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Analisamos, até aqui, o empiro-criticismo considerado isoladamente. Resta-nos observá-lo em seu desenvolvimento histórico, em sua ligação e suas relações com as outras correntes filosóficas. A questão das relações de Mach e Avenarius situa-se, aqui, no primeiro plano.
Mach e Avenarius intervieram nos debates filosóficos entre 1870 e 1880, numa época em que a "volta a Kant" estava em moda nos meios universitários alemães. O desenvolvimento filosófico dos dois fundadores do empiro-criticismo remontava precisamente a Kant.
"Devo reconhecer, com a maior gratidão — escreve Mach — , que é precisamente seu idealismo crítico (o de Kant) que constituiu o ponto de partida de todo o meu pensamento crítico. Mas não me foi possível ficar-lhes fiel. Logo voltei às ideias de Berkeley... (apenas) chegado a ideias vizinhas das de Hume... Ainda considero Berkeley e Hume como pensadores muito mais consequentes do que Kant" (Análise das sensações, p. 299).
Desse modo, Mach reconhece, com rodeios, que começou por Kant para continuar por Berkeley e Hume. Vejamos Avenarius.
Avenarius observa, já no Prefácio a seus Prolegômenos à crítica da experiência pura, (1876), que a expressão "critica da experiência pura" indica sua atitude para com a critica da razão pura de Kant, atitude que é, "sem dúvida", de "antagonismo" (p. IV, edição de 1876). Em que consiste esse antagonismo entre Avenarius e Kant? Vejamos: segundo Avenarius, Kant "depurou" insuficientemente a "experiência". É dessa "depuração" da experiência que trata Avenarius em seus Prolegômenos (§§ 56, 72 e muitos outros). De que "depura" Avenarius a doutrina de Kant sobre a experiência? Em primeiro lugar do apriorismo.
"A questão — diz no § 56 — de saber se é necessário eliminar, como supérfluas, do conteúdo da experiência as "noções apriorísticas da razão" e de criar, desse modo, uma experiência pura por excelência é formulada aqui, tanto quanto sabemos, pela primeira vez".
Já vimos que Avenarius também "depurou" o kantismo da admissão da necessidade e da causalidade.
E logo depurou o kantismo da hipótese de substância (§ 95), isto é, da coisa em si, que, segundo Avenarius, "não é dada pelo substrato real da experiência, mas é aí introduzida pelo pensamento."
Logo veremos que essa definição, dada por Avenarius, de sua corrente filosófica coincide inteiramente com a definição de Mach, da qual não difere senão pelo estilo afetado. Mas, primeiramente, cumpre observar que Avenarius mente simplesmente, quando diz ter sido o primeiro a formular a questão da "depuração da experiência", isto é, da depuração da doutrina de Kant do apriorismo e da hipótese da coisa em si, o que teria leito em 1876. Na realidade, o desenvolvimento da filosofia clássica alemã, após Kant, logo suscitou uma critica do kantismo orientada precisamente nesse sentido. Essa corrente da filosofia clássica alemã é representada por Schulze-Aenesidemus, que professa agnosticismo de Hume, e por J. G. Fichte, que professa o berkeleyismo, isto é, o idealismo subjetivo. Desde 1792, Schulze-Aenesidemus criticava justamente Kant por ter admitido o apriorismo (loc. cit., pp. 56, 141 e varias outras) e a coisa em si. Céticos ou discípulos de Hume, dizia Schulze, negamos coisa em si como "situada fora dos limites de toda experiência" (p. 57). Negamos o conhecimento objetivo (p. 25); negamos que o espaço e o tempo tenham uma existência real exterior a nós (p. 100); negamos que haja, na experiência, uma necessidade (p. 112), uma causalidade, uma força, etc. (p. 113). Não se pode atribuir-nos uma "realidade independente de nossas ideias" (p. 114). Kant demonstra "dogmaticamente" o a priori, afirmando sua existência uma vez que não podemos pensar de outro modo. "Em filosofia, responde-lhe Schulze, esse argumento há muito que servia para demonstrar a natureza objetiva do que existe fora das nossas representações mentais" (p. 141). Raciocinando-se desse modo, pode-se atribuir a causalidade às coisas em si (p. 142). "A experiência nunca nos ensina (wir erfahren niemals) que a ação exercida sobre nós pelas coisas objetivas cria as representações." E Kant nunca demonstrou que "não se sabe que coisa exterior à nossa razão deva ser considerada como a coisa em si diferente da nossa sensação (Gemüth). A sensação não pode ser pensada senão como a fonte única de todo o nosso conhecimento" (p. 265). A Critica da razão pura, de Kant, "baseia seus raciocínios na premissa de que todo conhecimento começa pela ação das coisas objetivas sobre nossos órgãos dos sentidos (Gemüth), e ela mesma logo contesta a verdade e a realidade dessa premissa" (p. 266). Kant em nada refutou o idealista Berkeley (pp. 268-272).
