Campanha anti-trotskista


Da oposição de esquerda à Quarta Internacional


Durante décadas o trotskismo nadou contra a corrente, num período de reação mundial, que não permitiu que se tornasse uma poderosa organização revolucionária. Mesmo nesta fase, a campanha estalinista, tingida de falsificações e calúnias contra o trotskismo, não cessou. Agora as condições mudaram, a corrente política é favorável ao trotskismo e já deu provas da sua capacidade de passar do grupo de propaganda à luita para se tornar um partido das massas. Portanto, não é surpreendente que a campanha estalinista tenha se intensificado. Os ecos dessa campanha chegam também à América Latina e à Bolívia, que basicamente se limita a reproduzir, pela enésima vez, as velhas acusações, quase todas já respondidas à época polo próprio Trótski. Ultimamente, “O trotskismo nu” do francês Léo Figuères, um volume de 275 páginas; de Moscovo transmite "A luta do Partido Bolchevique contra o Trotskismo”, dous volumes de aproximadamente 300 páginas cada um, escrito por uma equipe de especialistas russos; Das gráficas do PC argentino saíram dous volumes de "Contra o Trotskismo", que nada mais é do que um meticuloso acúmulo de tudo o que Lenine escreveu nas suas numerosas polêmicas com Trótski e de todas as referências sobre o assunto que se podem encontrar nas suas obras completas. A esse material antitrotskista (para nós, o trotskismo é a Quarta Internacional, Partido Mundial da Revolução Socialista) é preciso acrescentar a persistência que se tem dado na reedição do antigo escrito de Trótski "Nossas tarefas políticas"(1) (1904), embora venha de outra trincheira. Onde está a autocrítica radical do intransigente defensor da concepção organizacional do bolchevismo sobre o assunto? Refletir ideias ultrapassadas e superadas polo próprio autor não faz mais que servir à reação, não importa que se disfarce de “democrática”. Ouçamos o próprio Trótski: "Em 1904 escrevi um panfleto, "Nossas tarefas políticas", que desenvolve, sobre a questão da organização, pontos de vista muito próximos aos de Rosa Luxemburgo (Souvarin cita com simpatia este panfleto na sua biografia de Stalin) . No entanto, toda a experiência posterior me mostrou que Lenine estava certo contra Rosa Luxemburgo e contra mim. Marceau Pivert opõe o "trotskismo" de 1939 ao "trotskismo" de 1904. Mas, depois disso, houve três revoluções apenas na Rússia. Será que realmente não aprendemos nada nesses 34 anos?

Boris Fraenkel (que por um curto período esteve na OCI francesa que liderou a reconstrução da Quarta Internacional, depois que ela foi destruída polos revisionistas e capituladores antes do estalinismo Michel Pablo, Mandel, Frank, etc.) aproveitou a oportunidade que lhe fornecera a edição francesa de "Nossas tarefas políticas" para retomar a tentativa de ignorar a continuidade do bolchevismo dentro do movimento revolucionário, considerada por este senhor como um erro histórico. Fraenkel, um expoente da quadrilha centrista, encorajado polo próprio Pablo e por Craipeau do Partido Socialista Unificado Francês, deseja reivindicar o jovem Trótski e convertê-lo na bandeira anti-leninista.

Especialmente depois do XX Congresso do PCUS, as críticas ao estalinismo foram totalmente desacreditadas e o mínimo que se pode sustentar é que o que a burocracia termidoriana diz deve ser tomado em benefício do inventário; Por isso, a crítica cheia de hipocrisia, que elogia a vítima e se vangloria da objetividade histórica, é muito mais perigosa.

Figuères está alinhado com esse novo estilo de antitrotskismo. Neste ponto do desenvolvimento do movimento revolucionário, quando tantos documentos sobre a URSS foram publicados, não é mais possível negar o papel desempenhado por Trótski na revolução, mas é possível (para isso é vantajoso adoptar um ar de relativa imparcialidade) minimizam essa participação e minam o seu verdadeiro alcance político. Figuères sustenta que, embora Trótski estivesse presente nas fileiras revolucionárias, nunca observou a fidelidade de Stalin, etc. "E é inútil ─ diz ele ao pé da letra ─ querer reduzir tais serviços (como membro do CC bolchevique do VI congresso de agosto de 1917, como presidente do Soviete de Petrogrado e "em diferentes cargos dentro do governo soviético") ou com mais motivos para excluí-los. Não se deve esquecer que as numerosas e contraditórias versões que a burocracia tem dado sobre os factos históricos em cada uma da suas cambalhotas acabaram por desacreditá-la até mesmo aos olhos dos seus incondicionais; reescrever a história costuma ser contraproducente. "Isso evita muitos inconvenientes, entre os quais ter que reescrever a história para cada uma das suas novas reviravoltas" (p. 99). O líder comunista e “teórico” francês distingue-se sobretudo polo seu cinismo, armadura essencial para ser um bom militante estalinista. Trótski marcou o Comintern chamando-o de escola de falsificações.

O nosso autor é obrigado a deixar claro que “a partir dum certo momento, Trótski assumiu o seu lugar na liderança da revolução.”Não é que ele não tivesse importância nessa, mas não era o único ou o “deux ex machina”(2) dela, como ele queria se apresentar. Era simplesmente um membro de uma equipe agindo sob a liderança de Lenine." Nas entrelinhas está a sugestão da imparcialidade do autor e o propósito central não é outro senão destruir a "lenda do trotskismo" em nome duma suposta verdade histórica.

Há algo importante que Figuères não analisa ou explica no seu livro e que está diretamente relacionado à história da revolução e à natureza das facções que surgiram dentro do bolchevismo. Trótski, que, segundo o seu crítico, tantos serviços prestou à revolução e ao Partido Bolchevique, que fazia parte da "equipe que atuou sob a direção de Lenine", não poderia ser expulso por uma direção que se autodenominava leninista e revolucionária, Comitê Central (Outubro de 1927), Partido Comunista Russo (Novembro de 1927), confinado em Alma Ata (Janeiro de 1928), exilado da Rússia (Fevereiro de 1929), privado da cidadania soviética, cruelmente perseguido em todo um “planeta sem visto” e, finalmente, assassinado (Agosto de 1940). O talento e as qualidades destacadas e indiscutíveis de Trótski (a sua inclinação, como disse Lenine, para os aspectos puramente administrativos dos problemas ou uma suposta vaidade, como alguns sustentam) estavam longe de cobrir aquele talento e essas qualidades) foram colocados ao serviço incondicional da revolução ao longo da sua vida, independentemente dos erros que possa ter cometido (os erros são parte indissociável da actividade militante), do excessivo orgulho no seu desempenho e a ironia pungente que caracterizam a sua brilhante escrita. Seria absurdo reduzir a luita Stalin-Trótski a uma luita pessoal ou ao choque de ambições de dous caudilhos sedentos de poder, como insinua o filisteu. O embate entre essas personalidades traduz a luita de classes em nível nacional e internacional e nela se desenvolve; é a personificação das tendências revolucionárias e reacionárias. A eliminação física da Oposição trotskista (não ignoramos que a resolução antifração do X congresso do PCUS e as normas estatutárias foram invocadas para justificar os crimes contra o movimento revolucionário) não foi nada menos que a eliminação da oposição revolucionária dentro do Partido Bolchevique atacado polo vírus burocrático. O estalinismo actuou de forma inequívoca e objetiva contra a revolução internacional e a Revolução Russa, tendo acabado por destruir o Partido Bolchevique e a Terceira Internacional. Trótski na sua longa carta ─ datada de 21 de Outubro de 1927 ─ dirigido à Comissão de História do CC do PC russo, destrói uma a uma as falsificações espalhadas pola burocracia. Algumas das informações listadas abaixo foram retiradas do referido documento. Sustentou-se que a posição de Trótski durante a Primeira Guerra Mundial ─ o teste decisivo para as várias tendências marxistas da época e que precipitou o colapso e a divisão da Segunda Internacional ─ era "social-patriótica". Chama-se social-patriotismo ou social-chauvinismo a tendência que substitui o derrotismo revolucionário (no caso duma guerra imperialista, não de libertação nacional, a derrota do próprio governo favorece o movimento revolucionário e é preciso transformar a guerra em revolução) com a defesa da pátria e até mesmo defensores que apoiam o governo burguês e a ele aderem. Trótski, como evidenciam os seus escritos da época, manteve-se fiel à linha tradicional do marxismo diante da guerra imperialista e combateu, da mesma forma dura que Lenine, o desvio social-chauvinista da maioria da social-democracia e as oscilações e capitulação do centro dirigido por Kautsky.

