Vasco Gonçalves: Perfil de um Homem

Fernando Luso Soares


A Questão da Vanguarda


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«A Revolução não é de ninguém: é de todos. Por isso, agora que o fascismo — mercê das nossas hesitações, ambiguidades e querelas subalternas — está a levantar a cabeça para recuperar o perdido em 25 de Abril, todos os antifascistas, todos os patriotas, todos os democratas, seja qual for o partido político a que pertençam, devem unir-se numa frente de defesa das liberdades democráticas, inabalável e indestrutível.»

Vasco Gonçalves no discurso de Almada 18 de Agosto de 1975

A questão da vanguarda tem importância capital na teoria política de Vasco Gonçalves. É imperioso, muito particularmente, compreender isto nos dias conturbados e inquietantes que estamos a viver.

Observando, com os nossos olhos de hoje, o processo revolucionário português decorrente desde o 25 de Abril a esta parte, verificaremos que, enquanto tal questão — a da vanguarda — foi posta como fonte irradiativa e mobilizadora de consciências, ânimos e vontades, a transição para uma meta socialista se manteve como horizonte na mira de uma prática política.

Ficou-nos, sem dúvida, dos anos 75 e 76, a Constituição da República, precioso instrumento para a definição de uma estrutura jurídico-política que é suporte e ponto de partida para novos e futuros avanços. Ela foi uma Constituição discutida e aprovada em consonância com as correlações de forças do respectivo tempo, feita até nos moldes consagrados pelo então Presidente Costa Gomes. Segundo este, o texto constitucional haveria logicamente de ser tão avançado que dificilmente consentisse quaisquer ultrapassagens. E, afinal, aí ele nos apontou, expresso, o horizonte da sociedade sem classes, meta terminal da marcha para a dignidade humana.

Não nos podemos, porém, esquivar à reflexão sobre o desfasamento (ou sobre os perigos de este desfasamento se manter ou agravar) entre a praxis quotidiana e as formas jurídicas constitucionais tornadas corpo de lei. A experiência portuguesa, até a anterior a Abril de 1974, confirma — como diria Mário Murteira no seu texto «A tentativa de transição para o Socialismo em Portugal» — que os diplomas constitucionais se tomam rapidamente em letra morta onde e quando a dinâmica social concreta se movimenta em direcção contrária às leis produzidas em diferentes momentos das relações sociais(210).

Não é possível ignorarmos o ror de ataques que, nos tempos actuais, a Constituição da República vem sofrendo por parte dos sectores reaccionários, desde a extrema direita até aos conservadores mais mumiamente conservadores.

Contra o combate dessa direita, só se nos oferece a ideia da resposta adequada. Na verdade, é condição para se preservar, na essência, um texto constitucional como este que a Assembleia Constituinte produziu em determinada fase da luta de classes em Portugal, que se reproduzam, se desenvolvam e se aprofundem os factores sociopolíticos da respectiva conjuntura.

Se deixarmos que esta se «reconverta» numa direcção oposta, portanto favorável às forças conservadoras ou reaccionárias, e daí contrária a uma progressiva transformação, cair-se-á no quotidiano de uma prática, que cada vez mais se distancia da estrutura constitucional.

Que tem a ver, por exemplo, com esta estrutura, a acção dos I e II Governos (ditos) Constitucionais?... E então a do III? E, por fim, a do de Mota Pinto, afronta máxima ao disposto no artigo 2.° da Constituição, aquele que impõe «a criação de condições para o exercício democrático do poder pelas classes trabalhadoras»?!...

Para mim, é esta traição ao Socialismo e à Constituição a terrível responsável pela Babilónia e pela inferneira confusa que reina no espírito das gentes portuguesas.

Primeiramente, disseram a um povo desconsciencializado por um fascismo de meio século de duração que o Socialismo era o remédio para a questão nacional. Mas o que ele viu foi o PS a fazer uma recuperação capitalista em nome do... Socialismo. E, por fim, agora em fúria até, grita-se e barafusta-se que o Socialismo nada pode resolver. E grita-se mais: que o mal é o da própria Constituição. Há mesmo quem vá ao ponto de lhe chamar «inautêntica» e de ver neste «vício» um ponto de «comunhão» entre ela, Constituição de 1976, e a de 1933(211).

Contra a ameaça deste perigo — já que ele é o que actualmente se vive em Portugal, e que tão nitidamente se demarca na epígrafe do presente capítulo — importa passarmos em analítica revista a teoria de Vasco Gonçalves sobre a vanguarda. É este, talvez, um óptimo processo para se documentar a necessidade de um reanimar massivo, mais consciente, das forças que neste país pretendem pôr cobro à exploração do homem pelo homem.

A questão política da vanguarda (o nome parece que assusta certa gente) deu azo a que se tivesse gerado um equívoco, quer no seio das pessoas menos esclarecidas, quer no das turtuosamente mal intencionadas.

Foi um equívoco mau, decerto, como todos os equívocos. Quanta gente pensou, gritou, barafustou, que «vanguarda» era sinónimo de «direcção política despótica»! Quantos identificaram Vasco Gonçalves como um dos mais terríveis jacobinos de todos os tempos! Quantos sentiram à sua roda como que um cataclismo antidemocrático, o reinado do terror! Isto para não falar, enfim, não obstante a costumada lucidez do seu espírito crítico, dos que foram levados a construir «análises» como esta:

«O dilema — escreveu Eduardo Lourenço — não é Revolução e Democracia burguesa como Vasco-Édipo o proclama à face incrédula ou seduzida do mundo. O dilema é entre o socialismo autoritário, antidemocrático e burocrático de Vasco Gonçalves, e o socialismo democrático, crítico e popular que a imensa maioria do país não reaccionário deseja e espera. Contra as aparências, só o segundo é revolucionário, só ele constitui carta única e última contra aquele monstro que tanto tem fascinado o General Gonçalves — a reacção — e a que ninguém, como ele mesmo, conferiu tanta força e repugnante viabilidade. Em suma a escolha é, ao fim e ao cabo, como o actual Primeiro-Ministro o proclama, entre a Revolução e a reacção.»(212)

Mas não vale a pena criticar «análises» como esta, hoje ainda mais arrepiante do que então. Deixemos isso e perguntemos antes em que transição para o Socialismo se poderia falar, com seriedade, nos imediatos dias posteriores a Março de 1975?

Os princípios fundamentais deste desiderato fulcral estão, todos eles, inscritos na Constituição da República. Eles são os mesmos que informaram, sem rodeios ou evasivas, sem tergiversações, Vasco Gonçalves e os seus colaboradores dos IV e V Governos Provisórios.