Vê-se que Schulze, discípulo de Hume, repele a doutrina de Kant sobre a coisa em si como uma concessão inconsequente ao materialismo, isto é, à asserção "dogmática" de que a realidade objetiva nos é proporcionada na sensação, ou, noutros termos, de que nossas representações são engendradas pela ação das coisas objetivas (independentes da nossa consciência) sobre nossos órgãos dos sentidos. O agnóstico Schulze reprova o agnóstico Kant por ter admitido a coisa em si, o que está em contradição com o agnosticismo e conduz ao materialismo. O idealista subjetivo Fichte também critica Kant e, ainda mais resolutamente, a admissão da coisa em si, independente do nosso eu, e do "realismo" (Obras, t. I, p. 483), dizendo que Kant "não distingue nitidamente" entre o "realismo" e o "idealismo". Fichte acha que, admitindo a coisa em si como "base da verdade objetiva" (p. 480), Kant e os kantistas cometem flagrante inconsequência, contraria ao idealismo crítico.
"Para vós, — exclamava Fichte, dirigindo-se aos comentadores realistas de Kant, — a baleia sustenta a terra e a terra sustenta a baleia.
Vossa coisa em si, que não é mais do que um pensamento, atua sobre nosso eu!" (p. 483).
Avenarius engana-se, portanto, profundamente, supondo ser o "primeiro" a empreender a "depuração" da experiência kantiana do apriorismo e da coisa em si e a criar, desse modo, uma "nova" corrente em filosofia. Na realidade, não faz mais do que seguir a velha orientação de Hume e de Berkeley, de Schulze-Aenesidemus e de J. G. Fichte. Avenarius pretendia "depurar a experiência" em geral. Na realidade, apenas "depurava" o agnosticismo de Kant (o agnosticismo é a negação da realidade objetiva que nos é proporcionada na sensação), mas para atingir um agnosticismo mais puro, para eliminar o que Kant admitia contrariamente ao agnosticismo: a existência de uma coisa em si, mesmo inconcebível, ininteligível, pertencente ao mais além, e de uma necessidade e uma causalidade, mesmo apriorísticas, proporcionadas no pensamento, ao invés de na realidade objetiva. Combateu Kant, não da esquerda, como os materialistas, mas da direita, como os céticos e os idealistas. Supunha avançar, mas, na realidade, recuava para um programa como o de um crítico de Kant, que Kuno Fischer, falando de Schulze-Aenesidemus, definia com espírito:
"Uma critica da razão pura sem a razão pura (sem o apriorismo) não passa de ceticismo. A critica da razão pura sem a coisa em si não é mais do que o idealismo de Berkeley" (Historia da nova filosofia, edição alemã, 1869, t. V, p. 115).
Abordamos aqui o mais curioso episodio de toda nossa "machiada", de toda a campanha dos discípulos russos de Mach contra Engels e Marx. A mais recente descoberta de Bogdanov e Bazarov, de Iuchkévitch e Valentínov, descoberta que eles apregoam como podem, consiste em que Plerrânov
"tenta, sem exito, conciliar Engels e Kant, com auxilio do compromisso da coisa em si um tanto cognoscível" (Ensaios, p. 67 e outras).
Essa descoberta dos nossos discípulos de Mach evidencia um abismo, verdadeiramente insondável, de confusão e uma prodigiosa incompreensão de Kant, bem como de todo o desenvolvimento da filosofia clássica alemã.
