Introdução à Dialética Marxista II

Edições Avante

1976


Primeira Edição: ABC do Marxismo-Leninismo Série B, N° 5, Editorial Avante!, Lisboa, 1976

Fonte: Partido Comunista Português — Organização Regional de Lisboa

Transcrição: Reinaldo Pedreira Cerqueira da Silva

HTML: Fernando A. S. Araújo.

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No nosso primeiro caderno sobre a dialéctica examinámos a questão de como, do modo como se processa o movimento, e mostrámos que este representa — na base da lei da transformação das mudança quantitativas em mudanças qualitativas e vice-versa — uma unidade complexa de processos evolutivos e revolucionários. Mas como é que as coisas se passam: num destes saltos qualitativos o movimento aparece com uma direcção definida, ou o que acontece é que tão depressa triunfa uma qualidade como o seu contrário, sem que, no todo, nada de novo se passe no mundo? Uma outra lei fundamental da dialéctica responde a esta pergunta, a lei da «negação da negação», e vamos agora estudá-la mais de perto.

Hegel chamava «negação» à substituição de uma qualidade velha por uma nova. Marx, Engels e Lénine conservaram este conceito e utilizaram-no para designar um aspecto definido do processo de desenvolvimento na natureza, na sociedade e no conhecimento humano.

O conceito de negação é muito útil para a explicação deste aspecto do processo de desenvolvimento, porque a passagem de uma qualidade velha a uma qualidade nova significa sempre que é negada, superada e deixada para trás essa qualidade velha, ou seja, é sempre uma negação.

Neste sentido, a planta, que se desenvolve a partir de uma semente, é a negação desta semente. No domínio social, a sociedade socialista, que vem ocupar o lugar da sociedade capitalista, é a negação da sociedade capitalista.

Mas a verdade é que o desenvolvimento no mundo material nunca, e em parte nenhuma, acaba quando se atinge um ponto determinado. A planta acaba por morrer, mas dela provêm novas sementes. E isto é igualmente uma negação, no sentido filosófico em que empregamos o termo. Ora a esta negação vem suceder-se uma outra, e assim por diante. Vemos, pois, que o processo de desenvolvimento é uma sequência de negações que não têm fim. Todas as coisas que surgem são negações, ao mesmo tempo, de outras coisas que desapareceram. Todas as coisas acabam por ser, elas próprias, também negadas, porque tudo existe apenas durante um período de tempo determinado. É precisamente neste sentido que podemos dizer, portanto, que o desenvolvimento é a negação da negação.

Não são nada poucos os casos em que a lei da negação da negação opera um desenvolvimento para o superior, a um tempo bem definido e como que em forma de espiral. Vejamos um exemplo: temos um grão de cevada; dá-se a negação deste grão pela planta; em seguida a espiga de cevada nega esta negação. Dir-se-ia que estávamos diante de um «regresso» ao ponto de partida, ao grão de cevada; mas agora estamos num plano superior, porque temos duas ou três dúzias de grãos de cevada, e não um.

O Desenvolvimento como «Conservação»

Há que verificar se no processo do devir e desaparecer é sempre tudo negado, e tudo completamente negado. Atentemos na passagem da sociedade humana do capitalismo para o socialismo, na revolução socialista. Já dissemos atrás que a sociedade socialista é a negação da sociedade capitalista. Quererá isto dizer que na passagem para o socialismo é negado tudo o que surgiu no capitalismo — por exemplo, as grandes empresas industriais com a sua moderna técnica, as modernas condições de circulação, os teatros, os hospitais, as escolas?

Nega-se tudo isto e muito mais, destruindo tudo? Há antimarxistas e muitos outros que, por ignorância, é isto mesmo que afirmam. Mas esta é uma atitude aventureirista e absurda. É exactamente o contrário disto que é correcto. Os homens dos países socialistas utilizaram aquilo que a guerra fascista não destruiu como uma base para o desenvolvimento posterior da sociedade.

Torna-se aqui evidente que a passagem do velho ao novo tanto significa uma separação das diferentes fases de desenvolvimento como também significa conexão. A conexão entre as várias fases de desenvolvimento reside, precisamente, no facto de tudo o que é capaz de viver e de se desenvolver não decair com o que é velho e ultrapassado, no facto de, pelo contrário, continuar a existir e ser posteriormente desenvolvido. Como diz Hegel, o que é velho é «superado», no sentido de que o que é mau é anulado e o que é bom é conservado e desenvolvido para um plano superior. Aquilo que decai está velho e gasto. O que contém em si o germe de nova vida pode continuar a existir, deixando para trás de si o que está velho e gasto.

