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Primeira Edição: ABC do Marxismo-Leninismo Série B, N° 4, Editorial Avante!, Lisboa, 1976
Fonte: Partido Comunista Português — Organização Regional de Lisboa
Transcrição: Reinaldo Pedreira Cerqueira da Silva
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
Só num conto de fadas seria possível à Bela Adormecida e ao palácio do rei dormirem cem anos escondidos pela sebe de espinheiros sem que neles se operasse qualquer modificação. E também só num conto de fadas poderia existir um poço da juventude, no qual um velhote e uma velhota mergulham para voltarem a aparecer de novo como um jovem e uma donzela. Ninguém se pode furtar à lei natural do devir e do desaparecer. Não pode a flor do campo, não pode o animal, não pode o homem. E isto porque:
Mesmo a natureza inanimada se modifica incessantemente. Os rios modificam o seu curso, as montanhas e os mares a sua forma, modifica-se toda a face da Terra.
A Terra, e o sistema solar a que pertence, não existem sem se modificar, não são eternos e imutáveis. Os astrónomos e os geólogos calculam que a Terra tenha surgido há poucos milhares de milhões de anos. Desde então a Terra percorreu muitos estádios de desenvolvimento. Estes estádios de desenvolvimento encontram-se hoje suficientemente estudados para nos ser possível dizer como se tem processado o devir da Terra ao longo destes milhões de anos.
Ano após ano vemos as estrelas seguirem as suas órbitas. Pelo seu curso aparentemente imutável há já milhares de anos que os homens se orientam. Mas a imutabilidade do curso das estrelas é mera aparência. É certo que no mundo estelar as modificações, ao contrário do que acontece na Terra, se processam muito lentamente, só ao cabo de milhões e milhões de anos se realizam. Mas não é menos certo que têm lugar em todo o universo, e ininterruptamente: modifica-se a grandeza das estrelas, que passam a brilhar menos ou mais, há estrelas que se extinguem completamente, enquanto outras voltam a brilhar. Também a pouco e pouco vão alterando as suas posições relativas. Se daqui a algumas centenas de milhares de anos, ou a alguns milhões de anos, pudéssemos observar o firmamento estelar, encontraríamos as constelações não como hoje nos são familiares, mas essencialmente modificadas.
As coisas não se passam de modo diferente no «âmago» do mundo material: das mais ínfimas partículas constitutivas do mundo hoje conhecidas, as partículas elementares que formam os átomos, passando pelos átomos que formam as moléculas, das moléculas dos corpos vivos e mortos de todas as grandezas até às maiores constelações do espaço, tudo vemos em eterno movimento.
E a sociedade humana? Já a experiência do tempo breve da nossa própria vida nos mostra que na vida em comum dos homens se realizam mudanças contínuas. Pensemos apenas nestes dois últimos decénios(1): que alterações profundas se registaram nos mapas! Onde, há anos atrás, nestes se inscreviam ainda colónias britânicas, francesas e portuguesas, deparamos hoje com nomes de Estados nacionais livres. Os homens destes Estados quebraram o jugo colonial, o jugo que os colonialistas afirmavam ser eterno.
Quando, em 1933, o nazismo instaurou na Alemanha o seu regime odioso, os dirigentes nazis apregoavam a todo o mundo que o seu império duraria mil anos. Ao cabo de doze anos o império de Hitler não passava de ruínas.
(...)
Os nossos avós ainda olhavam atónitos os primeiros carros que não eram puxados por cavalos e que rolavam, estrepitosos, pelas aldeias e cidades. Mas nós somos testemunhas da descida do homem na Lua.
Assim, tudo no mundo, das distâncias mais remotas do universo aos aspectos mais íntimos da natureza, das formas superiores da matéria viva às massas estelares mortas, revela movimento, modificação, desenvolvimento.
