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Primeira Edição: A série de documentos intitulada "Aonde Vamos?", de autoria de Eric Sachs, circulou pela primeira vez em edição mimeografada entre abril e julho de 1967, como documentos de discussão interna da organização Política Operária. A série é composta por quatro partes: I - Aonde Vamos?; II - As Causas do Reformismo; III - Governo de Transição; IV - Foco e Revolução. As partes I e IV foram divulgadas assinadas pelo CN (Comitê Nacional) da Polop. As duas outras foram assinadas por Ernesto Martins, um dos pseudônimos utilizados por Eric Sachs em seus escritos clandestinos. Juntamente com o "Programa Socialista para o Brasil", o trabalho teve um importante papel na divulgação das idéias socialistas entre as várias tendências da esquerda revolucionária brasileira, principalmente entre as Dissidências que surgiram da luta interna no PCB a partir de 1966. As três primeiras partes do trabalho foram posteriormente incluídas na coletânea de textos do autor, publicada em edição póstuma, intitulada "Qual a herança da revolução russa e outros textos", Belo Horizonte: SEGRAC, 1988. Todavia, tal versão incorporou uma série de imprecisões de redação, por falha de revisão. A presente versão eletrônica, englobando as quatro partes, foi digitalizada e revisada em fev./2009 a partir de cópia mimeografada da época da publicação original. As notas de pé de página são do Centro de Estudos Victor Myer, exceto onde indicado. Fevereiro, 2009. Os editores.
Fonte: Centro de Estudos Victor Myer.
HTML: Fernando Araújo
Organizar o proletariado industrial
Parte II - As Causas do Reformismo
Colaboração à base da inflação
Parte III - Governo de Transição
As Origens do "Governo de Transição"
O Governo Revolucionário dos Trabalhadores
A experiência latino-americana
O presente debate, travado na organização sob o signo do segundo aniversário do golpe militar, cai numa fase em que as primeiras reações emocionais já passaram e começamos a pagar o preço da adaptação às condições de existência clandestina. A discussão não se limita ao material escrito e publicado; de certo modo domina a vida intelectual da organização e dos quadros, e se coloca o problema das perspectivas da luta e do nosso papel nos acontecimentos. Nesse sentido, o debate é um fenômeno quase latente numa organização revolucionária que discute as tarefas, a tática e as estratégias a longo prazo em todas as mudanças da situação objetiva. Parece-nos, entretanto, que ele tem mais significado ainda no presente momento, para nós e para toda a esquerda, em virtude da necessidade de uma reformulação da luta pela emancipação política e social das massas trabalhadoras, levando em conta os ensinamentos da derrota sofrida e a experiência da ditadura militar. Além do mais, precisamos partir da premissa que não podemos julgar o papel da nossa organização, sem analisar a realidade na qual surgimos, a qual continuaremos ligados por laços e contradições e que, representa o nosso campo de atividade. Não podemos deixar de lembrar, pelo menos sumariamente, a situação gerada antes de entrar nos problemas particulares.
Hoje, passados dois anos, a esquerda continua omissa na crise que surgiu no seio da ditadura militar, a qual se limita a conflitos entre facções das classes dominantes — os sustentáculos do golpe de abril. Reduzida a grupos conspirativos, participa precária e dispersamente de campanhas e movimentos estudantis. Os remanescentes da esquerda tradicional e do antigo movimento de massas se mostram incapazes de apresentar aos trabalhadores uma perspectiva viável de luta. Qualquer tentativa neste sentido significaria justamente um rompimento com suas tradições de reformismo e revisionismo. Enquanto não se mostrarem aptos para uma autocrítica, para um exame sistemático de experiência revisionista, continuarão traumatizados pelos acontecimentos não compreendidos e não dirigidos. Se a esquerda não superar em fase e não se reorganizar, à base de uma autodepuração política, não terá o que oferecer às massas trabalhadoras e vegetará no subsolo de uma clandestinidade passiva, procurando alimentar-se com as esperanças de que as dissensões entre os golpistas levem à “redemocratização” do país. Sofrerá, portanto, todos os desgastes físicos e morais característicos de uma ilegalidade prolongada quando as forças da oposição se sentem condenadas à impotência. Enquanto não romper ostensivamente com este passado reformista, será incapaz de liderar as massas oprimidas na luta contra a ditadura e seus sustentáculos. E sem a mobilização das legiões de trabalhadores da cidade e do campo não há força neste país que possa derrubar os senhores da “abrilada”, evitar que novas facções rivais substituam os atuais expoentes gastos da ditadura, ou impedir que a gorilada encontre finalmente o seu “King-Kong”.
Esta situação é uma consequência dos acontecimentos de abril. Mas muito mais grave do que o revés em si foi o modo de sofrê-lo. A esquerda não foi vencida por forças superiores, num combate em campo aberto. Se assim fosse, não teria sido tão desastroso. Fato é que não houve luta. Não houve resistência. Houve capitulação e debandada. A derrota foi antes de tudo política.
Porque chamamos esta derrota de política? É evidente que toda derrota de movimento trabalhador, mesmo se houver resistência armada, tem um aspecto político.
No nosso caso, entretanto, a orientação política impediu a resistência. A diretriz anterior da esquerda, levada a cabo durante anos, impediu que, no momento da crise, as massas trabalhadoras pesassem nas relações de forças e alterassem o destino político do país. Nem sempre é preciso, nas lutas de classe, a arma a ser disparada. Vimos a diferença em 1961, quando o operariado desarmado soube opor à tentativa de ditadura militar uma resistência surda mas eficiente; quando sua atuação no Rio Grande do Sul, repercutindo em todo o país, influiu decisivamente sobre o comportamento do Exército, fazendo a gorilada recuar. Nos três anos que se seguiram, desde então, a esquerda se desgastou, chegou a um beco sem saída e, em 1964, com suas energias vitais ruídas, não estava mais em condições de ensaiar novas façanhas, nem mesmo a resistência no Rio Grande do Sul. E aí chegamos a essência do problema. Tudo isto se tinha dado, apesar de se ter verificado uma expansão do movimento sindical, um novo crescimento numérico do Partido Comunista, a realização de comícios-monstros e inéditos da esquerda nas grandes capitais, apesar da vitória eleitoral no nordeste das “alianças” e “frentes” que se multiplicavam no cenário nacional e apesar da efetiva radicalização das massas.
Muito já se tem escrito sobre o assunto, antes e depois do debate. Nós mesmos tratamos detalhadamente das diversas fases de capitulação, discutindo as suas implicações e lançando advertências. Não são estes detalhes que desejamos discutir aqui. O que nos interessa são as causas mais profundas da derrocada.
Toda luta que travamos, desde o nosso surgimento como organização política foi pela independência do movimento operário brasileiro, contra a sua submissão à liderança burguesa. Tivemos de repetir tantas vezes este grito de guerra no decorrer do tempo, que as palavras talvez já tenham perdido sentido para muitos de nossos companheiros.
Em que consistia a tutela burguesa sobre o movimento operário? Consistiu na renúncia voluntária da liderança oficial da esquerda (PC e sindicatos) de defender os interesses específicos do proletariado industrial e agrícola dentro da sociedade burguesa-latifundiária, pois a defesa consequente destes interesses teria levado, no atual estado das contradições, a uma luta contra esta sociedade. Esta tutela só foi possível na prática, porque a liderança da esquerda se omitiu conscientemente, combatendo qualquer tentativa de esclarecer as massas trabalhadoras sobre o verdadeiro caráter de classe do Estado, do governo, do Exército, dos partidos políticos, substituindo a agitação e propaganda comunista por uma linguagem de populismo e nacionalismo. O proletariado não sabia mais distinguir onde estavam os seus amigos e inimigos. Tudo foi feito em troco de uma pretensa aliança anti-imperialista com a burguesia nacional. “A aliança” revelou ser um fenômeno unilateral e se resumia em meros apoios a facções da classe dominante. A burguesia nacional, em torno da qual foi criado um mito nacionalista, colocada entre a alternativa da revolta dos marinheiros e do golpe militar, não hesitou em escolher o acerto com o imperialismo. Quem pagou a conta foi o proletariado e os camponeses, que estavam então enfrentando uma realidade nacional completamente diferente daquela pregada durante anos pelos ideólogos da esquerda oficial. E, quando se deram conta da situação, tiveram de descobrir que tinham sido sistematicamente desarmados para enfrentá-lo no momento decisivo.
A que se deve esta auto-alienação da esquerda na luta de classes? Sabemos que se trata de uma orientação internacional. Desde os tempos de Stalin está em voga as burguesias “progressistas” e “nacionalistas” nos quatro cantos do mundo. Esse fato exerceu uma influência decisiva, sem dúvida, mas para o nosso caso a explicação não satisfaz inteiramente. A fim de superar este passado, no nosso país, temos de colocar o problema mais concretamente: porque esta esquerda, por intermédio de sua liderança, aceitou esta orientação externa durante tanto tempo, com todas as consequências até a derrota — e, em grande parte, ainda persiste nesta orientação?
Tomemos a última etapa da orientação revisionista, que se deu sob a ênfase do nacionalismo. Foi com esta sigla que se pregou mais uma vez a aliança do proletariado com setores da burguesia (tão ampla que chegou a abranger San Thiago Dantas), que se apoiou nas diversas políticas econômicas desenvolvimentistas (empurrando o ônus da expansão e da retratação industrial sobre as costas largas do proletariado) e que se entregou novamente as massas a Jango.
O berço natural deste nacionalismo se encontra na pequena-burguesia, na classe média. E foram de fato os seus representantes que levantaram a bandeira, que tomaram a iniciativa. Foi no ISEB(1) onde os ideólogos pequeno-burgueses esquerdizantes (e às vezes ex-integralistas) recomendaram uma política econômica para a burguesia nacional, criando a ficção da oposição do capital indígena à instrução 133. Sua influência não se limitava, entretanto, às instituições acadêmicas, pois aí afora, na liderança política e sindical, começavam a encontrar aliados pregando aos operários de fábrica que o quanto mais pacificamente apertassem o cinto, mais perto estaria a soberania do país.
Com a adesão programática do PC ao nacionalismo, que se deu na época da visão do grupo Agildo Barata — cuja oposição ao CC esvaziou, aceitando sua plataforma — essa variante da ideologia pequeno-burguesa foi oficializada pela esquerda. Por uns tempos não houve discordâncias visíveis,— já que as demais correntes, tanto socialistas, Ligas e brizolistas, falavam a mesma linguagem. A oposição se limitava ao âmbito literário, aos grupos em torno da revista “Movimento Socialista” e outras publicações esparsas.
Esse aburguesamento da ideologia do partido operário existente — o PC — atrasou sensivelmente o processo natural da formação de uma classe operária independente. O fenômeno surgiu numa fase decisiva em que o jovem proletariado começava a tornar consciência de sua situação e a ensaiar as suas primeiras greves gerais, a querer fundar sua central sindical nacional a se libertar da herança getulista. Se nessas circunstâncias a política reformista pode chegar ao seu auge, foi devido ao completo esvaziamento do PC como órgão revolucionário — cujos quadros superiores do partido provem de duas fontes principais: uma minoritária, que ingressou durante a campanha da Aliança Nacional Libertadora; e a outra maior, que veio com o fim da guerra, quando o partido se expandiu rapidamente no seio da classe média na onda da “vitória da democracia sobre o fascismo”. Por ocasião da ANL, o Partido absorveu grande parte dos aliados, e a então inexistência de um grande proletariado industrial aumentou consequentemente a importância numérica dos quadros da classe média. Em 1945, as portas ficaram abertas à pequena-burguesia radicalizada, cujos elementos foram enquadrados no Partido, aceitando a rígida disciplina interna, todavia, fez com que esses pequeno-burgueses não participassem — e nem tinham ocasião para isso — de libertar-se das heranças ideológicas de sua classe, levando-as para dentro do Partido.
Queremos salientar que essas considerações sobre a orientação dos quadros e direções pequeno-burguesas não são motivadas por um hábito polêmico frequentemente encontrado em discussões no próprio Partido, quando os companheiros se acusam mutuamente de “pequeno-burgueses”. Trata-se de fatos que tem as suas origens no papel tradicional que uma fração da classe média radicalizada desempenha na vida do país — problema que nos ocupará ainda. A verdade também é que esses elementos entraram no Partido que se propunha realizar uma duvidosa revolução “burguesa-democrática”, que não fazia nenhuma propaganda socialista (a não ser do socialismo em outros países) ou anti-capitalista para as massas operárias. A estratégia e a tática desse partido, sua mentalidade para “alianças” e “apoios” ia ao encontro das concepções pequeno-burguesas. Queremos lembrar que a pequena-burguesia é um produto social e histórico da sociedade burguesa e que, apesar de todas as mudanças sofridas, conserva as características de classe já descritas por Marx, que dizia:
“Não se deve tampouco, que os representantes democráticos sejam na realidade todos merceeiros, ou defensores entusiásticos, desses últimos. Segundo a sua formação e posição individual podem estar tão longe deles como o céu da terra. O que os torna representantes da pequena-burguesia é o fato de que sua mentalidade não ultrapassa os limites que aquela classe não ultrapassa na vida, é o fato de que são consequentemente impelidos, teoricamente, para os mesmos problemas e soluções para os quais o interesse material e a posição social impelem, na prática, pequena-burguesia. Esta é em geral, a relação que existe entre os representantes políticos e literários de uma classe e a classe que representam”.