É bem conhecido o facto de nos países socialistas serem cultivadas e estimuladas as grandes tradições da cultura do povo. É enorme o esforço da sociedade socialista neste campo. No caso da RDA, por exemplo, as grandes obras de escritores como Lessing, Goethe e Schiller, os grandes escritos filosóficos de um Kant, um Herder e um Hegel, a música de Bach, de Mozart e de Beethoven, e os trabalhos dos grandes cientistas são facultados ao povo de muitas maneiras, são cultivados como um tesouro cultural que se não pode perder. A juventude aprende a conhecer esta herança na escola primária e secundária, é educada no espírito desta riquíssima herança cultural.

Dizemos, portanto, que no processo do devir e desaparecer só é negado — em última instância — o que envelheceu e está ultrapassado. O que é capaz de viver é conservado, e forma a base para o desenvolvimento posterior. O processo do devir e desaparecer no mundo material é, por isso, a ascensão do simples ao complexo, do inferior ao superior.

Pode também dizer-se que, no mundo material, o desenvolvimento é um processo que avança constantemente segundo leis que o regulam.

É evidente que não podemos pensar que este processo de desenvolvimento do inferior ao superior é um processo simples e linear. Neste processo também há desvios da linha ascensional. também há períodos de equilíbrio temporário, e períodos em que preponderam os retrocessos, como, por exemplo, nos países em que o fascismo triunfou durante algum tempo. Numa palavra: o processo de desenvolvimento para o superior é, no seu todo, extraordinariamente complexo. Por isso nem sempre é fácil reconhecer realmente a passagem a fases superiores.

As Forças Motoras do Desenvolvimento

Já conhecemos leis que nos permitem ter uma ideia de como, e em que direcção, se processa o desenvolvimento do mundo material. Vamos agora ver quais são as forças motoras do desenvolvimento, para entrarmos mais a fundo nos processos de desenvolvimento da natureza e da sociedade e os podermos compreender melhor.

Por detrás de tudo o que se move, modifica e desenvolve os nossos antepassados primitivos viam seres divinos especiais que podiam provocar estas modificações a seu bel-prazer: Zeus, na sua cólera, arremessava raios e fazia ribombar o trovão; Posidon enfurecia o mar e fazia tremer a Terra para arruinar os homens; Atena envolvia os barcos ameaçados pelo inimigo em denso nevoeiro, etc.

Há muito que os homens aprenderam a conhecer a origem natural de todas as forças que, ininterruptamente, movem e modificam o mundo que nos rodeia. Tensões eléctricas na atmosfera provocam o relâmpago. Deslocações de partes da crosta terrestre umas contra as outras, explosões de gases que ocorrem nas erupções vulcânicas, ou o abatimento de cavernas subterrâneas, são as causas de terramotos e de maremotos. A condensação do vapor de água na atmosfera ocasiona os nevoeiros.

Estaremos em condições de explicar, a partir dos nossos conhecimentos científicos e das nossas experiências práticas, quais as forças naturais em acção nos diversos processos de desenvolvimento, quais as forças que os impelem para diante? Estaríamos, sem sombra de dúvida, se fossemos examinar cada um dos processos de desenvolvimento. Como se compreende, não há homem nenhum que o consiga fazer sozinho, e as ciências, que há já séculos se ocupam desta tarefa, nunca atingem o ponto final da sua actividade, uma vez que, enquanto o espírito humano vai penetrando cada vez mais fundo na natureza, esta continua o seu desenvolvimento ininterrupto — o que traz às ciências sempre tarefas novas.

O estudo científico do mundo material levou, contudo, a conhecimentos sobre as forças motoras do desenvolvimento, não só deste ou daquele objecto particular, mas de todas as coisas e fenómenos do mundo material em geral. Estes conhecimento gerais, conquistados a partir de um sem número de conhecimentos isolados, põem-nos em condições de explicar quais as forças motoras em acção nos diferentes processos de desenvolvimento, e agindo sempre do mesmo modo.

Que forças motoras são essas, que actuam do mesmo modo em todos os processos de desenvolvimento?

Na contradição dialéctica, inerente a todas as coisas e fenómenos, o materialismo dialéctico encontra a força motora de todo o desenvolvimento. Esta frase precisa de ser muito bem explicada, pois normalmente entende-se por contradição um enunciado directamente oposto a outro, ou seja, uma contradição lógica. Mas a contradição dialéctica é algo completamente diferente. Trata-se da contradição inerente a todas as coisas.

