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Reconhecendo a existência da realidade objetiva, isto é, da matéria em movimento, independentemente de nossa ciência, o materialismo é levado inevitavelmente a reconhecer, em consequência, a realidade objetiva do espaço e do tempo, diferindo, desse modo, em primeiro lugar, do kantismo, para o qual, como para o idealismo, o espaço e o tempo são formas da contemplação humana e não realidades objetivas. Os autores pertencentes às mais diversas correntes e os pensadores, por pouco consequentes que sejam, conhecem muito bem as divergências capitais existentes, a respeito dessa questão, entre as duas correntes principais da filosofia. Comecemos pelos materialistas.
"O espaço e o tempo — escreve Feuerbach — não são simples formas dos fenômenos, mas condições essenciais (Wesensbedingungen) da existência" (Obras, t. II, p. 332).
Reconhecendo a realidade objetiva do mundo sensível, que nos é dada em nossas sensações, Feuerbach rejeita naturalmente a concepção fenomenista (como diria Mach, em aparte) ou agnóstica (como se exprime Engels) do espaço e do tempo: do mesmo modo que as coisas ou os corpos não são simples fenômenos ou complexos de sensações, mas realidades objetivas atuando sobre nossos sentidos, assim também o espaço e o tempo são formas objetivas e reais da existência e não simples formas dos fenômenos. O universo não é senão matéria em movimento e essa matéria em movimento não se pode mover senão no espaço e no tempo. As ideias humanas sobre o espaço e o tempo são relativas, mas a soma dessas ideias relativas resulta na verdade absoluta e essas mesmas ideias relativas tendem, em seu desenvolvimento, para a verdade absoluta e dela se aproximam. A inconstância das ideias humanas sobre o espaço e o tempo não refuta a realidade objetiva de um e de outro mais do que a variabilidade dos nossos conhecimentos científicos sobre a estrutura da matéria e as formas de seus movimentos não refuta a realidade objetiva do mundo exterior.
Engels, desmascarando em Dühring o materialista inconsequente e confuso, surpreende-o a tratar precisamente das modificações do conceito do tempo (que não suscita nenhuma dúvida em nenhum dos mais conhecidos filósofos contemporâneos das mais diferentes correntes filosóficas), sempre evitando dar uma resposta clara à pergunta: o espaço e o tempo são reais ou ideais? As nossas concepções relativas do espaço e do tempo são aproximações das formas objetivamente reais da existência? Ou não passam de produtos do pensamento humano em vias de desenvolvimento, organização, harmonização, etc.? Nisso, e somente nisso, consiste o problema fundamental da teoria do conhecimento, a propósito do qual se dividem as correntes verdadeiramente fundamentais da filosofia.
"Pouco nos importa — escreve Engels — quais as concepções que se modificam na cabeça do sr. Dühring. Não se trata do conceito do tempo, mas do tempo efetivo, do qual o sr. Dühring não se livrará, em nenhum caso, tão facilmente (isto é com auxilio de frases sobre a variabilidade dos conceitos)" (Anti-Dühring, 5.a edição alemã, p. 41).
Eis o que está tão claro e os próprios Iuchkévitchs deveriam compreender. Engels opõe a Dühring a proposição geralmente admitida, obrigatória para todo materialista, da efetividade, ou, noutros termos, da realidade objetiva do tempo e do espaço. Não se trata de fazer negar a Engels a necessidade e o alcance científico das pesquisas sobre as transformações e a evolução das nossas concepções do tempo e do espaço; trata-se de resolver, com espírito consequente, o problema gnoseológico, ou, noutras palavras, o das fontes e do valor de todo conhecimento humano em geral. Todo filósofo idealista, por pouco sensato que seja — e Engels, falando dos idealistas, tinha em vista os idealistas genialmente lógicos da filosofia clássica — logo admitirá, sem renunciar ao idealismo, que nossas concepções do tempo e do espaço evoluem e que, por exemplo, essas concepções do tempo e do espaço se aproximam, em seu desenvolvimento, da ideia absoluta de um e de outro, etc.. Ninguém se pode ater, com fidelidade, em filosofia, ao ponto de vista hostil a todo fideísmo e a todo idealismo, se não admite, clara e resolutamente, que nossas concepções do tempo e do espaço refletem, no curso de seu desenvolvimento, o tempo e o espaço objetivamente reais, aproximando-se aqui, como em geral, da verdade objetiva.