O caráter essencial da filosofia de Kant é que concilia o materialismo e o idealismo, institui um compromisso entre um e outro, coordena num sistema único duas correntes diferentes e antagônicas da filosofia. Admitindo que uma coisa em si, exterior a nós, corresponde às nossas representações, Kant se exprime como materialista. Afirmando-a inconcebível, transcendente, situada no mais além, Kant exprime-se como idealista. Reconhecendo na experiência, nas sensações, a fonte única dos nossos conhecimentos, Kant orienta sua filosofia para o sensualismo e, através do sensualismo, em determinadas condições, para o materialismo. Reconhecendo a aprioricidade do espaço, do tempo, da causalidade, etc., Kant orienta sua filosofia para o idealismo. Essa duplicidade valeu a Kant ser combatido sem tréguas, tanto pelos materialistas consequentes, como pelos idealistas consequentes (inclusive pelos agnósticos "puros" da nuança Hume). Os materialistas reprovaram-lhe o idealismo, refutaram as características idealistas do seu sistema, demonstraram a possibilidade de conhecer a coisa em si, a inexistência de uma diferença de princípio entre ela e os fenômenos, a necessidade de deduzir a causalidade, etc., não das leis apriorísticas do pensamento, mas da realidade objetiva. Os agnósticos e os idealistas reprovaram-lhe a admissão da coisa em si como uma concessão ao materialismo, ao "realismo" e ao "realismo ingênuo"; os agnósticos repeliram não somente a coisa em si, mas igualmente o apriorismo; os idealistas exigiram que as formas apriorísticas da intuição não fossem apenas logicamente deduzidas do pensamento puro, mas também deduzidas do universo em geral (o pensamento do homem ampliando-se até o eu abstrato ou até a ideia absoluta" ou, ainda, até a vontade universal, etc., etc.). Ora, nossos discípulos de Mach, "não tendo consciência" de que tomaram por mestres os que criticaram Kant do ponto de vista do ceticismo e do idealismo, puseram-se a rasgar suas vestes e a cobrir a cabeça com cinza, quando viram surgir monstruosos críticos de Kant, que, colocando-se de um ponto de vista diametralmente oposto, repudiam no sistema kantiano todo elemento de agnosticismo (de ceticismo) e de idealismo, demonstram que a coisa em si tem uma realidade objetiva perfeitamente cognoscível, que ela se situa aquém dos limites do nosso conhecimento, que ela em nada difere do fenômeno e se torna um fenômeno a cada progresso do desenvolvimento da consciência individual do homem e da consciência coletiva da humanidade. Acudam-nos! gritam eles, aí está uma confusão ilícita do materialismo e do kantismo!
Quando leio as alegações dos nossos partidários de Mach que pretendem criticar Kant de maneira muito mais consequente e mais resoluta do que certos materialistas envelhecidos, parece-me sempre que Purichkévitch surge entre nós e exclama: "Critiquei os "kadetes" com muito mais consequência e resolução do que vós, senhores marxistas!". Sem dúvida, sr. Purichkévitch, os políticos consequentes podem criticar os "kadetes" e sempre os criticarão de pontos de vista opostos; mas seria bom não esquecer que criticastes os "kadetes" porque são demasiado democratas, enquanto nós os temos criticado porque não o são suficientemente. Os discípulos de Mach reprovam Kant por ser demasiado materialista; nós o reprovamos por não o ser suficientemente. Os discípulos de Mach criticam Kant da direita, e nós, da esquerda.
Schulze, discípulo de Hume, e o idealista subjetivo Fichte apresentam, na história da filosofia clássica alemã, exemplos da critica do primeiro tipo. Como já vimos, esforçam-se por eliminar os elementos "realistas" do kantismo. E do mesmo modo que Kant foi criticado por Schulze e Fichte, também o foram os neokantistas alemães da segunda metade do seculo XIX por parte dos empiro-criticistas da corrente de Hume e dos idealistas imanentes subjetivos. Viu-se ressurgir a mesma corrente Hume—Berkeley com um vocabulário ligeiramente modificado. Mach e Avenarius atacaram Kant não por considerar a coisa em si com tanto realismo e materialidade, mas por admitir sua própria existência; não por deixar de deduzir a causalidade e a necessidade natural da realidade objetiva, mas por admitir a casualidade e uma necessidade quaisquer (excetuadas, talvez causalidade e a necessidade puramente "lógicas"). Os imanentes marcharam ao lado dos empiro-criticistas e também criticaram Kant do ponto de vista de Hume e Berkeley. Assim, Leclair, em 1879, na mesma obra em que fazia o elogio de Mach, notável filósofo, reprovava Kant por ter manifestado, em sua concepção da "coisa em si" esse "resíduo (Residuum) nominal do realismo vulgar", sua "inconsequência e sua condescendência (Connivenz) em relação ao realismo" (Der Realismus der modernen Natuwissenschaft), etc., p. 9). Para ser "mais contundente", Leclair chamava o materialismo de "realismo vulgar".