Alguém dirá: «Estou daqui a ver uma flor, um cravo. Um cravo vermelho. Consigo cheirar-lhe o perfume, mas não consigo descobrir nenhuma contradição interna.» De facto, a observação superficial não nos permite descobrir as contradições internas. Mas se examinarmos mais de perto os processos vitais desta flor ou de qualquer outra planta daremos imediatamente com processos contraditórios: processos de formação e de decomposição de células vegetais, assimilação e dissimilação, crescimento e morte. Se considerarmos as plantas, portanto, no seu movimento, na sua modificação, no seu desenvolvimento, daremos pelos seus «aspectos» opostos, descobriremos as contradições que lhe são inerentes. Os diferentes domínios da ciência, e a nossa própria experiência, ensinam-nos que esta contradição interna de modo nenhum se confina a um único domínio do mundo material. Os físicos atómicos ocupam-se das forças opostas do átomo, das forças de coesão nuclear e das forças eléctricas que fazem as partículas nucleares repelirem-se umas as outras. Destas forças derivam as poderosas energias que os reactores nucleares podem tornar utilizáveis.

Aos astrónomos revelam-se, nos inúmeros sóis vivos, diferentes «aspectos» que actuam contraditoriamente uns sobre os outros: a força de atracção de massas, que actua para dentro, a gravitação e a pressão da irradiação das estrelas, que actua para fora.

Qualquer físico conhece, na mecânica, a acção e a reacção, a atracção e a repulsão, bem como as cargas positivas e negativas da electricidade.

E, finalmente — não nos damos conta, a cada passo, da circunstância de que todas as coisas têm os seus lados positivos e negativos, de que há muito nelas que está ligado ao passado, enquanto outros aspectos delas apontam já para o futuro? Trata-se, de facto, de uma experiência que se renova no nosso dia-a-dia, e pela qual nós próprios também passamos. Na obra imortal de Goethe diz Fausto: «Ah, habitam duas almas no meu peito, E uma quer da outra separar-se...».

Numa forma poética, está aqui a imagem da nossa consciência, do nosso pensamento, da nossa vontade e do nosso sentir na sua divisão em tendências opostas.

Se considerarmos a ciência da sociedade, verificaremos que na análise de todos os fenómenos deparamos com «aspectos» opostos, com contradições internas. E, na produção social, a contradição entre forças produtivas e relações de produção. Em todos os sistemas sociais que assentam na propriedade privada dos meios de produção, e em que ainda vigora a exploração do homem pelo homem, a sociedade está dividida em classes de interesses antagónicos que lutam entre si. A classe operária e a classe dos capitalistas constituem as duas classes fundamentais da sociedade capitalista, e a sua luta define todo o quadro deste sistema social.

Os exemplos aqui apresentados, escolhidos dos mais diversos domínios do mundo material, poderiam ser completados com muitos outros. Mas, por mais exemplos que escolhêssemos, não se alteraria o resultado da nossa investigação: a divisão das coisas e fenómenos em «aspectos» contraditórios percorre todo o mundo material(1); a todos os objectos são inerentes contradições de que nos apercebemos quando consideramos esses objectos no seu desenvolvimento. O materialismo dialéctico tem, portanto, um conhecimento fundamental: a contradição é universal, absoluta, existe em todos os processos de desenvolvimento das coisas e dos fenómenos, percorre umas e outros, e todos os processos, do princípio ao fim.

Sabemos que as coisas do nosso mundo ambiente existem durante um tempo determinado antes de desaparecerem, antes de outras coisas surgirem delas. Elas existem, em toda a sua contradição, como coisas unas — como flor, como animal, como estrela ou planeta -, embora percorridas por contradições internas. Mas também sabemos que nenhuma coisa existe eternamente. Tudo, no nosso mundo material, tem o seu princípio e o seu fim: a flor murcha no outono, o animal morre ao atingir determinada idade, as estrelas e os planetas desintegram-se ao cabo de milhões e milhões de anos. A razão mais importante do facto de todas as coisas do mundo material existirem apenas durante um tempo determinado reside na contradição interna que lhes é inerente. Os «aspectos» contraditórios nas coisas não se comportam pacificamente e sem relações mútuas, estão, pelo contrário, em «luta» constante entre si. Na planta, por exemplo, os processos de formação e de decomposição de células não decorrem isoladamente e sem agirem um sobre o outro. Estes processos «lutam» um com o outro. Enquanto são mais fortes os processos de formação de células, a planta cresce; e esta começa a murchar quando predominam os processos de decomposição. A planta morre e apodrece quando os processos de decomposição dominam toda a planta, quando o outro «aspecto» da contradição interna desapareceu por completo e, portanto, deixou de existir a contradição interna. A «luta» dos contrários leva à dissolução da unidade dos contrários. Mas a dissolução desta unidade é, ao mesmo tempo, o fim da própria coisa.