Outra característica da ideologia pequeno-burguesa (tanto da esquerda como da direita) é o populismo. Pedimos paciência aos companheiros para prolongar a citação de Marx, que resume experiências da luta de classe na França, no século passado. Diz o autor do “18 de Brumário de Luis Bonaparte”.
“Mas o democrata, por representar a pequena burguesia, ou seja, uma classe intermediária, na qual os interesses de duas classes simultaneamente a agudeza, imagina estar acima do antagonismo de classes em geral. Os democratas admitem que se defrontam com uma classe de privilegiados, mas eles, como todo o resto da nação, constituem o ‘povo’... Por isso, quando um conflito está eminente, não precisam analisar os interesses e as posições das diferentes classes. Não precisam pesar seus próprios recursos de maneira demasiado crítica. Tem apenas de dar o sinal e o povo, com todos os seus inexauríveis recursos cairá sobre os opressores. Mas se na prática seus interesses mostram-se sem interesse e sua potência, impotência, então, ou a culpa cabe aos sofistas perniciosos, que dividem o povo indivisível em diferentes campos hostis, ou o exército estava por demais embrutecido e cego para compreender que os puros objetivos da democracia são o que há de melhor para ele...”
Não pretendemos substituir análise da sociedade brasileira por citações dos mestres, mas não podemos deixar de ressaltar o denominador comum que os marxistas encontram frente à classe média, em países e épocas diferentes. A pequena burguesia é uma classe intermediária, em todas as circunstâncias oferecidas pela sociedade burguesa. Sua ideologia é alimentada pela sua condição material. De um lado, mesmo na situação assalariada ela vive às custas da mais valia produzida pelos operários industriais, de outro lado, é vítima da política econômica do capitalismo. O fato de não fazer parte dos pólos da sociedade burguesa — proletariado e grande burguesia — leva-a, em todas as situações, a negar a importância fundamental que esta contradição exerce na sociedade, tanto na escala nacional quanto internacional. Enquanto pode, resiste a uma ação de classe independente do proletariado, pois essa se choca com seus interesses materiais dentro da sociedade burguesa. Só adere ao movimento proletário em fases de radicalização depois de sua consumação. Abandona-o de novo nos momentos de recessão da onda radical, procurando, de um ou outro modo, retornar a função de tutor do povo inteiro.
O que é fundamentalmente novo na evolução da pequena-burguesia, de Marx para cá, é o aumento percentual de sua parte assalariada. Por outro lado, o surgimento de um movimento proletário moderno e de países socialistas no mundo, tornou permanente o fenômeno de uma pequena-burguesia esquerdista; porém, o fato de falar frequentemente uma linguagem quase marxista, não a deixa de ser pequena-burguesia. Seu vício é “ampliar” o marxismo — tentando adaptá-lo às suas necessidades materiais — seja no campo filosófico (pelo existencialismo, depois das experiências neo-kantianas e machistas) seja no terreno das reformas sociais (onde os objetivos finais são abandonados em favor de concessões imediatas), ou seja na política diária onde “a tática determina a estratégia” (como diria um amigo muito chegado que esquece todavia que Bernstein já pregou que “as metas nada valem, o movimento é tudo”). Do mesmo modo que os representantes esquerdistas da pequena burguesia falam pelo povo inteiro, eles pretendem naturalmente, representar a sua classe inteira ou, dependendo das circunstâncias, criar a ficção de harmonia de interesse entre proletariado e classe média. Nós nos lembramos do fato palpável de que os comícios da “Marcha pela Família” eram sempre mais numerosos que as manifestações da esquerda em praça pública.
Essas ilusões pequeno-burguesas dominam não só a esquerda oficial, como também o próprio proletariado. Isso foi facilitado por diversos fatores; em primeiro lugar, pela juventude de nosso proletariado industrial que nasceu dentro do protecionismo criado pelo Estado Novo. Em segundo lugar, pela situação reinante após a guerra, no cenário internacional, onde entre outros fatores o mercado mundial capitalista conheceu uma fase prolongada de prosperidade que repercutiu igualmente sobre a conjuntura interna do país. Decisivo, todavia, foi a falta de uma vanguarda marxista-leninista bastante forte para poder dar uma consciência revolucionária ao proletariado brasileiro na luta diária e na ideológica, contra os diversos matizes do pensamento pequeno-burguês reinante.
Com a desistência do Partido-Comunista de exercer um papel revolucionário, criou-se um vácuo na vida política do país, que começou a se fazer sentir materialmente. O prolongado reformismo, praticado desde o fim da guerra tinha desgastado os alicerces ideológicos e organizatórios do Partido. Dos 20 mil membros registrados em 1946, restaram 4 mil em 1963 — conforme dados fornecidos pelo CC. O que vimos todavia antes do golpe foi que levaram 6 meses para reunir 50 mil assinaturas, numa tentativa de legalizar o partido. Este perdera a confiança dos trabalhadores que, confusamente, experimentaram votar nos candidatos burgueses “menos-maus”.
A situação criada não ficou sem reação. A radicalização das massas, provocada pela mudança econômica, repercutiu dentro do Partido e dos sindicatos. No PC começou a luta interna tardiamente, mas que ainda não está terminada e que fornece perspectivas reais de reagrupamento de quadros revolucionários.
Igualmente tarde verificou-se uma polarização dos radicais, fora do partido, na Frente de Mobilização Popular e nos Grupos dos 11. Tratava-se de um processo liderado pela classe média, mas que, a prazo maior, teria rompido essas limitações. O golpe interrompeu esse amadurecimento político dos inconformados. Os melhores entre eles, os sargentos, não tinham chegado a ultrapassar o raciocínio da conspiração.
Acima de tudo havia o crescente radicalismo das massas, que no momento crítico inundou o cenário da política nacional com a confraternização dos operários e marinheiros no Sindicato dos Metalúrgicos. Foi uma atitude espontânea e impetuosa que escapava ao controle das organizações e que não encontrava um partido; na hora da crise as lideranças pequeno-burguesas desapareceram — a proletária ainda não tinha surgido.
A luta pela independência do movimento operário continua na ordem do dia. No quadro do desenvolvimento geral que o país percorreu desde a liquidação do Estado Novo, quem menos se beneficiou politicamente foi a classe operária, quem mais ficou atrasado foi a esquerda que a liderou. Comandada por uma geração formada praticamente antes da grande expansão industrial que se deu entre nós, a esquerda oficial não sabia o que fazer com o novo proletariado. Quem primeiro reconheceu — paradoxalmente — a importância da classe operária no país foi a burguesia industrial, que a usou para seus fins. Mas só o pôde fazer em virtude do acerto tático da cúpula política e sindical que dominou o movimento dos trabalhadores.
Hoje novamente encontramos a resistência pequeno-burguesa dominando amplos setores da esquerda que, em nome da “unidade mais ampla”, recomenda deixar para amanhã as reivindicações, objetivos e os métodos da luta proletária. “Primeiro restabelecer a democracia” eis a palavra de ordem deles. “Os direitos”, “a Justiça”, “a Constituição” — eis as categorias com que operam. Pouco se importam com uma análise de classe da sociedade brasileira, com os alicerces materiais dessa “democracia” que pretendem restabelecer. A argumentação deles, todavia, é suspeita. A luta do proletariado tem seus altos e baixos e a experiência mostra que a vitória final é conseguida às custas de muitas derrotas parciais. Em nossa situação, especificamente, a incapacidade da burguesia de resolver os problemas sociais com métodos democráticos fará com que ela apele com maior intensidade à violência, à ação do exército. É esse um dos efeitos do aguçamento das lutas de classe entre nós. A industrialização criou um proletariado, com todas as suas implicações políticas e sociais. Querer que esse proletariado, após cada revés sofrido, desista de suas reivindicações de classe e dos objetivos seus é empregar um desenvolvimento às avessas para as massas trabalhadoras.
Por que nossa preocupação específica com o proletariado brasileiro? Que entendemos, afinal por movimento operário independente?
Embora os companheiros possam estranhar, o debate desse problema neste lugar — trata-se do próprio B-A-BÁ do marxismo militante e da razão de ser da organização — não deixa de ter atualidade em virtude do contraste entre teoria e prática reinante na maioria da esquerda.
Em primeiro lugar, temos que deixar claro que a nossa identificação com a classe operária não se deve a questões sentimentais. Não estamos promovendo simplesmente a defesa de uma tradição socialista nascida no velho mundo. Nem tampouco estamos empenhados em defender ou melhorar a sorte dos pobres, humildes, e injustiçados. Dentro da sociedade burguesa-latifundiária, os operários de fábrica não são os menos favorecidos economicamente. Chega-se a verificar inclusive, que dentro da classe operária, as camadas mais combativas não são forçosamente as de nível salarial mais baixo. Os melhores organizados, cuja luta já deu resultados, são os mais conscientes, embora possam ter um padrão de vida mais alto. O que vemos no proletariado é a maior receptividade à doutrinação consequente, em virtude de sua situação objetiva na produção capitalista, e, concretamente, no papel que já desempenha na sociedade brasileira. É o mais receptível porque a doutrinação socialista vai ao encontro não só dos anseios de emancipação de sua classe a longo prazo, como lhe explica igualmente sua existência dentro da sociedade capitalista, sua luta pela sobrevivência.
O proletariado conhece duas fases fundamentais na sua luta: a da resistência contra a exploração capitalista, processo que forma a classe politicamente e que lhe dá a consciência para enfrentar a tarefa maior, a da superação da exploração, a conquista do poder. O proletariado é a única classe que não pode colocar a questão de redistribuir a propriedade dos meios de produção. Não pode querer dividir as indústrias, para criar pequenos proprietários independentes. Para se libertar, tem de coletivizar os meios de produção, emancipando toda a sociedade. É essa base material de sua existência que a toma apta para uma consciência socialista e revolucionária. É essa uma das primeiras conclusões que Marx e Engels tiraram quando elaboraram uma concepção materialista da história, e é esse também o fio da meada que a revolução do marxismo revolucionário percorre desde suas origens até os nossos dias.
Em segundo lugar, queremos lembrar, que não estamos idealizando o proletariado, nem pretendemos transformar as suas falhas em virtudes, como já aconteceu na história das lutas sociais no Brasil no tempo dos “obreiristas”. A experiência mostrou, e os fundadores do marxismo-leninismo ressaltaram este fato por diversas vezes, que o proletariado dificilmente chega por si próprio a uma consciência socialista. Sua ação espontânea dentro da sociedade burguesa originalmente se desenrola em padrões burgueses. Trata-se de reivindicações salariais e sindicais, que por si só não passam de uma tentativa de melhorar ou defender um nível de vida e que, quando travados com finalidade em si, dão origem ao reformismo. A premissa verdadeiramente revolucionária para a formação de classe do proletariado é dada pela argumentação socialista trazida por propagandistas e agitadores e preparada por teóricos vindos de outras classes, da pequena-burguesia e da própria burguesia. Essas teorias, na medida em que “penetram nas massas, se tornam força material” mudando a posição e a atitude da classe operária.
E aí voltamos à atuação dos quadros originários da pequena-burguesia. A nossa crítica anterior não vinha provar que eles não tinham papel na formação política do movimento operário. Criticamos e combatemos um determinado papel que estavam desempenhando: o de levar para dentro da classe operária e do movimento comunista a ideologia da classe média. Isto não quer dizer, todavia, que o movimento operário possa dispensar quadros vindos de fora.
Trata-se de um fenômeno que não é novo nas lutas da classe em geral. A classe oprimida tem poucos quadros intelectuais capazes de formular suas aspirações, principalmente no início de sua formação política. Foram representantes da antiga nobreza que primeiro formularam a concepção da emancipação da burguesia. Processo semelhante se deu com o surgimento das teorias socialistas. Essas foram trazidas ao movimento obreiro por intelectuais revolucionários provenientes da classe média, que se libertaram dos antolhos de seu meio social. Essa gente deixou de fato de pertencer às suas classes e se integrou nas lutas dos explorados. Ninguém, seriamente, vai se referir hoje a Marx como sendo em burguês alemão, ou a Lênin, como representante da baixa nobreza russa, para citar exemplos mais conhecidos.
