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Primeira Edição: ABC do Marxismo-Leninismo Série B, N° 6, Editorial Avante!, Lisboa, 1976
Fonte: Partido Comunista Português — Organização Regional de Lisboa
Transcrição: Reinaldo Pedreira Cerqueira da Silva
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
Nos cadernos anteriores [caderno 4 e caderno 5] sobre o tema da dialéctica estudámos e discutimos as leis mais gerais da mais profunda e mais completa das doutrinas do desenvolvimento. Mas seria um erro acreditarmos que, com os dois cadernos precedentes, estaria abarcada, ainda que num esboço sucinto, toda a riqueza da dialéctica. A dialéctica da realidade objectiva exprime-se também numa série de conceitos fundamentais (categorias) reciprocamente (correlativamente) referidos entre si. Trata-se de categorias que uma a outra se correspondem e excluem, como essência e fenómeno, conteúdo e forma, causa e efeito, necessidade e acaso, necessidade e liberdade, possibilidade e realidade.
Vamos agora estudar, sucintamente, a relação dialéctica destas categorias correlativas.
No exame das coisas, relações e processos da natureza e da sociedade temos de distinguir entre essência e fenómeno. A essência das coisas não se revela imediatamente; está escondida nos fenómenos, sob a superfície destes. Um exemplo: todos nós conhecemos o fenómeno da rota diária do Sol em volta da Terra, começando a leste e tendo o seu ocaso a oeste. A essência deste fenómeno, contudo, não é um movimento do Sol à volta da Terra, mas um movimento da Terra sobre o seu próprio eixo; neste movimento, a relação de cada ponto da superfície terrestre com o Sol vai-se alterando ao longo do dia.
No capitalismo, o salário do trabalho parece ser o pagamento de todo o trabalho realizado numa unidade de tempo, ao passo que, pela essência, se verifica que o operário só recebe, como salário, uma parte do valor por ele criado durante esse tempo.
Sejam quais forem as coisas e processos que consideremos, verificaremos sempre que essência e fenómeno não são a mesma coisa. Karl Marx diz, em O Capital:
«Toda a ciência seria supérflua se a forma fenoménica e a essência das coisas coincidissem directamente.»
(O Capital, t. III, Berlim, 1953, p. 870 - ed. alemã).
Mas essência e fenómeno também não estão separados por um abismo intransponível. É sempre a essência de uma coisa que se manifesta nos fenómenos. Por isso mesmo é que só podemos penetrar na essência, no cerne, partindo do exame dos fenómenos, por comparações, pela busca de conexões, etc.
Há, deste modo, dois tratamentos incorrectos da relação dialéctica de essência e fenómeno. Um deles reduz tudo aos fenómenos. É o caso de se dizer, pelo facto de muitos operários de países capitalistas desenvolvidos estarem acríticos perante o capitalismo, que «os operários já não são revolucionários». E isto vem da boca de pessoas que se dizem de esquerda e que querem ser de esquerda. O erro está, aqui, em que se confunde o papel objectivo da classe operária (a essência) com a sua consciência actual (o fenómeno). No mesmo pé estão os representantes ideológicos do capitalismo que dizem, por exemplo, que «a classe operária (ou o capitalismo) já hoje não existe».
O segundo erro consiste em divorciar essência e fenómeno e em autonomizar a essência - por exemplo, considerando apenas o papel objectivo da classe operária e subestimando o grau concreto de consciência socialista da classe operária de um país num determinado momento histórico, passa-se a tratar a «essência» como algo de «transcendente» e cai-se no domínio da teologia, para a qual a essência é um fenómeno divino.
A posição correcta é a de reconhecer a unidade contraditória de essência e fenómeno.
Também estas duas categorias, que caracterizam essencialmente todo o ser e devir, se encontram numa relação dialéctica. Em parte nenhuma há um conteúdo sem forma e uma forma sem conteúdo. Assim, o conteúdo da produção social está determinado pelas forças produtivas existentes em cada estádio do desenvolvimento da sociedade humana (forças produtivas, isto é, ferramentas, técnica, experiência de trabalho, saber), ao passo que a forma são as relações de produção, sobretudo as relações de propriedade. Vejamos, à luz deste exemplo, qual a relação que o conteúdo e a forma mantêm entre si.
