectivas da pequena burguesia, hesitações e medos, a necessidade de não falar nos tranquilizantes, mas de medidas concretas, saber distinguir entre lutas partidárias e lutas de classes. A opção de classes, o que implica a opção pelo socialismo. Uma coisa é falar em opção de classes e outra coisa é assumi-la. Dos aliados do Movimento das Forças Armadas temos a noção clara de quem são. A necessidade de ultrapassar preconceitos que estão ligados à origem de classe de quem pretende defender os interesses de uma classe historicamente antagónica. É o caso nosso. Nós com o nosso idealismo, com a nossa generosidade, com a nossa inteligência, etc., nós desejamos defender as classes desfavorecidas. Essas classes, evidentemente, são historicamente antagónicas das classes a que nós pertencemos. Mas nós por um esforço de lucidez, de vontade política, etc., poderemos vencer isso, ou poderemos não vencer se não fizermos esse esforço.

Então se não vencermos de facto essas contradições de classe, entre nós e os nossos objectivos, nós temos todas estas dificuldades, temos a divisão no seio das Forças Armadas (para onde é que isto vai é que não sei).

Se admitirmos como correcta a afirmação do brigadeiro Corvacho de que estamos envolvidos numa luta de morte contra as forças do capitalismo, teremos que prioritariamente e com rigor definir quem são os nossos aliados nessa luta face às forças em presença. E quais são as forças em presença? O Movimento das Forças Armadas, os partidos, sindicatos, organizações populares, outras estruturas que congreguem massas populares, enfim, diversos estratos da população. A reacção, o inimigo, as forças do capital que se utilizam de todos os trunfos que a Revolução lhes dê com os erros que cometer. Mas devemos compreender isto como acção da reacção, uma acção concertada. É fácil, pois no nosso país há fortes zonas despolitizadas.

A maioria do nosso país está despolitizada. A gente tem o tal L do litoral mais politizado, mas temos depois o restante interior que não podemos, excepção talvez àquela parte dos distritos alentejanos, do latifúndio, nós não podemos ignorar, o que existe no interior. Mas há o problema de termos primeiro que mudar bem as estruturas económico-sociais, para depois mais facilmente mudar a consciência social. É preciso ver que a consciência social na grande maioria do nosso povo não acompanha, de facto, neste momento, os passos que esta Revolução está a dar.

Finalmente, há necessidade, por parte do MFA, de se pôr a coberto de surpresas no reforço do poder político.

Eu penso que temos que reforçar o poder político- -militar. Sem isso mesmo, eu penso que não é possível constituir um governo, ou ter quem governe. Quer dizer, se não tivermos um poder político-militar fortemente centralizado e restrito, capaz de tomar decisões a curto tempo e não se embrenhar em longas disputas ideológicas.

Reforço do aparelho de Estado. Reforço da actividade revolucionária. Ampliação e reforço do poder popular. O que é que isto quer dizer? Nós, outro dia, ao aprovarmos aquele documento da ligação do MFA ao povo, tomámos uma grande responsabilidade sobre os nossos ombros. Nós definimos um caminho para o socialismo e a partir daquele momento as forças da reacção mais nos atacaram. Porque está, de facto ali definido um caminho para o socialismo. E que não é nenhum caminho copiado por modelos soviéticos ou das democracias populares ou totalitárias. É um caminho bastante prudente, se tivermos de assumir os meios de responsabilidade desse caminho, que é um processo que não se pode pôr simultaneamente em marcha em todo o País. Porque a gente, por exemplo, em Coimbra tem uma Unidade que tem 300 freguesias.

Mas já o podemos pôr em prática noutras zonas do País. E devemos fazê-lo aí com prudência, com cautela e tendo em atenção que nós temos muito poucos quadros no sèio do Movimento das Forças Armadas suficientemente esclarecidos para operações daquele género. São operações que obrigam a grande esclarecimento, essas de ligação do Povo ao Movimento das Forças Armadas, às Comissões de Moradores, às Comissões de Trabalhadores, etc..

O estabelecimento necessário com órgãos unitários até a assembleias locais obriga a um grande esclarecimento e uma responsabilidade enorme da nossa parte porque se isso falha é de facto a frustração de uma tentativa séria para caminhar, para termos uma via própria para o socialismo. Por outro lado, temos que ver pela amostra do que se passou, com os reflexos que teve na opinião pública, o susto que aquilo pregou a uma série de camadas sociais; nós temos que ter um grande cuidado precisamente em esclarecer essa nossa actividade. Ela até poderia servir, se as pessoas compreenderem isto bem, para, sob o impulso das massas trabalhadoras, ligar outras camadas da população como a pequena burguesia, que é também das comissões de moradores.