"O espaço e o tempo — explica Engels a Dühring — constituem as formas fundamentais de toda existência; a existência fora do tempo é um absurdo tão monstruoso como a existência fora do espaço" (loc. cit.).
Por que Engels teve de recorrer, na primeira parte desse trecho, à repetição quase literal de um texto de Feuerbach e, na segunda parte, à recordação da luta contra os maiores absurdos do teísmo, sustentada com tanto exito por Feuerbach. Dühring, como se pode ver no mesmo capítulo de Engels, não soube unir as duas extremidades de sua filosofia sem ir de encontro ora à "causa final" do mundo, ora ao "primeiro impulso" (outra expressão para designar a Divindade, diz Engels). Dühring pretendeu, provavelmente, ser materialista e ateu, não menos sinceramente do que os nossos discípulos pretendem ser marxistas, mas não soube aplicar, com espírito consequente, o método filosófico que arrebata verdadeiramente toda base aos absurdos idealistas e teístas. Não admitindo a realidade objetiva do tempo e do espaço, ou, pelo menos, não o admitindo clara e nitidamente (Dühring errou e hesitou a esse respeito), esse autor deslisa fatalmente, e não casualmente, sobre o plano inclinado, até as "causas finais’’ e aos "primeiros impulsos", estando ele próprio privado do critério objetivo, que impede que se transponham os limites do tempo e do espaço. Se o tempo e o espaço não são mais do que conceitos, a humanidade que os criou tem o direito de transpor seus limites, como os professores burgueses têm o direito de receber subsídios dos governos reacionários para a defesa da legitimidade desse ultrapassamento, para a defesa, direta ou não, do "absurdo" medieval.
Engels mostrou a Dühring que a negação da realidade objetiva do tempo e do espaço é, em teoria, uma confusão filosófica, e, na prática, uma capitulação ou uma confissão de fraqueza diante do fideísmo.
Vede, agora, a "doutrina" do "mais moderno positivismo sobre o assunto. Lemos em Mach:
"O espaço e o tempo são sistemas ordenados (ou harmonizados, wohlgeordnete) das séries de sensações" (Mecânica, 3.a edição alemã, p, 498).
Evidente absurdo idealista, que é a fatal consequência da doutrina segundo a qual os corpos são complexos de sensações. Para Mach, não é o homem, com suas sensações, que existe no espaço e no tempo; são o espaço e o tempo que existem no homem, que dependem do homem, que são criados pelo homem. Mach sente-se caminhar para o idealismo e "resiste", multiplicando as restrições e, como Dühring, mergulhando a questão em intermináveis dissertações (ver, sobretudo, Conhecimento e erro) sobre a variabilidade, a relatividade, etc. das nossas concepções do tempo e do espaço. Isso não o salva e não o pode salvar, uma vez que não se pode superar verdadeiramente o idealismo, nessa questão, senão reconhecendo a realidade objetiva do espaço e do tempo. É precisamente o que Mach não deseja de modo algum. Ele edifica uma teoria gnoseológica do tempo e do espaço com base no princípio do relativismo e contenta-se com isso. Esse esforço só pode conduzi-lo ao idealismo subjetivo, como já o demonstramos relativamente à verdade absoluta e relativa.
Resistindo às conclusões idealistas que suas premissas impõem, Mach ergue-se contra Kant e defende a origem experimental do conceito do espaço (Conhecimento e erro, 2.ª edição alemã, pp. 350 e 385). Mas, se a realidade objetiva não nos é dada na experiência (como quer Mach), essa objeção dirigida a Kant em nada muda o fundo de agnosticismo comum a Kant e a Mach. Se o conceito de espaço é tirado da experiência sem refletir a realidade objetiva exterior, a teoria de Mach é idealista. A existência da natureza no tempo, medida em milhões de anos, remontando a épocas anteriores ao homem e à experiência humana, demonstra o absurdo dessa teoria idealista.
"A fisiologia — escreve Mach — vê, no tempo e no espaço, sensações de orientação que, com as sensações provenientes dos órgãos dos sentidos, determinam reações de adaptação biologicamente uteis. Para a física, o tempo e o espaço constituem relações de dependência entre os elementos físicos" (loc. cit., página 434).