Os homens enriquecem, na produção, as suas forças produtivas. Estas - o conteúdo - começam a modificar-se. E acabamos por chegar a uma contradição entre o conteúdo (as forças produtivas) e a forma (as relações de produção), dado que esta impede que as forças produtivas se continuem a desenvolver. Nos primeiros tempos, quando o capitalismo substituiu o feudalismo, as relações de produção capitalista constituíam a forma adequada e estimulante das forças produtivas em rápido desenvolvimento (ver os cadernos da Serie A desta colecção, Desenvolvimento do Homem e da Sociedade e A Origem do Capitalismo, n.° 2 e n.° 3, respectivamente). Contudo, com o desenvolvimento ininterrupto das forças produtivas, de novo se abre, agora no capitalismo, uma contradição entre o conteúdo e a forma: as relações de produção capitalistas tornaram-se demasiado estreitas para as modernas forças produtivas (estes e outros aspectos serão elucidados nos cadernos que dedicaremos ao socialismo utópico e ao socialismo cientifico).
Vemos, pois, que a relação entre conteúdo e forma é, na sua unidade contraditória, dialéctica. Nesta relação, o conteúdo é determinante, mas a forma não representa algo passivo, uma vez que age sobre o conteúdo, estimulando-o ou espartilhando-o. Esta unidade contraditória é rompida no processo de desenvolvimento que parte do conteúdo (portanto, pelo desenvolvimento das forças produtivas), e substituída por uma nova unidade contraditória de conteúdo e forma.
Também aqui há que prevenir contra o erro de autonomizar e contrapor os pares da contradição, posição que as forças reaccionárias gostosamente tomam, agarrando-se ao elemento formal. Há, assim, dúzias de propostas de «reformas» que mantêm a forma, ou seja, a propriedade capitalista, pretendendo orientá-la no sentido de um «capitalismo popular», de «accionistas populares», de uma «sociedade de proprietários», etc.; o propósito é adiar a destruição do conteúdo capitalista e a criação de nova unidade necessária de conteúdo e forma, ou seja, a criação do socialismo. No domínio da ideologia, esta posição - que coloca a forma acima do conteúdo - manifesta-se no facto de se «ignorarem» conteúdos de barbárie por estes serem apresentados numa «forma perfeita». Mas também os jovens esquerdistas que discutem sobre o carácter «revolucionário» ou «revisionista» das formas de luta «em si mesmas», sobre os Sovietes «em si», sobre o parlamentarismo «em si», separam adialecticamente a forma do conteúdo, ou seja, aplicam à análise e à apreciação dos factos um método burguês.
Tudo o que existe tem uma causa por força da qual existe. Todas as coisas e todos os fenómenos são efeitos de causas, estão em conexão causal com outras coisas e fenómenos. A causalidade é, por isso, um modo essencial da conexão geral das coisas e dos fenómenos. Entre a causa e o efeito existe determinada conexão: nas mesmas condições, determinadas causas provocam sempre os mesmos determinados efeitos. É muito importante sublinhar «nas mesmas condições». Se, por exemplo, houver uma alteração significativa da pressão atmosférica, também será outra a temperatura a que a água entra em ebulição. A introdução da automação no capitalismo tem consequências sociais muito diversas das que se registam nos países socialistas - porque as condições sociais são radicalmente diferentes.
Temos, além disso, de distinguir entre causas principais e secundárias, e entre causas directas e indirectas. O êxito dos nazis, em 1933, deveu-se ao facto de a classe operária não ter conseguido levar à prática a unidade de acção. A causa disto - a causa principal - foi o anticomunismo dos dirigentes partidários e sindicais sociais-democratas. A causa secundária residiu nos erros políticos então cometidos pelo PCA. Nesta política do PCA actuava também, como causa indirecta, o facto de a Republica de Weimar ter sido o resultado de uma contra-revolução que custou a vida a milhares de operários.
Também aqui seria errado opor absolutamente causa e efeito. Todas as causas são efeitos de outras causas, todos os efeitos são, pelo seu turno, causas de novos efeitos. O que, de um ponto de vista, é causa, de outra perspectiva é efeito. Causa e efeito podem até transformar-se um no outro - e disto nos dá exemplos a luta de classes: veja-se, por exemplo, as disputas que ocorrem nas manifestações.
Se examinarmos em profundidade, no contexto da multiplicidade infinita do mundo e das suas coisas, fenómenos e processos, a relação de causa e efeito, reconheceremos uma acção recíproca universal; no seio desta, a causalidade é apenas uma faceta da conexão dialéctica geral, da qual só condicionalmente pode ser separada.
Esta concepção é directamente contrária às concepções teleológicas, ou finalistas, das religiões (telos = fim, objectivo, propósito). A religião assenta no princípio de que em todas as causas actua um propósito, de que todas as causas conduzem a um objectivo predeterminado. Isto quer dizer que teria de haver, no processo do mundo, uma força primeira, definidora de objectivos, e um fim último (e ambos são Deus, para as religiões).