A classe média é tradicionalmente um importante fornecedor de quadros revolucionários e, queremos salientar, continua sendo para nós nas condições específicas do nosso movimento operário. Mas é claro que nem todos os esquerdistas pequeno-burgueses deram o passo decisivo e se integraram ao movimento revolucionário. Ao contrário, a imensa maioria no momento, ainda não mostra tendência para tal.
O que faz, afinal de contas, um pequeno-burguês radical e esquerdizante transformar-se num revolucionário? Acreditamos que nos dias de hoje o único meio, a ponte que encontra, é a assimilação do marxismo-leninismo. Isso pode parecer um lugar comum — mas somente para aqueles que trazem o marxismo-leninismo como um lugar comum. Para nós, é sinônimo de socialismo científico, cujas bases foram elaboradas no século passado e desenvolvidas na época do imperialismo e na experiência revolucionária mundial. Socialismo como ciência exige o conhecimento das leis de desenvolvimento da sociedade, requer um domínio de um método de raciocínio materialista e dialético que permita a compreensão do conjunto do processo da luta de classe e uma análise da situação e do comportamento das classes em cada momento dado. É verdade que a política, com a guerra, é uma arte. Mas, tanto uma como a outra, presentemente, se fundamente em conhecimentos científicos bem sólidos.
O que caracteriza o pensamento pequeno-burguês, como reflexo ideológico de uma classe, é a sua resistência ao socialismo científico que não correspondem às suas necessidades materiais imediatas. O pequeno-burguês quando vai para a esquerda, chega como produto do seu meio e com concepções “herdadas”. Para ele “o povo é bom” do mesmo modo como “é feio um homem lavar a louça na cozinha”. Suas opiniões e princípios têm bases morais e o bom senso (de classe). Não são produtos do raciocínio crítico e científico. Somente o estudo sistemático e o conhecimento da experiência viva da luta de classe libertarão o quadro pequeno-burguês das suas limitações “herdadas”.
Já dissemos que não pretendemos criar uma imagem ideal do operário. Também ele não nasce com conceitos revolucionários mesmo quando é rebelde. Mas tem a vantagem de, uma vez atingido por teorias marxistas, identificar-se com elas verificando diariamente sua justeza dentro do convívio da fábrica. Não é raro, pois, ver operários com relativo pouco conhecimento “teórico” aguentar uma vida de militância e, quando isolado, continuar a lutar de uma ou de outra forma, porque a sua consciência se torna a mola propulsora que os impele para frente. Mais difícil é o pequeno-burguês com lastro intelectual fornecido pela sua classe suportar todos os altos e baixos da maré política, a não ser que tenha dado um salto qualitativo. A prática mostra também que o grau de assimilação do conhecimento do marxismo pelo operário é muito maior do que os nossos intelectuais frequentemente imaginam. Do mesmo modo, como ele é obrigado, no processo moderno de produção, a aplicar conhecimentos básicos de mecânica e similares, é capaz de penetrar nas ciências sociais e na economia quando apresentadas de modo compreensível. Frequentemente o operário compreende mais depressa o que é mais-valia do que o estudante, pois para ele se trata de uma experiência vivida.
Hoje impõe-se criar quadros legitimamente proletários que ajudem com eficácia a levar o marxismo para dentro do seu meio. O despertar da sua consciência é um dos aspectos da tarefa da organização da classe independente.
“Na nossa tática uma coisa é certa em todos os países modernos e em todas circunstâncias: levar os operários à formação de um partido próprio, independente e oposto a todos os partidos “burgueses” — disse Engels numa carta a Kautsky.
Essa ênfase na criação do partido não é gratuita, pois o processo é inseparável da própria formação do proletariado como classe independente. Sem um correspondente organismo político, o proletariado não pode transformar as relações de forças na sociedade burguesa. Nós não podemos fugir do problema sem deixar de ser marxista, sem deixar de ser comunistas na prática.
Não podemos levar a sério a argumentação, aparentemente radical, de que em outros países a revolução foi feita por camponeses e que a classe operária, nessas condições, não tinha o papel que a ela atribuímos. Na China, por exemplo, a revolução agrária pode transformar-se em socialismo devido a fatos históricos e sociais concretos, cuja análise ultrapassa o presente estudo. Essencial é, todavia, o fato de que a sociedade chinesa semifeudal não ter disposto de um proletariado industrial bastante numeroso em relação à população do campo. Em outros países do oriente europeu, a revolução foi realizada, praticamente, pelos exércitos soviéticos: levando-se em consideração este fato, é possível argumentar que podemos renunciar a um processo revolucionário próprio, porque a história mostrou que o povo pode ser libertado da exploração capitalista e imperialista de fora para dentro.
Acontece que nós não renunciamos à revolução e temos que lutar a base da realidade econômica, social e política do país. Esta se caracteriza pela existência do proletariado urbano de mais de três milhões de cabeças que hoje concorre com mais da metade o produto nacional. É este proletariado que tem nas mãos a alavanca da riqueza e que, organizado, liderará no combate contra forças da reação tradicional e do imperialismo e as massas camponesas dispersas. A premissa fundamental é que adquira consciência do seu papel na sociedade; mas é nosso dever despertá-los e alimentá-los constantemente. E esta tarefa exige a concentração de esforços e da energia de todos os verdadeiros comunistas.
Foi a partir dessa conclusão teórica que surgimos no cenário como organização política militante. Surgimos numa fase em que o proletariado brasileiro deu passos visíveis para um movimento de classe independente, originado pela sua resistência espontânea contra a política econômica do governo. As metas políticas da luta, todavia, continuavam confusas. E não podiam deixar de sê-lo, pois a massa operária apesar de toda radicalização não distinguia claramente o caráter de classe do Estado e do Governo, do Exército e do Ministério do Trabalho. Um barômetro visível desse estado de coisas foram os resultados eleitorais. Essa consciência, nem o PC, nem a agitação mais radical de Brizola podiam influir, pois nenhum deles estava empenhado em dar consciência de classe ao proletariado na agitação e propaganda diária. Só assim se explica por que um comício “radical”, como o do dia 13(2), pôde restabelecer a liderança de Jango sobre o proletariado.
Somente um partido revolucionário da classe operária podia ter executado uma ação positiva neste sentido. Mas tal partido não nasce no vazio. Nós não podíamos preencher essa função. Um partido representa uma classe, ou pelo menos uma fração dela. O proletariado, todavia, seguia sob a égide das tradições reformistas criadas no passado e, enquanto essas tradições não entravam em choque aberto com os seus interesses, a classe não se definia por um caminho revolucionário. Ficamos à margem do movimento de massas, e as brechas que conseguimos abrir visavam mais as perspectivas futuras, do que às possibilidades de uma influência direta sobre o desenrolar dos acontecimentos na hora H.
Não era de admirar, portanto, a sensação da impotência que dominou a pequena vanguarda marxista-leninista, reunida na ORM naquela fase crítica. Ela foi a única que avaliou o papel do proletariado nas lutas de classes do país. Os acontecimentos tinham confirmado as suas análises e previsões. Mas, até o instante do golpe, não tinha conseguido vencer a barreira que a separava dos movimentos de massa, dominados pelos reformistas. Continuou uma organização política procurando penetrar na classe operária — estado de coisas que se refletiu inclusive, na composição social dos seus quadros que, em sua grande maioria provinham da classe média.
Sempre tivemos muita vontade de ultrapassar essa etapa. Essa vontade subjetiva se evidenciava nas discussões internas sobre o trabalho de massas, sobre a finalidade de nossa imprensa e em resoluções que decidiam que “até a data tal, teremos tantos por cento de quadros operários”, ou “dentro do prazo X, a organização convocará um congresso de fundação do partido”... etc...
Esse “isolamento revolucionário”, do qual Rosa de Luxemburgo já falou, foi vislumbrado também de outra forma, quando sentimos a impossibilidade de entendimentos com as alas radicais da esquerda, igualmente revoltadas com o reformismo oficial. Foi naquela época que iniciávamos a campanha pela esquerda revolucionária, propondo um denominador comum imediato em termo de um programa de ação. A revolta dos radicais, todavia, não visava enfrentar o reformismo na cidade. Preferia refugiar-se no campo ou na conspiração pura. Se a frente não chegou a se concretizar naqueles tempos (a não ser esporadicamente), é que aquelas correntes tinham concepções ideológicas (ou ambições) diversas. Na prática, ficamos diante do seguinte dilema: ou aceitamos a ideologia pequeno-burguesa e renunciamos a luta por um partido independente do proletariado ou continuamos sozinhos. Apesar das esporádicas tentações de escolher um caminho mais imediatista, fazendo concessões que permitissem uma aproximação com as organizações pequeno-burguesas, nos termos deles e que tiveram diversos porta-vozes entre nós, para a Organização não houve outra alternativa senão continuar sozinha por muito tempo. Foi essa uma das razões porque não fomos arrastados pela desintegração geral dos organismos, antes e depois do golpe. A continuidade do movimento, entretanto, depende de mudanças qualitativas para enfrentar as novas situações criadas. E neste ponto estamos atrasados.
O debate sobre as nossas tarefas e o nosso papel exige um balanço crítico das nossas atividades passadas e da experiência prática colhida.
Quando surgimos, com pequenos grupos de estudantes inconformados com a situação política e a esquerda oficial, todas as energias disponíveis e produtivas se dirigiam então para um auto-esclarecimento, à assimilação dos princípios marxistas e a experiência leninista, e a tentativa de aplicá-los à realidade nacional. Desse modo, conseguimos elaborar uma linha política “em tese” que opusemos ao reformismo e ao revisionismo reinante. Embora tivéssemos feito mais uma tentativa para um apelo direto às massas por meio da agitação e propaganda, o que perdurou daquela fase foi a penetração, nas esquerdas, nas vanguardas existentes, no movimento de massas, das nossas críticas à política de colaboração de classes e de caminho pacífico. Quebramos muitos tabus nacionalistas, atingindo o público por meio de atividade literária, primeiro na imprensa estudantil e, posteriormente, por meio da nossa própria. È verdade que aproveitamos a onda da radicalização provocada pela revolução cubana, cujo desenrolar confirmara as nossas previsões sobre a revolução latino-americana. Mas a experiência de uma revolução não se impõe necessariamente; ela tem de ser interpretada. Nossas posições repercutiram nas áreas mais diversas. A primeira grande discussão no CC do PC teve por base um documento nosso sobre a situação nacional, embora fosse desconhecida sua origem. Dizíamos, naquela época, que “valíamos pelas nossas posições” e na realidade a nossa influência superou muito nossa importância numérica. Se olhamos hoje para trás, comparando as concepções reinantes na esquerda naquele tempo com os debates hoje travados, temos de chegar à conclusão que essa atividade não foi inútil. Atualmente, as nossas diretrizes estão sendo defendidas por dissidências do Partido e aceitas “em tese” ou com “ressalvas” por correntes que naquela ocasião nem teriam dialogado conosco. Toda discussão travada atualmente na esquerda parte de um nível mais alto.
Tivemos de descobrir, todavia, que a eficiência de um mero debate, tem limite, principalmente nas fases de aguçamento das lutas de classe. Embora nossos afazeres no seio da esquerda não tivessem sido esgotados inteiramente, chegamos a conclusão que tínhamos de dar o passo decisivo na luta ideológica à política diária. Impunha-se o exemplo vivo de uma atividade revolucionária para causar mudanças na atitude da esquerda. Não foi de um dia para o outro que descobrimos esse “ovo de Colombo”. Tratava-se para nós de um problema prático, ligado a questões de quadros, recursos e experiência. Enfrentamos o problema com a transformação da PO em jornal que apelava aos organismos de massa — embora não pudesse ser ainda um jornal de massa.
Se bem que a saída do jornal tenha melhorado sensivelmente a nossa situação para enfrentar o golpe e a clandestinidade, o seu tempo de vida legal era curto demais para dar todos os resultados esperados. Permitiu a penetração em alguns setores de massa dessas novas posições, mas não conseguiu sua consolidação. Ajudou a amadurecer a Organização, mas não chegou a mudar sua composição social.
A derrota de abril e a clandestinidade aumentaram automaticamente o peso específico da organização no cenário político; isso se deve menos à nossa expansão e ao nosso fortalecimento de que a debandada do movimento de massa e da esquerda tradicional. É verdade que do ponto de vista político estávamos melhor preparados para enfrentar os acontecimentos do que os reformistas. Nós não tínhamos tido ilusões democráticas. Para nós o golpe não era “um raio vindo do céu azul”. Tampouco era simples produto de “conjuras maquiavélicas de fora”. Sabíamos que as nossas classes dominantes ansiavam por um regime forte para sair do impasse econômico. Embora ficássemos tão atônitos como os demais (até os próprios golpistas) com a absoluta falta de resistência do regime deposto, a ditadura militar não foi uma surpresa para nós. Agora, entretanto, as tarefas colocadas à Organização têm de ser resolvidas em condições de clandestinidade.