"Em nossa opinião — escrevia — todos os elementos da teoria de Kant que tendem para o realismo vulgar devem ser eliminados como inconsequências e hibridismos em relação ao idealismo" (p. 41). "As inconsequências e contradições da doutrina de Kant são provenientes da mistura do criticismo idealista e de resíduos da dogmática realista" (p. 170).
É o materialismo que Leclair chama, aqui, de dogmática realista.
Outro imanente, Johann Rehmke, criticou Kant por ter-se afastado, como realista, de Berkeley, por intermédio da coisa em si (Johann Rehmke, Die Welt als Wahrnehmung und Begriff, Berlim, 1880, p. 9).
"A atividade filosófica de Kant teve, no fundo, um caráter polêmico: com a coisa em si, dirigiu sua filosofia contra o racionalismo alemão (isto é, contra o velho fideísmo do seculo XVIII), e, com a razão pura, contra o empirismo inglês" (p. 25).
"Compararei, naturalmente, a coisa em si de Kant com uma armadilha preparada sobre um fosso; a armadilha tem um arzinho inocente, simula segurança, mas, quando alguém a pisa, cai subitamente no abismo do mundo em si" (p. 27).
Eis o motivo da aversão por Kant dos imanentes, companheiros de armas de Mach e Avenarius: Kant aproxima-se, aqui e ali do "abismo" do materialismo!
Vejamos, agora, alguns exemplos das criticas dirigidas contra Kant pela esquerda. Feuerbach incrimina Kant, não de "realismo", mas de idealismo, e qualifica seu sistema de "idealismo baseado no empirismo" (Obras, t. II, p. 296).
O seguinte raciocínio de Feuerbach sobre Kant é particularmente interessante. Kant diz:
"Se consideramos os objetos dos nossos sentimentos como simples fenômenos, isto é, tais como devem ser considerados reconhecemos, por isso mesmo, que a coisa em si está na base dos fenômenos, embora não saibamos o que ela é em si mesma e apenas conheçamos os fenômenos, isto é, o processo pelo qual essa coisa desconhecida afeta (afficirt) nossos órgãos dos sentidos. Desse modo, nossa razão, reconhecendo a existência dos fenômenos, reconhece, implicitamente, a existência das coisas em si; e podemos dizer, nesse caso, que é, não somente permitido, mas ainda necessário, representar substâncias, isto é, substâncias que não passam de pensamentos, na base dos fenômenos."
Tendo escolhido um texto de Kant no qual a coisa em si não é considerada senão como uma coisa pensada, como uma substância mental e não como uma realidade, Feuerbach concentra sobre esse texto toda a sua critica.
"Desse modo — diz ele —, os objetos das sensações, os objetos da experiência são, para a razão, apenas fenômenos, e não a verdade."
As substâncias pensadas, observem, não constituem, para a razão, objetos reais! A filosofia de Kant é uma antinomia entre o sujeito e o objeto, entre a substância e a existência, entre o pensamento e o ser. Aqui, a substância é atribuída à razão, e a existência, às sensações. A existência desprovida de substância (a existência dos fenômenos sem a realidade objetiva)
"não passa de fenômeno, de coisa dependente dos sentidos; a substância sem a existência é substância pensada, noumeno; pode-se e deve-se pensá-la, mas a existência, a objetividade, faz-lhe falta, pelo menos a nosso ver; as coisas em si são coisas verdadeiras, mas não são coisas reais... Que contradição: separar a verdade da realidade e a realidade da verdade!" (Obras, t. II, p. 373).
Feuerbach critica Kant, não por ter admitido a coisa em si, mas por não ter admitido a realidade, a realidade objetiva, por não a considerar senão como um pensamento, como uma "substância pensada", ao invés de como uma substância dotada de existência ou, noutros termos, existindo realmente, efetivamente. Feuerbach incrimina Kant por ter-se afastado do materialismo.