Esta concepção deriva de se transpor para a explicação dos fenómenos e processos da natureza aquilo que é próprio da actividade humana: a definição dos seus objectivos. No domínio da biologia, esta concepção teleológica foi refutada pela doutrina de Darwin sobre a origem das espécies, e no que toca à matéria inanimada já não há teólogo algum que a defenda. Quanto à sociedade, não é só a teoria marxista da sociedade que a refuta; ela fracassa também por não poder explicar o «propósito» do «mal» na vida humana e social. Como entender que um Deus todo-poderoso e sumamente bom tenha criado ou permitido o «mal»? Como explicar, a esta luz, campos de concentração como o de Auschwitz, os crimes sem nome de Hiroshima ou da guerra do Vietname? Que Deus seria esse que consentiria em tais monstruosidades? - isto para não voltar aqui a repetir o que em outros cadernos desta colecção tem ficado claro: a impossibilidade de justificar a existência de um primeiro motor, de um criador da matéria - Deus, portanto - que ponha objectivos ao desenvolvimento da matéria.
Também necessidade e acaso são conceitos referidos um ao outro para a caracterização de conexões fundamentais entre as coisas e os fenómenos. O mundo não representa uma acumulação desconexa de coisas e fenómenos isolados. Entre eles existem, isso sim, conexões necessárias. Tudo o que existe tem as suas causas, surgindo, nessa medida, necessariamente. Mas seria um erro deturpar este conhecimento correcto e dizer que, pelo facto de tudo o que existe ter uma causa, tudo é necessário. Todos os cães são mamíferos, mas nem todos os mamíferos são cães.
Na análise da relação de necessidade e acaso encontramos três erros. O primeiro consiste em isolar e autonomizar o acaso. Na base desta atitude está a negação da conexão geral entre as coisas e entre os fenómenos: tudo existiria apenas por si e de si, sem razão nem causa.
Isto contraria, porém, tudo o que sabemos das coisas e dos fenómenos da natureza e da sociedade. Entre o que não tem qualquer conexão não há nenhuma relação prática nem teórica, não há, portanto, relação de conhecimento, a qual representa uma conexão, por meio da prática, entre o sujeito que conhece e o objecto. Sem conexão não há existência, nem conhecimento dessa existência.
O segundo erro consiste em não ver mais do que uma necessidade férrea em todas as coisas e em todos os fenómenos da natureza e da sociedade. Vejamos com que certeza Engels refuta esta atitude:
«Segundo esta concepção, na natureza reina apenas a simples necessidade directa. Que esta vagem de ervilha contenha cinco ervilhas, e não quatro ou seis, que a cauda deste cão meça cinco polegadas, e não uma linha(1) mais ou menos, que esta flor de trevo tenha sido este ano fecundada por uma abelha e aquela não, e nomeadamente por esta precisa abelha e neste preciso momento, que esta precisa semente de dente-de-leão, levada pelo vento, tenha germinado e aquela não, que a noite passada uma pulga me tenha mordido às quatro da manhã, e não às três ou cinco, e nomeadamente no ombro direito mas não na barriga da perna esquerda, tudo, tudo isto são factos provocados por um encadeamento imutável de causa e efeito, por uma necessidade inabalável, e de tal modo que já a bola de gases de que resultou o sistema solar tinha uma constituição tal que estes acontecimentos só assim podiam ocorrer, e não de outro modo. Com este tipo de necessidade não conseguimos sair da concepção teológica da natureza. Que chamemos a isto, com Agostinho e Calvino, o decreto eterno de Deus, ou, com os turcos, o kismet(2), ou mesmo a necessidade, é precisamente a mesma coisa para a ciência. Em nenhum destes casos se acompanha a cadeia das causas, o que nos deixa, portanto, tão esclarecidos num caso como no outro, e a chamada necessidade não passa de expressão vazia - e, deste modo, também sobre o acaso nada se adianta.
Enquanto não conseguirmos mostrar de que depende o número de ervilhas na vagem, esse número permanece meramente acidental, e nada se avança com a afirmação de que tal caso já estava previsto na constituição primordial do sistema solar. Mais ainda: a ciência que se metesse a seguir o casus (caso) desta vagem individual de ervilha, recuando no seu encadeamento causal, já não seria uma ciência, mas uma pura brincadeira.