Impõe-se ao homem o conhecimento que Friedrich Engels, um dos fundadores do socialismo científico, formulou deste modo:
«O movimento é o modo de existência da matéria. Nunca, em parte nenhuma, houve matéria sem movimento, nem pode haver. Movimento no espaço interestelar, movimento mecânico de pequenas massas em cada um dos corpos do universo, vibração molecular como calor ou como corrente eléctrica ou magnética, dissociação e combinação químicas, vida orgânica - numa ou noutra destas formas do movimento, ou em mais do que uma ao mesmo tempo, se encontra, em cada momento, cada um dos átomos da matéria do mundo. Todo o repouso, todo o equilíbrio, é apenas relativo, só tem sentido em relação a esta ou aquela forma definida do movimento. Um corpo, por exemplo, pode encontrar-se, na Terra, em equilíbrio mecânico, mecanicamente em repouso; isto em nada impede que ele participe do movimento da Terra e de todo o sistema solar, do mesmo modo que não impede as suas mais pequenas partículas físicas de realizarem as vibrações condicionadas pela sua temperatura ou os seus átomos de passarem por um processo químico. É tão impensável a matéria sem o movimento como o movimento sem a matéria. O movimento é, por isso, tão incriável e indestrutível como a própria matéria.»(2)
Mais adiante voltaremos a este ponto.
Este conhecimento a que acabamos de nos referir pôs, desde sempre, aos pensadores perguntas como estas: donde provém este movimento? Terá sido desencadeado, em qualquer momento e de qualquer modo, por um primeiro impulso, por um primum mobile (Deus)? Ou há um ser divino supra-terreno a intervir constantemente no curso do mundo para o manter em movimento? Ou o movimento é uma qualidade inseparável do mundo que existe eternamente, e por essa razão incriável e indestrutível? (E esta é, como se depreende das palavras de Engels acima citadas, a concepção marxista.)
E mais: dado que tudo se desenvolve, como, sob que forma, se processa o desenvolvimento? O movimento tem uma direcção definida, ou o caos de movimentos dirigidos uns contra os outros impede uma tal direcção definida?
Quando o conhecimento humano avançou das formas míticas e supersticiosas de interpretação do mundo para a explicação científica deste, descobriu que no movimento existem, com toda a evidência, certas ordens. O movimento dos astros é ordenado. As estações do ano seguem-se umas às outras numa ordem certa. A água corre sempre pela montanha abaixo. No desenvolvimento da planta a germinação precede sempre a floração. É evidente que há, entre as coisas e os seus fenómenos, conexões essenciais definidas, conexões caracterizadas pela repetibilidade. A estas conexões chamamos leis. Só o conhecimento destas leis permite ao homem orientar-se nestes processos que se realizam sem alterações. E por isso os homens quiseram saber qual a razão desta ordem, quais as causas da sucessão, quais as leis do desenvolvimento.
Sabemos que Heraclito, filósofo da Grécia Antiga (c. 540-c. 480 a.n.e.), já exprimiu a opinião de que o mundo se assemelha a um fogo que crepita eternamente. Nele «tudo flui», e não nos podemos banhar duas vezes no mesmo rio, porque este entretanto se modificou. À pergunta: porque é que tudo se desenvolve?, Heraclito respondeu: «A luta é o pai de todas as coisas.» Da acção que exercem uns sobre os outros forças, aspectos, qualidades e factores diferentes e opostos nas coisas decorre a modificação destas, decorre o seu desenvolvimento.
A esta explicação do movimento e do desenvolvimento a partir da unidade e da acção de elementos opostos uns contra os outros damos o nome de dialéctica. Etimologicamente, a palavra significava «arte do diálogo», a capacidade de, por meio de afirmações e refutações, do conflito de opiniões, se encontrar a concepção correcta. Assim, Platão, um outro grande filósofo grego, apresentou as suas opiniões sob a forma de discussões entre vários interlocutores - nos seus Diálogos. Desde então a palavra sofre uma mudança de sentido e hoje designa a doutrina da contradição, da luta de elementos em conflito nas próprias coisas, como força motora, como fonte do seu movimento.