O relativista Mach limita-se a estudar o conceito do tempo sob diversas relações! E marca passo, do mesmo modo que Dühring. Se os "elementos" são sensações, a dependência dos elementos físicos entre si não pode existir fora do homem, anteriormente ao homem, anteriormente à matéria orgânica. Se as sensações de tempo e de espaço podem dar ao homem uma orientação biologicamente útil, tal se dá exclusivamente sob condição de refletirem a realidade objetiva exterior ao homem; o homem não poderia adaptar-se biologicamente ao meio, se suas sensações não lhe dessem uma ideia objetivamente exata desse meio. A teoria do espaço e do tempo está indissoluvelmente ligada à solução da questão gnoseológica. Nossas sensações constituem representações dos corpos e das coisas ou os corpos complexos de nossas sensações? Mach não faz outra coisa senão errar entre essas duas soluções.
A física contemporânea, diz ele, ainda conserva as ideias de Newton sobre o tempo e o espaço absolutos (pp. 442-444), sobre o tempo e o espaço como tais. Essas ideias "nos" parecem absurdas, continua Mach, sem que se duvide, evidentemente, da existência dos materialistas e da teoria materialista do conhecimento. Mas essas ideias eram inofensivas (unschädlich) na prática (p. 442), e, por isso, a critica, durante muito tempo, absteve-se de tocar no assunto.
Como essa ingênua observação sobre a inocuidade do pensamento materialista traiu Mach! Em primeiro lugar, é inexato dizer que, "durante muito tempo", os idealistas não criticaram essa concepção materialista; Mach finge simplesmente ignorar a luta que se desenvolveu entre as teorias idealista e materialista do conhecimento, a proposito dessa questão; ele evita expor, clara e nitidamente, os dois pontos de vista. Em segundo lugar, afirmando a "inocuidade" das concepções materialistas, que contesta, Mach não faz, no fundo, senão reconhecer, sua justeza. Como poderia um erro continuar inofensivo durante séculos? Que é feito do critério da prática, com o qual Mach pretendeu flertar? A concepção materialista da realidade objetiva do tempo e do espaço não é inofensiva senão porque as ciências naturais não se aventuram a ultrapassar os limites do tempo e do espaço, os limites do mundo material, deixando essa ocupação para os professores da filosofa reacionária. Essa "inocuidade" equivale à justeza.
O que é "nocivo" é o ponto de vista idealista de Mach a respeito do espaço e do tempo, porque, em primeiro lugar, abre amplamente as portas ao fideísmo e, em segundo lugar, porque induz o próprio Mach a conclusões reacionárias. É assim que Mach escrevia, em 1872:
"Não é obrigatório representar os elementos químicos num espaço de três dimensões (Erhaltung der Arbeit, pp. 29 e 55), (Fazê-lo) é impor uma restrição inútil. Nenhuma necessidade nos obriga a situar os conceitos puramente mentais (das bloss Gedachte) no espaço, isto é, em relação ao visível e ao tangível, do mesmo modo que não há nenhuma necessidade de se os conceber como tendo uma certa intensidade de som" (p. 27).
"O fato de que não se tenha conseguido, até aqui, formular uma teoria satisfatória da eletricidade talvez seja proveniente de que se pretendeu explicar, a todo custo, o fenômeno elétrico por processos moleculares no espaço de três dimensões" (p. 30).
Raciocínio absolutamente justo, do ponto de vista da doutrina clara e nítida de Mach, defendida por esse último em 1872: se as moléculas, os átomos — numa palavra, os elementos químicos — não podem ser percebidos pelos sentidos, é porque não passam de "conceitos puramente mentais" (das bloss Gedachte). E, se assim é e se o espaço e o tempo não têm significação objetiva real, é evidente que nada nos obriga a representar os átomos como situados no espaço! Que a física e a química se circunscrevam ao espaço de três dimensões em que se situa a matéria, pouco nos importa! Os elementos da eletricidade podem ser investigados nada menos do que num outro espaço que não o de três dimensões!