Porque esta mesma vagem de ervilha, sozinha, tem ainda inúmeras outras características individuais e que surgem como acidentais - matizes da cor, espessura e dureza da casca, tamanho das ervilhas, para já não falar nas particularidades individuais que o microscópico revela. Uma única vagem de ervilha daria, portanto, mais conexões causais a estudar do que as que poderiam seguir todos os botânicos do mundo.
O acaso não está aqui, portanto, explicado a partir da necessidade, a necessidade é que fica, isso sim, reduzida à produção do meramente acidental. Quando o facto de uma determinada vagem de ervilha conter seis ervilhas, e não cinco ou sete, tem a mesma ordem de importância da lei do movimento do sistema solar ou da lei da transformação da energia, então não é, na realidade, o acaso que é elevado à necessidade, mas sim a necessidade que é degradada a acaso. Mais ainda: por muito que se afirme fundada em inviolável necessidade a multiplicidade dos indivíduos e espécies, orgânicos e inorgânicos, que lado a lado existem num determinado terreno, para cada um dos indivíduos e espécies ela continua a ser o que era, isto é, acidental. Para cada animal é acidental o sítio onde nasceu, o meio onde vai ter de viver, quantos e quais os inimigos que o ameaçam. Para tal planta-mãe é acidental o lugar para onde o vento arrasta a semente; para a planta-filha é acidental o local onde o grão de semente de que deriva germina, e a garantia de que também aqui tudo assenta em inviolável necessidade é uma pobre consolação. A confusa variedade dos objectos naturais numa determinada região, mais ainda, em toda a Terra, contínua, pois, apesar de toda a determinação original provinda da eternidade, a ser o que era — acidental.» (K. Marx/F. Engels, Werke, t. 20 - Dialéctica da Natureza -, p. 478 e segs.)
Um terceiro erro consiste em, reconhecendo embora necessidade e acaso, não reconhecer que existem em relação. Isto significa, na prática, aceitar as consequências de ambos os erros acima explicados: no meio de processos inalteráveis, mecanicamente determinados, irrompe algo não causado, algo acidental — aquilo que os teólogos designam por milagres.
Em suma: a única atitude correcta é reconhecer que necessidade e acaso constituem uma unidade dialéctica. Causa e necessidade não são a mesma coisa. A vitória do fascismo teve causas que urge investigar, a fim de podermos responder à pergunta: o triunfo do fascismo na Alemanha, ou em Portugal, ou, mais recentemente, no Chile, podia ter sido evitado, ou não? Só se não pudesse ter sido evitado é que teríamos de o reconhecer necessário.
Também esta relação fundamental não pode ser considerada adialecticamente, isto é, sem reconhecer a unidade que esta relação constitui. Num próximo caderno desta série mostraremos que a liberdade é um fenómeno histórico-social. Lá demonstraremos como a liberdade se desenvolve na base do reconhecimento da necessidade. Por agora fazemos apenas notar que toda a actividade humana depende de leis da natureza e de leis sociais, pelo que está sujeita a necessidade. Na actividade humana, porém, está a liberdade - na actividade que conscientemente utiliza essas leis objectivas para o aperfeiçoamento da vida humana. Como Engels escreveu, no Anti-Dühring,
«a liberdade consiste no domínio sobre nós próprios e sobre a natureza exterior fundado no conhecimento da necessidade natural; a liberdade é, assim, necessariamente, um produto do desenvolvimento histórico».
No desenvolvimento, aquilo que é novo começa por existir no que é velho apenas como possibilidade. Só depois de criadas certas condições necessárias é que tal possibilidade se realiza. Esta possibilidade real tem de ser distinguida da possibilidade inventada, meramente formal, porque a possibilidade formal não se funda na realidade. Houve socialistas, utópicos, que acreditaram na possibilidade do socialismo sem luta de classes. Contavam com a possibilidade de persuadir príncipes e gente de posses da superioridade do socialismo e de o realizar com a sua ajuda. Tal possibilidade não existia realmente. Só é real uma possibilidade que assenta em bases objectivas, ou seja, quando existem as condições objectivas para a sua realização.
Possibilidade e realidade estão, portanto, também dialecticamente ligadas uma a outra. Há, contudo, que distinguir claramente entre ambas. Numa dada realidade existem diversas possibilidades. Por exemplo: após alterações nas condições do seu mundo ambiente, um organismo pode adaptar-se de um ou de outro modo, ou pode não se adaptar. Na prática social, é da correcta compreensão e actividade dos homens que depende qual venha a ser a possibilidade que se realiza, pois nenhuma se realiza por si mesma no curso do desenvolvimento social. No capitalismo existe a possibilidade da sua transformação revolucionária no socialismo, mas esta transformação não se concretiza automaticamente - como os oportunistas de «esquerda» pretendem fazer crer às massas, para que estas mais facilmente sejam derrotadas -, mas pela acção consciente dos homens. O materialismo dialéctico sublinha o papel decisivo da actividade consciente e criadora dos homens na transformação das possibilidades reais em realidade.