Em todas as idades houve grandes representantes da concepção dialéctica: na Antiguidade, na Idade Média, nos tempos modernos. Entre os dialécticos da Idade Moderna temos de referir, antes de qualquer outro, o grande filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), um dos precursores filosóficos de Marx.
Para Hegel, a contradição, a unidade e luta dos aspectos em conflito, era a força motora do desenvolvimento. Foi Hegel quem primeiro descobriu a lei geral de como o desenvolvimento se processa e qual a lei que guia a direcção do desenvolvimento.
Mas a verdade é que Hegel foi um filósofo idealista (ver o nosso caderno n.° 1 da serie B, O Problema Fundamental da Filosofia), isto é, era da opinião de que a base e o criador da existência não era a natureza, mas um espírito (um espírito extraterreno, comparável a Deus). Por conseguinte, aquilo que em sua opinião se move é o espírito, mas não a natureza.
Marx e Engels criticaram o conteúdo idealista da dialéctica e procuraram e investigaram o movimento lá onde ele realmente se desenrola: na natureza e na sociedade. O movimento do nosso espírito é o reflexo do movimento real, e por isso decorre — na medida em que a nossa consciência reflecte correctamente o mundo — de acordo com as leis dialécticas da realidade. Esta é a concepção fundamental da dialéctica materialista.
O conhecimento destas leis é a condição da previsão correcta do desenvolvimento futuro e, deste modo, da planificação correcta da nossa acção. No conhecimento destas leis estão empenhadas as ciências, cada uma no âmbito do seu objecto de investigação. Mas no mundo há um número infinito de coisas, fenómenos e, portanto, processos de desenvolvimento. Em que direcção se realizam o movimento e o desenvolvimento? Responder a esta pergunta já não podia ser tarefa de uma doutrina do desenvolvimento para uma área especializada, mas sim a elaboração de uma doutrina geral, filosófica, do desenvolvimento. Há que saber se as leis gerais de desenvolvimento específicas da imensidade de coisas e fenómenos do mundo têm alguma coisa a ver umas com as outras, se há traços comuns nestas leis gerais, se nós estamos em condições de descobrir e formular leis gerais e universalmente válidas do desenvolvimento do mundo material.
Ora o mundo material forma uma unidade, todas as coisas e todos os fenómenos do mundo estão ligados entre si. No que toca à matéria viva, isto ficou demonstrado pela doutrina de Darwin sobre a origem das espécies. Que a vida resultou da matéria inanimada já não é hoje contestado pela ciência. Que há uma conexão entre o desenvolvimento do nosso planeta e o sistema solar como um todo, é certo. Em suma: todas as coisas e todos os fenómenos do mundo estão em conexão entre si. Nada há que exista por si próprio. Todas as coisas, todos os fenómenos, estão condicionados por outros e só podem ser apreendidos nas suas conexões essenciais. Estas conexões não têm todas a mesma importância, nem são todas do mesmo tipo. Esta conexão não é apenas de natureza estrutural - as coisas e os fenómenos estão também em conexão no seu desenvolvimento histórico.
«No facto de estes corpos se encontrarem em conexão já está implícito que agem uns sobre os outros, e esta influência recíproca é que é o movimento.»(3)
Partindo deste facto, conseguimos perceber também que há leis do desenvolvimento que não são apenas válidas para determinadas coisas e fenómenos, mas que actuam em todo o mundo material. O materialismo dialéctico investiga e formula precisamente estas leis do desenvolvimento.