Desenvolvimento na Luta dos Contrários

O mesmo verificamos no desenvolvimento social. O sistema social capitalista está dividido em classes, as mais importantes das quais são a classe operária e a classe dos capitalistas. Na luta de classes os interesses antagónicos chocam-se entre si, até que por fim, nas revoluções socialistas, o domínio da burguesia é derrubado. Mas com isto cai também todo o sistema social até aí reinante. No seu lugar começa a crescer um sistema social novo — o socialismo.

Sejam quais forem os processos de desenvolvimento por nós estudados, deparamos sempre com o mesmo fenómeno: a «luta» dos contrários nas coisas e nos fenómenos do mundo material conduz, após algum tempo, à destruição da unidade vigente e, também, dessa forma do desenvolvimento da matéria, de uma certa qualidade das coisas. A qualidade anterior é anulada e passa a uma outra qualidade. Nesta qualidade nova desenvolvem-se novas contradições — o desenvolvimento continua sempre, sem nunca ter fim, pois com cada nova contradição também a «luta» começa de novo. Lénine escreveu:

«a unidade [...] dos contrários é condicional, temporária, transitória, relativa. A luta dos contrários que mutuamente se excluem é absoluta, do mesmo modo que o desenvolvimento, o movimento, são absolutos.»(2)

Só a «luta» dos contrários nos faz compreender o que é o desenvolvimento. Esta luta entre os «aspectos» opostos nas coisas, entre as tendências e forças contraditórias nelas existentes, é a força motora viva e inesgotável que faz avançar o desenvolvimento. Porque esta luta dos contrários se processa ininterruptamente em todas as coisas e fenómenos, estão continuamente a surgir coisas novas, e tudo o que é velho cai constantemente para dar lugar ao que é novo. Lénine resume este conhecimento conquistado pelo materialismo dialéctico na seguinte frase: «Desenvolvimento é "luta" dos contrários.»(3)

Se não houvesse contradição nas coisas, nem «luta» de contrários nelas, todas as coisas permaneceriam imutáveis para toda a eternidade. Não haveria desenvolvimento.

É verdade que os idealistas contestam que a «luta» dos contrários seja a força motora interna do desenvolvimento de todas as coisas. Mas para o fazerem têm de se refugiar em teorias que contrariam o ponto de vista científico.

Em princípio só há duas possibilidades de explicar o movimento: ou este é automovimento, em consequência de contradições internas, ou é comunicado à matéria de fora, por meio de um ser imaterial. Por isso, os idealistas inventaram forças sobrenaturais que propõem como fontes do movimento da matéria. E assim que todas as religiões explicam que Deus é o criador do mundo e do seu desenvolvimento. E gostam de argumentar assim: onde quer que algo se mova, este movido foi posto em movimento por qualquer outro. Este, por sua vez, tem a fonte do seu movimento num outro. Esta cadeia não pode ser infinita. Por isso tem de haver um primeiro motor (Deus). Não havendo um primeiro motor, também não poderia haver um segundo, e assim sucessivamente. E, portanto, não haveria movimento. Mas há movimento, e por isso tem de haver Deus.

Esta é uma das «provas» da existência de Deus de Tomás de Aquino (filósofo do séc. XIII) ainda hoje muito utilizada.

Porque é que — num sentido lógico e científico- esta «prova» não prova nada? Porque ela — como todas as provas da existência de Deus — se limita a pressupor tacitamente aquilo que, primeiro, teria de ser provado. Não há dúvida que se concede que hoje o mundo está em movimento; mas logo a seguir afirma-se que nem sempre assim foi, que, portanto, o mundo não existe eternamente e nem sempre está em movimento. Não há dúvida: afirmando-se que o mundo e o movimento tiveram um começo, então tem de haver, para o explicar, uma causa primeira — Deus, portanto. A «prova» assenta, pois, na afirmação de que tem de haver um Deus extraterreno porque o mundo — e isto é tacitamente pressuposto — não pode ser eterno.