A dialéctica materialista exige não só que se descubram as possibilidades reais, mas também que se lute decididamente pelo triunfo do que é novo e contra as possibilidades adversas, reaccionárias. Nas presentes condições internacionais, depois da importante vitória para as forças do progresso e da paz que foi a Conferência de Helsínquia, existe a possibilidade real da manutenção da paz e da coexistência pacifica de países com sistemas sociais diferentes. Mas não podemos ignorar a possibilidade real de o imperialismo desencadear uma nova guerra mundial, terrível e devastadora, nem a tarefa que dela resulta - de lutarmos pela paz. A realização de uma ou outra destas possibilidades depende da actividade dos homens. Os povos têm nas mãos o poder de evitar uma terceira guerra mundial e de assegurar uma paz duradoura.
O estudo da dialéctica não é um entretenimento para dar prazer a intelectuais desligados da vida e da luta dos povos pelo progresso e pelo socialismo; é, antes, um estudo necessário para que possamos orientar a nossa acção em conformidade com as leis do movimento correctamente conhecidas. A dialéctica impõe-nos algumas regras de comportamento de que não é possível prescindir.
Sendo correcto afirmar que todas as coisas e fenómenos estão em conexão entre si, então há que levar à prática as palavras seguintes de Lénine:
«Para conhecer realmente um objecto, temos de abarcar e investigar todas as suas facetas, todas as conexões e "mediações". Nunca o conseguiremos completamente, mas a exigência da globalidade guardar-nos-á de erros e da estagnação.»
A abordagem a partir de «belos» ideais abstractamente inventados é inútil. O que é necessário é investigar rigorosamente as condições materiais concretas. Temos assim de investigar todos os fenómenos tão completamente quanto possível e no seu desenvolvimento. Mas como não podemos abarcar um número infinito de conexões, temos de nos esforçar por descobrir qual a conexão ou quais as relações decisivas em cada caso:
«Não basta ser-se revolucionário e partidário do socialismo, não basta ser-se comunista. Temos de aprender a encontrar, em cada momento, aquele elo particular da cadeia que tem de ser atacado com toda a energia para se segurar toda a cadeia e se preparar com mão firme a passagem ao elo seguinte, pelo que a série dos elos, a sua forma, a sua concatenação, as diferenças entre eles na cadeia dos acontecimentos, não são tão fáceis nem tão simples como numa corrente vulgar produzida por um ferreiro». (V. I. Lénine, As Tarefas Imediatas do Poder Soviético; Werke, t. 27, p. 265.)
O marxista tem de fazer seu, tanto na análise como no comportamento prático, o ponto de vista da história. A realidade não permanece inalterável, move-se, muda. O que é decisivo não é o que permanece, aparentemente inabalável, mas aquilo que de novo se vai desenvolvendo no seio da ordem vigente. Pelo que é novo temos de nos orientar, por muito débil que esse novo seja ainda.
Como a luta das contradições em todas as coisas e fenómenos constitui a essência do desenvolvimento, seria um erro ver nessas contradições uma desgraça. O que há de mais interessante nessas contradições é a sua solução. E esta não tem lugar à força de se pregar a harmonia das classes, nem por oportunismos; a solução resulta da luta de classes. E por isso é que é fundamental que um marxista se oriente pelas contradições internas, que não se deixe fascinar por formas de luta que nada têm a ver com o campo concreto de lutas em que está inserido, e que não fique à espera de que exportem a revolução para o seu país. É orientando-se pelas contradições internas da sociedade a que pertence que o marxista pode conduzir a luta no seu país.
Acabamos de tomar contacto com as mais importantes leis gerais objectivas do movimento e do desenvolvimento. As três leis que reflectem os aspectos mais essenciais do desenvolvimento do mundo material chamamos as leis fundamentais da dialéctica materialista, marxista-leninista. Todas elas - a lei da transformação das mudanças quantitativas em mudanças qualitativas e vice-versa, a lei da negação da negação e a lei da unidade e da luta dos contrários - estão intimamente ligadas entre si, porque cada uma delas explica o processo de desenvolvimento de um ponto de vista determinado. As três leis, no seu conjunto, explicam cientificamente, e do modo mais completo e profundo que é possível, o desenvolvimento de todas as coisas e todos os fenómenos do nosso mundo material.
