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Primeira Edição: ABC do Marxismo-Leninismo Série B, N° 3, Editorial Avante!, Lisboa, 1976
Fonte: Partido Comunista Português — Organização Regional de Lisboa
Transcrição: Reinaldo Pedreira Cerqueira da Silva
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
Podemos conhecer o mundo que nos rodeia?
Perante esta pergunta, o mais provável é que qualquer pessoa com um mínimo de bom senso fique surpreendida e nos responda muito a propósito: «É evidente que podemos! Se o mundo fosse um livro fechado a cadeado, como poderíamos saber quando semear e colher, ou como construir casas, ou fabricar máquinas, ou tratar doenças?».
Levemos este raciocínio correcto até ao fim. Podemos viver apenas porque, e na medida em que, conhecemos com suficiente exactidão a realidade natural e social que nos rodeia. Em todos os casos em que a capacidade de percepção de um ser vivo fica diminuída, ou completamente destruída -seja por um desenvolvimento incompleto na história do ser vivo, seja por deficiências inatas, por acidente ou por outras razões -, a própria existência deste ser vivo fica ameaçada. Um animal que, em vez de evitar o fogo, se precipite para as chamas, morre queimado. Um ser vivo desprovido da capacidade de se orientar correctamente no mundo ambiente, de se aperceber de alterações importantes para a sua vida que ocorram nesse mundo ambiente e de reagir a elas de modo adequado, sucumbe na luta pela existência.
A história da vida demonstra, portanto, que na luta pela existência só sobrevive aquele que é capaz de, pela sua adaptação biológica, conhecer suficientemente bem o mundo ambiente e os efeitos por ele provocados e de lhes responder adequadamente. Como o homem atingiu o degrau superior na história da vida, esta capacidade de conhecer correctamente o mundo que o rodeia, e de reagir sobre ele adequadamente, encontra nele o seu desenvolvimento supremo.
Aqui, porém, deparamos com uma série de problemas: admitindo que conhecemos o nosso mundo ambiente, e que este conhecimento é condição da própria vida, que amplitude e que profundidade pode atingir o nosso conhecimento? Não haverá um limite para a nossa capacidade de conhecer? Como poderemos, de facto, saber se o nosso conhecimento é verdadeiro? E o que é isso de conhecimento, e como aparece?
A nossa primeira pergunta é, assim, esta:
O conhecimento é o produto da actividade dos nossos órgãos sensoriais, dos nervos que ligam estes órgãos sensoriais ao cérebro e, por fim, do próprio cérebro. Esta actividade, a que chamamos o processo de conhecimento, é desencadeada pela nossa acção no mundo, e pela acção correspondente das coisas e fenómenos da natureza e da sociedade sobre o nosso organismo. Já vimos que nos podemos afirmar na luta pela existência porque os nossos órgãos dos sentidos (os olhos, os ouvidos, o nariz, a pele, etc.) e o nosso cérebro reflectem o mundo natural e social que nos rodeia com suficiente exactidão. O conhecimento é esta reprodução da realidade no nosso cérebro, ou, mais exactamente: o conhecimento é o reflexo, na nossa consciência (a formação, na nossa consciência, de imagens), da realidade que existe fora e independentemente da nossa consciência.
A filosofia marxista distingue rigorosamente entre o material e o espiritual, e assenta no facto de o nosso conhecimento ser um reflexo espiritual (ou seja, ideal) da matéria. O processo de reflexo é, em si mesmo, complicado, e passa, no essencial, por duas fases, uma sensorial, outra conceptual.
Na primeira fase, a fase das percepções sensoriais, temos imagens sensíveis e concretas da realidade. Estas imagens sensíveis e concretas não são o mesmo que reproduções fotográficas, dado que não se constróem apenas a partir de elementos transmitidos visualmente, como formas, cores, relações espaciais; nelas intervêm também percepções acústicas, como sons, e sensações de cheiro e tacto, e outras. Além disso, uma sensação de cor como o «vermelho» é uma tradução subjectiva de ondas de luz de determinado comprimento. Em suma: mesmo para a imagem sensível e concreta não é válida a opinião, por vezes atribuída ao marxismo (e pela qual este é «criticado»), de que a formação de imagens é o mesmo que reprodução fotográfica.
E isto vê-se ainda melhor quando se atinge a fase superior da imagem, ao nível conceptual do reflexo, portanto no conceito, no juízo, no raciocínio, na teoria, etc. É que ninguém vai imaginar que um conceito é a fotocopia de algo que existe na realidade e que é reflectido pelo conceito. O que se passa aqui, ao contrário, é que os nossos órgãos sensoriais, os nossos nervos e o nosso cérebro traduzem, por um processo complexo, a realidade para uma imagem espiritual desta mesma realidade. Por isso, nós falamos aqui de uma imagem, porque entre aquilo que é reflectido (uma coisa, uma qualidade, etc.) e a imagem (o conceito, etc.) existe uma relação unívoca. (Os cientistas falam de «isomorfia».)
Vamos tentar tornar isto claro com um exemplo.