Desde os finais do século XIX já não há nenhum cientista sério que conteste que todo o mundo que nos rodeia está em desenvolvimento. O conceito de desenvolvimento encontra, desde a data referida, reconhecimento universal, é defendido em todos os compêndios e ensinado em todas as escolas. Este reconhecimento universal coroou uma longa luta intelectual, durante todo o século XIX, contra a defesa de concepções velhas e acientíficas. Exemplo de uma concepção deste género era o dogma religioso de que Deus tinha criado o mundo, com todas as plantas, todos os animais e o homem, em sete dias, depois dos quais tudo tinha permanecido sem alterações até ao presente.
Entre os cientistas e investigadores que combateram estas concepções acientíficas há que mencionar, antes de qualquer outro, Charles Darwin (1809-1882), que em "A Origem das Espécies" (1859) demonstrou que as diferentes espécies de seres vivos se tinham desenvolvido a partir umas das outras. As suas concepções materialistas encontraram em Marx e Engels o reconhecimento que lhe era devido. Entre os cientistas alemães foi sobretudo Ernst Haeckel (1834-1919) quem defendeu o conceito do desenvolvimento e, com ele, a doutrina de Darwin contra todos os ataques acientíficos que lhes foram dirigidos, dando assim prova de grande coragem e perseverança.
Mesmo os defensores do idealismo filosófico tiveram de reconhecer o conceito do desenvolvimento no final do século XIX. A isso os obrigou um material abundante e irrefutável de factos que os diversos ramos das ciências iam trazendo a lume. Mas o idealismo não se deu por completamente vencido. Passou a tentar (e ainda hoje o tenta) falsificar a teoria do desenvolvimento em seu proveito. Por isso tem continuado, mesmo depois do reconhecimento universal do conceito do desenvolvimento, a luta ideológica neste domínio. Nesta luta entre o materialismo e o idealismo o que está hoje em causa é o modo como se deve entender o desenvolvimento, como este se processa, e quais as forças motoras que o impulsionam.
Em meados do século passado, Marx e Engels elaboraram a doutrina dialéctica do desenvolvimento, e no princípio deste século Lénine enriqueceu-a com muitos pensamentos novos. A dialéctica materialista por eles criada é a ciência das leis mais gerais do desenvolvimento da natureza, da sociedade e do nosso conhecimento.
Desta doutrina nos vamos ocupar no presente caderno e nos dois que se lhe seguirão.
Uma doutrina filosófica do desenvolvimento, para ser cientificamente irrefutável, tem de dar resposta às seguintes perguntas:
Donde provém o movimento? Porque está tudo em movimento? Como se processa o movimento? Em que direcção se realizam o movimento e o desenvolvimento?
É evidente que as formas particulares do movimento são estudadas por cada uma das ciências. A filosofia, porém, tem de investigar as leis fundamentais comuns a todos os processos do movimento e do desenvolvimento, e tem de procurar dar respostas universalmente válidas para as perguntas acima formuladas. A filosofia marxista-leninista dá estas respostas nas leis fundamentais da dialéctica: a lei da transformação das mudanças quantitativas em qualitativas, e vice-versa; a lei da unidade e da luta dos contrários; e a lei da negação da negação. Sabemos que alguns dos conceitos que aqui surgem são ainda incompreensíveis. Mas vamos esclarecê-los nos nossos cadernos sobre a dialéctica. Este caderno estudará a lei da passagem da quantidade a qualidade - e vice-versa -, respondendo assim à pergunta: como, sob que forma, se processa o movimento?
Comecemos com um lugar-comum: todas as coisas e fenómenos têm propriedades qualitativas e quantitativas.
Entendemos aqui por qualidade aquela natureza particular de uma coisa pela qual ela se diferencia de outras coisas. Assim, o homem distingue-se de todos os outros seres vivos por produzir instrumentos e por conquistar com eles da natureza os meios de que carece para o seu sustento. No mundo existe um número infinito de qualidades.