Os testemunhos escritos de Trótski desse período e sobre o tema da guerra foram posteriormente reunidos no volume intitulado "Guerra e Revolução", que recebeu várias edições durante a vida de Lenine e "foi estudado nas escolas do partido e foi traduzido para línguas estrangeiras entre os publicações da Internacional Comunista”. Pola sua luita revolucionária internacionalista contra a guerra e por ter publicado o livro "A Guerra e a Internacional" foi preso na Alemanha no início de 1914 e teve que deixar o país. “Fui expulso da França, onde trabalhei com os futuros comunistas. Fui deportado da Espanha para os Estados Unidos, participei em Nova York do trabalho revolucionário internacionalista, participei com os bolcheviques na redação do jornal”Novy Mir“. A nota seguinte que consta no Vol. XIV das OO.CC. de Lenine publicadas em 1921 é muito mais sugestiva: "Desde o início da guerra imperialista (Trótski) adoptou uma posição internacionalista resoluta." Durante a vida de Lenine, era comum as publicações bolcheviques sustentarem que as diferenças entre Lenine e Trótski na guerra eram secundárias e que este último estava fundamentalmente mais próximo do leninismo do que de qualquer outra corrente.

Em 1918-19, um marxista assinando o nome de F. publicou uma coleção de artigos de Lenine e Trótski, que mereceu o seguinte comentário do primeiro: “O camarada americano F. fez muito bem em publicar um grosso volume composto duma série de artigos por Trótski e meus, oferecendo assim um esboço da história da Revolução Russa.

Desde a chegada de Trótski e o seu grupo a Leningrado, não houve a menor discrepância com Lenine quanto à perspectiva da revolução (revolução proletária e desenvolvimento do socialismo). A organização dos internacionalistas (Mezhrayontzi(3)) liderada por Trótski e que ingressou no Partido Bolchevique em julho de 1917, contava entre as suas figuras destacadas Uritsky, A. Joffe (suicidou-se em 16 de novembro de 1927, como o protesto mais enérgico contra a burocracia), Lunatcharsky, Lurenef, Karakhan, VladimÍrof, Manuilsky, Pozern, Litvens, etc; Somente em Petrogrado, 3.000 trabalhadores seguiram sua orientação. No vol. XIV do OO.CC. Lenine (1921) caracteriza o Mezhrayontzi assim: "Na questão da guerra, o Mezhrayontzi adoptou uma posição internacionalista e nas suas tácticas estavam próximos dos bolcheviques." Sobre a identidade de posições entre Trótski e os bolcheviques, no período entre Maio a Outubro de 1917, temos o facto importante de que um grande número de documentos publicados polos seguidores de Lenine foram escritos por ou em colaboração com Trótski. Muitos esforços foram feitos para descobrir discrepâncias entre Lenine e Trótski sobre os dias de Julho de 1917, a revolta espontânea de trabalhadores e soldados contra o Governo Provisório, 24 soldados não organizados polos bolcheviques e como consequência Trótski foi preso. Este deixou claro nas suas declarações ao Governo Provisório: “1. Compartilho a posição fundamental de Lenine, Zinoviev e** Kamenev, e a desenvolvi no meu jornal Vperiod(4) e em geral em todos os meus discursos públicos.

  1. O facto de eu não participar da redação do “Pravda” e não pertencer à organização bolchevique não se deve a diferenças políticas, mas a condições da história do nosso partido sobre a questão da nova situação e problemas do Partido.

Assim que Trotsky entrou no Partido Bolchevique, Lenine propiciou-o para cargos muito importantes, o que demonstra a sua identidade política e a sua total confiança na sua honestidade e conduta. O seguinte é um testemunho retirado da "História do Partido em Leningrado":

“Nem é preciso dizer que... ninguém deve se opor a uma candidatura como a de L.D. Trótski, porque, antes de tudo, Trótski adoptou uma posição internacionalista desde o momento em que chegou; em segundo lugar, ele luitou entre os Mezhrayontzi pola união com os bolcheviques e, em terceiro lugar, nos difíceis dias de Julho, mostrou-se à altura da tarefa como um defensor dedicado do partido do proletariado revolucionário. É evidente que o mesmo não pode ser dito da maioria dos trezentos membros do partido que constam da lista” (Carta de Lenine sobre a lista de candidatos bolcheviques à Assembleia Constituinte)

O estalinismo sempre procurou negar qualquer participação decisiva de Trótski nas jornadas de Outubro ou polo menos minimizá-la. A esse respeito, é clássica a afirmação cínica de Stalin em “Sobre o trotskismo ou o leninismo”:

“Devo afirmar que o camarada Trótski não desempenhou nenhum papel particular na insurreição de Outubro, nem poderia, pois como presidente do soviete de Petrogrado não fez mais do que cumprir a vontade da autoridade partidária correspondente, que guiou os seus passos.

“O camarada Trótski não desempenhou nenhum papel especial nem no partido nem na insurreição de Outubro, nem poderia tê-lo feito porque era um homem relativamente novo no nosso partido no período de Outubro.”

Para demonstrar a imprecisão maliciosamente elaborada, bastaria recordar a seguinte nota que consta no Vol. XIV do OO.CC. de Lenine: “Depois que a maioria do Soviete Retrógrado passou para as mãos dos bolcheviques. Trótski foi eleito seu presidente e, nesta posição, organizou e liderou a insurreição de 25 de Outubro.

Stalin, como sempre, não teve o menor escrúpulo em ignorar as suas afirmações anteriores. De facto, em 6 de novembro de 1918, escreveu o seguinte no “Pravda”:

“Todo o trabalho de organização prática da insurreição foi realizado sob a direção imediata do presidente do Soviete de Petrogrado, camarada Trótski. Pode-se afirmar com certeza que a rápida adesão da guarnição ao soviete e a completa execução dos trabalhos do Comitê Militar Revolucionário se devem principalmente e sobretudo ao camarada Trótski.

Segundo a lenda estalinista, o verdadeiro arquitecto da vitória de Outubro teria sido um centro prático de direção orgânica da insurreição” criado polo Partido Bolchevique, do qual Lenine e Trótski não faziam parte, que já mostra que lhe foram atribuídas tarefas organizacionais secundárias, sem um papel independente. Formaram este centro: “Sverdlov, Stalin, Dzerjinsky, Bubnov e Uritsky”. Por algum tempo foi escondido que o famoso centro foi instruído a fazer parte do Comitê Revolucionário Soviético, conforme estabelecido polo "Pravda" em 2 de novembro de 1917:

“O CC cria um centro militar revolucionário com os seguintes membros: Sverdlov, Stalin, Bubnov, Uritsky e Dzerjinsky. Este centro será parte integrante do Comitê Revolucionário Soviético". Este Comitê Soviético não era outro senão o Comitê Militar Revolucionário criado pelo Soviete de Petrogrado e dirigido por Trótski, o”órgão soviético para a liderança da insurreição”. Trótski observa: “esses cinco camaradas nomeados polo Comitê Central deveriam se tornar parte do quadro desse mesmo Comitê Militar Revolucionário que Trótski presidia. Não parece supérfluo que Trótski tenha sido apresentado pola segunda vez à direção dum órgão do qual já era presidente?

Sobre a grande importância do Comitê Militar Revolucionário encontramos o seguinte depoimento de Lunatcharsky (“Semblanzas de revolucionarios”}: “Nem todos estão cientes, aliás, do papel realmente gigantesco desempenhado em Petrogrado polo Comitê Militar Revolucionário, desde Outubro 20 até meados de Novembro. O ponto culminante desse esforço organizacional sobre-humano foram os dias e as noites que vão do dia 24 até o final do mês..."