Os nossos órgãos sensoriais proporcionam-nos, primeiro, da água (pura) a imagem de um líquido incolor, inodoro e insípido, diferente de um ácido ou de uma solução alcalina. Esta imagem é completada por meio dos nossos órgãos sensoriais: entre 0° e - 1°C a água transforma-se em gelo. Esta agora sólida é de cor branca, mas de resto sem alteração. Por outro lado, a água transforma-se em vapor a partir dos 100° C(1). Esta imagem sensível e concreta da água não estava dada ao homem desde o princípio de tudo. Os homens começaram por perceber apenas que a água, quando estava muito frio, «deixava de» ser «água». Depois, para perceberem que o gelo também é agua, precisaram de adquirir uma certa experiência. Do mesmo modo, os homens começaram apenas por perceber que a água, se for muito aquecida, «desaparece». Só muito mais tarde descobriram a conexão entre a água líquida e gasosa. Só há alguns séculos podemos medir a temperatura. Só desde então sabemos que há um ponto de congelação e um ponto de ebulição da água. Assim, nas nossas imagens, também entra a história do nosso saber, da nossa luta pelo saber. E isto aplica-se também às imagens sensíveis e concretas.
Esta imagem da água que os nossos órgãos dos sentidos nos fornecem já é de grande importância para o nosso saber e para o nosso agir. Mas ainda não é a imagem completa da realidade. Em primeiro lugar, todos os corpos podem aparecer nos três estados, sólido, líquido e gasoso, e entre os líquidos há-os incolores, inodoros e insípidos que, não sendo ácidos nem soluções alcalinas, também não são agua. Mas é certo que a 0° não passam ao estado sólido, nem ao gasoso a 100°C.
A nossa imagem da água, proporcionada pelos órgãos sensoriais, é, portanto, em certo sentido, exacta, inequívoca. No entanto, ainda não está nela reflectido o que o conceito científico da água, H2O, exprime: a água é composta de partes constitutivas básicas, as chamadas moléculas, compostas por sua vez de dois átomos de hidrogénio e um átomo de oxigénio. Na base deste conceito estão, por outro lado, conhecimentos sobre a estrutura do átomo de hidrogénio e do átomo de oxigénio. E assim por diante. Este reflexo conceptual, esta formação de imagens conceptuais, da realidade é que representa o conhecimento real, essencial. Temos, pois, que: imagem significa a reprodução sensível e conceptual da realidade por meio do nosso cérebro.
Aqui dizem os teólogos: aquilo que vocês, marxistas, chamam matéria está separado da consciência, do espírito, por um abismo intransponível. Como há-de o espírito, completamente diferente da matéria, reflectir esta matéria? E dizem mais: só nós, os cristãos, podemos explicar perfeitamente o conhecimento como reflexo do que existe na nossa consciência. Pois na nossa opinião o mundo é obra de Deus. As suas bases, a sua ordem, a sua estrutura são, portanto, de natureza divina, espiritual (e portanto, na verdade, nem sequer é matéria; a «materialidade» do mundo não passa de invólucro, de aparência). Mas como o nosso espírito é a «centelha divina» em nós, uma espécie de edição do espírito divino em miniatura, podemos formar com ele a imagem da natureza (em última análise, espiritual) do mundo exterior. O espírito reflecte-se no espírito.
Que há a dizer a isto?
O espírito divino é — os próprios jesuítas o dizem — «compreensível» apenas com a «negação do modo correspondente da existência das criaturas»(2) se o homem é mortal, Deus não o será, será imortal, etc. O espírito divino é uma colecção de negações. A verdade é que, por mais negações, por mais nadas que somemos, o total é sempre o mesmo — nada. X vezes 0 é, apenas e de facto, 0. Os teólogos fazem deste nada, duplamente, o «fundamento» do conhecimento.
Primeiro: O que é este espírito com o qual conhecemos? É uma parte do espírito divino, do nada! Segundo: que conhecemos nós no mundo, que reflectimos nós no nosso espírito? O precipitado do espírito divino, o nada!
Já se vê que, com nada, nada percebemos.
Quanto ao abismo, que dizem intransponível, entre matéria e consciência, a verdade é esta: a consciência não é mais do que uma qualidade da matéria mais altamente organizada — o cérebro. Na história dos seres vivos, o desenvolvimento superior é inseparável da formação do cérebro e do sistema nervoso. Dela depende o desenvolvimento das capacidades «espirituais» dos animais. Quanto mais elevado é o desenvolvimento dos nervos e do cérebro de uma espécie animal, maiores são as suas conquistas espirituais, mais elevada é a sua posição na ordem natural. Este desenvolvimento atingiu o seu ponto máximo no homem. Os nervos, o cérebro, a consciência, são produtos naturais e, por conseguinte, capazes de manter a ligação da nossa consciência à natureza que se estabelece sob a forma do nosso conhecimento, do nosso reflexo espiritual da natureza por meio do nosso cérebro. Notemos, ainda, que foi precisamente para este fim que o cérebro se desenvolveu, para deste modo servir a vida.
O materialismo dialéctico, entende, pois, por reflexo do que existe, por formação da imagem do que existe, a reprodução sensível e conceptual do que existe fora da nossa consciência. Estas imagens dão-nos conhecimentos suficientemente inequívocos, suficientemente rigorosos, das coisas e das suas qualidades, e permitem-nos um agir correcto e adequado.