Se a ditadura, de certo modo, interrompeu o crescimento da Organização, de outro, tornou mais imperativa uma mudança qualitativa das suas atividades. A organização só podia impor na medida em que tomasse as iniciativas no combate contra o regime do golpe, estabelecido para esmagar qualquer tentativa de movimento independente das massas trabalhadoras.
A fase de adaptação às nova condições foi demorada e de maneira nenhuma está encerrada. No que diz respeito às condições de vida, isto é, a sobrevivência dos quadros na ilegalidade, não há dúvida que se avançou bastante. Mais precária está a situação no que diz respeito às condições de luta. É justamente este aspecto que está em evidência e aqui cabe a autocrítica.
A atividade política da Organização na clandestinidade foi prejudicada principalmente por duas razões. Em primeiro lugar, pelas perdas físicas que sofremos, o que requereu tempo para o reagrupamento e a substituição dos quadros. Em segundo lugar, por imediatismo, que foi reflexo entre nós do estado emocional e o inconformismo reinante nas esquerdas. As preocupações de tomar medidas concretas contra o regime vigente desviaram a atenção da coordenação e do planejamento das atividades organizatórias.
Na medida em que começávamos a enfrentar sistematicamente a realidade criada, sentíamos os pontos fracos que nos amarravam. A nossa deficiência fundamental está no desnível existente entre os quadros, que impede à Organização inteira de ter uma concepção clara dos objetivos e das condições de luta. Esse é o primeiro mal a ser eliminado e, muito mais do que medidas administrativas, deve ajudar o presente debate para atingir o fim. O quadro que não vislumbra perspectivas, também não vê bastante sentido nas suas atividades, não tem o necessário dinamismo e iniciativa e não aguentará por muito tempo os sacrifícios exigidos.
Já sabemos que esta situação, em parte, é consequência da composição social da Organização. O modo de vida e o ambiente em que atuam a maioria dos companheiros faz com que a concepção teórica marxista não passe de pura abstração, pouco relacionadas com os problemas enfrentados diariamente. Para maioria dos nossos militantes, o movimento operário é uma “teorização”, à qual se paga um tributo formal nas resoluções e reuniões de células, mas que está muito afastado da realidade da classe média, onde eles vivem e cujos problemas específicos se impõem por forças da circunstância.
Sabemos que, numa certa fase da organização, esse fenômeno é inevitável, mas a situação se torna perigosa quando se apresentam sintomas de se querer perpetuá-los. Os operários frequentemente têm uma vida à parte dentro do organismo; não só porque constituem uma minoria, como também porque os ranços pequeno-burgueses existentes limitam sua circulação interna e consequentemente sua atividade externa. Todas as nossas resoluções sobre a formação de células mistas (com uma média de 3 estudantes e 7 operários) não foram concretizadas. A inércia de ambiente vence as boas intenções.
Até hoje não conseguimos concentrar forças para superar esse estado de coisas. Ao contrário, notam-se presentemente tentativas teóricas para justificar nossa auto-suficiência, como os recentes documentos de Minas que são uma verdadeira apologia da atuação da classe média na revolução brasileira. Não queremos, todavia, usar os autores dos documentos como bodes expiatórios; o que tentam fundamentar teoricamente é a frequente prática existente em nosso organismo.
O que é mais grave no caso de Minas é o fato de que os companheiros daquela seção estarem em condições privilegiadas para se estabelecerem como organização política operária e realizar na prática uma política operária. Esse fenômeno deve alarmar a todos nós.
Temos de superar essa fraqueza fundamental. Temos que enfrentar o problema com o material de que dispomos, mas só o conseguiremos na medida em que orientamos e preparamos o grosso de nossos quadros para uma atividade revolucionária concreta no meio operário. É verdade que, em parte, trata-se de um problema técnico da preparação e educação dos quadros — sempre deficientes em nós — e em parte dependente da Organização inteira, em todos os seus escalões, tomar consciência das necessidades da luta. Só tomará consciência, se elevar o seu nível político. Também não escapamos do axioma de Marx quando diz que as teorias que penetram nas massas se tornam força material.
A educação dos nossos quadros, todo o sistema de sua formação já não satisfazem mais nessa fase. Temos de extinguir os últimos restos de paternalismo teórico, e de individualismo pequeno-burguês, que no passado encobriu as lacunas da formação política dos militantes. Não é possível que numa Organização que se diz comunista, e que é composta em sua maioria por elementos com instrução secundária, os conhecimentos teóricos não passem de um “Curso Básico”. Não é possível que os estudantes que frequentam e que se formam em universidades queiram assimilar os problemas fundamentais do leninismo em forma de pípulas, em intervalos regulares porque “não têm tempo” ou não sabem ler sozinhos”. As tarefas que se colocam hoje aos agrupamentos revolucionários exigem que se aplique a experiência marxista-leninista a um novo e desconhecido terreno. A doutrina tal como a herdamos da revolução russa já não soluciona mais todos os problemas colocados no momento presente contra o imperialismo mundial. Mas o que se ignora não se pode aplicar nem desenvolver nas novas circunstâncias. Também neste terreno temos de vencer os vícios de amadorismo herdados do passado.
Devemos salientar a continuidade da nossa tarefa fundamental: a de se dispor e defender até as últimas consequências uma orientação e uma linha de ação revolucionária para as massas trabalhadoras do país. A diferença entre a situação de agora e das anteriores, é que essa luta ideológica não se pode mais restringir a uma cúpula de indivíduos pela imprensa legal que tivemos à nossa disposição, e sim pela Organização inteira que tem que se adaptar a essa tarefa em todos os seus níveis. Todos os nossos militantes devem estar à altura de defender nossas posições, sejam em reuniões de operários, em contato com as dissidências do PC ou contra os revisionistas.
A luta ideológica que travamos visa a conseguir concretamente a mobilização e organização da classe operária nos próximos conflitos políticos. É essa a premissa de qualquer desenvolvimento revolucionário do país, desde a derrubada da ditadura militar até a revolução socialista. Temos plena consciência de que a atual forma ditatorial do governo é transitória. O regime imposto pelo 1º de abril está em transformação e ainda não conseguiu encontrar uma forma estável. De uma coisa podemos estar certos: se os atuais governantes cederem seus lugares a grupos rivais e as bases da ditadura, o exército, o latifúndio, o imperialismo e os monopólios nacionais ficaram intactos, então a nossa classe dominante terá conseguido mais uma vitória. Somente a intervenção direta das massas nos acontecimentos, somente a ação consciente do proletariado pode alterar o rumo dos acontecimentos.
Não basta mais pregar atitudes revolucionárias. Temos de dar o exemplo da atividade consequente no seio do proletariado. Temos de “ir à classe operária”, estar presente fisicamente no seu meio. O proletariado não virá a nós, simplesmente porque as nossas intenções são boas. Ou porque nós temos razão e fornecemos as melhores análises e a melhor teoria. Para que a história nos dê razão, temos que fazer estas teorias penetrar nas massas. Temos que nos adaptar a este tipo de militância, custe o que custar, ou doa a quem doer. Somente desse modo conseguiremos mudar a qualidade da esquerda e influir decisivamente sobre as bases do PC que ainda representa a maior reserva organizada de quadros revolucionários do país. Não esqueçamos que ainda não somos um partido e que precisamos dessa reserva para chegar até lá.
É este o caminho para romper definitivamente o “isolamento revolucionário” e que permite à Organização preencher o papel que aspira, colocando as lutas de classes no país numa etapa mais adiantada.
O problema da pequena-burguesia não é genuinamente nacional. Antes de nós, organizações mais ilustres tiveram de enfrentar o problema. Permitam os companheiros lembrar que na Rússia Soviética em 1917 cerca de 7 meses antes da tomada de poder pelos bolcheviques, Lênin constata nas “Teses de Abril”:
“Uma gigantesca onda pequeno-burguesa inundou e submergiu o proletariado consciente — não só por força numérica como também ideologicamente, isto é, largos círculos operários foram infectados e imbuídos de uma visão pequeno-burguesa”.
Em que consistia essa “infecção pequeno-burguesa” ? É que a maioria dos trabalhadores apoiava o “Governo provisório burguês”, formado depois da revolução de fevereiro, e que pretendia a continuação da Rússia na guerra imperialista, sob o pretexto de “defesa da revolução”. No próprio partido bolchevique, um grupo liderado por Kamenev, pleiteava uma atitude conciliatória em relação ao Governo Provisório. Lênin prosseguia a respeito:
“O camarada Kamenev alega uma contradição entre o ‘partido das massas’ e um ‘grupo de propagandistas’. Mas é exatamente neste ponto que as ‘massas’ sucumbiram à intoxicação da ‘defesa revolucionária’. Não parece que para os interacionistas era mais apropriado, nesta situação, estar em condições de enfrentar a intoxicação ‘maciça’, do que querer ficar com as ‘massas’ aderindo à epidemia geral? Não vimos como em todos os países beligerantes europeus os chauvinistas se justificarem com o argumento de querer ficar com as ‘massas’ ? Não é nosso dever estar em condições para ficar em minoria por uns tempos, contra a intoxicação ‘maciça’?
Não é trabalho dos propagandistas justamente no presente momento ser o pivot da tarefa de libertar a linha proletária da intoxicação pequeno burguesa? É a fusão dessas massas proletárias e não proletárias sem consideração das distinções de classe no seio das massas, que foi uma das causas da epidemia defensista. Isso parece ‘nada mais’ do que trabalho de propaganda, mas na realidade trata-se de um trabalho prático revolucionário...”
Quando Lênin escreveu estas linhas, os bolchevistas já estavam mais adiantados do que nós na época atual. Já estavam organizados em partido, prestes a tornar o poder. Nós para chegarmos lá, entretanto, não podemos fugir da mesma premissa: libertar a linha proletária da intoxicação pequeno-burguesa. E temos que começar pela própria casa.
CN da ORM-PO, Abril de 1966.
Para compreender e enfrentar o reformismo no nosso movimento operário, precisamos ter consciência das suas causas materiais. Não pretendemos explicá-los unicamente pela existência de uma liderança pequeno-burguesa que deixou de ter um papel revolucionário. È evidente que, se essa liderança pode se impor à classe operária, isso só foi possível, na prática, porque as suas concepções pequeno-burguesas foram ao encontro de tendências reformistas existentes no meio operário. Esse fenômeno merece uma atenção maior.
É evidente que não se pode afirmar que a classe operária brasileira seja reformista no sentido europeu ou norte-americano. Para isso faltam entre nós as premissas econômicas existentes nos países altamente industrializados e imperialistas, onde a burguesia usa o lucro obtido na exploração do mundo subdesenvolvido para a neutralização do seu proletariado. Nesses países, a consciência do proletariado frequentemente sofre a uma evolução, pois os seus pais e avós já eram mais revolucionários que a presente geração. Diferente è a situação no Brasil. Embora já tivéssemos tido fases mais revolucionárias que culminaram na greve geral de 1917, não se pode querer estabelecer uma continuidade nas lutas operárias de lá para cá. O caráter e a composição do proletariado do princípio do século era diferente daquele que surgiu nas décadas de 30 e 40 em virtude da industrialização. O primeiro, numericamente fraco, era composto, em grande parte, por imigrantes europeus que transplantaram para o Brasil tradições operárias criadas nos seus países de origem, implantando neste hemisfério a bandeira da luta de classes. Isso foi o seu mérito indiscutível, mas representou também o seu lado fraco. Basta dizer que os órgãos mais representativos da imprensa proletária da época eram escritos em linguagem estrangeira, principalmente italiano, fato que limitou a sua influência de antemão. As novas gerações de operários de fábrica, criadas nas fases de industrialização de após-guerra, sufocaram as anteriores em número e importância, mas em troca ainda não tinham ouvido falar em luta de classe.
Muito já foi escrito sobre a fase crítica do país, na qual essa jovem classe operária se tornou um dos esteios do bonapartismo getulista. A maioria das explicações do fenômeno, porém, não satisfaz em virtude de um cômodo fatalismo histórico que geralmente predomina. È verdade que esse novo proletariado se tornou getulista porque era recém-chegado do campo e de outras classes da população, isto é, porque era novo justamente — mas isso não esgota ainda o assunto. Hoje, parece um pouco “Conselheiro Acácio” dizer que as vanguardas não estavam à altura das suas tarefas. Fato é, todavia, que em todos os países nos quais se iniciou a industrialização, o proletariado se formou em grande parte de camponeses que foram às fábricas para melhorar o seu nível de vida — se não fosse esse estímulo teriam ficado no campo. Fato é, também, que o movimento revolucionário, principalmente em sua forma marxista, em outros países, como a Alemanha e a Rússia, por exemplo, surgiu e cresceu com o proletariado justamente nas fases de industrialização intensiva (na Alemanha, apesar de Bismark ter promulgado a legislação “mais progressistas da época” ). O que parece evidente no nosso caso é que a classe operária brasileira ficou durante a fase crítica de crescimento virtualmente sob a influência ideológica unilateral do Estado bonapartista. Esse monopólio ideológico só acabou com o desmoronamento do Estado Novo e o relaxamento do terror policial, de 1945 em diante.