A dialéctica materialista é a doutrina do desenvolvimento mais ampla e mais rica de conteúdo.
É inseparável do materialismo filosófico, pois o seu objecto são as leis fundamentais do movimento, que é o modo de existência da matéria. Com o materialismo filosófico, a dialéctica materialista forma a doutrina filosófica una do marxismo. Nesta doutrina filosófica una, o materialismo filosófico marxista trata, sobretudo, da relação de matéria e consciência, da concepção de matéria, do problema da unidade material do mundo (que procuramos apresentar aos nossos leitores nos cadernos n.° 1 e n.° 3 desta mesma serie, O Problema Fundamental da Filosofia e A Concepção Marxista do Conhecimento).
A dialéctica materialista, pelo seu lado, estuda principalmente as conexões e as leis gerais objectivas do movimento e desenvolvimento na natureza, na sociedade humana, e bem assim o reflexo destas conexões e leis gerais no pensamento dos homens.
Para a ciência, e para o pensamento prático, é extraordinariamente importante conhecer as leis fundamentais da dialéctica. A verdade é que se nós soubermos como se processa o desenvolvimento e quais as suas forças motoras, então também saberemos como analisar a realidade em desenvolvimento a fim de tirarmos conclusões correctas, ou, pelo menos, suficientemente correctas, e chegarmos a resultados igualmente correctos.
Mas notem bem os leitores: não basta conhecer as leis fundamentais da dialéctica, pois elas não substituem o conhecimento exacto de cada um dos problemas e objectos e dos seus variados aspectos. Mas quem aborda dialecticamente todos os problemas e objectos, fá-lo com a segurança dos princípios filosóficos correctos da nossa teoria revolucionária - vantagem incalculável face a quantos buscam o caminho correcto às apalpadelas e com hesitações. Abordar dialecticamente as coisas e os fenómenos significa considerá-los no seu todo, no seu movimento e desenvolvimento, na sua conexão e acção recíproca; significa, pois, descobrir e reconhecer neles as suas contradições, descobrir e reconhecer aonde conduz a solução dessas contradições - ou seja, reconhecer, no momento oportuno, o que há de novo nas coisas e nos fenómenos e distingui-lo do que está velho e moribundo.
Seria obviamente um erro ver na dialéctica materialista um instrumento mágico todo-poderoso que actua por si e nos poupa o esforço de pensar. Os que julgam poder aplicar as leis fundamentais da dialéctica como um padrão para medir a realidade e a ele adequar o mundo objectivo estão, inevitavelmente, perdidos num bosque donde não conseguirão sair. É tão grande a multiplicidade do mundo, são tantas as suas formas, e tão variado o modo como actuam e se manifestam as leis fundamentais da dialéctica, que a dialéctica materialista só serve a quem saiba aplicá-la de um modo criador.
«Talvez se pudesse apresentar estes elementos com mais pormenor da maneira seguinte:
1) A objectividade da consideração (não exemplos, não divagações, mas a coisa em si mesma);
2) A totalidade completa das múltiplas relações desta coisa com outras;
3) O desenvolvimento desta coisa, (ou então do fenómeno), o seu próprio movimento, a sua própria vida;
4) As tendências (e aspectos) internamente contraditórias nesta coisa;
5) A coisa (o fenómeno, etc.) como soma e unidade dos contrários;
6) A luta, ou o desenrolar, destes contrários, das aspirações contraditórias, etc.;
7) A união de análise e síntese - a decomposição em cada uma das partes e a totalidade, a soma destas partes;
8) As relações de cada coisa (fenómeno, etc.) não são apenas múltiplas, mas gerais, universais. Cada coisa (fenómeno, processo, etc.) está ligada a todas as outras;
9) Não só a unidade dos contrários, mas também as transições de CADA determinação, qualidade, traço aspecto, propriedade a todos os outros (ao seu contrário?).
10) O processo infinito da descoberta de novos aspectos, relações, etc.;
11) O processo infinito do aprofundamento do conhecimento da coisa, dos fenómenos, processos, etc., pelo homem, indo dos fenómenos à essência e da essência menos profunda à mais profunda;
12) Da coexistência à causalidade e duma forma de conexão e dependência recíproca a outra forma mais profunda, mais geral;
13) A repetição, num estádio superior, de certos traços, propriedades, etc., do estádio inferior e
14) O aparente regresso ao velho (negação da negação);
15) A luta do conteúdo com a forma e vice-versa. A rejeição da forma, a transformação do conteúdo;
16) A passagem da quantidade à qualidade e vice-versa. (15 e 16 são exemplos de 9.)