"A filosofia de Kant é uma contradição — escrevia Feuerbach a Bolin, a 26 de março de 1858 —, leva, com uma necessidade fatal, ao idealismo de Fichte ou ao sensualismo; a primeira conclusão pertence ao passado... a segunda, ao presente e ao futuro" (K. Grün, Ludwig Feuerbach, t. II, p. 49).
Já vimos que Feuerbach defende o sensualismo objetivo, isto é, o materialismo. A nova evolução, que vai de Kant ao agnosticismo e ao idealismo, a Hume e a Berkeley, é, sem dúvida, reacionária, mesmo do ponto de vista de Feuerbach. E seu ardoroso discípulo Albrecht Rau, herdeiro dos méritos de Feuerbach ao mesmo tempo que de seus defeitos defeitos que Marx e Engels iriam superar, criticou Kant no espírito do mestre:
"A filosofia de Kant é uma anfibologia (um equivoco); é, ao mesmo tempo, materialista e idealista: nessa sua duplicidade é que cumpre buscar-lhe a chave. Materialista ou empirista, Kant não pode fazer outra coisa senão reconhecer nos objetos uma existência (Wesenheit) exterior a nós. Idealista, não pode desfazer-se do preconceito de que a alma é qualquer coisa de diferente das coisas sentidas. Existem coisas reais do mesmo modo que o espírito humano que as concebe. De que maneira esse espírito se aproxima de coisas inteiramente diferentes dele? Kant usa o seguinte subterfúgio: o espírito possui certos conhecimentos, a priori, graças aos quais as coisas devem parecer-lhe tais como se apresentam. O fato de que concebemos as coisas tais como as concebemos constitui nossa própria obra. Porque o espírito que existe em nós não é outra coisa senão o espírito de Deus, e do mesmo modo que Deus tirou o mundo do nada, o espírito humano cria, atuando sobre as coisas, o que elas não são em si mesmas. Desse modo, Kant assegura às coisas reais a existência como "coisas em si". A alma é-lhe indispensável, constituindo a imortalidade, para ele, um postulado moral. A "coisa em si", senhores (Rau dirige-se aqui aos neokantistas em geral e, especialmente, ao confusionista A. Lange, falsificador da "história do materialismo") é o que separa o idealismo de Kant do idealismo de Berkeley: constitui a ponte entre o idealismo e o materialismo. Tal É minha crítica da filosofia de Kant; refute-a quem puder... Aos olhos do materialista, a distinção dos conhecimentos a priori e da "coisa em si" é absolutamente supérflua; em nenhuma parte interrompe o encadeamento na natureza, não considera a matéria e o espírito como coisas diferentes em princípio; não vê, nesse caso, senão aspectos diferentes de uma só e mesma coisa e não tem, portanto, nenhuma necessidade de recorrera grandes esforços para aproximar o espírito das coisas"(1)
Ademais, Engels reprova Kant, como já vimos, por ser agnóstico e não por desviar-se do agnosticismo consequente. Lafargue, discípulo de Engels, polemizava, em 1900, contra os kantistas (entre os quais se achava, então, Charles Rappoport) :
"No inicio do século, a burguesia, tendo terminado sua obra de demolição revolucionária, renegava sua filosofia voltairiana e livre-pensadora: punha novamente em moda o catolicismo, que o mestre decorador, Chateaubriand, ornava com imagens românticas, enquanto Sébastien Mercier importava o idealismo de Kant para dar o golpe de misericórdia no materialismo dos enciclopedistas, cujos propagandistas Robespierre havia guilhotinado.
No fim deste seculo, que trará na história o nome de século da burguesia, os intelectuais tentavam aniquilar, sob a filosofia kantiana, o materialismo de Marx e Engels. O movimento de reação começou na Alemanha e não desagrada os socialistas integralistas, que pretendiam conferir-lhe a honra ao seu chefe, Malon; entretanto, Malon havia estado na escola de Höchberg, Bernstein e outros discípulos de Dühring, que reformavam em Zurich o marxismo (Lafargue alude aqui a certo movimento de ideias que se produziu no seio do socialismo alemão por volta de 1875-80); do mesmo modo, devia-se esperar ver Jaurès, Fournière e os nossos intelectuais servir-nos Kant, desde que estivessem familiarizados com sua terminologia... Rappoport engana-se quando afirma que, para Marx, "existe identidade da Ideia e da Realidade". Em primeiro lugar, nunca nos servimos dessa fraseologia metafísica. Uma ideia é tão real quanto o objeto do qual e o reflexo cerebral...