Na direcção do Partido Bolchevique, como em qualquer direção revolucionária, eram frequentes as discrepâncias e discussões sobre os mais diversos aspectos, mas não eram as indicadas polo estalinismo e menos ainda tinham o alcance que mais tarde ele apontou para este. Não raro, muitos documentos partidários eram ocultados dos militantes, mesmo depois de já terem sido publicados. O próprio Trótski encarregou-se de dar a conhecer a documentação referente às discrepâncias surgidas após a revolução de Outubro com referência às relações com os outros partidos socialistas (“Devemos formar um governo bolchevique homogêneo ou uma coalizão com os mencheviques e socialistas- Revolucionários?”) A acta da reunião de 14 de novembro foi retida ao Partido.

“Sobre a questão da coalizão, Lenine falou no CC nos seguintes termos:”Quanto a uma coalizão, não posso nem falar a sério. Trótski disse há muito tempo que uma união é impossível. Trótski entendeu isso, e desde aquele momento não houve um bolchevique melhor. Lenine e Trótski luitaram por um governo bolchevique homogêneo, enquanto outros luitaram por uma aliança com mencheviques e socialistas revolucionários.

Trótski elucida o problema do funcionamento do Partido quando diz: “Não pretendo acreditar que não houve divergências sobre a paz de Brest-Litovsk que durou várias semanas e adquiriu um caráter agudo por vários dias”. Uma organização revolucionária não pode ser concebida sem discussões teóricas, sem polêmicas sobre a táctica a ser utilizada em cada nova situação. É por isso mesmo que a mais ampla democracia interna constitui o quadro essencial para o desenvolvimento e fortalecimento (especialmente programático) dos partidários. A história do bolchevismo é, em grande parte, a história das suas discrepâncias, dos seus grupos e frações. O que já é suspeito por si só é que essas discrepâncias estão sendo invocadas como heresia. Somente num partido monolítico, antidemocrático, isto é, antibolchevique, pode-se partir do princípio surpreendente de que as discrepâncias devem ser erradicadas e as discussões consideradas como atitudes antipartidárias. Felizmente, a discussão foi devidamente documentada.

Trótski tinha nas suas mãos as relações exteriores do Estado Soviético e, nessa qualidade, participou activamente dessas negociações, iniciadas em novembro de 1917 entre as delegações alemã e russa, às quais os aliados se recusaram a comparecer. Há dous extremos principais que o estalinismo mantém a esse respeito: que houve um grande choque entre as posições de Lenine e Trótski, que este último voltou a defender a sua tradicional linha antibolchevique e que tudo o que ele fez e disse foi totalmente estranho ao partido, em suma, uma atitude pessoal. A verdade é diferente. A grande luita no seio do Partido Bolchevique deu-se entre os partidários da guerra revolucionária (o país em que triunfa a revolução pode desencadear a guerra contra as potências capitalistas, esta era a palavra de ordem geral), que, enraizados numa tradição partidária, mantiveram a urgência de conduzir a revolução na ponta das baionetas e a recusa em negociar e concordar com os imperialistas. Para entender as discrepâncias sobre o problema, é necessário ter em mente o seguinte pano de fundo: 1) as teses de abril, seguindo as perspectivas de Lenine e Trótski sobre a revolução europeia, sustentam que a guerra imperialista só poderia terminar com uma democracia paz se o poder do Estado nos outros países beligerantes passasse para as mãos do proletariado. Lenine e Trótski reiteraram a tese de que a revolução russa não poderia sobreviver sem a vitória da revolução europeia. Isso explica as ofertas de paz feitas aos beligerantes e que foram acompanhadas dum intenso esforço para atingir as massas com propaganda revolucionária e confraternização; 2) nas semanas que se seguiram a Outubro, nenhum movimento revolucionário eclodiu na Europa e a paz foi essencial para satisfazer as demandas dos camponeses e trabalhadores; 3) a revolução de Outubro desde o seu nascimento concretizou-se em dous decretos: o da entrega da terra aos camponeses e o da paz que "convida os governos e os povos a iniciar conversações para a conclusão da paz, duma paz sem anexação e sem compensação”.

Lenine e Trótski, inicialmente colocados em minoria em todas as instâncias partidárias, concordaram na impossibilidade de concretizar a palavra de ordem da guerra revolucionária e de continuar a guerra: “A impossibilidade de continuar a guerra era evidente. Nesse ponto, não havia sombra de disparidade entre Lenine e eu. Ambos balançamos a cabeça ouvindo Bukhárine, Radek e outros apóstolos da 'guerra revolucionária'”. ("A minha vida")(5).

Em 4 de março de 1918, apareceu a primeira edição do jornal "Comunista", escrito por Bukhárine, Radek e Uritsky (do comitê de Petrogrado) e que se declarava porta-voz dos "comunistas de esquerda", que se opunham completamente à política leninista. Medidas enérgicas foram adoptadas para superar o caos e a queda da atividade industrial, medidas descritas pola oposição como um revés da revolução. Bukhárine sustenta que o Partido enfrenta um dos grandes dilemas da sua história: ou a Revolução Russa luita sem concessões contra o mundo capitalista pola "guerra revolucionária", terminando o seu trabalho interno com uma nacionalização total e a rendição da direção da economia para um corpo que emana dos comitês de controle, ou então assinar a paz com a Alemanha e entrar no caminho do compromisso no exterior e da degeneração em casa. Lenine afirma a necessidade dum período de "capitalismo de Estado" para a economia; os comunistas de esquerda descobriram a isca do restabelecimento das relações "pequeno-burguesas" nas empresas, denunciaram a concepção "centralista burocrática" que diziam tê-la inspirado, o abandono, na prática, do "Estado-comuna" administrado de baixo e esse deveria ser o fundamento do estado operário. Lenine respondeu analisando a tremenda situação econômica e as dificuldades internacionais. Não se tratava de abandonar o princípio de que a revolução russa não era mais do que o prólogo da revolução mundial, mas sim de que esta, na realidade, não chegaria dentro de seis meses, por isso, disse Lenine, era necessário assinar a paz com os alemães.

As discussões foram fortemente influenciadas pola campanha realizada dentro e fora da Rússia, campanha da qual participou a social-democracia, no sentido de que, em Brest-Litovsk, os imperialistas alemães e os esquerdistas donos do poder na Rússia se limitaram a aumentar uma farsa destinada a encobrir o acordo que já existia entre eles. Uma parte do Partido Bolchevique ficou positivamente impressionada com o avanço do movimento revolucionário internacional sob a influência directa da vitória de outubro, que se traduziu nas possibilidades (possibilidades quase sempre exageradas por aqueles que sabiam que a vitória num país exigia o apoio da revolução internacional) da revolução alemã. Partindo dessas considerações, Trótski indicou a táctica de não assinar a paz com os alemães e usar as negociações de Brest-Litovsk, para se dirigir às massas europeias, particularmente ao proletariado alemão, para aproximá-las da revolução. Tal era a diferença nas abordagens dos dous líderes que rejeitaram tão vigorosamente os partidários da guerra revolucionária.

Na reunião do Comitê Central em 24 de janeiro de 1918, Stalin, intentando refutar a tese de Trótski, declarou: “A posição do camarada Trótski carece de fundamento. No Ocidente não há movimento revolucionário, não há feitos, há apenas uma possibilidade. A resposta de Lenine foi imediata.”O camarada Lenine indica que em certos pontos não concorda com Stalin e Zinoviev, com cujo pensamento ele concorda em geral. É evidente que no Ocidente há um movimento de massas, mas a revolução ainda não começou” (Lenine OO.CC.T. XXVIII).

Aqueles que fizeram da revolução russa uma hagiografia risível, tentam concordar que nesta ocasião, como em outras, o infalível Stalin não se afastou um centímetro do pensamento do Mestre. Embora a batalha fosse entre os grandes, Lenine mostrou, repetidas vezes, que Stalin estava saindo da linha. Na sessão do CC de 23 de fevereiro, e quando se discutia a assinatura das condições impostas pola Alemanha, voltou a discordar de Stalin: “Stalin está errado quando diz que não pode ser assinado. Há que assinar essas condições. Se não assinamos, aprontaremos a sentença de morte para o poder soviético a partir de agora em três semanas' (Op. cit.).