Uma vez caído o peso da repressão, o proletariado surgiu em cena com uma onda de greves inéditas na história do país. Foi essa a sua manifestação como classe na sociedade brasileira em vias de industrialização. Politicamente, predominavam o trabalhismo getulista, mas os comícios-monstros que o Partido Comunista conseguiu realizar, pela primeira vez em sua história, em praça pública, indicaram as tendências. É verdade que as massas operárias ocorriam tanto aos comícios de Vargas, como aos de Prestes. O trabalhismo ainda foi uma reação contra a volta dos políticos de antes de 30. Em parte se tratava de uma defesa da legislação trabalhista, mas em escala maior havia um repúdio instintivo dos trabalhadores a qualquer tentativa de restabelecimento do domínio das velhas oligarquias. Que essa atitude meramente defensiva não oferecia perspectivas para a classe operária, mostrou-o sua receptividade ao Partido Comunista recém-saído de uma completa clandestinidade. Era dele que esperava uma saída para sua situação material desesperada herdada do Estado Novo. Para ter uma idéia das condições econômicas do proletariado no fim da guerra no Brasil basta verificar a situação na Guanabara, onde um operário comum ganhava em 1945 um salário real que correspondia a 63% do que recebia um colega seu em 1914. No caso dos operários qualificados, a desvalorização era maior ainda: 44% dos níveis de 1914.(3) O proletariado brasileiro tinha poucas razões para continuar trabalhista. Estava à espera de uma alternativa.
Nesta fase da luta, o papel do Partido Comunista — a única força de fato que poderia representar a alternativa — já estava delineada. As lutas internas na clandestinidade tinham sido vencidas pelo famoso CNOP(4) que, durante a ditadura estadonovista, enquanto a polícia torturava ainda os militantes comunistas presos, pregava o “apoio à industrialização de Vargas” e à sua “redemocratização” do país”. O Partido, após a anistia, proclamou o apoio à “burguesia progressista”. Em nome do “espírito de Ialta e Potsdam”(5), o seu secretário geral apertava a mão do embaixador americano em praça pública. Aos operários, em troca, Prestes pedia que “apertassem o cinto” e cessassem as greves. Entrevista filmada nesses termos, com Prestes falando, foi exibida em todos os cinemas das grandes capitais, por ordem do DIP(6). A “Constituinte com Vargas” foi o apogeu dessa política que renunciava conscientemente à defesa dos interesses do proletariado na sociedade burguesa-latifundiária e recusava liderar a sua luta de classe.
Essa política revisionista do PC, na primeira fase de pós-guerra, não refletiu os interesses imediatos do proletariado nem mesmo no sentido reformista. Os interesses materiais da classe operária foram simplesmente ignorados. Sua rebelião contra o baixo nível de vida, longe de ser aproveitada para a organização de classe, foi desencorajada. A única concessão que se fez ao estado de espírito do proletariado foi a aliança com o getulismo. Oficialmente foi justificada a necessidade de “ficar com as massas”; na realidade representou a fórmula política da “aliança com a burguesia progressista”. A primeira manifestação pública do revisionismo no Partido, no pós-guerra, foi desastrosa. Em menos de dois anos o Partido gastou o seu crédito e a combatividade das massas proletárias, destruiu o dinamismo do movimento e causou no meio operário um ceticismo político que se tornou mais profundo justamente nos centros onde tinha despertado mais esperanças, como São Paulo. Com o declínio do movimento operário, em 1947, a reação também não teve mais dificuldades de proibir o Partido novamente.
A adesão entusiástica de grande parte do proletariado à linha “ampla” de colaboração de classe naquela ocasião se pode explicar pela sua inexperiência política e a sua formação nas condições já descritas do Estado Novo. É verdade que para a grande massa, as concessões do getulismo poupavam uma opção. Mas mesmo a parte mais radical e combativa — que não era pequena — não levava muito a sério a “moderação” da linha oficial. Acreditava geralmente tratar-se de manobra “para inglês ver”, de “política”, como frequentemente se explicava de cima. Quando essa camada do proletariado se deu conta da situação tanto dentro quanto fora do Partido, a reação tendia a um “extremo oposto”, que encontrou a sua expressão no “manifesto de Agosto”(7).
Podemos passar por cima, neste lugar, dessa fase mais negra do pós-guerra (antes do golpe de Abril) em que a organização política do proletariado atingiu o seu ponto mais baixo. A linha aparentemente radical, não passava de um oportunismo de esquerda, servindo como um consolo fácil após a derrota — não oferecia, portanto, perspectivas. Não podia oferecê-las, pois não se tratava de uma volta aos princípios revolucionários da luta proletária, nem de uma tentativa de aplicar o marxismo-leninismo às condições específicas do país. Foi a mesma liderança pequeno-burguesa, antes direitista, que então se empenhou numa aventura ultra-erquerdista, descobrindo condições para a ação amada e o restabelecimento de uma “República Popular”. Do ângulo das relações internacionais, essa linha foi favorecida pela aparente iminência de uma guerra dos Estados Unidos contra a União Soviética e foi apoiado de fora — enquanto não estava concluído o armistício da Coréia e iniciada a política de “distensão”.
Isso tudo já mostra o caráter transitório da linha do “Manifesto” e, de fato, em 1958, após vários anos de lutas internas, quando o Partido iniciou nova fase de atuação de massa em condições de semi-legalidade, sua direção se nega — dessa vez em nome do “Espírito de Campo Davis” — a participar das manifestações contra a visita de Eisenhower, e o recém-voltado Prestes se pronuncia contra o projeto-lei de greve de um Aurélio Viana, como sendo “radical demais”.
Com a come-back de Prestes, inicia-se de fato a mais recente fase política do Partido, sua estratégia e tática como nós a conhecemos e que levou à derrota de Abril. Essa fase apresenta uma política revisionista mais flexível e, podia-se dizer, um reformismo mais “amadurecido” do que o anterior. Por diversas razões, mas, em primeiro lugar, porque o Partido não tinha mais a autoridade moral e o monolitismo interno para retornar simplesmente à deixa de sua atividade legal de 45. Não é que Prestes não o tenha tentado. Começou a desencorajar as greves e movimentos de classe — como o fizera no passado, mas teve que descobrir que estava lidando com um proletariado que já lutava contra a inflação, em defesa do seu nível de vida. Não passou nem um ano depois da mencionada entrevista contra o projeto lei de greve, quando teve de aparecer com uma autocrítica dizendo, em resumo, que o Partido tinha subestimado a importância da luta contra a carestia. A queda na votação dos candidatos comunistas em zonas operárias era o sinal de alarme. O Partido tinha descoberto sua dependência de classe. Doravante deixou de se opor frontalmente às aspirações materiais do proletariado.
Isso, evidentemente, não significava que tivesse tomado a liderança nas lutas de classe. Ao contrário, a sua preocupação consista em querer conciliar as reivindicações de baixo (inclusive das bases do Partido) com a sua linha política de apoio e colaboração com a burguesia nacional.
Já assinalávamos antes que essa nova fase do reformismo se deu sob a bandeira do “desenvolvimentismo”. Na prática, a bandeira tinha de ser sustentada por um lastro material.
A base material que originou a colaboração de classes, do governo Juscelino até a deposição de Jango, era fornecida pela política financeira, a espiral inflacionista, que permitiria à burguesia nacional neutralizar a luta da classe operária, com apoio direto do Estado e da esquerda oficial. A constante desvalorização da moeda circulante permitiu aos capitalistas pagarem aos seus operários periodicamente um salário relativamente alto, que era desvalorizado nos sucessivos pagamentos semanais ou mensais, em virtude da queda dos salários reais. O operário, em determinados intervalos, tinha a ilusão de uma elevação do nível de vida e o capitalismo sabia que podia pagar esse salário, que no próximo pagamento já não correspondia mais ao anterior. Esse jogo, todavia, só interessava à burguesia enquanto o proletariado se contentava com aumentos bastante espaçados, de uma a duas vezes por ano. Quando, em virtude da pressão inflacionária, que crescia na medida em que a conjuntura baixava (desde 1960), a classe operária não mais se contentava com as revisões oficiais dos salários e iniciou uma luta mais intensa de defesa do nível de vida, a burguesia industrial perdeu o interesse na inflação, começou a clamar por uma reformulação da política econômica e, finalmente, por um “governo forte”.
Antes de chegar, porém, a esse beco sem saída, a burguesia tinha usado esse recurso financeiro para conservar a sua tutela sobre o proletariado, oferecendo aos operários uma participação no desenvolvimento capitalista do país. Apesar do caráter ilusório dessa participação — ou talvez justamente em virtude dele — o esquema só podia vingar porque foi endossado pelos sindicatos e pelo Partido.
Essa situação criada com a ajuda da esquerda oficial tinha, todavia, uma particularidade que completa o panorama. Foi somente uma minoria do proletariado que chegou a aceitar essa ficção de participação. Como se tratava, contudo, da minoria organizada dos operários mais qualificados no processo de produção que dominava os sindicatos, ela estava em condições de falar pela classe inteira. A imensa maioria do nosso proletariado não organizado, que não participava da vida sindical, nem de outra forma de vida coletiva de classe, não tinha meios para formular suas reivindicações econômicas.
Vejamos como um autor insuspeito descreve a situação. Leôncio Rodrigues, no seu “Conflito Industrial e Sindicalismo no Brasil”(8), chega à conclusão que:
“Malgrado o recesso inflacionário e o modo desordenado em que se desenvolveu a economia brasileira no período considerado, o proletariado aproveitou-se de um surto rápido de expansão industrial e de um período de pleno emprego, que só a partir de 1963 e 1964 diminuiu em seu ritmo de expansão, ameaçando chegar à estagnação. Para as camadas inferiores do proletariado o desenvolvimento significou a manutenção do nível de empregos, enquanto as suas camadas superiores se beneficiavam da grande carência de mão de obra qualificada, sentida pelas empresas. De outro lado, os estratos mais qualificados desfrutaram, também pela primeira vez, de possibilidades de lazer, cultura, diversificação profissional e outras vantagens de uma civilização industrial. A fabricação nacional de aparelhos domésticos, o sistema de crédito, ampliaram o padrão de consumo dos trabalhadores industriais, bem como o interesse pela aquisição dos bens materiais e pela melhoria da sua situação como consumidor. Assim sendo, a preocupação maior dos setores qualificados do proletariado foi e continua sendo a manutenção do ritmo de industrialização”. (Grifado por L.R.).
Dizemos tratar-se de um autor insuspeito, justamente porque ele não defende o nosso ponto de vista, mas sim o deles. Não é marxista, e sim desenvolvimentista, como é fácil reconhecer pela terminologia usada. Seu livro é uma apologia da situação acima descrita, mas o que torna interessante para nós, aqui, não é a interpretação dada pelo autor, mas sim os fatos citados, aos quais voltaremos em seguida.
È conhecida a frágil estrutura sindical da nossa classe operária depois de 1945. Nem 20% do proletariado pertencia formalmente aos sindicatos e uma percentagem muito menor ainda participativa de fato da vida sindical. Assembléias Gerais com 150 a 200 participantes, que representavam ramos industriais, em grandes cidades como Rio e São Paulo, já eram consideradas “bem frequentadas” e elegiam diretorias. Nas fábricas não haviam bases sindicais organizadas, nem existia literatura fabril; quando muito lá estava um cobrador oficial. Na maioria das vezes a política oficial era o desconto em folha. Não é de admirar que o já citado autor chegue à conclusão no seu livro que “o sindicalismo brasileiro é UM SINDICATO QUE VIVE FORA DAS EMPRESAS” e que “As organizações sindicais não vivenciam os problemas diários que os operários encontram durante a jornada de trabalho”. E tornando-se mais específico declara:
“O aspecto particular nessas associações de sindicatos, que não chegam a se consolidar como genuínas centrais sindicais, foi a preponderância que concederam aos problemas gerais da sociedade, o interesse pelos grandes temas da política nacional e do desenvolvimento econômico enquanto relegavam para plano secundário as reivindicações profissionais específicas do proletariado”.