Acabamos de falar nos nossos conhecimentos «suficientemente rigorosos»: não queremos dizer com isto que penetremos, de repente, «os segredos da natureza», e que fiquemos desde logo com uma imagem definitiva desta. Trata-se, isso sim, de um processo que depende de muitas condições.
Depende, por exemplo, dos nossos órgãos sensoriais. Está provado que estes e as suas conquistas se alteraram no curso da história. Um exemplo: o primitivo, ao seguir uma pista, vê coisas que nós já não vemos, ao passo que nós percebemos coisas que a ele estão vedadas. Mais: podemos completar, alargar e alongar os nossos órgãos dos sentidos por meio de órgãos artificiais, como sejam o telescópio, o microscópio e a radiotécnica. O grau de exactidão do nosso reflexo do mundo também depende, portanto, de condições técnicas. O grau da nossa perscrutação da natureza, da formação da imagem desta na nossa consciência, depende também dos processos lógicos e conceptuais, que continuamente se refinam, e da nossa cultura. Vemos, assim, que entram directamente em jogo relações sociais.
Tudo isto significa que as nossas imagens da realidade não ficam, mal as ganhamos, a valer para sempre. São corrigidas, desenvolvem-se. É o que agora vamos ver com mais atenção.
O nosso pensamento, o nosso espírito, despertou no trabalho, na actividade necessária à sobrevivência, no confronto do homem com a natureza. Esta prática indispensável à vida cria a conexão do homem com o seu mundo ambiente natural e social. Ao modificar o seu mundo ambiente, revelam-se ao homem as qualidades desse mundo. É pelo trabalho que o homem aprende o que antes não sabia. Usar as coisas é conhecer as coisas. (Quando falamos em agarrar um problema, um assunto, uma ideia, está bem patente a conexão directa do compreender e do manejar.)
Até mesmo a forma superior do conhecimento, a ciência, deriva do trabalho, da prática. As duas mais velhas ciências conhecidas são a geometria e a astronomia. A primeira recebeu o seu nome da medição da Terra (geo, Terra; metria, medição), e a astronomia também não nasceu do ócio, mas do esforço de prever o tempo. Nas terras baixas entre o Eufrates e o Tigre, ou nas margens do Nilo, este conhecimento era vital, porque por ele se podia determinar o período das chuvas e as inundações que lhe estavam associadas. A conexão de prática e conhecimento é particularmente visível no período em que o capitalismo iniciou o seu ascenso: as necessidades da indústria são a mais poderosa força motora do progresso científico. Isto é evidente no caso das ciências naturais. Mas o capitalismo também impulsionou a ciência económica e, atrás dela, a ciência das relações sociais entre os homens. A ciência, o conhecimento em geral, derivam das exigências da prática. A origem do conhecimento é a prática.
Foram Marx e a Engels que descobriram o papel decisivo da prática para o conhecimento e a ciência. Mostraram que a prática produtiva diária do homem não só cria as condições materiais de existência da sociedade como é também, ao mesmo tempo, a base do conhecimento humano. A prática aponta ao conhecimento as tarefas a realizar, guia a atenção dos homens para os problemas a resolver. A prática corrige os erros das falsas pistas que trilhamos no esforço de conhecer. A prática alarga continuamente as nossas possibilidades de conhecer, alargando os nossos órgãos naturais de conhecimento com órgãos artificiais como o microscópio, o telescópio, a radiotécnica, etc. Por outro lado, a ciência reage poderosamente sobre a prática, torna-se hoje uma força produtiva cada vez mais directa, revela-se, sob a forma do marxismo, como que o holofote que ilumina o caminho para um futuro melhor da humanidade.
Existe uma conexão recíproca de teoria e prática, em que a prática é, em última análise, a parte determinante. Ao contrário do materialismo anterior, o marxismo inclui a prática, em todos os seus aspectos, no processo de conhecimento. A prática é a origem e a meta do conhecimento. E é também, como mostraremos, a pedra de toque, a prova, da verdade do nosso conhecimento.
Conhecemos o mundo, reflectimo-lo na nossa consciência, mas não por um acto único e repentino. O nosso conhecimento percorre, ao contrário, várias fases intimamente ligadas entre si. Na prática, que nos liga directamente ao mundo exterior, começam por nascer as sensações e as percepções, que são o ponto de partida da actividade cognitiva; esta leva, depois, a uma fase ulterior, a fase conceptual; e logo a seguir o conhecimento regressa à prática.
As sensações e as percepções são a ligação directa da consciência ao mundo exterior. São, pois, a primeira fase do nosso conhecimento, em certa medida a primeira forma, ainda crua, do reflexo do mundo exterior na nossa consciência. As sensações transformam a energia do estímulo do mundo exterior que se exerce sobre nós num fenómeno de consciência.