Trótski e também Lenine (o primeiro mais que o segundo) foram sensíveis às inúmeras publicações que apareciam com denúncias dum suposto entendimento secreto entre alemães e bolcheviques. “Temos uma circular dos sociais-democratas alemães; temos informações sobre a atitude que as duas tendências do centro adotam em relação a nós: alguns pensam que fomos subornados e que os atuais acontecimentos em Brest são uma farsa com jornais distribuídos antecipadamente. Atacam-nos por termos assinado o armistício. A outra parte dos kautskistas(6) declara que a honestidade pessoal dos líderes bolcheviques está fora de dúvida, mas a sua conduta é um enigma psicológico” (Lenine, OO.CC., T. XXVIII). Trótski levou ao extremo a sua obsessão em demonstrar que não havia entendimento prévio com os imperialistas, para não perder a confiança do proletariado internacional, para não desmoralizá-lo: “Até a própria oposição social-democrata alemã... acredito, ou pelo menos assim parecia, que os bolcheviques estavam de acordo com o governo do Kaiser. Essa versão tinha que parecer mais crível, por força, na Inglaterra e na França. Era evidente que se a burguesia e a social-democracia dos países aliados conseguissem incutir nas massas trabalhadoras desconfiança em relação a nós, isso facilitaria muito a intervenção militar da Entente contra a revolução. Nestas condições, pareceu-me absolutamente necessário, antes de proceder à conclusão duma paz em separado, caso não tivéssemos outro recurso, dar aos trabalhadores de toda a Europa uma prova clara e inequívoca da inimizade mortal que nos separava da Alemanha governante. (”A minha vida”). É nesta consideração que se baseia a fórmula "nem paz nem guerra". Como Lenine, ele sustentava que era necessário prolongar as negociações o máximo possível enquanto esperava que os trabalhadores europeus, particularmente os alemães, iniciassem a revolução. Em Trótski, o optimismo de que isso aconteceria em breve era muito mais acentuado do que em Lenine, que certamente insistia em que uma vitória na Alemanha era muito mais importante do que a salvação da própria Rússia: "Se tivéssemos certeza de que em caso de ruptura de negociações de paz, o movimento alemão (revolucionário) pudesse se desenvolver imediatamente, teríamos que nos sacrificar, porque a revolução alemã será muito mais poderosa que a nossa" ("Discurso sobre Guerra e Paz", 24 de janeiro de 1918, op. cit. ). Esta diferença no grau de certeza sobre a vitória revolucionária na Europa e particularmente na Alemanha, explica porque os dous líderes mais importantes viram de forma diferente a assinatura imediata da paz ou o seu adiamento por mais tempo. “Se os social-democratas de esquerda alemães nos propusessem adiar a assinatura da paz separadamente por um determinado período, garantindo-nos o início da revolução na Alemanha durante esse período, o problema poderia ter um aspecto diferente para nós. Mas a esquerda alemã não apenas não diz isso, mas, ao contrário, declara formalmente: "Espere o quanto puder, mas resolva a questão guiada polo estado de cousas na revolução alemã" (Lenin, "Para a história duma paz infeliz”, op. cit.)

Deve-se enfatizar que é a isso que as discrepâncias entre Lenine e Trótski foram reduzidas e que não estavam relacionadas à impossibilidade de princípio de desencadear a guerra revolucionária de assinar uma paz separada com a Alemanha. Lenine oferece um valioso testemunho a esse respeito: “Agora devo referir-me à posição de Trótski. Na sua actuação devemos distinguir dous aspectos: quando ele iniciou as negociações de Brest, usando-as esplendidamente para agitação, estávamos todos comigo, mas devo acrescentar que concordamos em ficar firmes até o ultimato dos alemães e depois do ultimato iríamos ceder. Os alemães enganaram-nos, de 7 dias roubaram 5. A táctica de Trótski estava correta, desde que visasse a procrastinação; torna-se errado quando a cessação da guerra foi declarada, mas a paz não foi assinada” (“Informe político do CC”, 7 de março de 1918).

Uma citação tão fragmentária poderia induzir a um erro: seria fácil ─ e foi o que aconteceu ─ concluir que Trótski limitou a sua conduta em Brest à fórmula "nem paz nem guerra" porque assim lhe viu à ideia, atrás do partido e das suas instruções. Na verdade, limitou-se a cumprir um mandato partidário, aprovado pola sua proposta. Em "A Minha Vida", conta que assim que a variante "nem paz nem guerra" lhe ocorreu, consultou Lenine sobre isso, que não expressou a sua oposição de princípio.

“Troquei impressões com outros membros da delegação, entre eles com Kamenev, que concordou, e escrevi a Lenine, propondo.”Lenine respondeu-me: 'Se você vier a Moscovo, conversaremos. "As cousas seriam magníficas", explicou Lenine, respondendo aos meus argumentos, "se o general Hoffmann não estivesse em condições de lançar as suas tropas na Rússia, mas não se deve confiar muito nisso... Você mesmo diz que as trincheiras foram deixadas vazias. E se os alemães decidirem continuar a guerra? " ─ Nesse caso seremos obrigados a assinar a paz. Mas todos vão entender que não tínhamos outro jeito. Desta forma teríamos acabado com a lenda do nosso pacto secreto com o Kaiser.

“─ Concordo que as cousas não estão completamente erradas. Mas correríamos um risco muito grande”.

Lenine mais uma vez insistiu que, se "for para garantir o triunfo da revolução alemã", não haveria mais do que correr o risco. A tudo isso somava-se o grave perigo duma cisão surgida no seio do Partido Bolchevique, cujos protagonistas eram partidários da guerra revolucionária e que tanto preocupavam Lenine quanto Trótski. “Nisto, sobretudo por parte dos elementos dirigentes, reinava um clima inconciliável contra a aceitação das condições que os alemães nos queriam impor” (“A minha vida”). Lenine e Trótski luitaram numa única frente contra os partidários da guerra revolucionária, "apesar de tudo o que as lendas oficiais podem dizer hoje, essa luita não foi travada precisamente entre Lenine e eu, mas entre ele e uma maioria avassaladora, na qual se contavam as organizações dirigentes do Partido. Sobre os pontos mais importantes da campanha, a saber: se estivéssemos em condições de sustentar a guerra revolucionária e se fosse permitido a uma Potência apoiada pola revolução, de alguma forma, firmar pactos com os imperialistas, eu estava em total sintonia com Lenine, e respondeu com uma negativa ao primeiro ponto e com uma afirmativa ao segundo. (Op. cit.).

Na assembléia operária do Partido em 21 de janeiro de 1918, a fórmula da guerra revolucionária foi imposta por uma enorme maioria (32 votos), a de Trótski obteve 16 votos e a de Lenine apenas 15. Informação que é confirmada polo estenótipo Lenine na sua "Conclusão para as teses sobre o problema da conclusão imediata duma paz separada e anexionista". Nas demais instâncias partidárias, a “esquerda” teve ainda mais força. “Na sessão final do CC, realizada em 22 de janeiro, minha proposta (de Trótski, redação) prosperou: adiar as negociações o máximo possível; No caso de receber um ultimato da Alemanha, para acabar com a guerra, mas recusando-se a assinar qualquer tratado de paz..."("A Minha vida"). Trótski em Brest aderiu a este acordo partidário, não agiu pessoalmente, mas como maioria da liderança. Não se deve esquecer que os escritos leninistas mais amargos nesta polêmica (”Fraseologia revolucionária” e “A sarna”, por exemplo) foram dirigidos contra Bukhárine, Radek e outros e não contra Trótski. "Trótski tinha razão ─ escreve Lenine ─ quando disse que a paz pode ser triplamente infeliz, mas a paz que acaba com esta guerra cem vezes imprópria não pode ser ignominiosa, opróbria, indecente" ("Uma paz infeliz").