O texto constitucional reflecte, por um lado, uma determinada prática social. Por outro, é indubitável que aqueles dois Executivos de Vasco Gonçalves procuraram ater-se ao que, de politicamente mais relevante, fora resultando da evolução do processo económico-social de Abril de 1974 para cá. Pode afirmar-se que as nacionalizações, a Reforma Agrária e o controle operário, por exemplo — e opostamente ao que sustenta certa opinião(213) — valeram transformações estruturais que de modo nenhum «desceram» dos níveis do poder para o povo, porque antes «ascenderam» à superstrutura jurídico-política, mercê de lutas concretas em que a vanguarda de então se empenhara com alma e firmeza.

Venho ao longo deste livro, repetidamente — e agora, no presente capítulo, natural é que com frequência mais acentuada — a falar de vanguarda. Trata-se de um termo comum em Política, em Estética, em Arte, em Literatura. É um conceito encarecido por uns e detestado por outros. No que concerne, isto é, no que importa ao perfil revolucionário de Vasco Gonçalves, o que é, porém, a vanguarda? Foi o MFA ou, mais particularmente, foi Vasco Gonçalves — como aliás disso mesmo o acusaram — decalcar a teoria vanguardista do marxismo-leninismo ?

Uma coisa é indiscutível e certa. Da sua simpatia pela figura de Lénine ele nos fala, sem disfarces, na entrevista introdutória do livro Companheiro Vasco. Tal acontece a propósito da sua já referida tese sobre a inseparabilidade da Moral relativamente à Política. Bem significativas estas palavras, onde a admiração de Vasco Gonçalves pelo fautor mais evidente da Revolução de 1917 se manifesta sem reservas:

«Há dias, passando os olhos, por acaso, por um texto de Lénine, encontrei uma formulação do mesmo género. Fiquei muito contente, sabe? Sendo aquele homem tão diferente de mim, tão sábio e tão calejado em lutas violentíssimas, neste caso pensava exactamente como eu, que a política e a moral tinham muito a ver uma com a outra.»(214)

Confessar admiração por outrem, surpreender um ou outro ponto coincidente nos quadros das respectivas ideias, não equivale, evidentemente, a que o admirador pratique o seguidismo ou a cópia irreflectida. Quem não se contente com a acusação gratuita, de má-fé ou de meia-tijela intelectual, sabe que é assim. E no que respeita ao problema que agora nos ocupa (o da vanguarda) e às pessoas que venho referindo em certa relação (Lénine e Vasco Gonçalves) avultam diferenças de concepção política que uma análise mesmo singela desde logo patenteia.

Pode mesmo afirmar-se, com toda a segurança, que confundir as concepções que da vanguarda revolucionária teve, por um lado, Lénine e sustentou, por outro, o Companheiro General, constituiu mais uma das «armas» que os seus inimigos utilizaram para o ligar a determinadas forças políticas. E também para o atacar em consonância com o terrorismo desencadeado, nos meados do ano de 1975, contra as sedes e os centros de trabalho de partidos progressistas.

Quanto a mim, estou conforme com a observação feita pelo professor Teixeira Ribeiro no prefácio que escreveu para Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas.

São, na verdade, muito diferentes as concepções que da vanguarda teve Lénine e tem Vasco Gonçalves, o que não impediu que frequentemente os adversários deste último as tivessem confundido, na ânsia de amarrá-lo a uma posição partidária, assim o comprometendo e atacando, não por si próprio, evidentemente, mas pelas ideias que representava(215).

Nesta táctica demolidora distinguiram-se os responsáveis por esse texto que volto, sem hesitação, a qualificar de memorável erro histórico e que ficou conhecido pela designação «Documento dos Nove». Pode dizer-se que, intitulando-se «moderados», fizeram os Nove um uso verdadeiramente imoderado da moderação!

Enquanto a facção progressista do MFA se manteve coesa, permaneceu firme a posição de Vasco Gonçalves. Mas, como se sabe, durante o IV Governo, sobretudo em consequência dos resultados das eleições para a Constituinte, começou o Companheiro General a ser abertamente contestado.

Tal contestação, como igualmente se sabe, culminou com o referido «Documento dos Nove» — «um golpe de baixa política», assim o qualificaria Vasco Gonçalves no discurso de Almada, porque precisamente tornado público nas vésperas de o novo Executivo (o V Governo Provisório) tomar posse(216). O objectivo foi, na verdade, o de verem os Nove se conseguiam evitar essa posse.

Na minha óptica, salvo melhor opinião, o «Documento dos Nove» tripudiava do ponto de vista qualificativo. Com um a propósito, que constituiu um real despropósito, dizia ele que à teoria leninista da vanguarda revolucionária (a qual seria a perfilhada pela «direcção política» do país, isto é, por Vasco Gonçalves) haveria que contrapor de imediato uma estratégia não-leninista.

«Lutam os Nove — escreveu-se no “Documento” — por um projecto político de esquerda, onde a construção de uma sociedade socialista —isto é, uma sociedade sem classes, onde tenha sido posto fim à exploração do homem pelo homem— se realize aos ritmos adequados à realidade social concreta portuguesa, por forma a que a transição se realize gradualmente, sem convulsões e pacificamente. Este objectivo só será atingido se, à teoria leninista da “vanguarda revolucionária”, impondo os seus dogmas políticos de forma sectária e violenta, se opuser a estratégia alternativa da formação de um amplo e sólido bloco social de apoio a um projecto nacional de transição para o socialismo.»(217)

Acusava-se o Primeiro-Ministro Vasco Gonçalves e os seus colaboradores, de agitarem a sociedade portuguesa de forma sectária e violenta. E ligava-se o sectarismo e a violência à prática leninista, mas isto com uma confrangedora leviandade.

Pergunto: pelo menos no caso português (que é aquele que agora unicamente nos importa), onde esteve a violência, além daquela casuística e própria de todas as transformações sociais mais ou menos profundas?!

Uma perspectiva de liderança estritamente burguesa levou os Nove a desencadear aquela ofensiva contrária aos interesses das classes trabalhadoras. Eles efectivaram uma aliança de facto com todas as forças que, de modo nenhum, pretendiam a transição para o Socialismo em Portugal.