A dialéctica pode ser definida, com brevidade, como a doutrina da unidade dos contrários. Deste modo agarrar-se-á o cerne da dialéctica, mas isto requer explicações e desenvolvimento.»
(V. I. Lénine, Cadernos Filosóficos; Werke, t. 38, p. 210 e segs.)
«Hegel qualificava de metafísica a atitude dos pensadores, tanto idealistas como materialistas, que, incapazes de compreender o processo de desenvolvimento dos fenómenos, a si próprios e aos outros representam esses fenómenos como parados, desconexos, sem possibilidade de passarem de um a outro. A esta atitude contrapunha a dialéctica, a qual investiga os fenómenos precisamente no seu devir e, consequentemente, na sua relação recíproca.
«Segundo Hegel, a dialéctica é o princípio de toda a vida. Não é raro encontrarem-se pessoas que, após terem enunciado uma tese abstracta, de bom grado admitem que estão, talvez, erradas, e que talvez a opinião diametralmente oposta seja a certa. São pessoas bem educadas, cheias de "tolerância"; viver e deixar viver, é o que a si próprias dizem no seu foro íntimo. A dialéctica nada tem de comum com a céptica tolerância das pessoas mundanas, mas também ela sabe unir teses abstractas directamente opostas. O homem é mortal, dizemos, e consideramos a morte algo que tem as suas raízes nas circunstâncias exteriores, e completamente estranho a natureza do homem vivo. Acontece que o homem possui duas qualidades: a primeira, de ser vivo, a segunda, de também ser mortal. Mas, a uma observação mais atenta, verifica-se que a vida em si mesma traz os germes da morte, e que todo o fenómeno em geral é contraditório no sentido de que de dentro de si mesmo desenvolve os elementos que, mais tarde ou mais cedo, porão fim à sua existência e o transformarão no seu próprio contrário. Tudo flui, tudo muda, e não há força capaz de deter este fluir contínuo, de parar este movimento eterno; não há força capaz de se opor à dialéctica dos fenómenos.
«Em certo instante, um corpo em movimento encontra-se num certo ponto, e ao mesmo tempo também não se encontra nesse ponto, pois se apenas se encontrasse nesse ponto estaria, pelo menos nesse instante, imóvel. Todo o movimento é um processo dialéctico, uma contradição viva; mas como não há um único fenómeno natural para cuja explicação não façamos apelo, em última análise, ao movimento, temos de dar razão a Hegel quando diz que a dialéctica é também a alma de todo o conhecimento cientifico verdadeiro. Mas isto não respeita apenas ao conhecimento da natureza. Que significa, por exemplo, o velho aforismo summum jus, summa injuria?(3) Quererá isto dizer que a nossa acção é mais justa quando damos à justiça e à injustiça, simultaneamente, o que nos pedem? Não. Só raciocina assim "a experiência vulgar, o senso dos tolos". O aforismo significa que toda a justiça abstracta, levada à sua consequência lógica, se transforma no seu contrário, isto é, na injustiça. O Mercador de Veneza, de Shakespeare, ilustra-o brilhantemente.
Consideremos agora os fenómenos económicos. Qual a consequência lógica da "livre concorrência"? Todo o empresário quer bater os seus concorrentes e ficar único senhor do mercado. E não raro sucede que um Rothschild ou um Vanderbilt tem a ventura de realizar a sua aspiração. Mas isto prova que a livre concorrência conduz ao monopólio, ou seja, à negação da concorrência, ao seu próprio contrário. Ou atente o leitor aonde conduz o chamado princípio da propriedade do trabalho, tão celebrado pela nossa literatura populista. Só me pertence aquilo que criei com o meu trabalho. Isto é sumamente justo. E não é menos justo que use como me aprouver o objecto por mim criado; utilizo-o para mim, ou troco-o por qualquer outro objecto que eu por qualquer motivo desejo. Igualmente justo e, por fim, que do mesmo modo use como me aprouver, como se parecer mais grato, melhor, mais vantajoso, o objecto que adquiri por troca. Suponhamos agora que eu tinha vendido por dinheiro o produto do meu próprio trabalho e usado o dinheiro para remunerar um operário, isto é, que eu tinha comprado força de trabalho alheia. Ao utilizar esta força alheia, revelo-me proprietário de um valor que, significativamente, possui mais valor do que o preço de compra por mim pago. Por um lado isto é totalmente justo, pois já se reconheceu que posso utilizar o objecto adquirido por troca como me parecer melhor e mais vantajoso; por outro lado é sumamente injusto, porque exploro trabalho alheio, deste modo negando o princípio em que se funda o meu conceito de justiça. A posse conquistada pelo meu trabalho pessoal dá-me uma posse criada pelo trabalho de outros. Summum jus summa injuria...