Quantidade significa a grandeza, o volume, o número, as características da situação, etc., de uma coisa. «[...] tudo o que existe tem a sua grandeza para ser aquilo que é, e, sobretudo, para ter existência», escreveu uma vez Hegel. (4)
Cada coisa distingue-se, portanto, necessariamente de outras coisas, e por isso tem necessariamente características quantitativas e qualitativas que estão íntima e indissociavelmente ligadas. As características quantitativas estão «abertas a determinação externa»(5). Podem ser modificadas sem que com isso se altere imediatamente a qualidade de uma coisa. Mantendo-se a pressão normal, posso aquecer ou refrigerar água entre os 0° e os 100° C que não afecto o seu estado líquido.
Mas esta indiferença das características quantitativas de uma coisa em face da sua qualidade é apenas uma face da medalha. Se aquecer a água acima dos 100° C, ela torna-se gasosa (vapor), e se a refrigerar abaixo de 0° ela torna-se sólida (gelo), quer dizer, ela modifica radicalmente as suas propriedades. Dentro de certos limites, uma planta pode subsistir em maior ou menor humidade. Para além destes limites, porém, a planta ou seca ou apodrece. A quantidade significa, portanto, e ao mesmo tempo, também uma medida, um limite, para além do qual as modificações só podem ser examinadas se se aceitar aqui uma alteração qualitativa de uma coisa.
Atingindo este limite, aquilo que até aí fora a repetição sem consequências - do ponto de vista da qualidade de uma coisa - de um processo passa a ter, de repente, efeitos incisivos que alteram a qualidade dessa coisa. A medida está então cheia, é a gota de água que faz extravasar o cântaro ou que lhe quebra a asa. Se se arrancam repetidamente os cabelos, não se trata apenas de «repetição, mas [...] as quantidades em si insignificantes somam(-se)» umas às outras, «e a soma» constitui «o todo qualitativo», «de modo que, no fim, desaparecido este todo, a cabeça fica calva e a bolsa vazia»(6).
O aspecto quantitativo de uma coisa e a modificação destas características quantitativas têm, portanto, uma dupla natureza: por um lado, não são essenciais para a qualidade dessa coisa, e por outro lado são essenciais.
Analisemos agora, depois desta explicação necessária, o modo como decorre o desenvolvimento. Aqui manifesta-se uma lei geral definida. Podemos observar muito bem o efeito desta lei em nós mesmos. Da infância desenvolvemo-nos para a idade adulta. Por um lado, isto acontece lenta e uniformemente, e sem que o notemos. É isto mesmo que leva tantos pais a tratar os filhos e filhas já adultos como se ainda fossem crianças. Não deram por uma importante transição - a da infância para a adolescência.
Este desenvolvimento - e o normal é todos os homens passarem por ele na sua vida - é um processo único com duas faces distintas. Uma consiste em modificações que se processam ininterruptamente e muito devagar, e que por isso quase não são perceptíveis. Estas modificações tocam apenas coisas «exteriores»: os homens crescem, moldam-se as formas do rosto e do corpo, os homens aprendem, apropriam-se de conhecimentos, etc.
A outra face do mesmo processo consiste em modificações que de modo nenhum são «exteriores», que, pelo contrário, têm um efeito profundo e modificam «interiormente» todo o ser anterior do homem e que, em comparação com as modificações que referimos primeiro, se operam rapidamente. Uma observação atenta permite que nos apercebamos desta face do processo único de desenvolvimento e que fixemos o momento em que estas modificações têm lugar. Este é o início de uma fase nova da vida - por exemplo, o início da vida adulta.
Vemos que as duas faces deste processo único de desenvolvimento se substituem e sucedem uma à outra, que uma só pode concretizar-se depois de a outra ter para isso criado os pressupostos. Todo o processo de desenvolvimento consiste não numa ou noutra destas duas faces, mas na sua unidade. É já no seio do velho que nasce o novo.
Até aqui falamos do desenvolvimento do homem. Será uma particularidade característica apenas do desenvolvimento humano o facto de nele serem perceptíveis duas faces diferentes?