Denunciando este arrepiante concerto, logo no dia seguinte ao da publicação do «Documento», desmistificava-o Vasco Gonçalves no discurso da tomada de posse do V Governo:

«Neste momento, e aproveitando uma conjuntura particularmente complicada no desenvolvimento do nosso processo revolucionário, em que as dificuldades económicas resultantes do desmantelamento do sistema económico velho, da crise do capitalismo internacional, dos erros por nós cometidos, se entrelaçam com a grave situação de Angola, com o aumento das pressões internacionais sobre o nosso País e com a incapacidade das forças a quem a Revolução objectivamente serve para encontrarem um caminho firme de avanço neste processo de transição para o socialismo, as forças reaccionárias, as forças que não pretendem a construção do Socialismo em Portugal, desencadearam uma forte ofensiva que tem depurado com aliados onde devia ter inimigos jurados.»(218)

A História julgará com a serenidade que a distanciação proporciona ao espírito crítico. Nas horas de hoje, ainda relativamente próximas do infeliz acontecimento, corre-se o risco da injustiça — ou da justiça incompleta. Esta circunstância não impede, porém, que lamentemos o termos visto homens, sem dúvida alguma adversários das forças reaccionárias, facilitando o caminho da contra-revolução que de modo algum desejavam.

Seja como for, desmistificação ainda mais funda fê-la o Companheiro General em declarações prestadas à revista belga Hebdo, correndo já o mês de Outubro de 1975. Foi, portanto, depois da queda do V Governo.

Veja-se como nestas palavras Vasco Gonçalves contrapõe a condução do processo revolucionário pelas classes trabalhadoras —que é a sua tese— à posição elitista, alienante, da condução desse mesmo processo pela pequena e média burguesia, figurino teórico adoptado no «Documento» redigido por Melo Antunes.

Repare-se como afirmou, peremptório, o General:

«Eu defendo e sempre tenho defendido que quem devia conduzir o processo rumo ao Socialismo são as classes trabalhadoras, em estreita ligação com o MFA.

O grupo dos Nove, que efectuou uma revolução de palácio, pensa de outra maneira. Entendem eles que nas condições hoje existentes em Portugal} nomeadamente porque não houve levantamento do proletariado no dia 25 de Abril, este processo pode ser dirigido pela pequena burguesia e mesmo por certas camadas da média burguesia, admitindo uma aliança com as classes trabalhadoras, mas mantendo estas à distância. Pela minha parte penso que esta segunda hipótese não pode levar ao socialismo. Pode levar, eventualmente, a uma situação comparável à do Egipto ou da Líbia, mas não se trata de construção de uma sociedade socialista.

Penso que, se não houver uma luta firme dos trabalhadores, iremos para um regime de direita. E, a longo prazo, para o fascismo mesmo. Ou vamos para o Socialismo ou vamos para o fascismo(219)

Nos dias deste nosso inquietante presente, para o qual o «Documento dos Nove» deu largo contributo, impossível é que as palavras de Vasco Gonçalves, que venho de transcrever, não se nos desenhem já com uma espécie de advertência oracular. Aí estão, pelo menos, nas antecâmaras de uma nova opressão, os Mota Pinto, os Proença de Carvalho, os Vaz Portugal. Mas não nos adiantemos.

Num período político tão sério e confuso, como aquele Agosto de 1975, a oportunidade de publicação do aludido «Documento» foi, desde logo, muito discutível. E de modo nenhum contribuiu, como queriam os seus autores — e agora está bem claro que não contribuiu — para um projecto de esquerda. Através de críticas certamente justas às condições objectivas do nosso país, as parcas linhas dedicadas a uma saída da situação nada tinham, antes pelo contrário, de revolucionárias. O «Documento dos Nove» terá sido, enfim, uma cartilha, mas os seus signatários, os ditos moderados, careceram então de demonstrar, na prática, a sua opção eficiente de esquerda(220).

A nível da arena política dos partidos, igualmente o «Documento» produziu desde logo os seus deletérios efeitos. O secretário-geral do PS, por exemplo, espanejou laudatoriamente a sua moderação e aproveitou o texto dos nove militares para prosseguir a sua política demagógica. Foi quando o Dr. Mário Soares dirigiu ao Presidente da República General Costa Gomes aquela já falada carta onde punha a tal questão do pretenso dilema entre Revolução e reacção(221).

Esta carta, que também veio publicada, em 8 de Agosto, no semanário O Jornal, foi objecto de uma dura análise por parte deste órgão da Comunicação Social. Vale a pena transcrever, na totalidade, a reprimenda.

Intitulava-se «As técnicas de Mário Soares» e rezava assim o respectivo texto, reprovando a oportunista «colagem» do leader do PS ao «Documento dos Nove» (documento que, aliás, O Jornal objectivamente respeitava):

«O secretário-geral do Partido Socialista, Dr. Mário Soares, não quer perder a oportunidade de poder figurar na História como o homem que derrubou o Primeiro-Ministro Vasco Gonçalves.

E, nessa luta, nem sempre terá usado dos processos mais correctos. Foi na Fonte Luminosa, ao ter a informação de que a continuidade de Vasco Gonçalves à frente do Governo estava ameaçada, que o Dr. Mário Soares desencadeou um ataque que se transformou em campanha de apoio ao Primeiro-Ministro, e que prolongou esta agonia da formação do V Governo Provisório. E é agora, ao aproveitar o facto de um grupo de oficiais do MFA expor ao País a sua posição crítica face à actual situação, que o Dr. Mário Soares recorre, de novo, a idêntico processo.

No entanto, nesta sua carta de ontem, Mário Soares não se limita a sugerir a mesma táctica em nome do Partido que dirige. Vai mais longe: oferece a arruaça como alternativa para aquilo que politicamente não deseja que se concretize. Volta a fazer uma análise alarmista de uma situação que todos reconhecemos grave, pisca demagogicamente o olho nos desalojados de Angola (que evidentemente não podem ser esquecidos), tem um gesto de compreensão quase cúmplice para os menos politizados, que se deixam manobrar, no seu descontentamento legítimo, pelos que combatem a Revolução.

Tácticas como as que, com alguma frequência, tem utilizado o secretário-geral do PS, podem trazer lucros a curto prazo, mas também podem provocar o risco de não corresponder ao sentir de muitos militantes que acreditam sinceramente no papel que têm a desempenhar na Revolução portuguesa.

Com efeito, nenhuma estratégia política pode justificar o aproveitamento de um documento cujo conteúdo poderá ser posto em causa, mas cujas intenções, parece-nos, possuem a dignidade e a honestidade da coragem de analisar, responsavelmente, as situações difíceis.»(222)

Quanto a mim, o «Documento dos Nove» fez o seu mau papel. Antes de mais ele agravou divisões, não obstante negar, em letra expressa, essa intenção ruinosa. A Revolução enfraqueceu. Criou-se um espaço de manobra ao dispor da reacção, que nem sequer os seus responsáveis procuraram colmatar.

Vêm daí inúmeros dos pontos críticos do recuo actual das forças progressistas. E também daí veio a justeza de um comentário insuspeito, que não resisto a inserir no enorme tecido das transcrições que constituem, basicamente, este meu livro.