Esta «prova» da existência de Deus separa matéria e movimento, enquanto toda a ciência nos demonstra que matéria e movimento são inseparáveis. A ciência não se limita a dizer que o mundo, tal como hoje existe, está em movimento; a ciência demonstrou também, e irrefutavelmente, pela lei da conservação da massa e da energia, que a matéria e o movimento existem, de facto, em múltiplas formas, mas que se transformam sempre e apenas noutras formas da matéria e do movimento, e que nunca podem surgir do nada nem desaparecer no nada. São incriáveis e indestrutíveis. A ciência da natureza demonstra que não há matéria sem movimento nem movimento sem algo que se move. Demonstra que o mundo é e será sempre matéria que se move. Os inventores das «provas» da existência de Deus estão em pé de guerra com as ciências exactas da natureza.

De resto, tudo isto se tornará ainda mais claro se imaginarmos o diálogo seguinte entre um materialista dialéctico e um defensor da existência de Deus:

Marxista: Donde provém Deus, o primeiro motor?

Teólogo: Não provém de parte nenhuma, já existia desde sempre!

Marxista: Porque é que o mundo que investigamos e conhecemos não há-de poder ser infinito, ao passo que Deus, sobre o qual é impossível encontrar uma única afirmação concreta e comprovável, tem de ser infinito?

Teólogo: Porque o mundo é imperfeito, mas Deus é perfeito. Deus é absolutamente perfeito, imóvel e sem desenvolvimento.

Marxista: Mas isso é duplamente paradoxal. Primeiro, antes de Deus o por em movimento, o mundo estava imóvel. Se aquilo que não tem movimento é perfeito, então o mundo, outrora perfeito, só ficou imperfeito depois da intervenção de Deus.

Teólogo: Esquece-se de que Deus criou logo o mundo com o seu movimento.

Marxista: Então a matéria e o movimento formaram sempre uma unidade. É isso exactamente o que nós dizemos. Só que você afirma que tudo isso teve um começo, e é isso que nós contestamos. E as leis da conservação da física dão-nos razão neste ponto. Mas eu disse há pouco que o seu argumento era duplamente paradoxal: Deus é, por conseguinte, absolutamente imóvel. Mas então ele criou o mundo e deu-lhe um primeiro grande impulso que é obviamente infinito, e tudo isto sem que ele próprio se movesse? Ora isto é um puro absurdo.

É a própria teologia que afirma que este Deus não possui nem extensão espacial nem temporal. (Veja o leitor os nossos dois cadernos da serie B, «A Imagem Moderna do Mundo», n.° 1 e n.° 3, respectivamente O Problema Fundamental da Filosofia e A Concepção Marxista do Conhecimento, para melhor compreender este ponto). Um Deus assim seria o nada espacial e temporal e a ausência de movimento. Um nada tão absolutamente nada não pode, como é evidente, ser o criador do que quer que seja, quanto mais do mundo inteiro.

Um «primeiro motor» imaterial e imóvel, que de facto é um nada, e que criou, como espírito absoluto ou Deus, a matéria e o movimento? Uma tal afirmação é incompatível com os conhecimentos da ciência. Num Deus assim pode-se apenas crer, ter fé, mas é impossível provar a sua existência com razões lógicas e científicas.

Uma explicação cientifica do devir e desaparecer no mundo tem, por conseguinte, de procurar, no mundo material, a força motora do desenvolvimento, tem de compreender o movimento como automovimento da matéria. Não há forças motoras extraterrenas. A mudança e o desenvolvimento só são possíveis enquanto divisão do que é uno, em consequência da luta dos contrários em todas as coisas e fenómenos.

Só pode reclamar-se de científica uma teoria que seja capaz de explicar onde se encontram, no próprio mundo material, as forças motoras do desenvolvimento. Por outras palavras: só é científica a teoria que tenha como seu ponto de partida o automovimento e o autodesenvolvimento da matéria. Todas as outras teorias estão apostadas em procurar as forças motoras do desenvolvimento da matéria fora da matéria, o que as faz cair, queiram ou não queiram, na via do misticismo e da negação da ciência. É o que acontece, por exemplo, com todas as teorias sobre a origem da vida na Terra que não partem do facto de que as forças motoras da passagem da matéria inanimada a matéria viva têm de ser procuradas nas condições naturais do próprio desenvolvimento da Terra. Essas teorias têm forçosamente de especular sobre quaisquer forças vitais misteriosas, das quais não sabem dizer em que consistem, ou terão de aceitar um «criador» extraterreno da vida na Terra.

As teorias científicas da origem da vida na Terra — como a do cientista soviético Oparine, que conta hoje com o apoio crescente de cientistas de muitos países e que se encontra já, em parte, experimentalmente comprovada — partem do facto, e nisto revelam a sua consequência, de que as forças motoras da passagem à natureza viva se encontram no próprio mundo material.