Os estalinistas bolivianos não são apenas krumiros(7), mas se especializaram em disseminar, oportuna ou nefandamente, falsificações dos seus mestres. Por ocasião da análise das consequências e desenvolvimento da greve mineira de janeiro de 1975, lemos num panfleto que Lenine havia descrito Trótski como “sarna” e sobre o tema escreveram muitas variações. Esta afirmação atribui a Lenine uma atitude que nunca teve, a verdade é que, como indica mais acima, um artigo com o título de "Sarna" foi dedicado a criticar os fraseólogos "revolucionários" que levantaram em 1918 a guerra revolucionária não importando a que preço.

Trótski diz que a sua fórmula de "nem paz nem guerra" mais tarde permitiu que prevalecesse a proposta de Lenine de assinatura imediata das condições impostas pola Alemanha. Com efeito, após a retomada da ofensiva alemã, quando os factos comprovaram a validade dessas teses, Trótski deu vitória à proposta de Lenine, selando assim o pleno acordo entre os dous dirigentes, após pura superação das discrepâncias tácticas. A política da maioria da direcção do Partido Bolchevique encontrou persistência perseverante por parte de sectores minoritários. O VIII congresso (março de 1919) aprovou a política militar preconizada por Trótski (organização do exército permanente, utilização de especialistas militares do czarismo, estabelecimento de comissários políticos, subordinação dos guerrilheiros e milícias ao exército regular); a oposição antimilitarista foi liderada por Vladimir Smirnov, que trabalhou em coordenação com os “militares vermelhos” Frúnze e Vorochilov, inspirados por Stalin. No IX congresso (março/abril de 1920) surge o grupo “centralismo democrático”(8) com Smirnov, Ossinski, Saprónov, que denuncia a centralização excessiva, o abuso de métodos autoritários. Esses protestos dão origem à formação duma comissão de controle, que convida a apontar tais abusos, "qualquer que seja o cargo ou função dos acusados".

No outono de 1920, atrás de Chliápnikov e Alexandra Kollontai, reuniu-se a chamada "Oposição Obreira"(9), cujo programa de controle da produção polos sindicatos, de expurgo do Partido de elementos não trabalhistas e de retorno ao princípio de eleições com responsabilidade, será amplamente divulgado. A sua edição em panfleto foi distribuída antes do X congresso.

Em 1920 ocorreu a dura discussão sobre o papel dos sindicatos no período da ditadura do proletariado, que arrastou e confrontou Lenine e Trótski. As origens distantes da disputa podem ser encontradas em 1919.

Preocupado com o colapso da economia russa e convencido de que era urgente empreender a sua reconstrução. Trótski escreveu um projecto de tese para o CC no qual propunha a aplicação dos métodos de guerra (podemos dizer militares) na frente económica e a colocação nas mãos do comissário de guerra da direção econômica. A "militarização do trabalho" parece-lhe semelhante à formação do Exército Vermelho: requer "os mesmos esforços heróicos, o mesmo espírito de devoção". Essa "militarização" funcionaria no quadro da democracia operária: "consiste no facto de que as massas devem determinar para si uma organização e uma atividade produtiva, de modo que a pressão da opinião pública operária atue imperiosamente sobre todos aqueles que colocam obstáculos”.

A ideia era sedutora e geralmente parecia ter o apoio de Lenine, que pedia que fosse estudada mais de perto, porque a tarefa era, em última análise, muito mais complexa do que construir um exército. Acima de tudo, havia o perigo de provocar grandes protestos entre os trabalhadores e dirigentes sindicais, que, embora comunistas, eram sensíveis à pressão das suas bases, hostis à militarização. Bukhárine, editor-chefe do Pravda, publicou erroneamente o projeto de Trótski no número de 17 de dezembro de 1919. Grande preocupação tomou conta dos dirigentes sindicais e isso apesar do facto do seu autor advertir: "A nossa situação económica é cem vezes pior do que a nossa situação militar”. A facção sindical bolchevique rejeitou o projecto em 12 de janeiro de 1920 por uma maioria esmagadora.

É nesse período que Trótski, abandonando a sua abordagem anterior, propôs na reunião do CC de fevereiro de 1920 o restabelecimento do mercado e a substituição das requisições na agricultura por um imposto progressivo em espécie, devendo fazer um esforço para fornecer aos camponeses uma quantidade suficiente de produtos industriais. É a essência da NEP que será adoptada mais tarde, mas naquela época Lenine não estava convencido dos benefícios da proposta e foi rejeitada por 11 votos a 4. Um esforço supremo para iniciar a economia exigia a aplicação dos métodos do comunismo de guerra. Após a guerra civil, o Exército Vermelho volta-se para tarefas económicas na Ucrânia, no Cáucaso, nos Urais. Trótski concorda em fazer a reconstrução dos transportes nas suas próprias mãos, reivindica amplos poderes e trata os “desertores do trabalho” com severidade implacável; começa introduzindo a “emulação socialista”. Dá partida nos trens, o que todos consideram um milagre, mas provoca a irredutível oposição do sindicato dos ferroviários. O novíssimo comitê de organização de transportes (Tsektran) substitui a direção sindical, que se torna a fera negra combatida polos dirigentes sindicais, inclusive os bolcheviques, que denunciam-na como uma entidade ditatorial e burocrática. Zinoviev, que domina o Partido em Leningrado, ataca o comitê em discursos e artigos polo que chama de "seus métodos policiais". Durante vários meses, Lenine e a maioria do CC apoiaram Trótski, confiando-lhe conscientemente outras tarefas urgentes, como estabelecer a indústria de Conetz e dos Urais; mas se choca novamente com os sindicatos e ameaça "varrê-los". Tomsky, presidente dos sindicatos, levanta em 8 de novembro, perante o CC, se Trótski tem o direito de eliminar os líderes eleitos.

Desta vez, Lenine não apoia Trótski. Por 8 votos a 6, o CC aprovou um texto que, assumindo a defesa de "formas salutares de militarização do trabalho", condenava "a degeneração da centralização do trabalho militarizado em burocracia, em morgue, mesquinhos funcionários públicos e enredamentos de ingerência nos sindicatos”. Uma comissão foi nomeada para estudar a questão das relações partido-sindicato, e apenas seu líder, Zinoviev, poderia falar publicamente sobre o assunto.

Zinoviev propôs ao CC a supressão imediata do Tsektran, mas nenhuma resolução foi adoptada e a discussão foi tornada pública. Das sete plataformas inicialmente apresentadas, três permaneceram. Trótski, a quem se juntou Bukhárine, propôs integrar os sindicatos no aparato do Estado, encarregados da produção e, consequentemente, da produtividade e da disciplina do trabalho. Hostil aos dirigentes sindicais, a quem julgava "tradeunonistas(10)", levantou a promoção de novos elementos operários, mais ligados à produção do que à defesa de interesses particulares, capazes de promover o que chamou de “democracia produtiva”, porque, frisou, só por meio dessa estatização é que os trabalhadores participarão da discussão e dos rumos da economia. Deve-se notar que o ponto fraco da abordagem era que ela não dizia nada sobre o papel de defender os interesses dos trabalhadores, típico dos sindicatos, independentemente do governo. Embora a tese não dissesse explicitamente, era evidente que Trótski e Bukhárine não concebiam a necessidade dessa defesa dos trabalhadores contra o Estado operário.

No outro extremo, a oposição operária denunciava violentamente a militarização e a burocratização, à qual se opunha ao “controle operário” da produção, exercido polos sindicatos nas empresas e por um congresso de produtores em escala nacional. Como medidas imediatas, exigia a equiparação salarial, a distribuição gratuita de alimentos e artigos de primeira necessidade aos trabalhadores das fábricas e a substituição progressiva do salário em dinheiro polo salário em espécie.

Preobrazhensky, um dos mais sérios críticos dessa tese, sustentava que se pretendia que os camponeses fossem os únicos a arcar com o ônus do desenvolvimento da indústria e dos privilégios operários. Criticando a concepção anarquista dos amigos da Kollontai, que propunham uma "economia sem cabeça", refutava economicamente o seu "igualitarismo": "Somos muito pobres ─ disse ─ para nos oferecer o luxo da igualdade: cada pud (16,38 quilos) de pão dado aos mineiros do período da construção da economia, quando todo o progresso depende do carvão, dá mais resultado do que outras 5 puds dados nos outros ramos da indústria”.