Não estaremos errados se traduzirmos as “reivindicações profissionais específicas” como reivindicações de classe do proletariado. O que Leôncio Rodrigues entende, todavia, por “problemas gerais da sociedade”, explica analisando uma das últimas manifestações da C.G. T., “Programa de Unidade e Ação”, de setembro de 1963, quando diz em sua defesa:
“Programa de Unidade e Ação do C. G. T. correspondia aproximadamente ao programa de reformas de base do governo anterior. Paradoxalmente, alguns dos seus tópicos... foram retomados no governo Castelo Branco e votado pelo legislativo mediante pressão militar, como por exemplo, o projeto de reforma bancária, a reforma eleitoral, o projeto de reforma agrária, se bem que não exatamente nos moldes desejados pelo C. G. T. Na realidade, as reivindicações propostas pelas lideranças sindicais não correspondiam a reivindicações específicas dos trabalhadores, mas se impõem como alterações estruturais exigidas para a modernização da sociedade brasileira.”
Fica claro que esses “problemas gerais da sociedade” eram os problemas muito concretos da burguesia. E se as reformas de Castelo Branco não se enquadram “exatamente nos moldes desejados pelo C. G. T.” é porque ficou suprimida a participação de camadas privilegiadas do proletariado no “processo de modernização da sociedade brasileira”.
Essa ausência de reivindicações do proletariado explica também a ausência de qualquer reivindicação de caráter anticapitalista na prática sindical e política. O cuidado de não ferir a sensibilidade da classe dominante ia tão longe que até termos como “tubarão”(9) foram eliminados da argumentação popular. Isso em si já explicaria o desinteresse pela ação dos sindicatos no meio das massas assalariadas. Essas só podiam ser mobilizadas em torno de suas reivindicações materiais.
O CGT foi obra do PC, que tinha maioria na direção. A sua fundação e as suas atitudes, durante sua curta existência, foram a coroação da política sindical seguida desde o fim da guerra e a prova viva da incapacidade do reformismo de defender os interesses do proletariado mesmo nos moldes da sociedade burguesa-latifundiária, como a nossa. Só conseguiu atrasar a organização da classe e desarmar a sua vanguarda.
É evidente que a base material do reformismo existe independentemente dos comunistas e é fornecida pela própria sociedade. Uma coisa, porém, é levar em conta a sua existência para combatê-la, neutralizá-la e superá-la no seio do movimento operário vivo. Outra coisa é se conformar para ser absorvido por ele.
Damos a palavra pela última vez ao nosso citado sociólogo, o qual verificando no seu livro o “nacionalismo substituiu o marxismo”, explica mais detalhadamente:
“Para sermos precisos não se trata de substituição da corrente marxista pela nacionalista, mas da adoção pelos comunistas das teses nacionalistas. Não importa aqui discutir se essa orientação corresponde a fins táticos e estratégicos, uma vez que o resultado evidenciado seria o mesmo. Pressionado talvez pelas condições peculiares do meio social criado pelo desenvolvimento, o comunismo passou progressivamente a incorporar as teses do nacionalismo e acabou incorporado por elas.” (Grifos nossos)
Divergimos de uma coisa: para nós importa discutir esses aspectos. Pois se se explicar todo o oportunismo de movimentos comunistas pelo fenômeno do subdesenvolvimento não se compreenderia porque a revolução nos últimos cinquenta anos se processou justamente em países subdesenvolvidos. Em vez de nós nos satisfazermos com tais lugares comuns de conveniência de autores desenvolvimentistas, temos que deixar bem claro as causas e origens do nosso reformismo particular, que é diferente do reinante em países industrializados. E entre as causas e origens se destacam os problemas da estratégia e tática da organizações operárias.
Se seguirmos de volta o fio da meada da estratégia sindical, compreenderemos também, que esse aspecto é inseparável da política geral do Partido desde o fim da guerra. Da ditadura estadonovista, herdamos uma legislação trabalhista e sindical, que foi um instrumento eficaz do controle do movimento operário pelo Estado burguês. Elaborada durante o Estado Novo, conforme padrões fascistas, italianos e poloneses, dita legislação não sofreu mudanças essenciais desde a sua promulgação e serviu a todos os governos democráticos-burgueses, de Dutra a Jango, para lidar com a classe operária. Mesmo a presente ditadura militar não precisou de nenhum Ato Institucional ou de qualquer outra medida especial para tratar com o proletariado. A legislação herdada permitiu a ela intervir, proibir e reprimir à vontade as organizações sindicais. Até hoje, porém, nunca houve uma luta consciente contra essa legislação sindical.
O Partido simplesmente se recusava a enfrentar o problema. Já em 1945 e novamente de 1953 em diante, quando voltou à atividade sindical, o PC rejeitava qualquer luta contra o sistema que ligava os sindicatos ao Ministério do Trabalho. O grande pretexto era o Fundo Sindical, necessário para sustentar os sindicatos; a causa mais profunda era o seu sistema de alianças com a burguesia “progressista” e “nacionalista”. Em vez de mobilizar a classe operária a favor — e por intermédio — de uma luta por sindicatos livres e autônomos, preferiu satisfazer-se com uma conquista dos sindicatos pela cúpula, deixando à margem a imensa maioria dos operários não organizados. Foi essa política de cúpula, antes de tudo, responsável pela auto-limitação da nossa vida sindical; responsável pelo abandono da classe, cujo radicalismo era temido pela liderança, pois ameaçava afetar toda política colaboracionista da esquerda oficial. Um sinal evidente da auto-limitação dos sindicatos foi a rápida repercussão que os apelos pela formação de grupos de 11 encontraram no meio operário. Prova evidente dessa auto-limitação foram as chamadas greves gerais. Em cidades como Rio e São Paulo, “greve geral” significava a paralisação dos meios de transporte, onde havia setores mais avançados do proletariado. Se a Central, a Leopoldina e as barcas entrassem em greve, ela se tornaria geral. Caso contrário, não havia meios de impedir que os operários fossem às fábricas. Não havia constituição de bases nas empresas.
Os problemas da organização da classe operária, da sua consciência, da sua capacidade de luta, praticamente não existiam para liderança do Partido Comunista e a esquerda oficial. Vinte anos de prática reformista, todavia, afetaram também a composição e a formação dos quadros médios. É isso que causou o fenômeno de o comunismo ter “acabado pelas teses nacionalistas”. Hoje a grande maioria dos companheiros do Partido acha não só perfeitamente natural que o movimento operário viva em função de apoios às facções da classe dominante, como é incapaz de imaginar sindicatos fora do domínio de um Ministério do Trabalho. Não concebem uma política própria da classe operária. Não perceberam ainda que o mundo deles desmoronou.
No nosso meio surgiram ultimamente nos debates, opiniões, “autocríticas” sustentando que, apesar de toda nossa luta contra a orientação oficial da Esquerda não soubemos dar uma alternativa ao reformismo existente. Com todo respeito pela autocrítica, bem vinda entre nós, semelhante argumentação só demonstra que os referidos companheiros simplesmente não entenderam até hoje porque estávamos e estamos lutando. A alternativa que se podia dar, nas condições reais em que o país se encontrava, nós a demos: lutando contra a submissão do movimento organizado da classe operária à burguesia e seu Estado; pela organização da classe toda, para torná-la capaz de aglomerar em torno de si, e em escala nacional, o movimento no campo e as camadas radicais da pequena-burguesia nas cidades, numa frente única dos trabalhadores. Vimos nessa frente a única força capaz de se opor à ofensiva da reação interna, apoiada pelo imperialismo, que estava se esboçando. Apelamos a todas as facções radicais e independentes para se aliarem nesse intuito, mesmo como minoria, numa Frente Revolucionária da Esquerda. Levantamos novamente neste país a bandeira da luta de classes, mesmo como força isolada do movimento de massas. Não podíamos agir de outro modo, porque tínhamos de partir de condições sociais existentes e criadas antes de nós. Para dar uma alternativa, tínhamos de criar um ponto de partida.
“Alternativa”, nas condições encontradas por nós, todavia, não podia “significar soluções imediatas” ou “fórmulas gerais”, para remediar a situação do país. A procura de tais receitas milagrosas cabe melhor aos expoentes da pequena-burguesia, que na prática sempre submetem os problemas da luta proletária aos “problemas mais amplos e mais imediatos” do país e que por isso mesmo pararam na derrota de Abril. A única alternativa que nós podíamos dar — e a prática comprovou — era a mudança nas relações de classes na sociedade brasileira, a começar pelo surgimento do proletariado como força independente na política nacional.
Uma autocrítica, todavia, devemos fazer: não nos empenhamos suficientemente para levar essa alternativa para as massas operárias, para as fábricas, para os bairros e para todos aqueles que se dedicam a luta proletária. Isso, em parte, porque os nossos companheiros estavam demasiadamente absorvidos por outras preocupações e outros setores. Mas é justamente o presente debate que deve ajudar a remediar esse mal.
A alternativa, isto é, os objetivos revolucionários da luta, continuam basicamente os mesmos nas condições da clandestinidade. O que sofre mudanças são os métodos de atuação. Já que para nós o golpe militar não foi “um raio vindo de um céu azul”, a nossa meta não pode ser o restabelecimento de status quanto anterior. Para nós, a ditadura aberta das classes dominantes é produto do aguçamento das contradições sociais na sociedade brasileira e o presente impasse só poderá se superado com o aprofundamento da luta de classes, com o surgimento de um proletariado que possa preencher a sua missão histórica de liderar o processo revolucionário no Brasil até as últimas consequências, até a conquista do Brasil Socialista. É essa a nossa preocupação fundamental, a qual todas as outras devem ser subordinadas.
Condição indispensável para que o nosso proletariado preencha seu papel é que adquira consciência de sua situação social e política. Levar essa consciência para dentro da classe operária é a nossa tarefa, a tarefa de todos os verdadeiros revolucionários no país.
Não se forma essa consciência do proletariado sem despertar a sua solidariedade com a classe. Este é um produto da luta contra o patrão. Não contra o “mau” patrão, mas sim contra o patrão como membro de uma classe, a capitalista, sem preconceito da situação do capitalista, se é nacional, estrangeiro ou o próprio estado burguês. Somente quando o proletariado sentir e compreender que está empenhado numa guerra de classes, ele se organizará e comportará como classe, tanto no terreno sindical quanto no político. O trabalho no seio do proletariado tem de se iniciar tendo como base uma argumentação anti-capitalista e anti-burguesa. Eis pois a condição para o surgimento de um partido operário independente e oposto a todos os partidos burgueses.
È unicamente com a formação dessa classe operária independente e seu partido que existirá na sociedade brasileira uma força verdadeiramente anti-imperialista, capaz de canalizar e mobilizar os sentimentos de resistência ao domínio do capital financeiro existente; só assim, teremos criado os fatores indispensáveis para uma luta anti-imperalista consequente.
Em segundo lugar, a nossa agitação e propaganda deve ser feita deixando claro para os operários que a sociedade burguesa não mais soluciona os seus problemas. Os objetivos não são as reformas de base, mas sim a destruição das bases da exploração capitalista e imperialista. Isto não é uma omissão perante os problemas imediatos do proletariado (e dos seus aliados) e os criados especificamente pela ditadura. Ao contrário, uma agitação nesse sentido só dará resultado quando todas a reivindicações e lutas parciais são levadas até o fim; quando são levantadas e lideradas por revolucionários conscientes. È na própria luta diária que a classe operária tem de se convencer da falta de soluções oferecidas pelo sistema capitalista em seu conjunto; que a confiança na sua força como classe tem de se firmar e crescer. Nossa argumentação não pode se restringir a desmascarar “governos maus”, mas sim o sistema social e tratar os governos como expoentes de um domínio de classe. As concepções marxistas do Estado, da democracia, da exploração econômica, têm de ser levadas conscientemente para dentro da classe operária, numa linguagem agitativa. E na medida em que essas concepções penetram nas cabeças dos nossos proletários, a classe conseguirá distinguir a sua política operária da política burguesa, e se esvaziará a influência e a tutela burguesa e populista sobre a classe. É essa a premissa para a propaganda socialista propriamente dita, para a formação de uma consciência socialista do nosso proletariado — ou, em outras palavras, para que o proletariado brasileiro se coloque o objetivo da revolução socialista e lute para isso na prática.
Temos que nos dirigir aos centros vitais da nossa classe operária, às suas bases vivas, nas fábricas e nos bairros. Sem querer menosprezar as possibilidades que a luta sindical propriamente dita ainda oferece, a nossa preocupação deve ser os pontos de aglomeração permanente de proletariado — os seus lugares de trabalho. Querer limitar, hoje em dia, a atuação aos sindicatos, significa querer repetir a política de cúpula, em condições mais desvantajosas. Somente com a criação de bases nas fábricas e com a pressão organizada exercida por elas pode-se pensar numa revolução da vida sindical.