O materialismo dialéctico, de acordo com a ciência, ensina que o mundo material se autodesenvolve.

Ficamos agora a conhecer a terceira lei geral do desenvolvimento do mundo material. Podemos condensar tudo o que ficou dito sobre ela da seguinte maneira: todas as coisas, todos os fenómenos e processos têm aspectos e tendências contraditórios que travam entre si uma luta constante; esta luta dos contrários leva ao crescimento das contradições, sendo estas finalmente resolvidas pelo desaparecimento do que é velho e pelo aparecimento do que é novo. Na luta dos contrários reside o impulso interior, a força interna do desenvolvimento.

Tal como a lei da transformação das mudanças quantitativas em mudanças qualitativas e vice-versa, também a lei da contradição dialéctica (igualmente designada por «lei da unidade e da luta dos contrários») é uma lei universal, ou seja, uma lei que rege todo o mundo material. É o conhecimento desta lei que nos permite julgar correctamente do desenvolvimento das coisas e dos fenómenos, e intervir neste desenvolvimento.

Mas aqui não podemos esquecer que as contradições surgem e operam de modo diferente nas diferentes coisas. É certo que é a luta entre os aspectos contraditórios das coisas que faz avançar o desenvolvimento, mas esta luta realiza-se nos processos de formação e de decomposição das células vegetais, por exemplo, de modo completamente diferente do que — digamos — nos processos que determinam o desenvolvimento da economia de um país. Não basta, por isso, conhecer apenas de um modo geral a lei da unidade e da luta dos contrários; é preciso estudar esta lei no seu funcionamento concreto, é preciso saber reconhecer as contradições nas coisas e nos fenómenos na sua forma concreta. Todas as contradições concretas têm as suas particularidades, e, se não quisermos cometer erros, é preciso atender a essas particularidades.

Vamos examinar, resumidamente, a luta dos contrários no desenvolvimento social, para ficar mais claro o que acabamos de dizer. No nosso tempo, quando na sociedade humana existem classes com interesses e aspirações diferentes e muitas vezes antagónicos, é muito importante examinar com todo o rigor as particularidades destes antagonismos.

Contradições Internas e Externas

Não há só contradições dentro de todas as coisas e de todos os fenómenos. Como tudo existe em conexão, também há contradições entre coisas e fenómenos. E há também contradições internas e contradições externas. Para podermos dizer, em cada caso, se uma contradição é interna ou externa, temos de considerar, rigorosamente, de que coisa ou fenómeno se trata. A contradição interna decisiva do capitalismo, por exemplo, é a que opõe entre si a burguesia e o proletariado. Á escala mundial, a contradição decisiva é hoje entre o capitalismo e o socialismo. Para fazermos apreciações correctas não podemos perder de vista esta realidade — quando em determinadas frentes de luta, nos países do chamado «terceiro mundo», por exemplo, se trava uma luta particularmente dura, encarniçada e cheia de sacrifícios contra o imperialismo e pela independência nacional. Neste caso, como no da luta do movimento operário dos países capitalistas desenvolvidos pelo socialismo, a luta é contra o imperialismo, mas é conduzida em formas diferentes. Esta luta está subordinada á contradição principal da nossa época, e isto é comprovado pelo facto de os imperialistas já não poderem, desde que o socialismo se fortaleceu a escala mundial, impedir o desenvolvimento das lutas pela liberdade.

A dialéctica mostra-nos que as contradições internas são sempre as decisivas. Mas é certo que os antagonismos externos exercem também uma influência que pode ser muito importante. Esses antagonismos externos, porém, não podem, só por si, operar mudanças nas coisas. A ajuda que é concedida do exterior às forças anti-imperialistas de determinado país não pode resolver o problema desse país, porque o desenvolvimento de cada país depende, em última análise, de como as forças e lutas internas de classes se desenvolvem no país.

As contradições decisivas são, portanto, as contradições internas. Se entre um organismo e o seu mundo ambiente, por exemplo, surgir uma contradição externa, causada por uma alteração no mundo ambiente, o organismo ou se adapta a essa alteração ou morre — mas não se desenvolve. As interferências externas têm um efeito dissolvente, estimulante ou obstrutivo, mas exercem este seu efeito apenas em conexão com as respectivas contradições internas. Da luta anti-imperialista dos povos do chamado «terceiro mundo», pela sua libertação só vem uma influência estimulante para as «pátrias mães» imperialistas se a classe operária receber essas influências e, pelo seu lado, as conjugar com as suas próprias acções revolucionárias.