Levanta-se, assim, o seguinte problema: a correcção do nosso conhecimento depende da correcção da sua primeira fase. Demócrito(3) tinha toda a razão ao afirmar que o nosso pensamento não dispõe senão do material original que os nossos sentidos lhe facultam. Nada poderíamos conhecer, portanto, se os nossos sentidos nos fornecessem apenas imagens ilusórias do mundo ambiente. E é sabido que os nossos órgãos dos sentidos nos fornecem estas imagens enganadoras. Assim, vemos o Sol como um disco, embora hoje saibamos que é uma esfera. Ou ainda: um pau parcialmente imerso em água parece-nos partido, embora o não esteja. Acresce também que nas nossas percepções sensoriais também são possíveis, sem dúvida, desvios muito pessoais da realidade, e o daltonismo é um exemplo. A pergunta é, pois: as nossas imagens sensíveis serão tão diferentes da realidade que reflectem — por outras palavras, os desvios do reflexo em relação ao reflectido serão tão grandes e insuperáveis — que ao fim e ao cabo não podemos mesmo conhecer realmente o mundo?
Ora a resposta não é nada difícil. Os erros de cada um dos sentidos são, frequentemente, eliminados pela acção conjunta de vários órgãos dos sentidos. Assim, pelo tacto, podemos verificar que o pau parcialmente imerso na água não está partido.
A experiência e as generalizações de um sem número de sensações e percepções ajudam-nos a organizar correctamente os nossos dados sensoriais. Por isso sabemos, sem qualquer dúvida, e a despeito da imagem que os nossos olhos nos dão, que o Sol é uma esfera. No fundo, vamos sempre dar a este argumento basilar: se não conhecêssemos o mundo com a correcção suficiente, se no curso da história, da prática, os nossos erros não fossem corrigidos, de modo a conhecermos o mundo cada vez com maior exactidão, não poderíamos trabalhar, não poderíamos desenvolver e aperfeiçoar os nossos processos de trabalho, a técnica, e há muito que a espécie humana se teria extinguido.
Os órgãos dos sentidos aperfeiçoaram-se tanto, no decurso do desenvolvimento biológico dentro do reino animal, na acção recíproca constante entre o organismo e o mundo ambiente, que nos dão, no essencial, e apesar de distorções indubitáveis, uma imagem bastante exacta do mundo ambiente e nos possibilitam assim a correcta orientação nesse mundo ambiente. O homem não teria podido adequar-se biologicamente ao mundo que o rodeia se as suas sensações não lhe dessem uma representação correcta e objectiva do seu meio ambiente. O nosso pensamento, a fase superior, portanto, do nosso conhecimento, só é verdadeiro porque as sensações — e o pensamento só se apoia nelas- reflectem correctamente, no essencial, a realidade. Apesar de tudo o que há de subjectivo neste processo, as nossas sensações e percepções reflectem a realidade objectiva, a natureza real das coisas.
A fase sensorial do conhecimento compreende sensações, percepções e representações, sendo estas últimas como que um elo de ligação entre o conhecimento sensível e o conceptual. As representações surgem pela repetição constante e pela comparação de sensações, unem já essas sensações num todo. Assim, da soma das nossas sensações e percepções nasce a representação de uma determinada casa. A representação contém já certos germes de generalização, embora pertença ainda à fase das impressões sensíveis directas. Ao passo que a sensação de uma cor apenas subsiste enquanto as ondas de luz do comprimento correspondente impressionam os nossos olhos — ou seja, enquanto se mantém um contacto directo com o mundo ambiente -, podemos formar representações mesmo na ausência do objecto representado (no exemplo dado, da casa).
Temos a representação dessa casa na nossa consciência, mesmo que tal casa tenha sido destruída num incêndio e já não exista. Vemos, pois, que a representação já abre caminho a um conhecimento não directamente sensível. E esta é a segunda fase do conhecimento, a fase conceptual.
A fase conceptual do conhecimento eleva-se acima da fase sensível. Embora estejam ambas indissociavelmente ligadas, a fase conceptual do conhecimento representa, contudo, uma qualidade completamente nova e essencialmente superior. As possibilidades de abarcar a realidade na fase imediatamente sensível são limitadas. A velocidade da luz, a 300 000 quilómetros por segundo, ou a pequenez de um electrão são «grandezas» que ultrapassam o âmbito das nossas sensações e representações. Ou pensemos na imensidão do espaço! Um único ano-luz, ou seja, a distância que um raio de luz transpõe num ano, ascende a 9,5 biliões de quilómetros. Mas temos conhecimento de constelações que estão afastadas de nós não um ano-luz, nem uma dúzia, ou uns milhares, ou umas dezenas de milhares de anos-luz, mas milhões de anos-luz. O ano-luz, para distâncias destas, é o mesmo que o grão de areia no deserto. Tudo isto ultrapassa a nossa capacidade de representação sensível e visual. E, no entanto, é esta a realidade. Ora nós sabemos que é assim, e possuímos na nossa capacidade cognitiva um «aparelho» que abarca tudo isto. Esse aparelho é a nossa fase conceptual do conhecimento. Abrange conceitos, juízos, raciocínios, hipóteses (ou seja, suposições científicas), teorias, etc. Esta perscrutação conceptual dos segredos mais profundos do mundo permite-nos até construir aparelhos para «percebermos», artificialmente, a velocidade da luz, o electrão, os espaços imensos. Nós não vemos a velocidade do raio de luz, mas os nossos instrumentos «vêem-na» por nós, facultam-no-la com grande precisão.