Compreende-se que nossos discípulos de Mach tenham o cuidado de silenciar sobre tamanho absurdo, embora Mach o tenha repetido em 1906 (Conhecimento e erro, 2.ª ed., p. 418), mesmo porque deveriam, se a tal coisa se referissem, colocar nitidamente, sem subterfúgios e sem tentativas de conciliação dos contrários, a questão das concepções idealista e materialista do espaço. Compreende-se também por que, desde os anos de 1870-80, numa época em que Mach, totalmente desconhecido, chegava mesmo a ver seus artigos recusados pelos "físicos ortodoxos", um dos chefes da escola imanente, Anton von Leclair, assenhoreava-se precisamente desse raciocínio de Mach, para explorá-lo a fundo como um notável repúdio do materialismo e como um reconhecimento formal do idealismo! Nessa ocasião, Leclair ainda não havia imaginado ou tomado a Schuppe, Schubert-Soldern ou a Rehmke a "nova" bandeira da "escola imanente" e qualificava-se, sem rodeios, de "idealista crítico".(1) Tais propósitos levaram esse franco defensor do fideísmo, que ele preconiza abertamente em todas as suas obras filosóficas, a logo erigir Mach em grande filósofo, "revolucionário no melhor sentido da palavra" (p. 252). Muito justamente. O mencionado raciocínio de Mach atesta a sua passagem do naturalismo para o fideísmo. Em 1872, como em 1906, as ciências naturais ainda investigam e descobrem, ou estão a pique de descobrir, o átomo da eletricidade, o eléctron, no espaço de três dimensões. As ciências naturais não se restringem ao fato de que a matéria que estudam existe unicamente num espaço de três dimensões e que, portanto, as partículas dessa matéria, por ínfimas que fossem a ponto de ser invisíveis para nós, existem necessariamente no mesmo espaço de três dimensões.
No decorrer das três décadas após 1872, marcadas pelos progressos prodigiosos, vertiginosos, da ciência no conhecimento da estrutura da matéria, a concepção materialista do espaço e do tempo permaneceu "inofensiva", isto é, inteiramente de acordo, como anteriormente, com as ciências naturais, enquanto a concepção contraria de Mach & Cia. não fez mais do que uma "incômoda" capitulação diante do fideísmo.
Em sua Mecânica, Mach defende os matemáticos que estudam a questão dos espaços imagináveis a n dimensões contra a acusação de chegarem, no assunto, a conclusões "monstruosas". Defesa das mais justas, é inegável; mas vejamos qual a posição gnoseológica é aí assumida por Mach. Os matemáticos modernos, diz ele, colocaram a questão, muito importante e muito útil, do espaço a n dimensões, espaço concebível, mas tendo nós, como "caso real" (ein wirklicher Fall), apenas o espaço de três dimensões (3.ª edição, pp. 483-485). Eis por que certos teólogos que não sabem onde colocar o inferno" e certos espíritas erraram em pretender tirar partido da quarta-dimensão (loc. cit.).
Muito bem! Mach não deseja marchar ao lado dos teólogos e dos espíritas. Mas de que modo se separa deles em sua teoria do conhecimento? Fazendo observar que o espaço de três dimensões é o único espaço real! Mas, de que vale essa defesa contra os teólogos e outros, se não reconheceis no espaço e no tempo uma realidade objetiva? Em suma, empregais o método dos empréstimos discretos tomados ao materialismo, quando tendes necessidade de vos premunir contra os espiritas. Porque os materialistas, vendo no mundo real, na matéria que percebemos, uma realidade objetiva, têm o direito de daí concluir que as fantasias humanas que transpõem os limites do espaço e do tempo são irreais, quaisquer que sejam seus fins. E vós, senhores discípulos de Mach, em vossa luta contra o materialismo, negais "à realidade" a existência objetiva e a reintroduzis sorrateiramente, quando se trata de combater o idealismo consequente, franco e intrépido até o fim. Se, nas concepções relativas do tempo e do espaço, existe tão só relatividade, se aí não se encontra nenhuma realidade objetiva (independente do homem e da humanidade) refletida em concepções relativas, por que a humanidade, por que a maioria dos homens não têm o direito de conceber seres existentes fora do tempo e do espaço? Se Mach tem o direito de pesquisar os átomos da eletricidade ou os átomos em geral fora do espaço de três dimensões, por que a maioria da humanidade não tem o direito de estudar os átomos ou os fundamentos da moral fora do espaço de três dimensões?