Como organização militante, temos de dar uma direção coordenada à nossa atividade. Quando levantamos os problemas gerais da revolução, procuramos atingir a audiência mais vasta possível. Na militância, todavia, temos de concentrar esforços, temos de seguir uma determinada “economia de forças”, baseada nas disponibilidades das reservas da Esquerda Revolucionária. A nossa ênfase no trabalho operário já é um produto dessa “economia” considerando que se trata da tarefa mais importante e indispensável a todo futuro revolucionário. Mas mesmo isso não basta. No próprio trabalho operário, temos de nos concentrar nos setores decisivos para a classe toda; nos setores cujo comportamento repercute na classe e criam os exemplos. São esses os operários das grandes empresas de produção e comunicação, que já criaram suas tradições de luta e organização e onde se forma maior número de quadros operários conscientes.
Essas empresas, reunindo maior massa de assalariados industriais, são as que se oferecem melhores condições para a organização dos operários nos seus locais de trabalho, para a criação de bases fabris e comitês de empresas, contribuindo deste modo para restabelecer a confiança nos métodos de luta proletária e no poder da classe em toda a esquerda. E são finalmente — mas não por último e importância — essas grandes empresas que oferecem o melhor ambiente para colocar aos operários o sentido político da sua luta em escala nacional e mundial. Colocar o problema do poder, pois toda luta política, levada as últimas consequências, é uma luta pelo poder.
Ernesto Martins
(Junho de 1966)
A formação política da classe operária só está completa quando lhe for colocado o problema da conquista do poder. O objetivo do Brasil Socialista tem de ser nitidamente delineado em nossa propaganda em todas as fases das luta, pois é a compreensão das metas que transforma em movimento militante a oposição dos trabalhadores à sociedade atual. Na prática, a classe não se coloca os seus objetivos históricos de uma só vez e não apreende apenas pela teoria. Somente durante as lutas parciais e somente mediante estas lutas, chega à conclusão de que o sistema social atual deve e pode ser superado. Mesmo quando adquire consciência dessa possibilidade, não significa — como mostra a experiência européia — que já esteja disposta ou em condições de agir neste sentido. Lênin já demonstrou que não basta a classe explorada querer mudar o sistema. Para que a situação social se torne revolucionária é preciso que a classe exploradora não saiba mais como vencer a crise. É nestas circunstâncias que o proletariado consegue levar as massas populares para a ação revolucionária. A experiência vem demonstrando que esse processo do amadurecimento do proletariado e o das suas relações com outras classes, seus aliados latentes, coloca periodicamente o problema do poder em termos ainda não socialista — na forma de um governo de transição.
As luta parciais, travadas ainda no terreno da sociedade burguesa, fizeram com que o movimento operário mundial se cindisse sobre o problema das relações com governos capitalistas. Os reformistas e revisionistas começaram a pleitear o ingresso dos seus representantes nos governos burgueses, capitalistas, inclusive imperialistas e isso se tornou a política oficial dos partidos social-democráticos “a fim de melhorar a situação da classe operária”, ou “de conquistar posições”, a fim de promover a passagem pacífica para o socialismo”. Os marxistas revolucionários, que se reuniram na ala esquerda da II Internacional e, mais tarde, na Internacional Comunista, repeliram essas posições de colaboração de classe, insistiram que a passagem para o socialismo só podia ser um produto de uma revolução e da destruição do Estado burguês, passando pela Ditadura do Proletariado, como nova e última forma de Estado.
Foi em torno dessa questão vital que Lênin publicou o seu “Estado e Revolução”, cujas teses, até hoje, não perderam nada da sua atualidade (seja dito de passagem que esses ensinamentos leninistas não foram sempre seguidos por seus sucessores. Na França e Itália, depois da guerra, os então comunistas entraram nos governos burgueses, ajudando a reconstruir a sociedade capitalista no Ocidente. Sentimos hoje as consequências dessa política).
A experiência formulada por Lênin, todavia, não parou aí. O acirramento das lutas sociais no mundo inteiro criou situações de transição em que se colocava para o proletariado revolucionário o problema de apoiar ou participar de governos que ainda não eram formas de Ditadura do proletariado, mas que, assim mesmo, podiam representar um avanço para a luta revolucionária.
O grande precedente, nesse sentido, tinha sido criado em 1905, quando os bolcheviques defendiam a fórmula da “Ditadura Democrática Revolucionária dos Operários e Camponeses” para a revolução burguesa na Rússia Czarista. Essa palavra de ordem (meio sectária para o gosto popular de hoje) procurava sintetizar um estado de coisas em que um governo de transição, formado por representantes dos partidos operários e camponeses, surgido de um levante armado, realizasse as tarefas da revolução burguesa, que a própria burguesia não estava disposta a enfrentar.
O problema se colocou novamente, em boa condições diferentes, em 1922, quando a Internacional Comunista elaborou as teses da Frente Única Operária, na luta contra as investidas do fascismo na Europa. O IV Congresso da Internacional, o último realizado em vida de Lênin, adotou uma série de resoluções que procuravam formular as condições de participação dos comunistas em governos de transição. Definiu como apropriados para uma participação os “Governos Operários e Camponeses”, apoiados em movimentos de massa, cuja ação prática desafia a grande burguesia. As resoluções não preestabelecem se esses governos de transição surgem de processos eleitorais ou insurrecionais, mas deixam claro que sua existência não pode ser garantida por dispositivos legais e jurídicos. A distinção entre “Governo Operário” e “Governo Operário e Camponês”, de outro lado, está relacionada com as particularidades de cada país, levando em conta também o grau de realização da revolução burguesa.
Uma coisa a resolução deixa clara: não se trata de governos socialistas, nem de um substituto para a Ditadura do Proletariado — tão pouco invalida a tese da necessidade de destruição da máquina estatal burguesa pela revolução proletária. Trata-se de governos provisórios — um passo para a frente — previstos para momentos em que a classe operária se mobiliza na luta contra os seus opressores, mais ainda não está disposta ou não tem possibilidade para a batalha final. Trata-se de governos de transição, pois a classe operária não pode governar por muito tempo à base de um sistema social burguês. Ou atacará esse sistema de frente e será obrigada a instaurar a Ditadura do Proletariado ou, pacificamente ou não, terá de dar lugar novamente a governos burgueses. Todavia, a experiência prática do exercício do governo, quando colocada em termos revolucionários, lhe indicará o caminho a seguir.
Essa experiência já é válida atualmente para as condições em que se desenvolve a nossa luta. O aguçamento das contradições sociais, acompanhado por um desenvolvimento sistemático das ilusões reformistas sobre o Estado, por parte das cúpulas políticas esquerdistas, nos impôs muito cedo uma definição em torno do problema do governo de transição, uma alternativa às fórmulas de apoio aos sucessivos governos burguês-latifundiários. Mobilizamo-nos em torno da palavra de ordem do “Governo Revolucionário dos Trabalhadores da Cidade do Campo”.
Quando chegamos à conclusão de que um governo revolucionário de transição no Brasil só podia ser um “Governo dos Trabalhadores” é porque tínhamos partido da análise da realidade social e política do país que servira como base para a fundação da Organização e que foi desenvolvida nos sucessivos debates. Partimos do ponto de vista de que as tarefas colocadas para o país não consistiam mais em uma revolução burguesa, mas sim, na revolução socialista. Concordamos com as teses esboçadas por Aguirre, no Equador e, posteriormente, por Sweezy, no sentido de que a América Latina toda não conhecia o processo clássico da revolução burguesa, pois desconhecia, desde o início, o fenômeno do feudalismo, seja sua forma européia ou asiática. A agricultura latino-americana, isto é, o latifúndio, se formou em grande parte em função do mercado internacional, usando, para a exploração interna da mão de obra, processos capitalistas primitivos e pré-capitalistas (como a escravidão). Todas as tentativas, porém, de transpor condições feudais européias para cá fracassaram desde os tempos das Capitanias.
A burguesia industrial, que surgiu tardiamente no cenário nacional, numa época em que já se receavam os conflitos sociais, em vez de acirrá-los, repudiava processos revolucionários que forçosamente tinham de colocar em questão todo o sistema baseado na propriedade privada dos meios de produção. Ela escolheu o caminho das reformas, preferindo impor-se na medida do crescimento do seu peso na economia nacional. Traindo os seus aliados pequeno-burgueses, de 1922 a 1930, conseguiu os seus intuitos pragmaticamente, chegando ao poder apoiada no Exército, esvaziando, dessa maneira, qualquer veleidade de revolução burguesa que ainda podia ter tido. O modo do seu crescimento a amarrava, todavia, por dois lados: de um, ela ficou dependente de uma aliança com o latifúndio do qual surgiu e cujo sistema não desejava por em cheque, pois receava convulsões sociais e, além disso, dependia das exportações agrárias para financiar o processo de industrialização (e assim participava indiretamente da exploração dos camponeses). De outro lado, teve de aceitar uma associação do imperialismo na industrialização do país para cobrir as suas próprias lacunas em matéria de capitais e patentes, pois sendo burguesia teve de respeitar os princípios da propriedade privada dos meios de produção.
A reforma burguesa do Brasil, isto é, a expansão e a modernização do parque industrial e a adaptação da máquina estatal às necessidades do capitalismo industrial, intensificou, na prática, o processo de associação da burguesia nacional ao capitalismo imperialista.
As alianças com o latifúndio e o imperialismo não são sem contradições e conflitos. Os atritos com o sistema latifundiário se dão na medida em que este oferece obstáculos a expansão do mercado interno. Os conflitos com o capital imperialista surgem em torno da divisão e distribuição da mais-valia produzida pelo proletariado brasileiro. O que prevalece, entretanto, nessa “cooperação antagônica”, como a chamamos, e o que garante a aliança tácita com o latifúndio e a associação com o imperialismo, são os interesses comuns de conservação e de expansão do sistema social vigente.
Nessas circunstâncias, as únicas classes que tem objetivo na mudança radical do status social do país, são as vítimas diretas do domínio burguês-latifundiário (mais imperialismo) — os operários industriais e os camponeses — os trabalhadores da cidade e do campo. São estas as classes que, mesmo não tendo ainda uma perspectiva socialista, nada tem a perder e por isso são as únicas aptas para utilizar métodos revolucionários na mudança da estrutura social do país.
A Frente Única dos Trabalhadores da Cidade e do Campo na medida em que se realizar, passando de uma palavra de ordem para uma força material, arrastará outras classes consigo — principalmente parte das classes médias, urbana e rural, que, numa sociedade dividida em trabalho assalariado e capital, não tem mais perspectivas próprias. A condição indispensável para o surgimento dessa aliança revolucionária de classes — e essa consciência determinou desde o princípio toda a nossa atuação teórica e militante — é a formação política do proletariado brasileiro, como classe mais consequente e mais consciente dos problemas globais da revolução brasileira, a única capaz de reunir em torno de si as massas dispersas e variadas dos camponeses e demais classes semi-proletarizadas.
Já que partimos da premissa de que essa aliança de classes é a única em condições de assegurar um processo revolucionário no país, temos de concordar também que ela é a única força capaz de assegurar uma derrota revolucionária da ditadura militar. Não queremos dizer que, teoricamente, isso seja a única possibilidade da ditadura aberta terminar. Temos precedentes no país, quando as classes dominantes cansadas da tutela que tinham pedido, “redemocratizaram” o seu governo. Embora isso não seja o caso atual, a possibilidade pode surgir para a nossa burguesia, se a situação econômica lhe permitir uma alternativa. Essa redemocratização burguesa, entretanto, não se estenderá espontaneamente ao proletariado, nem ao campesinato, ela conservará intactos todos os instrumentos da ditadura, pois são os mesmos que a classe dominante usa na democracia burguesa como meio de dominação dos explorados. A questão é de qualidade. Se pregamos a Revolução dos Trabalhadores é porque temos um interesse vital que a ditadura seja derrubada pelos próprios trabalhadores; é um apelo a essas massas para se prepararem e se organizarem com esse objetivo, para interferirem nos acontecimentos, para tomarem sua sorte nas próprias mãos. E, finalmente, formularem uma posição de classe em todas as situações que podemos enfrentar. E não é sempre a classe operária que está em condições de tomar a iniciativa, de dar o primeiro passo, mas, independente do que fizer a pedra rolar o proletariado deve estar preparado para intervir com objetivos próprios e levar avante o processo revolucionário até onde sua força chegar. E sua força dependerá em grande parte do grau da sua consciência e da clareza dos seus objetivos.
A intervenção do proletariado e dos seus aliados não seria consequente se não procurasse assegurar a continuidade do processo revolucionário mediante a conquista das posições de poder, se não procurasse levar aliança revolucionária de classes a conquistar o poder executivo, a estabelecer um governo revolucionário de transição.