Escrevia José Sasportes no n.° 1 da revista Opção, em 29 de Abril de 1976:

«Os Nove, capazes de resistir à arrogância do gonçalvismo, deixam-se depois engolir pela prosápia dos anti-gonçalvistas. Assim se explicará que, estando hoje o socialismo a ser minado de forma tão sistemática quanto o foi o espirito do 25 de Abril, não se adivinhe que esteja para sair das suas mãos um documento que seja uma denúncia desses ataques mas, sincero e generoso, um grito de convicção na luta pela continuidade do socialismo no nosso país.»(223)

Foi por demais compreensível este «adivinhado» silêncio. Com o rol das suas sofisticadas expressões, tendo como norte orientativo a sedutora regra de que se não deve ocasionar ou reprovar a «ruptura do tecido social e cultural preexistente» (sic), o «Documento dos Nove», navegou nas suas ingénuas vacuidades de superstrutura abstraída de uma realidade básica. Assim, o que ele favoreceu foi a subordinação portuguesa ao imperialismo, e a recuperação capitalista e fundiária.

Tudo isto, aliás, aconteceu como se os Nove ignorassem que uma Revolução — pacífica que seja — significa sempre a ruptura com um passado onde uma minoria de senhores explorava e oprimia. Afirmar que se deseja fazer uma revolução, mas meiga, beijoqueira, lambuzada de doces, eufemista, sem provocar iras e rupturas a nível das classes exploradoras, o mesmo é dizer que, em actos, não se quer fazer revolução nenhuma.

Deixemos, porém, o «Documento dos Nove», que já me causou um perênteses maior do que eu previa. O objecto deste capítulo, estamos naturalmente recordados, é a comparação diferenciante entre a vanguarda leninista e a vanguarda gonçalvista.

Voltemos, pois, a este nosso tema do momento, para vermos com cuidado e clareza aquilo em que se identificam e se distinguem os dois conceitos.

A concepção leninista de vanguarda revolucionária foi estruturada em vários textos muito conhecidos, designadamente em Que Fazer?, Um passo adiante, dois à retaguarda e Esquerdismo, doença infantil do comunismo.

Atentemos, por exemplo, nesta passagem do segundo capítulo de Esquerdismo, doença infantil do comunismo:

«A primeira pergunta que surge é a seguinte: como se mantém a disciplina do partido revolucionário do proletariado?; como é ela comprovada?; como é fortalecida?... Em primeiro lugar, pela consciência proletária, pela fidelidade à revolução, pela sua firmeza, pelo espírito de sacrifício, pelo seu heroísmo. Depois, pela sua capacidade de se ligar, de se aproximar e, até certo ponto, se quiserem, de se fundir com as mais amplas massas trabalhadoras, antes de tudo com as massas proletárias, mas também com as massas trabalhadoras não proletárias. Finalmente, pela justeza da linha política seguida por essa vanguarda, pela justeza da sua estratégia e da sua táctica políticas, com a condição de que as mais amplas massas se convençam disso por experiência própria.»(224)

Atentemos ainda nesta outra passagem do mesmo texto, mas agora extraída do seu décimo capítulo:

«A vanguarda proletária encontra-se ideologicamente conquistada. É o principal. Sem isto não é possível, sequer, dar o primeiro passo para a vitória. Mas daí até ao triunfo ainda falta uma grande distância a percorrer. Apenas com essa vanguarda, impossível é triunfar.»

Assente, de modo expresso, nos fica portanto a ideia de que para Lénine a vanguarda proletária é um corpo activo e restrito, dianteiro nas iniciativas, mas que se não confunde com a totalidade das classes trabalhadoras.

Depois continuava o grande revolucionário:

«Lançar a vanguarda, sozinha, na batalha decisiva, quando toda a classe, quando as grandes massas ainda não adoptaram uma posição de apoio directo a essa mesma vanguarda ou, pelo menos, de simpática neutralidade e não se consideram de todo inibidas de apoiar o adversário, seria não só uma estupidez, mas até um crime. E para que realmente toda a classe, para que realmente as grandes massas de trabalhadores e oprimidos pelo capital cheguem a ocupar essa posição de apoio, a agitação e a propaganda não são, por si só, suficientes.»

Lénine salienta assim, mais adiante, que a missão da vanguarda proletária acabará por ser a de movimentar a totalidade social, não com mera propaganda e palavras de ordem, mas com actos:

«Quando se trata da acção prática das massas, de movimentar “exércitos” (se me é permitido este modo de dizer) de milhões de homens, de dispor de todas as forças da classe de determinada sociedade para a luta final e decisiva, nada conseguireis, se só actuardes através da propaganda, só com a simples repetição das verdades do comunismo “puro”. (...) Neste caso, é preciso que nos interroguemos a nós próprios sobre não só se convencemos a vanguarda da classe revolucionária, mas também se estão em movimento as forças historicamente activas de todas as classes de tal sociedade, obrigatoriamente de todas, sem excepção, de sorte que a luta decisiva esteja completamente amadurecida, e de maneira que: 1) todas as forças de classe que nos são adversas estejam suficientemente perdidas na confusão, lutando entre si, debilitadas por uma luta superior às suas forças; 2) que todos os elementos vacilantes, instáveis, inconscientes, intermediários, isto é, a pequena burguesia, estejam suficientemente desmascarados diante do povo, cobertos de opróbio pela sua falência política; 3) e que nas massas proletárias começe a aparecer, e a expandir-se com poderoso impulso o afã de apoiar as acções revolucionárias mais resolutas, mais corajosas e abnegadas, contra a burguesia. É então que está madura a revolução, que a nossa vitória está assegurada, caso tenhamos sabido levar em conta todas as condições ora esboçadas, e tenhamos escolhido acertadamente o momento.»(225)

Estes significativos e esclarecedores fragmentos permitem-nos o apuramento correcto de qual seja o conceito leninista de vanguarda.

Desligar-se de alianças ideológicas com as outras classes, e tomar a sua nítida consciência de classe (fundada, é óbvio, na especificidade da sua situação), eis a missão histórica do proletariado. Mas seria ilusão mecanicista imaginar-se que aquela consciência logra nascer e desenvolver-se per si mesma, no seio do proletariado, sempre em progressão, como se acaso este pudesse compenetrar-se, automaticamente, da sua vocação revolucionária.

Direi ainda de outro modo. O «instinto revolucionário» dos operários, se bem que se manifeste em procedimentos espontâneos das massas, vê-se incapaz de manter a consciência de classe ao nível atingido em tais momentos. Igualmente se vê incapaz de conservá-la como duradoura aquisição para a generalidade da classe operária.

Surge assim a necessidade indeclinável da organização, a qual conduzirá à luta decisiva.