As teses de Lenine, apoiadas por Zinoviev, Stalin e pola maioria do CC, estavam mais próximas das de Trótski do que das da oposição operária. Os sindicatos devem, segundo eles, “educar” os trabalhadores, desenvolver sobretudo o seu senso de responsabilidade com relação à produção, e o partido deve manter o seu controle sobre eles. Os sindicatos, disse Lenine, deveriam continuar defendendo os interesses dos trabalhadores também sob a ditadura da sua classe, defesa indispensável contra as deformações burocráticas do novo Estado. O estado operário para Lenine não era uma abstração; O Estado Soviético era um “Estado operário e camponês” com deformações burocráticas, isto num país com um proletariado quantitativamente minoritário, polo que uma cisão no seu seio seria gravíssima.

“O programa do nosso partido mostra que o nosso é um estado operário com deformação burocrática... Aí está a realidade da transição. Pois bem, é justo dizer que num Estado que assumiu esta forma na prática, os sindicatos nada têm a defender, ou que podemos prescindir deles para defender os interesses materiais e espirituais do proletariado organizado como um todo? Não, esse raciocínio está completamente errado do ponto de vista teórico. Leva-nos ao reino das abstrações ou a um ideal que atingiremos em 15 ou 20 anos e não temos certeza de que o alcançaremos mesmo assim... Temos agora um Estado em que o proletariado organizado na sua totalidade deve defender-se, enquanto nós, da nossa parte, devemos usar essas organizações para defender os trabalhadores contra o seu Estado e para eles defenderem o nosso Estado” (Lenine, OO.CC., volume XXXIV).

O X congresso aceitou as teses de Lenine por 336 votos contra 50 que apoiavam as propostas de Trótski e Bukhárine; a oposição obreira conseguiu reunir apenas 18 votos.

Lenine não escondeu a sua insatisfação com esta discussão e disse em tom muito severo: “Este luxo é totalmente inadmissível e ao permitir tal discussão, certamente cometemos um erro. Colocamos em primeiro lugar uma questão que, por razões objectivas, não poderia ocupá-la e, inadvertidamente, enganados, desviamos a nossa atenção de questões reais e ameaçadoras que estavam próximas a nós!

Segundo Figuères, Trótski na sua polémica "reflectia a sua desconfiança das massas, da classe trabalhadora e o seu ceticismo quanto à possibilidade de atraí-los através do trabalho político para o trabalho de construção da nova sociedade".

As abordagens de Trótski mostram exactamente o contrário, a sua confiança era excessiva na classe trabalhadora organizada nos sindicatos, que deveria se tornar o eixo da produção; repudiou dirigentes sindicais por sindicalistas. A controvérsia, para ser compreendida, deve situar-se no seu tempo. As posições de Trótski foram basicamente consequência das medidas tomadas durante o comunismo de guerra. Já vimos que o que ele realmente propôs foi a nacionalização dos sindicatos dentro dum estado operário. Em "A Minha Vida" lê-se:

“Dentro dos quadros dum sistema de comunismo de guerra que mantinha nacionalizados, polo menos em princípio, todos os recursos do país, para distribuí-los conforme as necessidades do Estado, pareceu-me que não havia margem para eles agirem autonomamente sindicatos. Se a indústria repousava sobre o fornecimento aos trabalhadores polo Estado de tudo o que eles precisavam, era lógico que os sindicatos também se submetessem a essa rede do Estado em que a indústria e a distribuição estavam ligadas. Tal era a substância do problema colocado quanto à nacionalização dos sindicatos, que me pareceu seguir a lógica, e nesse sentido defendi a medida, dentro do regime de comunismo de guerra vigente."

Trótski propôs uma estratégia sindical para o período do comunismo de guerra, num momento em que este se esgotava e era necessária uma nova etapa, cujas linhas principais haviam sido previstas por ele mesmo um ano antes, conforme indicado acima.

“Pouco a pouco, a massa obreira, que já havia passado por três anos de guerra civil, passou a resistir, cada vez mais abertamente, submetendo-se aos métodos do comando militar.

Lenine, com o seu infalível instinto político, pressentia que o momento crítico se aproximava. E enquanto eu, partindo de considerações puramente económicas e operando com base no comunismo de guerra, me esforçava para obter o melhor retorno possível dos sindicatos, Lenine, inspirado por razões políticas, já tendia a suavizar a pressão militar.

Quando a NEP foi adotada, Lenine “estabeleceu novas teses sobre o papel e as funções dos sindicatos no quadro” da nova realidade. Trótski aderiu a tal proposta. “Estabeleceu-se a solidariedade entre nós”, acrescentou em “A Minha vida”.

Lenine teve um cuidado especial para evitar aprofundar as fissuras dentro do Partido e prolongar o distanciamento momentâneo de Trótski. Na parte final do seu artigo "Mais uma vez sobre os sindicatos" ele diz: "O partido está aprendendo a não exagerar nas divergências. A esse respeito, citarei a sábia observação do camarada Trótski a respeito do camarada Tomsky (com quem discutiu pessoalmente, nota do redactor): “Eu sempre disse ─ mesmo quando a polêmica com o camarada Tomsky estava no auge ─ que era absolutamente claro para mim que apenas pessoas com a sua experiência e autoridade poderiam ser os nossos dirigentes sindicais... A luita ideológica dentro do Partido não significa isolamento mútuo, mas influência mútua. Naturalmente, o Partido aplicará esta abordagem correta ao próprio camarada Trótski.

É fácil entender que o desvio sindicalista foi representado pola “oposição obreira” e não propriamente por Trótski. Lenine apreciava plenamente as qualidades de Trótski. Quando ambos se encarregaram da liquidação dos grupos formados, retomaram a política de cooperação mútua. “Lenine respirava com facilidade. E aproveitando não sei que cínica acusação que Molotov, recém-eleito para um cargo no CC, lançara contra mim deteve-o por aquele excesso de zelo tolo, acrescentando que "a lealdade do camarada Trótski em assuntos partidários interiores estava fora de dúvida.'” ("A Minha vida").

A lenda estalinista de que a discussão sobre os sindicatos nada mais foi do que o produto duma amarga e sistemática desavença entre Lenine e Trótski não tem fundamento. Já então todas as dúvidas sobre isso foram dissipadas. Trótski expressou no congresso mineiro de 26 de janeiro de 1921:

“O camarada Chliápnikov (da oposição operária. Nota do redactor) disse – talvez tenha expressado o seu pensamento de forma um tanto grosseira –:”Não acredite nessa discrepância entre Trótski e Lenine. De qualquer forma, eles acabarão se unindo e a luita será dirigida apenas contra nós. Ele disse 'não acredite'. Eu não sei o que significa isso. Claro que vamos nos unir. Podemos argumentar quando se trata de decidir alguma questão muito importante; mas a discussão sempre conduz as nossas ideias polo caminho da união.

E Lenine, por sua vez, limitou o mesmo problema no final do X congresso: “Chliápnikov disse que Lenine e Trótski acabariam se unindo, e Trótski respondeu:”Quem não entende que é necessário unir é indo contra o partido. Claro que vamos aderir, já que somos membros do Partido. Eu apoiei Trótski. É verdade que Trótski e eu discordamos: mas quando uma divisão mais ou menos pequena se forma no CC, o partido decide de tal forma que nos unamos segundo a vontade e direção do partido.

Esse é o critério com o qual Trótski e eu fomos ao congresso mineiro e viemos até aqui”.