"Ainda não se viu — escreve Mach na mesma página — parteiro que tenha operado através da quarta dimensão!"
Excelente argumento, mas somente para os que veem no critério da prática a confirmação da verdade objetiva, da realidade objetiva do mundo sensível. Se nossas sensações nos dão uma imagem objetivamente exata do mundo exterior existente independentemente de nós, esse argumento, inclusive a referência ao parteiro e a toda a prática humana, vale bem alguma coisa. Mas, nesse caso, é a doutrina de Mach que nada vale como corrente filosófica.
"Espero — continua Mach, que reconduz o leitor ao seu trabalho de 1872 — que ninguém invoque a favor das historias de almas do outro mundo o que eu disse no escrito a esse respeito".
Não é possível supor que Napoleão não tenha morrido a 5 de maio de 1821. Não é possível supor que a doutrina de Mach, que já serviu e continua a servir aos imanentes, não sirva às "historias de almas do outro mundo".
Aliás, não serviu somente aos imanentes, como veremos mais adiante. O idealismo filosófico não é mais do que uma história de almas do outro mundo dissimulada e fantasiada. Vê de, primeiramente, os representantes franceses e ingleses do empiro-criticismo, menos afetados do que os representantes alemães dessa corrente filosófica. Poincaré diz que os conceitos do espaço e do tempo são relativos e que, por conseguinte, (para os não-materialistas, aliás), "a natureza não nos impõe tais conceitos", "mas nós é que os impomos à natureza, porque os achamos cômodos" (loc. cit., p. 6). O entusiasmo dos kantistas alemães não está, portanto, justificado? A asserção de Engels de que as doutrinas filosóficas consequentes devem ter por elemento primordial ou a natureza ou o pensamento humano não está confirmada?
As ideias do discípulo inglês de Mach, Karl Pearson, são bem definidas.
"Não podemos afirmar — diz ele — que o espaço e o tempo tenham uma existência real; eles não estão nas coisas, mas em nossa maneira (our mode) de perceber as coisas" (loc. cit.. página 184).
Idealismo franco e nítido.
"Como o espaço, o tempo é um dos modos (textualmente, um dos planos) de disposição utilizados pela faculdade humana de conhecer, essa grande máquina de classificar, afim de pôr em ordem os seus materiais" (loc. cit.).
A conclusão final de K. Pearson, exposta, como de costume, em teses precisas e claras, está assim formulada:
O espaço e o tempo não são realidades do mundo fenomenal (phenomenal world), mas modos (modes) de perceber as coisas. Não são nem infinitos e nem divisíveis ao infinito, estando, em sua própria essência (essencially), limitados pelo conteúdo das nossas percepções (p. 191, conclusões do cap. 5, sobre "o espaço e o tempo").
Inimigo probo e consciencioso do materialismo, Pearson, com quem, repetimos, Mach se solidarizou em diversas oportunidades, e que, por sua vez, se declara plenamente de acordo com Mach, não confere à sua filosofia um rótulo especial, mas indica, sem rodeios, os filósofos clássicos cuja linhagem ela continua: Hume e Kant (p. 192)!
Se houve, na Rússia, ingênuos para acreditar que a doutrina de Mach contém uma "nova" solução para o problema do espaço e do tempo, na literatura inglesa, ao contrário, os naturalistas de um lado e os filósofos idealistas do outro tomaram posição imediata e nitidamente, em relação ao discípulo de Mach, K. Pearson. Eis, por exemplo, a apreciação do biólogo Lloyd Morgan:
"As ciências naturais, como tais, consideram o mundo fenomenal como exterior ao espírito do observador e independente dele... (enquanto o professor Pearson assume) uma atitude idealista"(2)
"Minha opinião é que o naturalista tem, como ciência, todas as razões para considerar o espaço e o tempo como categorias puramente objetivas. O biólogo tem o direito, parece-me, de considerar a distribuição dos organismos no espaço e o geólogo sua distribuição no tempo, sem se demorar em explicar ao leitor que se trata apenas de percepções dos sentidos, de percepções acumuladas dos sentidos, de certas formas de percepções. Tudo isso talvez esteja certo, mas é indevido em física e em biologia" (p. 304).