A vanguarda revolucionária é, pois, para Lénine, O partido — o partido organizado. Este orienta o operariado na sua luta e, designadamente, distingue-se das massas trabalhadoras não-proletárias.

A vanguarda leninista está assim ideologicamente informada e corporalmente formada. Não se confunde com todas as forças historicamente activas de todas as classes sociais.

Aliás, é sabido que Lénine entendeu que as revoluções não poderiam ser conduzidas pelas massas trabalhadoras dada a força da tendência do proletariado para o reformismo. A vanguarda leninista constituiu-se, em conclusão, por um número restrito de intelectuais e operários revolucionários, organizados em partido político.

«Só o partido que organize revoluções que interessem a todo o povo — asseverou Lénine — poderá tornar-se vanguarda das forças revolucionárias dos nossos dias.»(226)

Julgo ter dito o suficiente para que fiquemos com uma ideia clara do que significou, face à teoria leninista, o conceito, a estrutura e o funcionamento da vanguarda.

Posso, desta forma, passar ao outro termo da «comparação-distinção» que estamos buscando.

Também para Vasco Gonçalves, como já repetidamente vimos, a Revolução tem de ser obra de uma vanguarda revolucionária. Esta, porém, em vez de representar uma organização política que revela e dirige, vale antes uma massa humana complexa que dialecticamente se esclarece, esclarece e actua. Neste sentido, julgo, tem de se entender a sua expressão «um poder de vanguarda» que utilizou no discurso que proferiu em 27 de Agosto de 1975 a propósito da manifestação da FUR(227).

«Nós — quando eu falo em nós, somos todos aqueles que fazemos parte da vanguarda...» — declarou Vasco Gonçalves(228).

Somos todos aqueles...

Mas quem, afinal ? — importa que se pergunte.

E à semelhança do que, sempre documentalmente, venho fazendo neste livro, entro a recordar as passagens mais caracterizadoras, que identificam as várias categorias de pessoas que para Vasco Gonçalves se mostram componentes da vanguarda revolucionária nos exactos e precisos termos em que o Companheiro General a concebe. Quanto a mim, porém, tal vanguarda poderá ser entretanto definida quer por exclusão, quer por inclusão de determinados sectores sociais.

Começarei por identificar quem é excluído da vanguarda, bem assim os motivos determinantes da exclusão.

São logicamente excluídas por sua posição económico-social as forças ligadas ao capitalismo nacional e internacional. E igualmente, em geral, os elementos da média burguesia falsamente progressistas.

Eis o que, neste sentido, Vasco Gonçalves afirmou ao periódico El Sol de Méjico, conforme o seu número de 14 de Maio de 1975:

«Os inimigos da Revolução Portuguesa são principalmente as forças ligadas ao capital monopolista nacional e internacional, que têm levado fortes golpes, mas não estão inteiramente destruídas. É por isso que a nossa primeira finalidade reside na destruição do poder dos monopólios e dos latifúndios. Depois, há certos sectores da média burguesia que em certa medida não compreendem este processo e, sentindo-se ameaçados, tendem a abraçar ideias esquerdistas.

Enquanto os grandes capitalistas usam de todos os meios ao seu alcance, incluindo o contragolpe, para não perderem a posição que ocupavam na liderança da sociedade portuguesa, os sectores da média burguesia de que falo acima, assumindo falsas roupagens de progresso, o que procuram é, fundamentalmente, manterem a sua importância relativa como classe, arvorando-se em pretensas vanguardas do actual processo revolucionário.»(229).

Vão do mesmo passo excluídos, também em geral, os elementos da pequena burguesia. Constatou o Primeiro-Ministro do V Governo Provisório:

«Estamos, neste momento, assistindo a uma luta pelo Poder que é reflexo de uma coisa mais profunda, que é a luta de classes. São os estratos sociais mais desfavorecidos que estão mais interessados no avanço deste processo. Mas terão de ser as forças progressistas, as Forças Armadas e o Povo trabalhador, a conduzir o processo revolucionário.»

E a seguir:

«Isto não significa que nós vamos pôr de parte a pequena burguesia, os pequenos industriais, os comerciantes, os donos das mercearias, os sapateiros, os ferreiros, os donos das pequenas lojas, os agricultores, os pequenos agricultores, tantos deles que, mesmo sendo proprietários das suas terras, ganham menos do que o salário mínimo nacional. Nós não vamos pôr essa gente de parte. Nós desejamos uma unidade íntima com essas classes, que também são trabalhadores, mas simplesmente o poder que há-de conduzir ao caminho do Socialismo tem de ser um poder de vanguarda. Não podemos entregar a condução de uma revolução democrática a caminho do Socialismo, aos elementos da pequena burguesia. Isto não significa que estejamos a marginalizar a pequena burguesia. Ela deverá ser nossa aliada na marcha para o futuro, mas só será nossa aliada desde que a condução esteja de facto em mãos firmes e fortes, verdadeiramente revolucionárias.»(230)

Foi na «Análise da Situação Política», que se situou a vanguarda como meio democrático de discernimento revolucionário do inimigo. Um meio, portanto, da sua esclarecida e clara definição.

A primeira pertence ao ponto 1.2, sob a rubrica «Indefinição Política». Prende-se directamente à problemática de uma massa colectiva, esclarecida e esclarecente:

«— A questão central do socialismo é a questão do poder. Só a tomada do poder pelos trabalhadores permite estabelecer uma sociedade socialista. — A criação de condições para que os trabalhadores ascendam progressivamente ao poder implica a existência de uma vanguarda política capaz de desenvolver uma prática política socialista. — A constituição da vanguarda política exige uma correcta definição do inimigo na fase actual do processo. Esse inimigo é, única e exclusivamente, o capitalismo e todas as organizações ou elementos isolados, que, directa ou indirectamente, o servem. — — Para além da definição só é possível avançar através de acções concretas, cuja possibilidade de realização depende estreitamente daquela definição política...»(231)

A segunda passagem, integrada nas «condições de superação», da crise política que marcou o Verão de 75, constituiu a alínea c) do ponto 2.1. Refere-se à vinculação necessária entre a questão do poder, a definição do inimigo e a vanguarda política:

«Definida a questão do poder e caracterizado o seu inimigo surge a necessidade da vanguarda política.

A necessidade decorre de ser impossível o acesso imediato dos trabalhadores ao poder, cabendo à vanguarda conduzir o processo e criar ao longo do tempo as condições necessárias para que tal acesso se dê.