Afim de divertir um pouco os camaradas que devem pôr-se a par da filosofia burguesa, vou expor-lhes em que consiste esse famoso problema que tanto preocupou os cérebros espiritualistas.
Um operário que come uma salsicha e recebe cem sous por dia sabe muito bem que é roubado pelo patrão e é nutrido com carne de porco; que o patrão é um ladrão e a salsicha é agradável ao paladar e é nutritiva para o corpo. De modo algum, dizem os sofistas burgueses, quer invoquem Pirro, Hume ou Kant; sua opinião é pessoal e, portanto, subjetiva; ele poderia, com outro tanto de razão, acreditar que o patrão é seu benfeitor e que a salsicha é de couro picado, porque não pode conhecer as coisas em si...
O problema está mal formulado, o que lhe criou toda a dificuldade...
O homem, para conhecer um objeto, deve, em primeiro lugar, verificar se seus sentidos não o enganam...
... Os químicos foram mais longe, penetraram os corpos, analisaram-nos, decompuseram-nos em seus elementos, e, depois, fizeram um trabalho inverso, recompuseram-nos com seus elementos; desde o momento em que o homem pode, com esses elementos, produzir corpos para seu uso, ele pode, e bem o disse Engels, pensar que conhece os corpos em si mesmos. O Deus dos cristãos, se existia e se havia criado o universo, não o saberia melhor"(2).
Permitimo-nos reproduzir aqui essa longa citação para demonstrar como Lafargue compreendia Engels e criticava Kant da esquerda, não em virtude das características pelas quais o kantismo se distingue da doutrina de Hume, mas em virtude das características comuns a Kant e a Hume; não pela admissão da coisa em si, mas em razão da concepção insuficientemente materialista dessa última.
K. Kautski, finalmente em sua Ética, critica Kant de um ponto de vista diametralmente oposto ao de Hume e Berkeley.
"O fato de que vejo o verde, o vermelho, o branco, explica-se pelas particularidades de minha faculdade visual — escreve ele erguendo-se contra a gnoseologia de Kant. Mas a diferença do verde e do vermelho atesta uma diferença real entre as coisas exteriores... As relações e as diferenças das próprias coisas, que representações mentais isoladas no espaço e no tempo me indicam... constituem relações e diferenças reais do mundo exterior; não são determinadas pelas particularidades de minha faculdade de conhecer; nesse caso (se a doutrina de Kant sobre à idealidade do tempo e do espaço fosse verdadeira), nada poderíamos saber do mundo exterior, não poderíamos mesmo saber se ele existe" (pp. 25 e 26).
Desse modo, toda a escola de Feuerbach, Marx e Engels afastou-se de Kant, para sua esquerda, para a negação completa de todo idealismo e de todo agnosticismo. E nossos discípulos de Mach seguiram, em filosofia, a corrente reacionária; seguiram Mach e Avenarius, que criticaram Kant do ponto de vista de Hume e de Berkeley. Todo cidadão, e em primeiro lugar todo intelectual, tem, certamente, o sagrado direito de seguir os erros de não importa que ideólogo reacionário. Mas, se homens que romperam nitidamente com os próprios princípios do marxismo em filosofia, logo se põem a agitar-se, a criar confusões, a tergiversar, assegurando que são "tão" marxistas em filosofia que estão "quase" de acordo com Marx e não fazem mais do que "completá-lo" um pouco tal espetáculo torna-se inteiramente desagradável.
Notas de rodapé:
(1) Albrecht Rau, Ludwig Feuerbach’s Philosophie, die Naturforschung und die philosophische Kritik des Gegenwart, Leipzig, 1882, págs. 87-89. — N. L. (retornar ao texto)
(2) Paul Lafargue, Le matérialisme de Marx et l'idéalisme de Kant, artigo publicado em Le Socialiste (25 de fevereiro de 1900). — N. L. (retornar ao texto)
Inclusão | 19/10/2014 |