Eu quando estive em Lourenço Marques, vi desfilar a Frelimo. É claro que não trazia nenhum chavão marxismo ou leninismo ou isto ou aquilo ou aqueloutro — não trazia nada disto, mas trazia uma série de palavras que nós aqui aplicamos: o trabalho dignifica o homem, que é preciso desencadear a batalha da produção. Aquilo parecia que era o que nós aqui tínhamos posto. Depois vi aquela malta desfilar e a certa altura vi um grupo de fulanos que se via que tinha uma composição social diferente dos outros que eram propriamente trabalhadores, mais mal vestidos. Neste grupo que eu vi, havia trabalhadores e outras pessoas, mais bem vestidas. Perguntei até ao Chissano, que estava ao meu lado: «Explique-me lá esta coisa!». «Isto são as comissões de moradores e de bairros, etc.».

Quer dizer: temos ali até um embrião de como podemos fazer tentativas para aplacar, porque devemos fazer isto neste momento, aplacar as lutas sociais que haja entre os trabalhadores e os pequenos empresários e a pequena burguesia.

Aqueles tipos que moram lá no mesmo bairro, ali de Alvalade, há uns que moram nas barracas e outros que moram em prédios, não é verdade? Evidentemente que este processo tem que ter uma direcção e para isso lá estariam os homens do MFA, para não deixar desvirtuar a direcção, porque senão aquelas comissões de moradores acabam por cair sob a pressão dos estratos sociais mais bem colocados, e ali na avenida do bairro, provavelmente não se atingem os objectivos que nós queremos. Mas se tivermos a lucidez suficiente para compreender isso, nós vemos que isso é uma maneira de caminhar para o tal alargamento da base social, de apoio ao MFA, no processo revolucionário. Isto é uma forma muito importante, pois considero que a aliança Movimento das Forças Armadas- -Povo teve vários factos muito importantes. Pareceu-me ver aqui estabelecer-se uma grande unidade à volta desse projecto, porque vi aqui quase toda a gente a aprovar esse projecto. Julgo que é uma maneira de nós enquadrarmos as pessoas que estejam mais impacientes e queiram ver mais amanhã tudo realizado e então fazermos a tal coisa de que tanto aqui falamos e que é tão difícil pôr em prática que é recuperar aqueles estratos, aquelas pessoas que estão mais atiradas para a frente e que têm laivos de esquerdismo.

Através dessa ligação Povo-MFA eu julgo que podemos na verdade estabelecer bases amplas de apoio, com essas facções, digamos, políticas, que estão bastante activas e reivindicativas. Vejo aí também uma acção positiva. 32 claro que o projecto teve outras acções negativas como o susto que pregou à média burguesia e mesmo à pequena burguesia.

Mas importa realçar que não se trata de arranjar aqui um grupo de tipos armados de espingardas e varapaus e dizer que aqui está o poder popular. É isso que muitas pessoas julgam que é o poder popular e até não sei se camaradas nossos vêem aí, logo, uma desorganização formidável, e que o poder está na rua, que é uma coisa que se diz muito no sistema capitalista, porque evidentemente aos capitalistas essa coisa do poder na rua não pode existir, pois seria uma ameaça. Para eles o poder tem de estar nos quartéis, para defender os interesses do capital. Mas também um Estado que quer caminhar para o socialismo não pode ter o poder na rua, porque então também não se governa. O poder na rua, num Estado que caminha para o socialismo, tem um significado totalmente diferente, mas também não pode ser o poder na rua, não pode cada gajo resolver como entender um problema qualquer que haja aí, social, laborai, etc.. Tem que haver uma disciplina, uma orientação, uma disciplina firme e obediente. Tem que haver obediência e temos que estabelecer essa obediência no seio das Forças Armadas, se queremos de facto andar para a frente ou senão caminhamos para o caos e para a anarquia.

Se caminhamos para a anarquia, temos o fascismo cá, e depois temos aí milhares e milhares de mortos. Portanto, quando eu falo nisto e me debruço um bocado sobre isto com mais tempo (desculpem estar a falar na primeira pessoa) é por se tratar da criação e da força do poder popular. É neste sentido que deve ser muito bem esclarecido, muito bem resumido, ponderado, calmo, moderado mas firme na obtenção dos objectivos finais. Não é um gajo arranjar aí uns grupos de moradores mais uns e mais outros e estão prontos 50 grupos de moradores e aí vai disto. Não é nada disso. É preciso dar calma às pessoas, tranquilidade e segurança mas numa forma revolucionária.

Penso também que há muitos camaradas que têm na cabeça ainda a ideia de que a revolução é desordem, a revolução é uma transformação brusca, há revoluções na natureza, quer no campo ideológico quer no campo económico-social. Os camaradas sabem isso tudo, e a revolução é uma transformação de outro tipo. É claro que se nós tivermos o poder forte que saiba que quer trabalhar para o socialismo, nós podemos então ir para o socialismo até por uma via evolutiva, mas tomando medidas revolucionárias que vão transformando qualitativamente as formas.