A amplitude da vanguarda terá de ser obviamente limitada às organizações políticas que lutam pelo socialismo “de facto”, ou seja, pelo domínio dos trabalhadores sobre os meios de produção e as suas condições de existência.»(232)

Deste fragmento se vê, inequivocamente, que a composição da vanguarda revolucionária é aqui muito mais ampla do que em Lénine. Enquanto, para este, ela se identificava com o partido, para Vasco Gonçalves, incluem-se no seu conceito, pelo menos, todas as organizações que, de um modo efectivo, lutam pelo Socialismo.

Na concepção gonçalvista — que expressamente recusa a teoria do partido único(233) — integram a vanguarda:

  1. os partidos progressistas;
  2. os órgãos de Comunicação Social interessados nas efectivas transformações sociais;
  3. os trabalhadores organizados em sindicatos;
  4. os intelectuais cuja opção se definiu e se desenvolve na sua prática ao lado da Revolução;
  5. as massas populares consciencializadas;
  6. o Movimento das Forças Armadas.

Nesta integração se vê, ao mesmo tempo, a aliança Povo-MFA, fulcro central de toda a construção política de Vasco Gonçalves, e a participação efectiva, na vanguarda, por excepção às exclusivas gerais atrás assinaladas, de certos elementos da média e pequena burguesia (jornalistas, escritores, médicos, advogados progressistas, etc., etc.).

Quanto a fazerem parte da vanguarda revolucionária não só os partidos políticos progressistas, mas elementos da Comunicação Social como sectores do aparelho ideológico do Estado aderente à Revolução, veja-se este trecho da entrevista que logo em Setembro de 1974, cerca de dois meses depois de assumir a direcção do Governo, deu Vasco Gonçalves à BBC:

«Acho que na reconversão ideológica do nosso país têm papel fundamental e indispensável os partidos políticos, legitimamente democráticos e interessados no desenvolvimento e consolidação da democracia em Portugal. O papel desses partidos é muito importante. Eu penso que eles, através dos seus comícios, das suas reuniões e da acção dos seus militantes, devem ser ponta-de-lança, ou propagandistas das novas ideias democráticas em Portugal. Não obstante haver divergências de programa entre eles, penso que há raízes bem comuns a todos esses partidos, tal como as ligadas aos direitos fundamentais do homem. Têm, portanto, um papel fundamental a desempenhar.»

Depois passaria Vasco Gonçalves a referir-se ao papel da Televisão e da Rádio:

«Também no desenvolvimento da ideologia democrática em Portugal têm papel decisivo a desempenhar a Televisão e a Rádio. Isso por vezes não tem acontecido. Creio mesmo que por vezes — julgando que estão dando passos largos em frente — tanto a Rádio como a Televisão têm cometido erros que prejudicam a consolidação da democracia em Portugal. Para consolidar a democracia é preciso, em primeiro lugar, que haja tolerância por velhos esquemas mentais que é necessário modificar ou transformar. Não podemos porém transformar esquemas mentais ou reacções psíquicas pela força, mas sim pela persuação, pela pedagogia e pela informação correcta.»(234)

Mas como ficou enunciado, também os trabalhadores organizados fazem parte da vanguarda. Isso foi expressamente dito por Vasco Gonçalves (páginas atrás, se notou) quando aludiu às relações necessárias que se estabelecem entre a definição do inimigo e a vanguarda política. Assim, no Congresso dos Sindicatos, em 27 de Julho de 1975, indicou o então Primeiro-Ministro do IV Governo Provisório estas organizações de trabalhadores como elementos da vanguarda:

«É preciso ter bem a consciência do que significa a entrega total de uma pessoa optar pelo socialismo. E preciso que vós tenhais bem essa consciência. Dada a situação em que nós vivemos, dado o papel que representais em relação à classe operária, em relação às classes trabalhadoras, quer do campo quer da cidade, uma vez que sois uma vanguarda desses trabalhadores, vós deveis ter presente que toda a vossa vida está dedicada à implantação do socialismo em Portugal. Isso obriga a uma entrega total, a um combate total pelo socialismo. Isso não se resolve com verbalismo, mas com uma actividade quotidiana, com firmeza, com serenidade e lucidez, com a cabeça à prova de todas as pressões, com a cabeça à prova de todas as tensões. Deveis, em cada instante, ter isso bem presente.

Não podeis perder a serenidade. Não podeis perder a lucidez. Deveis compreender que o período revolucionário é um período agitado. E quando virdes um camarada menos firme, um camarada mais triste, um camarada mais desanimado, deveis lançar-lhe imediatamente a mão, num abraço fraterno.»

E feita esta advertência que deveria hoje, talvez mais do que nunca, ser seriamente ponderada pelos sindicalistas do divisionismo, Vasco Gonçalves prosseguiu:

«Esta luta — como disse o brigadeiro Corvacho, no Porto — esta luta é uma luta de morte contra o capitalismo. As formas a que recorre o grande capital, quer o nacional, quer o internacional, para travar este processo, são múltiplas. É preciso ter uma actuação permanente. É preciso ter muita firmeza, espírito de sacrifício, estar disposto a entregar-se totalmente à pátria e ao povo.

Vós tendes um papel fundamental a desempenhar como vanguarda dos trabalhadores. Cada um de vós, quando sair daqui deve ser um pólo de irradiação das ideias que aqui foram expostas, dos trabalhos a cometer; um pólo de irradiação de vigilância popular. Estamos num período de intensa vigilância popular.»(235)

Como se diz no fragmento que acabo de transcrever, as formas de que se socorre o grande capital para travar a progressão social são muitas, variadíssimas, mais ou menos subtis. Uma delas consiste, fundamentalmente, no suscitar de um antagonismo considerado de raiz entre o intelectual e o proletário. Mas o intelectual não é um capitalista, temos de nos convencermos disso. Ainda que o seu nível de vida seja burguês, e que até o queira manter, a verdade é que ele vê-se constrangido a vender o produto do seu trabalho (tantas e tantas vezes a sua força de trabalho) e sofre a exploração e a humilhação dos capitalistas.

Não há, assim, antagonismo económico algum entre o intelectual e o proletário. Deste modo, também os intelectuais podem (devem) fazer, e fazem, parte da vanguarda. Mas é evidente que me refiro àqueles que, diferenciando-se por opção própria da burguesia como sua classe de origem, se aliam aos trabalhadores.