A revolução resulta sempre das contradições internas. A revolução não se exporta. CONTRADIÇÕES ANTAGÓNICAS E NÃO ANTAGÓNICAS

Deparamos assim com duas espécies fundamentalmente diferentes de contradições entre as classes. Nos países capitalistas desenvolvidos, as contradições entre os interesses do grande capital e do seu aparelho de poder, por um lado, e os interesses das restantes classes e camadas da população, por outro, são inconciliáveis, porque o grande capital, no interesse do seu próprio poder, reduz cada vez mais a democracia, e os círculos mais reaccionários — principalmente na indústria de material de guerra — aspiram a uma política que visa alterar a seu favor as realidades da Europa e do mundo e dar nova vida à guerra fria. A lógica interna desta política é a ameaça da guerra à sobrevivência dos povos. Os povos, pelo contrário, desejam uma política de paz, de compreensão, de segurança social, de vida democrática. Estes interesses irredutivelmente opostos não podem ser eternamente escamoteados.

A estas contradições em que se exprimem antagonismos inconciliáveis e irredutíveis entre os interesses e aspirações de forças e classes sociais hostis damos o nome de contradições antagónicas. As contradições antagónicas geralmente agudizam-se, e levam muitas vezes a conflitos violentos entre as partes antagónicas.

Mas também há, entre classes e camadas ou forças sociais, contradições que não atingem a agudeza do inconciliável, não são hostis, nem antagónicas. Nestes casos, aquilo que é comum, que une, é mais forte do que o que divide.

Tal é a contradição que existe, por exemplo, entre os operários e os camponeses. Já é assim no capitalismo, mas ainda o é mais no socialismo. A razão deste facto é que ambas as classes se contam entre as classes produtoras da nação, e que ambas são exploradas no capitalismo — embora de modo diferente — pelo grande capital. No entanto, os camponeses — e nisto diferem dos operários -são uma classe proprietária, embora a sua propriedade seja pequena. De qualquer modo, é nesta diferença, e no modo diferente como a produção se realiza na cidade e na aldeia, que assenta a contradição entre operários e camponeses. Esta contradição, porém, é muito menos importante do que aquilo que ambas as classes têm em comum — o interesse de se defenderem da pressão dos grandes grupos monopolistas, de se libertarem da exploração que sobre elas praticam os grandes industriais e os grandes banqueiros. Do mesmo modo, é preponderante o interesse comum na manutenção da paz, já que nem operários nem camponeses pertencem às forças sociais que conseguem arrecadar lucros com a guerra. A guerra só lhes traz sacrifícios de vidas e bens.

Isto significa, na prática, que as contradições antagónicas só podem ser resolvidas na luta das classes, e que a libertação social das classes trabalhadoras não é possível sem a superação do capitalismo e a eliminação da propriedade capitalista dos meios de produção mais importantes. As contradições não antagónicas podem ser resolvidas pela via da atenuação e da assimilação graduais, mas também no processo da sua superação é fundamental que o que é velho seja substituído pelo que é novo. E o principal meio para o conseguir é a persuasão paciente na base do exemplo positivo, que é sempre o melhor argumento.

Há ainda outras razões para analisarmos concretamente as contradições. Um objecto concreto não é apenas a unidade de um par de factores contrários. As coisas não se passam assim. No capitalismo não há só o antagonismo entre a classe operária e o capital, há também as contradições entre os camponeses, os artesãos, os intelectuais, de um lado, e o capital; entre estas camadas sociais e a classe operária, etc. Estas contradições terão todas o mesmo peso, influenciam todas igualmente o curso das coisas? Qual é a contradição principal, a contradição determinante? Como é sabido, no capitalismo a contradição principal é a contradição entre a classe operária e o capital.

A doutrina da contradição dialéctica. objecto deste caderno, ocupa um lugar extremamente importante no marxismo. Lénine chamou-lhe o «cerne» da dialéctica marxista, a chave para a compreensão de todos os aspectos e factores do desenvolvimento.

Num terceiro caderno trataremos de outros aspectos da dialéctica.