O surpreendente é que Bukhárine, esquecendo-se das suas próprias posições assumidas na discussão, tentou ganhar vantagem contra o trotskismo na questão sindical. Aqui está a opinião de Lenine sobre Bukhárine: “Até agora, quem mais se destacou na luita foi Trótski. Mas agora Bukhárine deixou-o para trás e o eclipsou completamente. Bukhárine criou uma situação completamente nova na luita, porque cometeu um erro cem vezes maior do que todos os erros de Trótski juntos”. ’Como pôde Bukhárine ter caído nesse desvio do comunismo? Todos nós conhecemos a suavidade do camarada Bukhárine, que é uma das características polas quais é tão amado e não se pode deixar de amá-lo. Sabemos que às vezes se diz jocosamente que é “branco como cera”. Parece que "qualquer pessoa sem princípios", qualquer "demagogo" pode imprimir nessa cera macia o que quiser. Essas expressões duras foram usadas polo camarada Kamenev na discussão de 17 de janeiro. Ele tinha o direito de usá-las; mas nunca ocorreria a Kamenev, é claro, ou a qualquer outra pessoa, explicar o que aconteceu como pura demagogia sem princípios.

Diz-se que o trotskismo se caracteriza sobretudo pola sua ignorância e desprezo polo campesinato e nisso difere do leninismo. Trótski, na sua carta à Comissão de História do CC, elucida a questão da seguinte forma: a) Não falarei aqui das velhas discrepâncias pré-revolucionárias que realmente existiram. Direi apenas que foram monstruosamente exagerados, distorcidos e adulterados polos agentes de Stalin e pola escolinha de Bukhárine.

b) Em 1917 não havia desacordo sobre esta questão entre Lenine e eu.

c) A 'paternidade' do programa agrário socialista revolucionário foi assumida por Vladimir Illich em total acordo comigo.

d) Li o decreto de Lenine sobre a questão agrária, escrito a lápis. Não houve a menor sombra de desacordo. Nós dous éramos da mesma opinião.

e) Na política alimentar, a questão agrária obviamente não ocupou um lugar insignificante. Nulidades como Martinov (ex-menchevique e “liquidador”. Nota do editor) agora dizem que essa política era trotskista. Não, era uma política bolchevique. Participei da sua execução polas mãos de Lenine. Não houve a menor sombra de desacordo.

f) A orientação baseada no camponês médio foi adoptada com a minha participação mais activa. Os membros do Politburo sabem que, após a morte de Sverdlov, a primeira ideia de Vladimir Illich foi nomear o camarada Kamenev como presidente do Comitê Executivo Central de toda a Rússia. A proposta de escolher uma figura de “camponês-trabalhador” partiu de mim. A candidatura do camarada Kamenev foi proposta por mim...

g) As novas décimas de toda a nossa política sobre a questão da relação dos operários com os camponeses. Realizei essa política ─ contra o espírito pequeno-burguês e a indústria doméstica ─ em colaboração com Vladimir Illich.

h) No início de 1920, e com base na análise da situação da economia camponesa, apresentei ao Politburo a proposta duma série de medidas semelhantes à NEP. Essa proposição não pôde ser ditada por "falta de atenção" dos camponeses.

O problema das relações dos bolcheviques com os camponeses médios e pobres e os culaques tornou-se muito importante nas discussões e na adoção de táticas concretas. Trótski escreveu sobre isso, em 1919:

“Não houve e não há qualquer discrepância nos órgãos do poder soviético sobre esta questão. Os contra-revolucionários, cuja causa é cada vez mais desesperada, não podem fazer outra cousa senão enganar as massas trabalhadoras sobre supostos conflitos que dividem os comissários do povo”.

Lenine não foi menos categórico:

“No”Izvestia” de 7 de fevereiro, foi publicada uma carta do camponês G. Gulov, perguntando sobre as relações que existem entre o nosso governo de trabalhadores e camponeses e os camponeses médios, e falando de rumores de que Lenine e Trótski não concordam e que há grandes discrepâncias entre eles, particularmente nesta questão do camponês médio!

"O camarada Trótski já respondeu ao “Izvestia” de 7 de fevereiro. O camarada Trótski explicou clara e detalhadamente na sua carta porque o PC e o atual governo operário e camponês eleito polos sovietes e por membros desse partido (bolcheviques) não consideram os camponeses médios como os seus inimigos. Subscrevo com ambas as mãos tudo o que o camarada Trótski escreveu”.

O estalinismo também espalha o boato de que na política militar e na condução da guerra civil havia profundas discrepâncias entre Lenine e Trótski, que havia duas linhas irreconciliáveis ​​no Partido Bolchevique. Nas Obras Completas de Lenine estão os testemunhos que destroem tais falsificações.

Em 19 de Setembro de 1918, após a captura de Kazan polas tropas do Exército Vermelho, Lenine enviou a Trótski a seguinte mensagem: “Acolho com alegria a brilhante vitória do Exército Vermelho. Sirva-nos como uma promessa de que a união dos trabalhadores e camponeses revolucionários destruirá completamente a burguesia, acabará com toda a resistência dos exploradores e garantirá a vitória do socialismo mundial. Viva a revolução operária!”

No VIII congresso do Partido Bolchevique, Lenine apoiou a política militar desenvolvida por Trótski. O Comitê Central, na véspera do referido congresso e em plena discussão sobre questões militares, aprovou a seguinte resolução:

“Questão 12. Alguns camaradas ao saberem da resolução adotada sobre o retorno imediato dos líderes à frente, questionaram se esta decisão seria correta, pois poderia ser interpretada polas organizações da frente como uma recusa do Governo Central em ouvir a voz do exército. Alguns até interpretam isso como uma espécie de estratagema, já que a saída do camarada Trótski e a não admissão de deputados do exército torna inútil até mesmo levantar a questão da política militar. O camarada Trótski protesta contra a interpretação da resolução do CC, que a considera um estratagema, e chama a atenção para a extrema gravidade da situação criada pela retirada de Ufa ainda mais a oeste. Ele insiste na necessidade da sua partida.

"Resolução:

1º O camarada Trótski partirá imediatamente para a frente.

2º O camarada Skolnikov(11) anunciará numa reunião dos delegados da frente que a ordem de sua partida foi anulada...”.

Lenine chegou mesmo a simpatizar plenamente com as medidas severas, no aspecto organizacional e disciplinar, tomadas por Trótski. Na reunião da facção bolchevique do Conselho Central de Sindicatos de Toda a Rússia (12 de janeiro de 1920), ele declarou:

“Se derrotamos Denikine e Kolchak foi porque a nossa disciplina foi superior à de todos os países capitalistas do mundo. O camarada Trótski introduziu a pena de morte e nós o apoiamos. Ele conduziu-a polo caminho da organização e acção consciente por parte dos comunistas."

Quando se espalharam rumores contra a severidade adoptada por Trótski na liderança do Exército Vermelho, Lenine expressou-lhe a sua total solidariedade da seguinte forma:

Camaradas: Conhecendo a natureza severa das ordens do camarada Trótski, estou tão absolutamente convencido da correção, oportunidade e necessidade das ordens que ele deu para o bem de nossa causa, que dou-lhe a minha absoluta aprovação. V. Ulyanov Lenine“.

Trótski relata o propósito desse apoio ilimitado da seguinte maneira: “Quando ele me entregou esta folha de papel com aquelas linhas escritas sob uma página em branco, fiquei perplexo. Lenine me disse: 'Fui informado de que um boato foi espalhado contra você de que você está mandando fuzilar comunistas. Dou-lhe esta folha em branco assinada e darei quantas quiser, declarando que aprovo as suas decisões. Acima você pode escrever a decisão que lhe parece e minha assinatura será válida. Isso ocorreu em Julho de 1919.