Não precisaremos de procurar muito tempo para descobrirmos em toda a natureza que nos rodeia estas duas faces em todos os processos de desenvolvimento. Encontramo-las no desenvolvimento de todas as plantas: o botão começa por crescer e engrossar, mas continua a ser sempre um botão, mesmo enquanto se vai tornando cada vez maior.
Por fim, estas modificações são substituídas por outras que introduzem uma nova etapa de desenvolvimento: do botão surge a flor, e esta abre.
Encontramos as duas faces do processo único de desenvolvimento também no desenvolvimento da sociedade humana. A face gradual, em parte dificilmente conhecível, e evolutiva do desenvolvimento dura, muitas vezes, decénios ou séculos, até ser substituída repentinamente por uma profunda transformação revolucionária, pelo «salto» de uma ordem social velha para uma ordem social nova, pela transformação de uma qualidade velha numa qualidade nova.
Não se trata de um fenómeno acessório e acidental, mas de um fenómeno essencial e irresistível de todo o desenvolvimento real. Quem acreditar que o desenvolvimento é o mero crescimento gradual de uma coisa, sem «saltos», «catástrofes», «revoluções», etc., ou seja, a mera alteração quantitativa de uma coisa, nunca pode esperar o aparecimento de um fenómeno novo. Para tal pessoa nada aparece nem desaparece. Ou seja, tal pessoa nega o desenvolvimento. Sobre isto escreveu Hegel, correctamente: «Sendo o aparecimento gradual, tem-se a noção de que o que vai aparecer já tem existência sensível, ou, de algum modo, real, e que só pela sua pequenez ainda não é perceptível, do mesmo modo que, sendo o desaparecimento gradual, o não ser ou o diferente que vai surgir em seu lugar já tem igualmente existência, só que ainda não se dá por ele. [...] Deste modo se suprime o aparecer e o desaparecer.[...]»(7) O que vai aparecer ou desaparecer aumenta ou diminui, é certo, mas já lá está desde o princípio e fica até ao fim. A alteração aqui é só diminuição ou aumento, mas não é devir e desaparecer. Se se interpreta o desenvolvimento apenas como crescimento, apenas como evolução, na verdade nem há lugar a que se fale de desenvolvimento. Sem a «transição qualitativa de alguma coisa para uma coisa diferente» não há desenvolvimento(8).
Vemos, pois, que na natureza e na sociedade a mudança qualitativa se prepara, no desenvolvimento, através de alterações quantitativas que se vão operando gradualmente. Em comparação com as modificações quantitativas, que decorrem gradualmente, a alteração de qualidade realiza-se relativamente depressa. Por isso se fala de uma transformação qualitativa, ou de um «salto para uma qualidade nova», e ás vezes também simplesmente de «salto» no desenvolvimento.
É evidente que, com a mudança de qualidade, o desenvolvimento não se interrompe. A mudança de qualidade logo prepara, no processo de desenvolvimento, novas alterações quantitativas. As alterações qualitativas e quantitativas sucedem-se ininterruptamente no processo de desenvolvimento.
Se nos metermos a fundo nesta lei dialéctica, reconheceremos - e este reconhecimento será ainda aprofundado quando, no próximo caderno desta série, examinarmos a lei da unidade e da luta dos contrários como força motora do movimento e do desenvolvimento - que só pode haver desenvolvimento, devir e desaparecimento se tiver lugar a transformação de processos e fenómenos quantitativos. Se não fosse assim, o «desenvolvimento» esgotar-se-ia na diminuição ou no aumento do que já existe. Falaríamos então de um mero círculo, de repetição, mas nunca de desenvolvimento. É por isso que a dialéctica é a doutrina mais profunda e completa do desenvolvimento. Apercebemo-nos disso também quando pensamos que todas as outras doutrinas do «desenvolvimento» fazem começar o processo num momento qualquer do passado pela acção de um primum mobile. Se este primum mobile tivesse movimento, havia ainda que explicar o movimento deste fantasma. Se não tivesse movimento, o desenvolvimento teria de ser explicado a partir do repouso, da ausência de movimento, do seu oposto, portanto. Num caso e noutro, nada se adiantaria, nada se explicaria. A dialéctica é a única possibilidade de explicar o desenvolvimento. Por isso Lénine anotou um dia, com toda a razão: «As duas concepções fundamentais (ou as duas possíveis? ou as duas que podemos observar na história?) do desenvolvimento (evolução) são: desenvolvimento como diminuição e aumento, como repetição, e desenvolvimento como unidade dos contrários (cisão do uno em contrários que mutuamente se excluem e a relação recíproca entre estes).