Lloyd Morgan é representante desse agnosticismo que Engels qualificou de "materialismo pudico"; e por "conciliadoras que sejam as tendências dessa filosofia, não lhes foi possível conciliar as opiniões de Pearson com as das ciências naturais. Em Pearson, diz outro crítico(3), têm-se "primeiro, o espírito no espaço e, depois, o espaço no espírito".
"Está fora de dúvida — responde R. J. Ryle, defensor K. Pearson — que a teoria do espaço e do tempo ligada ao nome de Kant constitui a mais importante conquista positiva da teoria idealista do conhecimento humano, desde o bispo Berkeley. E uma das características mais notáveis de The Grammar of Science, de Pearson, é que nela encontramos, talvez pela primeira vez da pena de um sábio inglês, o reconhecimento sem reservas da teoria de Kant e principalmente sua exposição clara e precisa"(4)
Desse modo, nem os discípulos ingleses de Mach, nem seus adversários naturalistas e nem os filósofos especialistas seus partidários não têm a menor dúvida quanto ao caráter idealista da doutrina de Mach do tempo e do espaço. Alguns escritores russos, que se pretendem marxistas, são os únicos que "não o perceberam".
"Certas opiniões de Engels — escreve, por exemplo, V. Bazarov nos Ensaios (p. 67) — , como sua concepção do tempo e do espaço puros, estão agora envelhecidas"
Pois sim! As concepções do materialista Engels teriam envelhecido, mas as do idealista Pearson ou do confuso idealista Mach seriam as mais novas! O mais curioso aqui é que Bazarov não duvida, absolutamente, que se possam considerar as ideias sobre o espaço e o tempo, o reconhecimento ou a negação da sua realidade objetiva, como "opiniões particulares", em oposição ao "ponto de partida da concepção geral" a que se refere a frase seguinte do mesmo autor. Notável exemplo da "miserável sopa eclética" a que Engels se referia, falando da filosofia alemã de 1880-90. Mesmo porque opor o "ponto de partida" da concepção materialista de Marx e Engels a "uma" de suas "opiniões" sobre a realidade objetiva do tempo e do espaço é enunciar um contra-senso tão gritante como se se pretendesse opor o "ponto de partida" da teoria econômica de Marx a "uma" de suas "opiniões" sobre a mais-valia. Dissociar a doutrina de Engels sobre a realidade objetiva do tempo e do espaço de sua teoria da transformação das "coisas em si" em "coisas para "nós", de sua admissão da verdade objetiva e absoluta, ou, mais precisamente, na realidade objetiva que nos é proporcionada na sensação, dissociá-la de sua admissão das leis naturais da causalidade e da necessidade é desintegrar uma filosofia que é toda uma só peça. Como todos os discípulos de Mach, Bazarov tomou caminho errado confundindo a variabilidade das concepções humanas do tempo e do espaço, seu caráter exclusivamente relativo, com a invariabilidade do fato de que o homem e a natureza não existem senão no tempo e no espaço; os seres fora do tempo e do espaço, seres criados pelo clero e alimentados pela imaginação das massas ignorantes e oprimidas, não passam de produtos de uma fantasia mórbida, de subterfúgios do idealismo filosófico, de maus produtos de um mau regime social. As concepções da ciência sobre a estrutura da matéria, sobre a composição química dos alimentos, sobre o átomo ou sobre o eléctron, podem envelhecer e envelhecem cada dia; mas verdades tais como: o homem não pode nutrir-se de pensamento, o amor puramente platônico não pode ser fecundo — não envelhecem. Ora, a filosofia que nega a realidade objetiva do tempo e do espaço é tão absurda, tão falsa, tão intrinsecamente podre, como a negação de tais verdades. Os subterfúgios dos idealistas e dos agnósticos, em suma, são tão hipócritas como a propaganda do amor platônico pelos fariseus!
Para ilustrar essa distinção entre a relatividade de nessas concepções do tempo e do espaço e a oposição absoluta das correntes materialista e idealista nos limites da gnoseologia, citarei ainda algumas linhas de um "empiro-criticista" muito velho e muito puro, Schulze-Aenesidemus, discípulo de Hume, que escrevia em 1792:
"Se se parte das ideias para os "objetos exteriores" o espaço e o tempo são bem exteriores e reais, porque os corpos somente se concebem num espaço preexistente (vorhandenen) e as transformações somente se concebem num tempo preexistente" (loc. cit., p. 100).