Vejamos um exemplo. Newton (1643-1727) descobriu a lei da gravidade. A lei generaliza a nossa experiência de que os corpos, nas proximidades da Terra, são atraídos pela Terra, e caem para a superfície da Terra pelo caminho mais curto. Ora Newton não enunciou a lei apenas para a Terra; verificou, de um modo geral, que as massas exercem umas sobre as outras semelhante força de atracção. Calculou a grandeza desta força, tornando-nos assim capazes de saber exactamente, no voo espacial, por exemplo, a grandeza da força de atracção da Terra que os foguetões lunares têm de vencer ao saírem da zona de atracção da Terra, bem assim como a força de atracção com que temos de contar à entrada destes foguetões no campo de gravidade da Lua. É evidente que os homens, neste quase milhão de anos de existência na Terra, se aperceberam todos os dias, e vezes sem conto, do facto de que os corpos caem para a superfície da Terra, e não chegaram à lei da gravidade. Não admira, visto que a lei enunciada por Newton, que rege todos estes processes de queda, não representa uma percepção imediatamente sensível. É, antes, uma generalização científica de um número imenso de quedas destas. Mas com esta generalização conquistava-se, de um golpe, um conhecimento novo e realmente essencial, cujos efeitos continuarão na acção humana até ao futuro mais longínquo. Mas esta generalização só foi possível numa fase elevada do desenvolvimento conceptual. Era necessário, assim, que a humanidade já tivesse elaborado, por exemplo, o conceito de «lei geral» a partir de todas as suas experiências. E ainda assim era necessário um génio científico, precisamente o nosso Newton, que descobrisse esta lei.
A questão, agora, é a de saber qual a relação destas formas conceptuais do conhecimento — conceito, juízo, raciocínio, etc. — com a realidade. Serão verdadeiras, objectivamente verdadeiras, apesar de não representarem um reflexo imediatamente sensível da realidade?
Comecemos por fixar que por verdade objectiva entendemos a concordância do nosso conhecimento com a realidade objectiva. Esta concordância significa que em toda a verdade se reflecte o que existe objectivamente. A verdade objectiva é, portanto, o conteúdo do conhecimento que é independente do sujeito, que não depende do homem nem da humanidade.
Dissemos que as formas sensoriais e conceptuais do conhecimento são o reflexo da realidade. Mas enquanto o reflexo sensorial se prende com aspectos e fenómenos isolados e concretos, com a sua natureza exterior, a forma conceptual reúne e resume estes aspectos isolados. Não o faz, contudo, como se faz uma soma, na qual também entra o que é acidental, mas como se faz uma generalização, que abstrai do que é secundário. São assim elaborados certos aspectos e fenómenos menos aparentes, mais íntimos e profundos. O reflexo conceptual procura a ordem interna, as conexões essenciais, em suma: procura descobrir a própria essência das coisas e dos fenómenos. Ao passo que, por exemplo, os órgãos dos sentidos percebem que atrás de um relâmpago vem um trovão, o conhecimento conceptual generaliza isso mesmo numa lei: a cada relâmpago segue-se um trovão. Explica porque aparece o trovão, como está intimamente ligado ao relâmpago: o relâmpago divide camadas de ar que, depois, chocam uma com a outra e produzem, assim, o trovão. A forma conceptual do conhecimento vai mais fundo na explicação das causas da trovoada. Ou — para escolhermos outro exemplo: o conhecimento conceptual não se contenta com o exame da relação entre o operário individual e o seu explorador capitalista; vê, isso sim, a relação da classe dos operários com a classe dos capitalistas, abstraindo de aspectos não essenciais (se este ou aquele capitalista é, pessoalmente, um homem bom, irrepreensível, ou se não é, se este ou aquele operário é ou não um homem digno). A fase conceptual do conhecimento vê que a classe dos operários constitui, com outras classes trabalhadoras, a totalidade dos homens que, não possuindo meios de produção, têm por isso de vender, se quiserem viver, a sua força de trabalho à classe dos proprietários dos meios de produção, ou seja, à classe dos capitalistas.
A fase conceptual do conhecimento é, pois, caracterizada pela capacidade de avançar dos fenómenos isolados acidentais para a regularidade geral das leis, da aparência para o que é característico, para a essência, de saltar as barreiras do presente e ver as coisas no seu desenvolvimento, no seu devir e desaparecimento, no seu passado e no seu futuro.
A fase conceptual do conhecimento consegue tudo isto porque não está directamente ligada ao mundo objectivo. «Deixa» esta ligação ao encargo da fase sensorial do conhecimento. A relação do conhecimento conceptual com a realidade é indirecta, faculta-a principalmente a fase sensorial do conhecimento. Por isso, o conhecimento conceptual é independente perante os dados sensoriais. O pensamento não tem que se apegar a um determinado material sensorial. Pode abstrair deste, proceder por generalização universal, e conquistar deste modo conhecimentos muito mais vastos e profundos.
Mas a verdade é que reside aqui também um grande perigo: o de o pensamento se separar e perder da vida, da realidade, de se tornar fantástico e, num sentido alheio à vida, abstracto. Deste perigo só a ligação constante com a prática nos defende, a ligação à vida, à produção, à prática social e à luta das massas. Aqui está a razão epistemológica(4), mais profunda, porque a constante acção recíproca entre conhecimento e prática, entre teoria e prática, constitui a base do nosso saber e do seu desenvolvimento superior.