«Na primeira concepção do movimento o automovimento, a sua força motora, a sua fonte, o seu motivo, ficam na sombra (ou então esta fonte é transferida para algo exterior - Deus Sujeito, etc.). Na segunda concepção a atenção principal dirige-se precisamente para o conhecimento desta fonte do "auto" movimento.
«A primeira concepção é morta, pobre, seca. A segunda é viva. Só a segunda fornece a chave para a compreensão do "automovimento" de tudo o que existe; só ela fornece a chave para a compreensão dos "saltos", da "interrupção da continuidade", da "transformação no oposto", da aniquilação do velho e do aparecimento do novo.»(9)
As alterações quantitativas e qualitativas formam, no processo do devir e do desaparecer na natureza e na sociedade, as duas faces de uma mesma realidade.
A face das modificações quantitativas é designada, na filosofia marxista-leninista, por evolutiva, a das mudanças qualitativas por face revolucionária, Evolução e revolução -em todo o devir e desaparecer encontramo-las como marca distintiva imprescindível da superação do que é velho e ultrapassado e do nascimento do novo, do que está em crescimento. Formam as duas uma unidade inseparável no processo do desenvolvimento. Nem a face evolutiva nem a face revolucionaria do desenvolvimento existem por si sós, divorciadas uma da outra.
Conhecer este facto é de grande importância para a compreensão de todo o devir e desaparecer em curso no mundo.
E sublinhamos este facto com uma ênfase particular porque não são poucos os filósofos burgueses que, falando ou escrevendo sobre o devir e o desaparecer, procuram a todo o custo nada dizer sobre ele, ou contestar a sua correcção. São sobretudo teóricos burgueses da sociedade que defendem, mais ou menos abertamente, a velha ordem capitalista. Afirmam que na natureza, mas sobretudo na sociedade, só há evolução, só há crescimento quantitativo do que já existe. Negam que em qualquer processo de desenvolvimento acabem por surgir, de um salto, novas qualidades, e que, deste modo, a evolução se transforme em revolução.
Por isso afirmam que as revoluções sociais que atacam a ordem social burguesa não passam de estados anormais, de sintomas de uma doença no organismo da sociedade humana que urge combater, tal como o médico combate a doença para defender a vida. Procuram assim incutir aos homens medo e aversão a transformações sociais revolucionárias.
Mas a realidade da vida social não se rege pelos desejos dos defensores do grande capital. A realidade desta vida é regida pelas grandes leis de todo o devir e desaparecer que nada nem ninguém conseguem eliminar. Segundo estas leis, as revoluções surgem regularmente no processo de desenvolvimento. Não são nem sintomas de uma doença da sociedade nem produtos das intrigas de quaisquer agitadores ou agentes da subversão. Marx chamou às revoluções sociais as locomotivas da história.
É em resultado da sua acção que a sociedade humana avança. Todas as relações sociais estão sujeitas ao avanço contínuo da história, o qual é regido por leis gerais universalmente válidas.