«Assim, pela acção daquelas mesmas forças que condicionam a sua existência, cada fenómeno é, mais tarde ou mais cedo, inevitavelmente transformado no seu contrário.
«Dissemos que a filosofia alemã idealista considerava todos os fenómenos do ponto de vista do seu desenvolvimento, e que isto era vê-los dialecticamente. Há que referir que os metafísicos sabem deturpar a própria doutrina do desenvolvimento. Repetem constantemente que não há saltos nem na natureza nem na história. Falando da origem de um fenómeno ou de uma instituição social, apresentam a coisa como se o fenómeno ou a instituição fossem anteriormente muito pequenos, perfeitamente imperceptíveis, tendo depois crescido gradualmente. Se se trata do desaparecimento do mesmo fenómeno, ou da mesma instituição, supõe-se, pelo contrário, uma diminuição lenta e progressiva, até que o fenómeno, pelas suas dimensões microscópicas, se torna imperceptível. Um desenvolvimento assim entendido nada explica; limita-se a pressupor a existência dos fenómenos que há-de explicar e a ter em conta as mudanças quantitativas que neles se vão processando. O predomínio do pensamento metafísico na ciência da natureza foi outrora tamanho que muitos cientistas não podiam conceber um desenvolvimento a não ser como o aumento ou a diminuição graduais das dimensões dos fenómenos analisados. [... ] «A filosofia idealista alemã ergueu-se decididamente contra esta representação mesquinha do desenvolvimento. Hegel ridicularizou-a e demonstrou, irrefutavelmente, que tanto na natureza como na sociedade humana os saltos são um momento tão inevitável no desenvolvimento como as mudanças quantitativas graduais. "Está provado - diz-nos ele - que as mudanças do ser em geral não são apenas a passagem de uma grandeza a outra grandeza, mas a passagem do qualitativo ao quantitativo e vice-versa, um tornar-se outra coisa, que é uma solução de continuidade e algo qualitativamente diferente do que anteriormente existia. A água arrefecida não vai solidificando gradualmente, [... ] solidifica de repente; já com a temperatura no ponto de congelação, a água pode manter-se completamente líquida se estiver em repouso, e um pequeno impulso fá-la-á passar ao estado sólido. [...] No âmbito dos fenómenos morais [...] verifica-se a mesma passagem da quantidade à qualidade -, e várias qualidades parecem fundadas na diferença das grandezas. É um mais ou menos que faz ultrapassar a medida da leviandade e algo completamente diferente nos surge, o crime; é um mais ou menos que faz da justiça injustiça, da virtude vício. - Assim também os Estados, pela sua diferença de grandeza, assumem, aceitando-se como igual tudo o resto, um caracter qualitativo diferente. Leis e constituição tornam-se algo diferente sempre que a dimensão do Estado e o número dos cidadãos se alargam.»
«O mesmo se confirma na química. O ozónio tem propriedades diferentes das do oxigénio vulgar. Donde provem a diferença? A molécula de ozónio contem um número de átomos diferente do da molécula de oxigénio vulgar. Tomemos três combinações de carbono e hidrogénio: CH4 (gás-dos-pântanos, ou metano), C2H6 (etano) e C3H8 (propano). A composição de todas segue a mesma fórmula: n átomos de carbono e 2n+2 átomos de hidrogénio. Quando n é igual a 1, temos o metano; com n = 2, temos o etano; com n = 3, surge o propano. Desta forma nascem séries completas cujo sentido qualquer químico pode esclarecer, e todas estas séries concorrem na confirmação da proposição dos velhos idealistas dialécticos: a quantidade passa a qualidade.
«Conhecemos agora as características mais importantes do pensamento dialéctico.»
(G. V. Plékhanov, Sobre a Questão do Desenvolvimento da Concepção Monista da Historia, Dietz Verlag, Berlim, 1956, pp. 84-90.)
Notas de rodapé:
(1) Linha: duodécima parte da polegada. (N. do T.) (retornar ao texto)
(2) Destino (N. do T.) (retornar ao texto)
(3) A suprema justiça e a suprema injustiça. Cícero, De officiis. (N. do T.) (retornar ao texto)
Inclusão | 02/07/2018 |