Há, em filosofia, uma orientação que argumenta mais ou menos deste modo: «a única ponte que há entre a nossa consciência e aquilo a que chamamos mundo exterior são as nossas sensações. Se quisermos verificar se o que está nas nossas sensações reproduz correctamente o mundo exterior, se, portanto, quisermos comparar as nossas imagens com o mundo exterior que elas reflectem, só temos, de novo e sempre, sensações. Porque não temos nenhum outro acesso ao mundo exterior. É a famosa serpente que morde na sua própria cauda. Não podemos nunca sair da prisão das nossas sensações. Aquilo a que chamais o mundo exterior não é mais, na verdade, do que a soma das nossas sensações. O mundo é o meu espírito.» Eis o que nos diz o idealismo subjectivo. Às vezes, generosamente, concede que é possível que as nossas sensações reproduzam correctamente o mundo exterior. Mas defende que nós não podemos sabê-lo. Por isso também se dá a esta orientação o nome de agnosticismo (a, negação; gnoscere, conhecer).
Poderia parecer difícil refutar o agnosticismo com argumentos. Na realidade, é a nossa prática que o refuta continuamente. Assim que conseguimos, de acordo com as qualidades que conhecemos num objecto, produzir este mesmo objecto, e ainda por cima fazer que corresponda aos fins e objectivos que previamente lhe fixámos, fica provado na prática que o nosso conhecimento deste objecto é exacto. A astronáutica e a física nuclear demonstram bem quanto avançámos o nosso conhecimento em domínios que ainda há pouco tempo pareciam ser segredos indesvendáveis da natureza. A técnica e a indústria modernas dão-nos todos os dias novas provas da força do nosso conhecimento. E até o nosso agnóstico confia, no quotidiano, nesta força: entra sem hesitações num avião, e nem sequer dúvida de que conheçamos exactamente as leis da aerodinâmica e da construção aeronáutica. E lá vai ele, de avião, para o congresso filosófico seguinte, no qual dissertará, em oposição à teoria marxista do conhecimento, sobre as suas ideias da incognoscibilidade do mundo!
O agnosticismo surge-nos em várias modalidades. Os agnósticos extremos, os que negam todo o conhecimento, são muito raros. A orientação mais frequente é a que admite um certo conhecimento, mais superficial, das coisas da natureza que nos são directamente, positivamente presentes, mas considera absurdo tentar penetrar nas conexões causais entre as coisas e os fenómenos e descobrir leis gerais. A esta orientação dá-se o nome de «positivismo». No que diz respeito, mais especialmente, à história e à sociedade, esta orientação nega a existência ou o conhecimento de leis. Como lembra Marx, se os teoremas mais gerais da geometria brigassem com interesses humanos, surgiriam também homens a contestar as leis fundamentais da geometria. O mesmo acontece com o problema da cognoscibilidade do mundo. Por um lado, o capitalismo precisa, para o desenvolvimento da indústria, do maior número de conhecimentos sobre as leis naturais. Por outro, vê-se obrigado a restringir, ou a negar completamente, o conhecimento da natureza e -principalmente — da sociedade, dado que o capitalismo está profundamente interessado na manutenção da ordem social existente. É que o que não se pode conhecer também não se pode modificar.
Se a natureza e a sociedade não fossem regidas por leis, ou se nós fossemos incapazes de as conhecer, seria impossível apresentar enunciados cientificamente rigorosos sobre as leis do desenvolvimento social. Ninguém poderia dizer, nesse caso, que o capitalismo seria substituído pelo socialismo. Não seria possível, por conseguinte, uma política científica que eliminasse o capitalismo, uma política científica por um futuro melhor, e socialista, do género humano.
A negação da nossa capacidade de conhecer, ou a limitação desta às coisas práticas e técnicas mais próximas de nós, são, portanto, do interesse do capital, e por essa razão são zelosamente incentivadas pelos seus ideólogos. A classe operária, pelo contrário, que quer modificar o mundo e construir o socialismo, está profundamente interessada no conhecimento do mundo. Por isso ela é inimiga de todas as limitações à nossa capacidade de conhecer, venham elas de filósofos ou de políticos da cultura que querem dificultar o acesso dos filhos do povo ao saber.
A verdade é que o aparecimento do agnosticismo tem, além de causas sociais, também certas causas na complexidade do nosso processo cognitivo e na própria natureza do mundo. É um facto que o saber da humanidade se desenvolve. Os gregos antigos acreditavam que a Terra acabava às portas do Atlas, ou seja, a oeste do estreito de Gibraltar. O antigo filósofo grego Demócrito considerava os (supostos) átomos as mais pequenas partículas da matéria. Hoje sabemos mais e melhor, mas também sabemos que o nosso conhecimento destas coisas não está completo e não chegou ao fim. Mais ainda: sabemos que o mundo, no seu aspecto de espaço e de tempo e na profundidade das suas «partículas», é infinito, e, além disso, que se encontra em movimento e modificação constantes.
Decorre daqui que o saber de cada um de nós, mas também o saber de um século inteiro, não são completos, que a par de todo o saber há sempre o não saber.