Foi nesta ordem de ideias que Vasco Gonçalves declarou no Congresso dos Escritores, em 11 de Maio de 1975:

«A cultura tem, de facto, um grande papel nas transformações sociais. E penso que há uma interacção evidentemente, entre o trabalho e, digamos, a cultura. A Cultura não deve andar a reboque. Se nós formos lúcidos, devemos procurar andar à frente. Também não podemos andar demasiado à frente, para que o povo não nos volte as costas. O papel dos intelectuais é um papel de pioneiro, é um papel de vanguarda. A Revolução portuguesa não se pode fazer sem a vossa colaboração. Não tenho qualquer dúvida sobre isso.»(236)

Eis alguns dos sectores diversificados que constituem a vanguarda na concepção do Companheiro General. É uma força plena das virtualidades que provêm da sua complexa composição. Aliás — sujeita, na dialéctica do quotidiano, a um desenvolvimento continuado — ela tende a ampliar-se conforme progride a consciencialização colectiva. É em tal conformidade que havemos de interpretar o significativo período que transcrevo da entrevista dada por Vasco Gonçalves ao Diário de Notícias, em 25 de Abril de 1975:

«Estou absolutamente convencido de que a capacidade criadora das massas populares é uma força extraordinária no desenvolvimento económico, cultural e social de um país. O que são todas essas cabeças a pensar, a ter ideias, a discutir problemas e a contribuir por um esforço consciente, por um esforço interessado no desenvolvimento do País, vê-lo-emos dentro em breve. Penso mesmo que o veremos em prazo imediato. O desenvolvimento da produção, a emulação, as atitudes exemplares dos trabalhadores, farão que nós vençamos estas crises. Temos de ter presente que não houve nenhuma revolução que não pedisse pesados sacrifícios às gerações que a ela assistiram.»(237)

Este pensamento, acerca de uma acção revolucionária de vanguarda levada ao ponto do sacrifício, é nele uma verdadeira constante. Dias antes da entrevista que acabei de referir — mais exactamente em 8 do mesmo mês de Abril — tal ideia se reafirmou com clareza. Foi a propósito da Plataforma de Acordo Constitucional do MFA com os partidos.

Lendo o texto introdutório da sua Conferência de Imprensa que então teve lugar na Gulbenkian, Vasco Gonçalves declarou, categórico, que a continuidade do nosso processo revolucionário teria em conta dois elementos fundamentais: por um lado, a acção do povo através das associações cívicas, das associações sindicais e profissionais e dos partidos; por outro, a acção das Forças Armadas através do MFA, «uma força dinamizadora» e um «garante deste processo».

E concluía:

«Isto tem de ser tido em conta na nossa sociedade. A nossa estrutura ao nível de organização política tem de reflectir esta realidade profunda e então ela deverá ser reflectida na próxima Constituição.»(238)

Abordando a problemática do carácter socialista da Revolução de Abril, também o «Boletim das Forças Armadas» definia os respectivos princípios e rematava identicamente. Num dos seus textos mais conhecidos afirmava-se, designadamente, a natureza do MFA — «motor do processo revolucionário até que o mesmo garanta as condições da sua irreversabilidade»(239).

Percebe-se, no final de contas, toda a má sanha que desde o primeiro momento as forças retrogadistas deste país puseram na sua vontade de eliminar o Conselho da Revolução. Entende-se claramente, nesta linha, o coro das vozes que declaram o desejo de uma revisão o mais rápida (mesmo inconstitucional) da Constituição.

A nível da organização política, tal como Vasco Gonçalves alvitrara no fragmento há pouco referido, veio a Constituição de 1976 a reflectir esta realidade. O seu artigo 142.° define assim, com efeito, as funções daquele órgão:

«O Conselho da Revolução tem funções de Conselho do Presidente da República e de garante do regular funcionamento das instituições democráticas, de garante do cumprimento da Constituição e da fidelidade ao espírito da Revolução Portuguesa de 25 de Abril de 1974 e de órgão político e legislativo em matéria militar.»

Este preceito constitucional (aliás, toda a matéria constitucional referente ou relativa ao Conselho da Revolução) tem suscitado, vá lá, pelo menos declaradas perplexidades por parte da literatura jurídica conservadora. Soares Martinez, por exemplo, diz que «dada a anomalia da própria integração de um Conselho da Revolução na estrutura dos órgãos de soberania, são muitas, naturalmente, as dúvidas e as reservas que as disposições contidas neste Título III suscitam»(240).

Salvo melhor e mais douta opinião, não é assim. Falará em «anomalia» unicamente quem não quer ou não pode entender o porquê da discutida integração.

A legitimidade política do Conselho da Revolução, como ente colectivo e soberano que é, provém de ele representar «a expressão constitucional do MFA», sendo o órgão através do qual este «participa no exercício da soberania» (art. 3.°, n.° 2). É isto o que nos dizem Gomes Canotilho e Vital Moreira, justificando desta sorte a integração:

«Como o seu próprio nome indica, o Conselho da Revolução é, por assim dizer, o “herdeiro” da legitimidade democrático-revolucionária do MFA, recebida como tal na Constituição (...). O Conselho da Revolução não foi criado pela Constituição; foi recebido ou acolhido, com a origem e a qualidade que detinha.»(241)

Pelo que fica esclarecido, óbvio se torna que é de aceitar, perfeitamente, que um esforço político actual do Conselho da Revolução possa relacionar-se — como pretendeu Manuel de Lucena — «com a eventualidade de uma nova arrancada em prol da construção do socialismo». Porém, recuso desde logo a afirmação seguinte, do autor de O Estado da Revolução: que esse reforço

«corresponderia, provavelmente, a uma mescla leninista, marxo-populista e terceiro-mundista como a que o MFA carreava em 1975» (sic)(242).

Esta ideia de um movimento mesclai reconduzir-nos-ia, aliás, à tese de que terá acontecido (a nível do MFA) uma. convergência cega, amorfa, inconsiderada de várias correntes. Ao tempo, esta foi uma teoria muito propagandeada, designadamente para se impugnar a originalidade do processo.

Ao contrário, porém, de tal cega convergência-mescla, quanto a mim foi outra a realidade que aconteceu. Desde a entrada de Melo Antunes para o Conselho da Revolução, em finais de Março de 1975, a unidade coesa deste órgão começou a perder-se. E o que eu me pergunto (sendo o MFA integrado na vanguarda revolucionária como motor adjuvante) é se Vasco Gonçalves não sentiu então a imperiosa necessidade de que, no momento em que o Movimento das Forças Armadas viesse a perder a coesão (como perdeu), estivessem estabelecidas estruturas, nomeadamente populares, que de certo modo compensassem aquela perda.

Ficaram marcadas as mais evidentes dissemelhanças conceptuais entre a vanguarda leninista e a vanguarda gonçalvista. São, ambas, obviamente revolucionárias, próprias dco seus tempos e espaços — mas de compreensão diferente(243). Em Vasco Gonçalves, pela sua amplitude e heterogeneidade, destina-se a vanguarda a «funcionar», como elemento também criativo ou promotor de «condições para o exercício democrático do poder pelas classes trabalhadoras»— escopo característico da vontade constitucional expresso no art. 2.° da Constituição da República(244).