Precisamente! Repudiando categoricamente o materialismo e a menor concessão ao materialismo, Schulze, discípulo de Hume, expunha, em 1792, as relações do problema do espaço e do tempo com o da realidade objetiva exterior, em termos idênticos, aos do materialista Engels em 1894 (o último Prefácio de Engels ao Anti-Dühring é datado de 23 de maio de 1894). Isso não significa que as nossas ideias sobre o espaço e o tempo não se tenham modificado em séculos, que não tenhamos acumulado uma quantidade enorme de fatos novos sobre o desenvolvimento dessas ideias (fatos a que se referem "Vorochílov"—Tchernov e "Vorochílov"—Valentinov em sua pretensa refutação de Engels; isso apenas significa que as correlações do materialismo e do agnosticismo, correntes filosóficas fundamentais, não puderam modificar-se, quaisquer que fossem os rótulos "novos" conferidos pelos nossos discípulos de Mach.
Bogdanov nada acrescenta, mas absolutamente nada, e ele muito menos, à antiga filosofia do idealismo e do agnosticismo, a não ser algumas denominações "novas". Repetindo os raciocínios de Hering e Mach sobre a discriminação do espaço fisiológico e do espaço geométrico, ou do espaço da percepção dos sentidos e do espaço abstrato (Empiromonismo, t. I, p. 26), ele não faz senão repetir inteiramente o erro de Dühring. Outra coisa é saber com auxilio de que órgãos dos sentidos o homem percebe o espaço e como, no curso de uma longa evolução histórica, se forma dessas percepções a ideia abstrata do espaço; outra coisa é saber se uma realidade objetiva, independente da humanidade, corresponde a essas percepções e a essas ideias humanas. Essa última questão, embora sendo a mais importante em filosofia, Bogdanov "não a observou" sob um montão de pesquisas experimentais pormenorizadas, relativas à primeira questão; e, por isso, não pode opor nitidamente o materialismo de Engels à confusa doutrina de Mach.
O tempo, como o espaço, é "uma forma de coordenação social da experiência de homens diferentes" (loc. cit., n. 34); a "objetividade" do tempo e do espaço é sua "significação comum a todos os homens" (loc. Cit.).
Isso é falso de ponta a ponta. A religião que exprime, igualmente uma coordenação social da experiência da maior parte da humanidade tem uma "significação comum a todos os homens". Mas as ideias religiosas sobre o passado da terra ou sobre a criação do mundo, por exemplo, não correspondem a nenhuma verdade objetiva. Uma realidade objetiva corresponde à concepção científica da existência da terra, num espaço determinado em relação aos outros planetas, com uma duração determinada, anterior a toda sociabilidade, anterior à humanidade, anterior à matéria orgânica (embora essa concepção também seja relativa a cada grau do desenvolvimento da ciência, como o é a religião a cada uma das etapas da sua evolução). Para Bogdanov, as diferentes formas do espaço e do tempo adaptam-se à experiência dos homens e à sua faculdade de conhecer. Na realidade verifica-se precisamente o contrário: "nossa" experiência e nosso conhecimento adaptam-se cada vez mais ao espaço e ao tempo objetivos, refletindo-os cada vez mais exata e mais profundamente.
Notas de rodapé:
(1) Anton von Leclair, Der Realismus der modernen Natuwissenschaft im Lichte der von Berkeley und Kant angebahnten Erkenntniskritik (O realismo das ciências naturais modernas à luz da crítica preparada por Berkeley e Kant), Praga, 1879. — N. L. (retornar ao texto)
(2) Natural Science, vol. I, 1892, pág. 300. — N. L. (retornar ao texto)
(3) J. M. Bentley, em The Philosophical Review, vol. VI, 5 de setembro de 1897, pág. 523. — N. L. (retornar ao texto)
(4) Apreciação de R. J. Ryle sobre Pearson em Natural Science, agosto de 1892, pág. 154. — N. L. (retornar ao texto)
Inclusão | 26/09/2014 |