Esta tempestuosa batalha travada no auge do bolchevismo e que se refletiu na Internacional Comunista, permaneceu desconhecida nos seus detalhes, mesmo para notórios militantes fora da Rússia. A respectiva documentação foi zelosamente guardada por muito tempo nos arquivos da burocracia, as publicações da Oposição de Esquerda conseguiram ser momentaneamente enterradas polo monstruoso aparato publicitário montado polo estalinismo. Para confirmar o que foi dito, tomemos um exemplo aleatório, o caso de Gramsci, que na época era funcionário da Internacional Comunista: “Ainda não sei os termos exactos da discussão travada no partido. Só vi a resolução do CC sobre a democracia do partido, mas não vi nenhuma outra resolução. Não estou familiarizado com o artigo de Trótski ou de Stalin. Não consigo explicar o ataque deste último, que me pareceu bastante irresponsável e perigoso. Mas talvez meu julgamento esteja errado devido à ignorância dos materiais” (carta de 13 de janeiro de 1924, em “Vida de Antonio Gramsci” de Giuseppe Fiori(12)). A atitude de Carlos Mariátegui, cheio de hesitação e, em última análise, de apoio à facção estalinista, só pode ser explicada pola sua ignorância em detalhes da discussão fundamental, por outro lado, para o desenvolvimento do marxismo hoje, Mariátegui, importante polas suas contribuições para o revolucionário movimento, e isso apesar das suas limitações e erros, concluiu concordando com o estalinismo quando este deslocou Trótski e a Oposição de Esquerda do poder, sujeitando-os a uma perseguição cruel. O revolucionário latino-americano deu o seu apoio à contra-revolução encarnada no estalinismo. Foi incapaz de explicar os acontecimentos na Rússia como marxista e tudo se reduziu à luita de conveniências momentâneas, como se não estivessem em jogo os interesses primários da revolução do nosso tempo. No entanto, teve a coragem, como convém à sua honestidade nunca negada, de continuar a manifestar a sua grande admiração por Trótski, isto quando era brutalmente denegrido polos corifeus da burocracia; mas a admiração polo herói, o incomparável escritor e teórico, não impediu Mariátegui de considerar que o genial personagem não se ajustava à nova realidade, pois como se vê, o socialista peruano mal conseguia dar passos hesitantes em meio a uma enorme confusão generalizada e a sua honestidade refinada aceitou uma campanha suja repleta de crime, falsificações e reação. As opiniões de Mariátegui sobre o assunto estão condensadas em duas breves notas que escreveu sobre "Trotsky e a oposição comunista" ("Variedades", Lima, 25 de fevereiro de 1928) e "O exílio de Trotsky" ("Variedades", 23 de fevereiro de 1929); sendo este último artigo uma repetição do primeiro com pequenas variações. Chegam até nós as notas incluídas nos volumes 17 e 18 das suas obras completas. Achamos incrível que Mariátegui repetisse muitas das imposturas generosamente difundidas polo estalinismo: “Trótski destacava-se de todos os seus companheiros polo brilhante relevo da sua personalidade. Mas só faltou o vínculo sólido e antigo com a equipe leninista... Mas, se entre Lenine e Trótski e o próprio partido a identificação não poderia ser igualmente completa”. Como se tivesse sido uma adesão prosaica e por vezes oportunista e não fruto duma identidade principiológica, política e estratégica.

Considero inoportuna a publicação do "Novo Rumo" e das "Lições de Outubro", marcos fundamentais na análise do estalinismo e na defesa do leninismo militante. Então, tínhamos que curvar nossas cabeças diante do avanço da burocracia contrarrevolucionária?

Mariátegui parece muito mais lamentável quando opõe o cosmopolita Trótski aos líderes que conhecem e são talhados para resolver problemas nacionais (que ao peruano parecem nada ter a ver com os internacionais). Isso é um absurdo, Trótski era marxista e nessa medida analisou brilhantemente a realidade russa, como parte integrante do capitalismo mundial e baseou a sua grande previsão de estratégia futura nessa análise. O autor dos "7 ensaios" baixa as suas bandeiras marxistas para dobrar, resignado e fatalista, à ideia do socialismo num só país, embora se possa argumentar no seu desejo que essa adesão não seja totalmente clara.

Trótski ─ diz-nos ─ é ​​um homem da cosmopolis... Tem um sentido internacional da revolução socialista... Mas este mesmo sentido internacional da revolução, que lhe dá tanto prestígio no cenário mundial, momentaneamente enfraquece-o na prática russa. A revolução russa está num período de organização nacional. No momento, não se trata de estabelecer o socialismo no mundo, mas de realizá-lo numa nação... É lógico que, nesta fase, a revolução russa é representada polos homens que mais profundamente sentem o seu caráter e problemas nacionais. Stalin, puro eslavo(13), é um desses homens. Isso é monstruoso, nas entrelinhas aparece a tese de que Stalin é o génio de hoje e Trótski dum amanhã indeterminado. Uma etapa, a actual, seria a revolução nacional, sem muitos vínculos com a futura revolução internacional. Essa teoria dos estágios viola outros escritos do próprio Mariátegui.

 

 


Notas de rodapé:

(1) A edição que considero é retirada do Arquivo da Internet dos Marxistas em espanhol. (retornar ao texto)

(2) Locução latina com o significado literal de "o deus [que desce] da máquina" que, por sua vez, é a tradução da expressão grega "ἀπὸ μηχανῆς θεóς" (transliterada.- apò mēchanḗs theós), ou melhor entendida como "pola obra de Deus". Origina-se no teatro grego e romano, quando um guindaste (machina) ou qualquer outro meio mecânico introduzia um actor que representava uma divindade (deus) dos bastidores para resolver uma situação ou dar uma reviravolta na trama. A expressão idiomática hoje representa uma pessoa ou cousa capaz de resolver, sem aparente dificuldade, todo tipo de situação. (retornar ao texto)

(3) Grupo interdistrital. Leia o livro: Writings of Leon Trotsky [1932] (retornar ao texto)

(4) Leia "Lunacharsky sobre Lenine na véspera de seu retorno à Rússia (março-abril de 1917)" na página em russo: Legado de A. V. Lunacharsky. (retornar ao texto)

(5) O livro, que ainda não tem versão em português, pode ser lido na seção espanhola do Marxists Internet Archive: Leon Trotsky (1929): Mi vida). (retornar ao texto)

(6) Seguidores de Karl Kautsky. (retornar ao texto)

(7) Americanismo no espanhol da Bolívia que tem como significado: indivíduo que contradiz os seus companheiros trabalhando ou se oferecendo para trabalhar durante uma greve trabalhista. (retornar ao texto)

(8) Conhecido em russo como Группа демократического централизма («децисты») [Grupo do Centralismo Democrático ("Dezistas")]. Veja o artigo: Retratos dos líderes da revolução e da luta contra o stalinismo nos anos 20-30 V.M. Smirnov e o grupo de "centralismo democrático" assinado por Vladimir Volkov no World Socialist Web Site, arquivado no Wayback Machine. (retornar ao texto)

(9) Em russo: "Рабо́чая оппози́ция". Era um grupo organizado no PCR(b) no final de 1919 ─ início de 1920 que defendia a transferência da gestão da economia nacional para os sindicatos. O grupo era liderado por A. G. Chlyapnikov, S. P. Medvedev, A. M. Kollontai, Yu. Kh. Lutovinov. Vladimir Nevsky também estava perto dele. Segundo Leão Trótski, expresso no III Congresso do Comintern, era uma "minoria insignificante". Existiu até 1922, quando foi derrotado no XI Congresso do PCR (b). Em alguns aspectos, estava alinhado com o movimento alemão do comunismo dos conselhos de trabalhadores, embora não haja informações sobre contatos diretos entre esses grupos. (retornar ao texto)

(10) Trade Union é a denominação em inglês para sindicatos, assim como trade unionism é para movimento sindical ou sindicalismo. A sua tradução literal é "união comercial". É muito usado em inglês para se referir a instituições britânicas. Entre os grandes sindicalistas britânicos é essencial lembrar James Larkin e James Connolly. (retornar ao texto)

(11) Não encontrei nenhum militar bolchevique com o nome de Skolnikov. Isso me faz suspeitar que o autor, Guillermo Lora, possa estar se referindo a Fyodor Raskolnikov. (retornar ao texto)

(12) Giuseppe Fiori (Silanus, 27 de Janeiro de 1923 ─ Roma, 17 de Abril de 2003) foi um jornalista, escritor e político italiano. Nascido em Silanus, mas originário de Cuglieri, formado em direito, começou a sua carreira como jornalista no jornal de Cagliari L'Unione Sarda e mais tarde ingressou na RAI. Foi vice-diretor do TG2, diretor do Paese Sera e senador da Esquerda Independente por três legislaturas (VIII, IX, X). (retornar ao texto)

(13) Mariátegui também é equívoco nisso. Stalin não fazia parte dos povos eslavos. Ele era, em troca, georgiano. (retornar ao texto)

 

Inclusão: 23/07/2023