Muitos capitulam perante este estado de coisas, e dizem que todo o saber é vão e nulo. Ou então que o nosso saber é limitado, e que nunca podemos saber tudo.
Será esta uma conclusão correcta?
Se é correcto que o nosso saber é sempre limitado, também é correcto que o homem sempre dilatou e dilata as fronteiras do saber. A humanidade trabalha, ao longo de toda a sua história, para o contínuo aperfeiçoamento do seu saber. A produção, a técnica, cria-lhe constantemente novas possibilidades de uma penetração mais profunda nos «segredos da natureza». Por isso a conclusão correcta não é a resignação, mas o conhecimento de que o mundo é, de facto, infinito, e de que, por conseguinte, o nosso conhecimento nunca chega ao fim. Mas, ao mesmo tempo, a nossa capacidade cognitiva, a capacidade cognitiva de toda a humanidade, é sempre aperfeiçoada, alargada, aprofundada, pelo que o nosso saber está sempre a ser aperfeiçoado.
A teoria marxista do conhecimento exprime esta relação objectiva por meio dos conceitos de verdade relativa e de verdade absoluta, bem como pela relação entre ambas.
O marxismo chama verdade relativa ao lado imperfeito e incompleto do nosso saber.
Mas não podemos ignorar que, apesar de incompleta e imperfeita, a verdade relativa também possui um conteúdo objectivo de verdade. Quando, por exemplo, Anaximandro, filósofo da Grécia antiga (585-525 a.n.e.), dizia que a vida provinha do lodo marítimo e que o homem descendia dos peixes, havia aí — apesar de todas as correcções a esta opinião que mais tarde se tornaram necessárias — uma verdade essencial, como aprendemos com Darwin (1809-1882). E o mesmo aconteceu com a teoria dos átomos, de Demócrito. O conteúdo objectivamente verdadeiro destas verdades relativas permanece através de todas as alterações, é aumentado pelo progresso do saber, ao mesmo tempo que são eliminados os erros, as partes incorrectas. O grau de verdade objectiva contido nestas verdades relativas é cada vez maior. Esta verdade aproxima-se cada vez mais da perfeição, da verdade completa, da verdade absoluta e definitiva.
A humanidade conhece muitas destas verdades definitivas e absolutas. Entre elas contam-se não só verdades banais, como a de Napoleão ter morrido a 5 de Maio em Santa Helena, mas também verdades essenciais, como a de a sociedade só poder existir e desenvolver-se se trabalhar e produzir bens materiais.
Todavia, haverá sempre algo ainda desconhecido, algo que o homem ainda tem de conhecer e há-de conhecer.
«O pensamento humano é capaz, portanto, de nos proporcionar a verdade absoluta, que se compõe da soma das verdades relativas, e é isso que faz. Cada degrau no desenvolvimento da ciência junta novos grãos a esta soma da verdade absoluta; mas as fronteiras da verdade de todo o teorema científico são relativas e podem, pelo desenvolvimento posterior do saber, ser alargadas ou estreitadas.»(5)
Falamos de verdades relativas e absolutas, dissemos que a verdade absoluta é a que já não se modifica, que não pode ser aperfeiçoada, o que já não se verifica, porém, com a verdade relativa. Mas como é que vamos verificar, em geral, se um conteúdo da consciência é verdadeiro, correcto?
Este problema, o problema da prova ou critério da verdade, é um velho problema da filosofia. Antigamente, os filósofos eram de opinião que a marca da verdade residia na clareza, na evidência, de um conhecimento. Acrescentavam, em todo o caso, uma característica de quantidade: tal conhecimento deveria ser evidente para o maior número de homens possível, ou mesmo para todos os homens. Este critério da «evidência» serve ainda hoje de alicerce aos filósofos católicos, como se pode verificar pelo Dicionário Filosófico publicado pelo Herder-Verlag (edição de 1957).
Mas o critério da evidência não tem nenhum valor. Durante a Idade Média parecia evidente à maioria dos homens haver Deus, anjos e demónios, céu e inferno, porque se falava deles na Bíblia. Considerava-se, então, evidente que a Terra não era uma esfera, pois nesse caso os nossos antípodas (os homens diametralmente opostos a nós na superfície da esfera terrestre) teriam de cair no espaço vazio, no vácuo. Nesses tempos, parecia clara a quase todos a imagem geocêntrica do mundo (a Terra, geo, seria o centro à volta do qual o Sol girava). Hoje a matemática sabe que há teoremas aparentemente evidentes e claros que, apesar disso, não deixam de ser falsos.
A evidência não é, por isso, um critério de verdade. E isto porque a clareza é uma qualidade da nossa consciência, algo, portanto, completamente subjectivo. O ser claro depende de várias condições, como, por exemplo, do grau dos nossos conhecimentos, do grau de difusão de representações supersticiosas ou de outras representações não científicas, do obscurantismo imposto pelos aparelhos ideológicos da classe dominante, etc.