Por tudo isso penso que é de uma responsabilidade enorme aquele projecto que fizemos, Povo-MFA, e talvez o passo mais forte, mais duro que demos na definição dos nossos objectivos, este passo que fez oscilar muita gente perante o assumir desta marcha mas eu penso que fez sobretudo oscilar ou aqueles que não estão interessados nessa marcha porque aquilo evidentemente vai acabar com os privilégios de uma quantidade de pessoas ou fez oscilar aqueles que não estão bem esclarecidos sobre o processo e que são bem intencionados.

Penso que o caminho da confiança passa pelo caminho do restabelecimento da autoridade, nas ruas, que acabe com o banditismo, que acabem os assaltos, que acabe isto tudo. Isto tem de ser um dever de honra das Forças Armadas e não pode ser um objectivo de querela política. Tem que ser um dever de honra das Forças Armadas, o estabelecer a ordem, dar segurança, dar confiança mesmo que a gente não aumente imediatamente o nível de vida da pequena burguesia e mesmo dos trabalhadores porque há trabalhadores mais esclarecidos e menos esclarecidos; e outros precisam de segurança e confiança de ter um poder, saber quem manda, saber onde está o poder, é preciso, portanto, dar segurança, dar confiança e nós precisamos de obedecer a isso. Evidentemente que isso passa pela nossa politização, pela nossa consciencialização. Não temos, tempo a perder, temos de tomar essas medidas de imediato. Se nós não estabelecermos uma autoridade firme, se não tivermos de facto uma autoridade firme digamos, palpável, tudo se pode perder.

E que tal autoridade não se confunda com os cultos de personalidade.

Não podemos pensar que uma revolução vai como um sistema estabilizado. Uma revolução desenvolve-se em crise. Pretendemos é evitar que essas crises levem à ruptura. Não devemos permitir rupturas. Há pessoas que ficam em pânico, quando ouvem dizer que há camponeses, que ocupam terras no Alentejo e outras coisas no género. Houve alguma revolução que se tivesse feito sem isso? É preciso ter bem assente o que é a palavra «revolucionário» e não ter medo dela. Nós podemos dizer que já tivemos, ou temos, uma estratégia? Não! Julgo que agora podemos e estamos em condições de a começar a ter, até com aquele programa MFA-Povo. Se a gente não tomar aquilo a sério ou se a gente achar que aquilo foi uma coisa aprovada pela Assembleia para se esquecer daqui a pouco tempo, então, meu amigo, continuamos a caminhar para o caos. Mas se tomarmos aquilo a sério, aquilo pode ser uma estratégia do nosso futuro e não uma estratégia de convulsões sociais nem uma estratégia de sangue nem nada disso. Não é uma estratégia de sangue, é uma estratégia de paz. Também gostaria que os camaradas estivessem aí sem medo e que depois pudessem dizer, explicar isso a toda a gente, que aquela estratégia é uma estratégia de paz, é uma estratégia ao serviço das classes trabalhadoras e até dos seus aliados. E uma estratégia de paz e transformação não é uma estratégia de guerra; é preciso ver que nas cabeças das pessoas passados cinquenta ou sessenta anos, ainda existem esses papões todos do bolchevismo.

Lembro-me de quando era pequeno, tinha dez anos, o meu pai falava naquelas coisas todas, bolchevismos, dos bolchevistas e dessas coisas todas.

Isso ficou-me até muito tarde na memória. Passei também por esses papões e tudo isso. O que é preciso é tirar-lhes, varrer-lhes das mentes o anticomunismo, como outros mitos retrógrados que existem nas pessoas mas não é varrer isso para depois lhes injectar as ideias marxistas ou outras.

Nós desenvolvemos um clima de tolerância e de politização em liberdade. Nós não estamos, aqui a renegar os nossos princípios. Até agora o MFA, com tudo o que aprovou ainda não renegou os seus princípios, ao contrário do que certas pessoas dizem. É preciso ter inteligência suficiente para compreender que por exemplo o Programa da Aliança MFA-Povo está metido no programa da Acção Política. Não está é tão desenvolvido. É preciso também ter consciência, que quando um tipo assume que o Movimento das Forças Armadas é um Movimento de libertação isso traz uma grande responsabilidade.

Ou isto é puro verbalismo e não empenhamos toda a nossa vida, todo o nosso corpo, todo o nosso ser. Se não estamos dispostos a empenharmo-nos a gente vai para casa, entrega isto à social-democracia e aguardamos o que se vai passar no país. Mas temos consciência das responsabilidades que assumimos porque não é uma palavra vã dizer-se ao povo português que tem hoje abertas perspectivas como só teve em 1383. Não podemos, portanto, ter mais horas de descanso e não devemos ter tempo para divisões. E se há divisões têm que ser esclarecidas, pois não podemos admitir que haja um clima de conspiração entre nós. Isso é uma traição à nossa Pátria.