Notas de rodapé:

(210) In Companheiro Vasco, p. 555. (retornar ao texto)

(211) Manuel de Lucena, O Estado de RevoluçãoA Constituição de 1976, pp. 10-11. (retornar ao texto)

(212) Eduardo Lourenço, O Fascisco nunca existiu, p. 156, no remate do texto O Camarada Vasco. (retornar ao texto)

(213) Manuel de Lucena, O Estudo da RevoluçãoA Constituição de 1976, pp. 43 e 47, entre outras. (retornar ao texto)

(214) In Companheiro Vasco, p. 15. São numerosos os passos em que Lénine aborda problemas de relação da Moral com a Política. Julgo útil fazer aqui, a tal propósito, uma referência o mais completa possível. Assim, in Oeuvres, Éditions Sociales, Paris — Éditions du Progrés, Moscou, tomo I, 1974, pp. 175, 196, 414-415, 454-455; tomo IV, 1973, p. 410; tomo IX, 1974, pp. 380-381; tomo XIV, 1962, pp. 329 e 334; tomo XXV, 1975, p. 501; tomo XXXI, 1973, pp. 299-305; tomo XXXV, 1976, pp. 176-177, 178-181; tomo XXXVIII, 1970, pp. 48, 72, 75, 211, 262-263, 310-311. (retornar ao texto)

(215) In Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, prefácio do professor Teixeira Ribeiro, p. 13. (retornar ao texto)

(216) Idem, idem, pp. 476-477. (retornar ao texto)

(217) No Jornal Novo de 7 de Agosto de 1975. Sublinhado meu. (retornar ao texto)

(218) Discursos, Conferências de Imprensal Entrevistas, p. 465. Sublinhado meu. (retornar ao texto)

(219) Discursos, Conferências de Imprensal Entrevistas, pp. 505-506. Sublinhado meu. (retornar ao texto)

(220) Cf. no República de 8 de Agosto de 1975, através de uma pequena nota intitulada «Que pensará a classe operária?». (retornar ao texto)

(221) No Diário de Notícias de 8 de Agosto de 1975. (retornar ao texto)

(222) O Jornal, de 8 de Agosto de 1975, na primeira página, em caixa advertente da presença do texto da carta no interior do periódico. (retornar ao texto)

(223) Opção n.º 1, de 29 de Abril de 1976, Sublinhado meu. (retornar ao texto)

(224) Lénine, Oeuvres, edição citada, 1973, tomo XXXI pp. 18-19 e Esquerdismo, Doença infantil do comunismo, Edições Latitude, 2.ª edição, Porto, pp. 12-13. (retornar ao texto)

(225) Lénine, idem, idem, pp. 89-91 da edição em língua francesa; pp. 108-111 da edição portuguesa citada. (retornar ao texto)

(226) Cf. junto de Henri Lefebvre, O Pensamento de Lénine, Morais Editores, 1969, pp. 245-246. (retornar ao texto)

(227) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, p. 496. Sublinhado meu. (retornar ao texto)

(228) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, p. 453. Sublinhado meu. (retornar ao texto)

(229) Idem, p. 301. Sublinhado meu. (retornar ao texto)

(230) Idem, pp. 495-496. Sublinhado meu. (retornar ao texto)

(231) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, p. 419. (retornar ao texto)

(232) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, p. 423. Sublinhado meu. (retornar ao texto)

(233) In Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, p. 360: «A nossa Revolução compreende — assegurou Vasco Gonçalves no seu encontro com os emigrantes em Bruxelas — as mais largas liberdades. Nós não queremos um partido único, não foi para isso que fizemos o 25 de Abril...» (retornar ao texto)

(234) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, p. 61. (retornar ao texto)

(235) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, p. 451. (retornar ao texto)

(236) Idem,idem, p. 296. (retornar ao texto)

(237) Idem, idem, pp. 241-242. (retornar ao texto)

(238) Idem, idem, pp. 202-203. (retornar ao texto)

(239) In Boletim das Forças Armadas n.° 15 de 22 de Abril de 1975 p. 7. (retornar ao texto)

(240) Soares Martinez, Comentários à Constituição Portuguesa de 1976, p. 196. Sublinhado meu. (retornar ao texto)

(241) Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, p. 302. (retornar ao texto)

(242) Manuel de Lucena, O Estado da Revoluçãoa Constituição de 1976, p. 200. (retornar ao texto)

(243) Não obstante, o reconhecimento expresso das diferenças entre estas duas concepções, há quem insista no equívoco de um seguidismo para-ortodoxo. Assim, por exemplo, Annie Kriegel, no prefácio por ela escrito em Dezembro de 1977 para a edição portuguesa de Um Comunismo diferente?, Edição António Ramos, p. 11. Escreve Annie Kriegel: «... a “Revolução dos Cravos” e os dezoito meses que se lhe seguiram, embora com certas características distintas, que se relacionam com a situação portuguesa da época, permitiram avaliar as vantagens e os inconvenientes de uma estratégia estritamente conforme com a ortodoxia leninista da Revolução de Outubro na Rússia de 1971.» (retornar ao texto)

(244) Pode colocar-se a questão de se saber se a hegemonia política das classes trabalhadoras — que a Constituição da República indica, naquele artigo 2.°, como poder democrático real — exigiria no «Verão quente» de 75 uma solução diferente da democracia formal também integrada na Constituição. A propósito da questão do Poder, chega a «Análise da Situação Política» a referir (Cf. pp. 422-423 de Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas) o facto de o estabelecimento das novas relações sociais ter de ser imposto durante certo período, «o que exige o poder nas mãos dos trabalhadores, já que seria gravemente fantasioso esperar que a burguesia impusesse relações contrárias aos seus interesses» (sic). Aliás, é curioso observar que, por exemplo, um eurocomunista como Santiago Carrillo escreve em O Eurocomunismo e o Estado, Presença, 1978, p. 192: «Não tenho qualquer dúvida de que a ditadura do proletariado foi uma iniludível necessidade histórica, tal como foi a violência revolucionária. Acrescentaria que um instrumento semelhante poderia ser necessário em alguns países não desenvolvidos, onde a revolução sobrevenha como consequência de resposta a agressões armadas do imperialismo ou a regimes de terror e de violência que, num ou noutro momento, entrem em crise, se oponham à maioria da sociedade e resistam a ceder o seu lugar. Em contrapartida, estou convencido de que a ditadura do proletariado não é o caminho para chegar a estabelecer e consolidar a hegemonia das forças trabalhadoras nos países democráticos de capitalismo desenvolvido.» (retornar ao texto)

Inclusão 25/04/2015