Um critério verdadeiramente científico da verdade tem de possibilitar uma prova do nosso conhecimento que seja independente do sujeito. Os homens práticos, os técnicos, já de há muito seguem a via da verificação da correcção ou falsidade das suas intuições pela experimentação, pela prova da prática. O materialismo dialéctico generalizou esta via e fez da prática a prova da verdade do nosso conhecimento. Só na prática é que o nosso saber é submetido à prova da realidade e dos seus processos. Só assim chegamos à compreensão do conteúdo de verdade dos conhecimentos existentes, compreensão essa que é independente da nossa vontade e da nossa consciência. Assim se demonstra se de facto surgem aqueles resultados que, com base no nosso conhecimento de um objecto, deveriam surgir; se, portanto, o nosso conhecimento é correcto e suficiente ou, pelo contrário, incompleto ou falso.
O critério de verdade da prática abrange a produção, a experimentação e a luta de classes.
Um conhecimento pode ser submetido à prova prática quer directamente, quer por meio de fases intermédias. Friedrich Engels, na sua obra Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Alemã Clássica, aponta para um exemplo famoso deste tipo. Da imagem do mundo de Copérnico (o Sol é o centro do nosso sistema de planetas), das leis de Kepler sobre os movimentos dos planetas, podia provar-se, matematicamente, que tinha de haver no sistema solar mais planetas do que aqueles que num determinado momento eram conhecidos. Le Verrier (1811-1877) calculou a posição possível de um destes planetas, e Galle (1812-1910) descobriu-o, o planeta Neptuno, em 1846. Era assim aduzida uma prova excelente da correcção das opiniões de Copérnico e de Kepler.
Também há casos em que já não recorremos à prática para verificar uma concepção, porque esta concepção contraria leis gerais e invioláveis da natureza. Ninguém vai hoje verificar quaisquer concepções sobre um perpetuum mobile, já que este contraria leis fundamentais da natureza.
Há ainda outros casos em que não recorremos directamente à prática para verificarmos uma verdade, casos em que nos contentamos com uma análise lógica. As regras e leis da lógica só são correctas, contudo, porque, e na medida em que, reflectem certas leis e estruturas mais gerais da realidade concreta, e na medida em que passaram milhares de vezes o teste da prática. A prova de um conhecimento por meio de leis da lógica é, portanto, também neste caso, uma aplicação indirecta do critério da prática. Porque as regras da lógica derivam da realidade, porque reflectem as leis gerais da realidade, e só por esta razão, a sua aplicação objectiva pode, em certa medida, substituir o recurso directo ao critério da prática.
Por outro lado, a lógica também desempenha um papel importante dentro do próprio critério da prática. Temos de examinar rigorosamente o resultado de cada aplicação do critério da prática. De modo nenhum podemos dizer que qualquer conhecimento é incondicionalmente falso só porque não resistiu ao teste da prática. O critério da prática não é uma máquina automática cujo ponteiro indique apenas «verdadeiro» ou «falso». Pode acontecer que a experiência não tenha sido correctamente organizada, ou que as condições para o teste tenham sido invertidas. O resultado de uma verificação pela prática tem, pois, também ele, de ser ponderado e compreendido.
No decurso da história a nossa prática alarga-se continuamente. Aumenta assim, também, o espaço de aplicação do critério da prática. Para conhecer quais as condições realmente reinantes na superfície da Lua, podemos hoje enviar satélites lunares, o que ainda há poucos anos parecia quase impensável.
Há que referir aqui um processo enganador, por meio do qual muitos fazem campanha contra o critério da prática. Diz o teólogo Wetter: o fascismo triunfou durante longos anos; será que, pelo critério da prática, é verdadeiro? Ora isto, para os marxistas, é um absurdo. Portanto, o critério da prática seria falso(6).
As coisas estão, aqui, pura e simplesmente, de pernas para o ar. Do princípio de que o que é verdadeiro se comprova na prática faz-se o princípio de que o que existe na prática é verdadeiro. Mas poderemos nós inverter um princípio com esta facilidade toda? Por ser verdadeiro o juízo «todos os cães são mamíferos», poderei dizer também, inversamente, que todos os mamíferos são cães? É bem evidente que não!
Para terminar, queremos alertar para o perigo de se interpretar o critério da prática como um indicador simples e cómodo do verdadeiro e do falso. A limitação de espaço deste pequeno caderno e a complexidade de alguns problemas do critério da prática não nos permitem examinar aqui, mais a fundo, estes e outros problemas da teoria do conhecimento. Não podemos fazer mais do que abrir as portas do seu estudo, e levantar os problemas fundamentais.
Notas de rodapé:
(1) Note-se que só assim é quando a pressão do ar é normal. (retornar ao texto)
(2) Dicionário Filosófico, Herder-Verlag, 1957, p. 143 (em alemão) (retornar ao texto)
(3) Demócrito de Abdera (c. 460-370 a.n.e.) — filósofo materialista grego, um dos fundadores da teoria atomística. (Nota das Edições «Avante!».) (retornar ao texto)
(4) Epistemologia: disciplina filosófica da essência, da estrutura e das leis gerais do processo de conhecimento e do conhecimento; teoria do conhecimento. (Nota das Edições «Avante!».) (retornar ao texto)
(5) V. I. Lénine, Materialismo e Empiriocriticismo (retornar ao texto)
(6) Wetter, Sowjetideologie heute, Fischer-Biicherei, t. 460-461, p. 23. (retornar ao texto)
Inclusão | 04/07/2018 |