V. I. Lenine Sobre a Dialéctica

«Marx e Engels viram na dialéctica hegeliana a doutrina do desenvolvimento mais ampla, mais rica de conteúdo e mais profunda, a maior conquista da filosofia alemã clássica. Consideraram todas as outras formulações do princípio do desenvolvimento, da evolução, unilaterais, pobres de conteúdo, uma deturpação e desfiguração do curso real do desenvolvimento na natureza e na sociedade (o qual não raro se realiza por saltos, catástrofes, revoluções). "Marx e eu fomos realmente os únicos que salvámos a dialéctica consciente (dos destroços do idealismo, incluindo o hegelianismo) e a aplicámos á concepção materialista da natureza". (F. Engels, no Anti-Dühring) "A natureza é a prova da dialéctica, e da moderna ciência da natureza temos de dizer que para esta prova ela forneceu um material extremamente rico (isto foi escrito antes da descoberta do rádio, dos electrões, da transformação dos elementos, etc.) e cada dia mais abundante, demonstrando assim que na natureza, em última análise, nada há de metafísico, que tudo nela se processa dialecticamente." (F. Engels, Anti-Dühring).

"A grande ideia fundamental — escreveu Engels — de que o mundo tem de ser entendido não como um complexo de coisas acabadas, mas como um complexo de processos em que as coisas aparentemente estáveis, tal como as suas imagens conceptuais na nossa cabeça, os conceitos, passam por uma transformação ininterrupta de devir e desaparecimento [... ] — esta grande ideia fundamental penetrou de tal modo na consciência comum, nomeadamente desde Hegel, que dificilmente, de tão generalizada, encontrará ainda quem a contradiga. Mas reconhecê-la em palavras e levá-la realmente à prática em pormenor em todos os domínios de investigação são duas coisas distintas." (F. Engels, Ludwig Feuerbach...)

"Para ela (a filosofia dialéctica) nada há de definitivo, de absoluto, de sagrado; ela demonstra a transitoriedade de tudo e em tudo, e nada há para ela a não ser o processo ininterrupto do devir e desaparecer, a subida sem fim do inferior ao superior, sendo ela própria o simples reflexo de tudo isto no cérebro pensante." (F. Engels, Ludwig Feuerbach.) A dialéctica é, portanto, e segundo Marx, "a ciência das leis gerais do movimento tanto do mundo exterior como do pensamento humano".

Este aspecto da filosofia de Hegel, o seu aspecto revolucionário, foi retomado e desenvolvido por Marx. O materialismo dialéctico "já não precisa de uma filosofia que esteja acima das outras ciências". O que ainda continua a existir da filosofia anterior é "a doutrina do pensamento e suas leis — a lógica formal e a dialéctica". A dialéctica, na concepção de Marx, tal como na de Hegel, compreende, porém, o que hoje se chama teoria do conhecimento, gnoseologia, a qual tem igualmente de considerar historicamente o seu objecto, investigando e generalizando a origem e o desenvolvimento do conhecimento, a passagem do não conhecimento ao conhecimento. No nosso tempo a ideia do desenvolvimento, da evolução, penetrou quase completamente na consciência social, mas por outras vias, não pela filosofia de Hegel. Esta ideia, porém, na formulação que Marx e Engels, partindo de Hegel, lhe deram, é muito mais vasta, muito mais rica de conteúdo do que a ideia corrente de evolução. Um desenvolvimento que parece percorrer uma vez mais estádios já percorridos, mas de modo diferente, numa fase mais elevada ("negação da negação"), um desenvolvimento que não se processa em linha recta, mas, por assim dizer, em espiral; um desenvolvimento por saltos, ligado a catástrofes, revolucionário; "solução de continuidade", passagem da quantidade a qualidade; impulsos interiores de desenvolvimento, desencadeados pela contradição, pelo choque de forças e tendências diversas, que actuam sobre um dado corpo, ou dentro dos limites de um dado fenómeno, ou dentro de uma dada sociedade; dependência reciproca e a conexão mais estreita, indissolúvel, de todos os aspectos de cada fenómeno (pelo que a história faz aparecer sempre aspectos novos), uma conexão que produz um processo mundial, regular e uno, do movimento — eis alguns traços da dialéctica, doutrina do desenvolvimento mais rica (em comparação com a usual). (Ver carta de Marx a Engels, de 8 de Janeiro de 1868, ridicularizando as "tricotomias acanhadas" de Stein, que seria absurdo confundir com a dialéctica materialista.)»

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Notas de rodapé:

(1) No seu trabalho «Sobre a questão da dialéctica» Lénine tem, a este propósito, a seguinte nota: Na matemática, + e -. Diferencial e integral. Na mecânica, acção e reacção. Na física, electricidade positiva e negativa. Na química, combinação e dissociação dos átomos, Na ciência da sociedade, luta de classes.» (Cadernos Filosóficos) (retornar ao texto)

(2)  V. I. Lénine, Cadernos Filosóficos. (retornar ao texto)

(3) V. I. Lénine, Cadernos Filosóficos. (retornar ao texto)


Fonte:

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Inclusão 01/07/2018