Se temos divisões, vamos então esclarecê-las, vamos ver se as podemos esclarecer ou não e se há pessoas que não podem acompanhar o processo saiam do processo. Mas não há conspirações porque as conspirações ao fim e ao cabo reduzem-se a estes dois termos: revolução ou contra-revolução, isto parece uma coisa muito radical mas não é muito radical.

Se pusermos a mão na nossa consciência, nós verificamos que são estas as duas posições, evidentemente que há uma quantidade de soluções intermédias. Há os tipos das pantufas, há os moluscos, há aqueles hesitantes, há tudo isso.

Nós temos de ter tolerância para com as pessoas que têm dúvidas, que vejam só essas alternativas. Devemos ser tolerantes para com essas pessoas. Há uma coisa que é o verbalismo e há uma coisa que é assumir verdadeiramente, desde os pés aos cabelos, aquilo que nós dizemos.

Isso é que é um problema também muito grave. Se nós tivermos um Estado forte e coeso, e uma coesão forte nas Forças Armadas, podemos ser mais tolerantes. Citemos os exemplos da Frelimo que não cortou o pescoço à Joana Simeão; mandou-a pra um campo de trabalho que é o que a gente precisa de fazer aí a uma quantidade de gente. Não é mandá-los para as prisões mas é mandá-los para um campo de trabalho.

Mas se pensamos isso temos de fazer essa tarefa a sério, temos, de facto, de fazer essa tarefa e assumir de facto que é a recuperação de indivíduos, de seres humanos. Porque o que é o Socialismo, o que é que nós pretendemos, não é de facto acabar com a exploração do homem pelo homem? Não é libertar o homem? Isto não é um movimento de libertação? Tudo isto é de uma extraordinária responsabilidade e, portanto, ou se assume essa responsabilidade ou então quem não é capaz de assumir essa responsabilidade vai para casa, porque isto é uma coisa seriíssima e gravíssima. Está em causa o destino da nossa pátria, são os Açores que nós temos, são os emigrantes que nós temos, é o futuro, são as relações externas, são os perigos externos, os boicotes externos.

Posso aqui adiantar, por exemplo, que tive ontem conhecimento que há um grupo de peritos internacionais que estão dedicados ao estudo dos contratos das nossas companhias nacionalizadas com o estrangeiro, contratos de crédito, etc., a fim de verificarem as cláusulas do cumprimento para nos criarem dificuldades com a balança de pagamentos. Eles sabem que nós estamos atrapalhados com ela, e se nos atirarem mais dez milhões de contos este ano para cima mais atrapalhados ficaremos. Depois há reacções a todos os níveis, indiferentes no que respeita a este problema, e tudo isto é o problema da política externa. Temos, de facto, de ter uma política externa que seja definida por nós em função dos condicionamentos externos, mas que seja definida por nós. Nós andamos há catorze meses atrás da C.E.E., da E.F.T.A., etc., e tudo o que é que já vimos foi dificuldades que temos tido.

Vamos pôr esse campo de parte? Evidentemente que não vamos pôr este campo de relações de parte. Nós temos de ser realistas, pois 80 por cento das nossas relações comerciais são com esses países.

É o nosso ritmo, é o nosso avanço que faz com que não nos auxiliem.

No entanto, tem que se ter em conta de que o grande perigo que esta Revolução representa para a Europa é a existência de forças revolucionárias no seio das Forças Armadas. Isto é que é um exemplo terrível para a Europa. Isto é que causa grande transtorno à Europa: ver desenvolver-se no seio das Forças Armadas, que são um ser essencialmente conservador (e nós temos a prova pelas hesitações, com os problemas que temos hoje no nosso seio), essas tais forças revolucionárias que querem ir verdadeiramente para o socialismo.

A Europa tem os olhos em cima de nós e não tenhamos ilusões que este processo não interessa à Europa. Mas se ela vir aqui um Estado firme, um poder firme, então ela compreende que está decidido um caminho. Enquanto vir que tem possibilidades de destruir esta via, dar-nos-á oposição. E não é só a Europa Ocidental. Também a Europa Oriental, também os países do Leste precisam de verificar se aqui há um Estado forte para poderem ter relações com alguém que seja responsável por este Estado. Não é com um Estado anárquico que a gente pode ter relações com os socialistas ou com o Terceiro Mundo.

Estamos, portanto, de posse dos dados do problema: um é a disciplina: o outro é a autoridade. É preciso disciplina e autoridade, tanto para nos honrar a nós próprios e às nossas fardas, por forma a não nos sentirmos fascistas, como com o sentido de homens que dão o braço armado à Revolução.


Abriu o arquivo 05/05/2014