Mas tudo isto tem também uma segunda face, que muitos «radicalistas de esquerda», principalmente entre os estudantes, não sabem ou não querem compreender: não nega o desenvolvimento real apenas aquele que só reconhece a face quantitativa do processo, nega-o também aquele que em todo o devir só vê ou exige mudanças qualitativas e revoluções em toda a parte e que rejeita as reformas. Não há cortes bruscos, saltos ou revoluções que não tenham sido previamente preparados. Acreditar que o homem teria podido surgir sem conexões evolutivas com o restante reino animal, como que sem «preparação prévia», da noite para o dia, do nada, seria acreditar em milagres. A opinião de que entre o socialismo e todas as sociedades de exploração que o precederam existe apenas um grande abismo é aventureirista. O socialismo não destruirá a técnica criada penosamente em todas as ordens sociais precedentes (pelo facto de, com a sua ajuda, terem sido explorados ou mortos nas guerras muitos homens), assim como não destruirá os grandes bens culturais criados durante o feudalismo ou o capitalismo numa «revolução cultural» (pelo facto de terem servido as classes exploradoras).
O desenvolvimento real, bem pelo contrário, tem de respeitar as duas faces do processo único de desenvolvimento: a quantitativa, ou evolutiva, e a qualitativa, ou revolucionária. Esta é uma lei geral objectiva, isto é, independente dos nossos desejos e da nossa vontade, de todo o devir e desaparecer na natureza, na sociedade e no pensamento humano. Isto significa que esta lei geral objectiva actua mesmo quando dela não temos consciência. É, portanto, acientífico não vermos as coisas, os fenómenos e as tarefas políticas, na apreciação que deles fazemos, na sua conexão quantitativa e qualitativa, evolutiva e revolucionária.
Quem, por exemplo, só reconhece na política a forma evolutiva do desenvolvimento comete um erro tão basilar como aquele que a todo o momento só vê ou quer «fazer» revoluções. No primeiro caso temos a prática política do oportunismo de direita, no segundo caso temos a prática política de um radicalismo de «esquerda» aventureirista, ou de um putschismo. Enquanto os primeiros se querem contentar com a introdução de alterações, ou reformas que não saiam do âmbito da ordem vigente, ou seja, querem lavar o carneiro sem lhe molhar a pele, os segundos querem matar o carneiro ainda antes de o apanharem: desejam «queimar» todo o longo e duro processo de educação e conquista das massas na luta por reformas.
Sintetizemos, à maneira de conclusão: as pequenas modificações quantitativas, que a princípio mal se notam, conduzem, por fim, somando-se gradualmente umas às outras, a mudanças qualitativas, pelo que as próprias coisas se transformam completamente e do velho nasce o novo.
Ficamos aqui a conhecer uma lei muito importante do desenvolvimento, uma lei que rege tanto o mundo material como o nosso pensamento. O conhecimento desta lei permite-nos explicar o modo como se processa o desenvolvimento das coisas e dos fenómenos do mundo material e do pensamento.
Apesar de muito importante, o conhecimento desta lei ainda não nos oferece uma compreensão real dos processos de desenvolvimento; responde apenas à nossa pergunta sobre o como do curso do desenvolvimento. Se quisermos adquirir conhecimentos mais profundos dos processos de desenvolvimento teremos de nos voltar, antes de mais, para a questão das forças motoras do desenvolvimento. É o que vamos fazer no próximo caderno desta mesma série.
Notas de rodapé:
(1) Anos 60/70 do século XX (retornar ao texto)
(2) F. Engels, Anti-Dühring (retornar ao texto)
(3) F. Engels, Dialéctica da Natureza (retornar ao texto)
(4) Hegel, A Ciência da Lógica (retornar ao texto)
(5) Hegel, A Ciência da Lógica (retornar ao texto)
(6) Hegel, A Ciência da Lógica (retornar ao texto)
(7) Hegel, A Ciência da Lógica(retornar ao texto)
(8) Hegel, A Ciência da Lógica (retornar ao texto)
(9) V. I. Lenine, Werke, t. 38, Berlim, 1971, p. 399. (retornar ao texto)
Inclusão |