Pelo que foi dito, nas condições concretas em que se encontra hoje a sociedade, um governo revolucionário de transição só poderá apoiar-se nos trabalhadores da cidade e do campo, pois são eles que representam as classes que podem enfrentar os problemas vitais do país, as bases sociais da ditadura — liquidar o domínio do latifúndio e dos monopólios capitalistas e imperialistas e dos seus instrumentos: o Exército, a máquina policial, o judiciário, etc. Terá de ser um governo revolucionário desde a sua origem, pois as condições sociais existentes no país, o poder dos coronéis da cidade e do campo, tornam improvável que semelhante governo vença e se imponha por processos eleitorais. Terá que ser um governo que se apóie na força armada dos trabalhadores da cidade e do campo, para vencer a resistência interna e externa, toda vez que enfrente um dos problemas vitais do país.
Terá de ser um governo que mobilize as massas para uma participação ativa na solução dos problemas sociais e que lhes entregue as primeiras responsabilidades no controle da produção e da distribuição, pois semelhante governo não poderá se apoiar nos recursos tradicionais do estado burguês-latifundiário.
Finalmente, esse governo terá de tomar medidas radicais para aliviar a situação material da população e elevar o nível de vida. Mas justamente pelo fato de representar um governo de transição que, em grande parte, será absorvido cumprindo tarefas que a burguesia não soube enfrentar, toda tentativa de elevar o nível de vida, que será à base da infra-estrutura econômica burguesa, terá efeito limitado. O Governo dos Trabalhadores fará certa redistribuição do produto nacional, elevará salários e limitará lucros, mas isso não soluciona o problema, que consiste na expansão das forças produtivas mediante uma economia planificada. Esta só pode ser alcançada em padrões socialistas e o caminho passa pela ditadura do proletariado.
È exatamente este aspecto do problema que caracteriza o Governo dos Trabalhadores como sendo de Transição. Ou leva avante a revolução com as indispensáveis lutas internas e cisões, tornando-a ininterrupta até se transformar em socialista, e somente desse modo resolverá definitivamente a questão, ou terá de ceder seu lugar novamente a um governo burguês, que corresponda à infra-estrutura existente. Se esta última hipótese acontecer, em todo caso terá criado uma série de fatos consumados, que nenhuma contra-revolução mais poderá acabar. Não há, todavia, razões para encarar a hipótese pessimista em primeiro lugar. Pela própria dinâmica de um semelhante movimento desencadeado, pelas energias revolucionárias que desperta e os problemas que levanta, terá todos os fatores a seu favor para prosseguir a obra. Poucos meses de convulsão revolucionária tornam o proletariado e seus aliados mais conscientes do que muitos anos de agitação pacífica. A responsabilidade na questão de problemas coletivos, as medidas radicais que mudam a existência de classes inteiras, transformarão radicalmente o proletariado, tornado-o apto para exercer o seu poder.
Muito pouco estudada até agora foi a experiência latino americana de governo de transição. Não podemos preencher essa lacuna neste lugar, mas assim mesmo queremos chamar a atenção sobre dois exemplos que parecem mais importantes: a revolução boliviana e a cubana.
Na Bolívia, em 1952, foi a intervenção armada dos mineiros que deu a insurreição contra a Junta Militar de Ballivian um nítido caráter de Revolução dos Trabalhadores. A atuação dos mineiros se fez sentir desde os primeiros dias, quando os comandos militares do MNR, oficiais do exército, chegaram a dar a insurreição como perdida. A cidade de La Paz, desde tempos remotos, tinha sido dominada estrategicamente pelo Forte da Serra, e a posse da fortificação garantia, pelas regras da arte militar convencional, o domínio da cidade. Foi a falha da tentativa de ganhar a guarnição do Forte que desencorajou os oficiais de carreira, quando os mineiros, ignorantes das regras militares, tomaram a fortificação a muque e asseguraram a vitória da revolução. A intervenção dos mineiros determinou o curso radical da revolução. A liderança pequeno-burguesa do MNR, chefiada por Paz Estensoro, teve de endossar os fatos criados.
A ocupação das minas pelos operários foi sancionada pelas nacionalizações. A tomada de terra pelos camponeses foi ratificada por uma lei agrária muito mais radical do que os projetos apresentados originalmente pelo MNR. A dissolução do exército permanente foi outro fato consumado pela revolução e por muito tempo não havia na Bolívia outras forças armadas a não ser os operários e camponeses. A inclusão de Lechin, o líder dos mineiros, no governo de La Paz, como segundo homem no gabinete de Paz Estensoro, transformou o Executivo num Governo Operário e Camponês, cujo poder dependia diretamente das forças armadas dos trabalhadores, isto é, num governo de transição.
O que enfraqueceu a posição da ala proletária nesse governo foi o fato dela ter tido pouca consciência do seu caráter provisório. A ala pequeno-burguesa, ao contrário, chefiada por Paz Estensoro, que tinha sabido apoiar-se nos camponeses, começou logo que pode a alterar as relações de forças, mediante a formação de novo exército permanente (dessa vez em nome da “defesa da revolução”). O crescimento dessas Forças Armadas foi o barômetro da situação interna da Bolívia. Na medida em que iam fortalecendo, Paz Estensoro e posteriormente Siles Suazo, podiam enfrentar o conflito com Lechin e os mineiros — até que as Forças Armadas se tornaram o fiel da balança, eliminando inclusive a liderança pequeno-burguesa do MNR.
Na Bolívia, a revolução dos trabalhadores estagnou, não foi levada à frente. Sabemos que havia poucas condições objetivas favoráveis para tal na época. País sem indústrias, o seu proletariado era representado por poucas dezenas de milhares de mineiros. O caráter da agricultura boliviana permitiu a divisão de terras em pequenas propriedades a base de uma economia quase natural e isso fez campesinato se desinteressar cedo pelo progresso da revolução. Outro fator desfavorável era a situação geográfica do país, que acentuou o isolamento de suas forças revolucionárias. O fato básico, todavia, é que o Governo dos Operários e Camponeses, de 1952, era transitório. Os trabalhadores só teriam conservado o poder na medida em que levassem a revolução para frente, até se tornar socialista. Assim mesmo, representou o movimento mais radical que a Bolívia conheceu em sua história — e também a América Latina até a Revolução Cubana. Para as massas trabalhadoras da Bolívia, essa experiência viva permitirá reiniciar em nível mais alto o seu movimento revolucionário quando as circunstâncias se apresentarem novamente favoráveis.
A Revolução Cubana, também deu lugar primeiro a um governo de transição. Esse fato é esquecido facilmente pelos observadores de fora; pois a passagem de uma fase revolucionária para outra não se caracterizou por uma ruptura ostensiva. A liderança revolucionária tanto no governo de transição quanto no governo socialista, foi simbolizada igualmente na pessoa de Fidel Castro. Houve porém muito cedo, não só o conflito do então presidente Urrutis com Fidel, como também, e isso foi mais significativo ainda, uma prolongada cisão no “Movimento 26 de julho”, cuja ala direita não acompanhou a transformação socialista e preferiu engrossar as fileiras dos refugiados de Miami. O caráter do governo de transição foi determinado pela aliança das forças que derrotaram a ditadura de Batista. Quando, após uma luta de guerrilha de dois anos, estavam minadas as forças da máquina de opressão da ditadura e os 1.800 guerrilheiros baixavam para as cidades, Batista dispunha ainda de um exército permanente de 25 mil homens. O que garantiu a vitória final foi a greve geral que selou a aliança operário-camponesa com a adesão da pequena-burguesia radicalizada. Depois da desintegração e dissolução do exército permanente, foram os trabalhadores armados da cidade e do campo que garantiram o progresso da revolução.
Mesmo depois da eliminação de Urrutis, o governo ainda não tinha objetivos socialistas. Em sua primeira fase, estava absorvido pelas tarefas de satisfazer as reivindicações imediatas das massas trabalhadoras e de destruir as bases sociais da ditadura. O ponto crítico que impôs um salto qualitativo em direção a revolução socialista, foi a expropriação das propriedades imperialistas. Em virtude da associação existente entre o imperialismo e a burguesia cubana, a expropriação das propriedades nacionais se impôs em seguida. E, com a abolição da propriedade privada dos meios de produção na indústria, se impôs igualmente uma planificação da produção em bases socialistas. O povo cubano teve consciência desse fato, com a fracassada invasão de 1961, quando proclamou oficialmente a República Socialista de Cuba.
O fato de o governo de transição, operário e camponês, ter-se transformado num poder socialista, sem maiores conflitos internos, deve-se, no caso cubano, em grande parte, e já mencionada continuidade da liderança revolucionária. É preciso salientar, todavia, que sem a experiência do governo de transição, apoiado diretamente nos operários e camponeses armados, durante a qual se procurou solucionar os problemas sociais ainda no quadro da sociedade burguesa — contra a burguesia nacional e contra o imperialismo — os trabalhadores cubanos não teriam amadurecido tão rapidamente para a revolução socialista.
Nas discussões dos objetivos e do caminho a seguir, nós nos adiantamos aos acontecimentos, mas isso não diminui a importância da controvérsia. Os objetivos futuros representam o divisor de águas no presente.
Levantamos o problema do Governo Revolucionário dos Trabalhadores não porque represente uma palavra de ordem para o momento e sim por ser um item decisivo no programa mínimo, que tem de ser difundido claramente e sem subterfúgios na atuação propagandística no meio da classe operária. Qualquer palavra de ordem em torno de um futuro governo é sem propósito no presente (a não ser para aqueles que querem reformar o governo militar). Para nós, trata-se de mobilizar e preparar as massas operárias e camponesas para a luta contra a ditadura militar e seus sustentáculos e a palavra de ordem fundamental nessa fase, cuja duração desconhecemos ainda, é a Revolução dos Trabalhadores.
A palavra de ordem atual está estreitamente vinculada a do futuro e, por isso mesmo, não é de admirar que aqueles que são contra o Governo dos Trabalhadores acham igualmente “secretário demais” a Revolução dos Trabalhadores.
Com a propagação da Revolução e do Governo dos Trabalhadores defendemos como Organização, uma posição isolada na Esquerda brasileira. Isso não nos deve surpreender, nem assustar. Como Organização fomos a única que elaborou e defendeu uma linha teórica de luta proletária consequente contra todas as matizes da ideologia pequeno-burguesa que domina ainda a nossa esquerda oficial. Essa continua a resistir a um programa de ação, uma linha política e palavras de ordem que confiram ao proletariado a hegemonia na revolução brasileira. Destruídas as ilusões sobre o “Governo Nacionalista e Democrático”, a ideologia pequeno-burguesa refugia as suas esperanças em “Governos Populares e Democráticos”, ou “Populares Nacionalistas”, ou “Revolucionários Populares”, ou qualquer outro que possa esconder o caráter do propalado governo revolucionário e fugir da definição sobre o seu conteúdo de classe.
Quando nós nos definimos pelo Governo Revolucionário dos Trabalhadores levamos em conta os ensinamentos teóricos da Internacional Leninista, que tiveram a sua comprovação mais recente e mais espetacular talvez, justamente na América Latina. Levamos justamente em conta as condições concretas do movimento operário no Brasil e as suas tradições já criadas. A classe operária como a conhecemos hoje, cresceu dentro dos moldes do trabalhismo, que ainda pesa na sua formação. A questão essencial não é por um “Governo dos Trabalhadores a um “Governo Operário e Camponês” (não é por acaso que nove entre dez que levantam essa alternativa artificial se definam finalmente por um governo popular qualquer) mas dar às noções já adquiridas pelo trabalhador brasileiro um conteúdo revolucionário — e isso quer dizer um conteúdo de classe.
Não pode ser levado a sério também o argumento das experiências das revoluções populares na Ásia e em outros lugares onde se realizam revoluções agrárias, praticamente sem a presença de um proletariado industrial. Querer opor a existência de uma República Popular na China à Revolução dos Trabalhadores no Brasil, é querer, entre outras coisas, ignorar todo um desenvolvimento industrial, com o consequente aprofundamento da lutas de classe a base da contradição entre trabalho assalariado e capital no país, que cresceu continuamente desde 1930, é querer esquecer — com as palavras de Lênin — a “cisão do povo e sua divisão em burguesia e proletariado”, o traço característico da sociedade capitalista. Também, nesse caso, a aparente argumentação “radical” só visa a justificar uma prática direitista. O aprofundamento do presente debate o confirma. Para os apologistas das linhas populares, o proletariado é inevitavelmente “pequeno demais” ou “incapaz” de agir no momento, mas surge sempre um restinho de burguesia nacional que permite enfrentar o imperialismo.
Não cabe mais, nesta altura dos debates, voltar a defender a missão do proletariado brasileiro. Cabe, muito mais, nós nos sentirmos responsáveis pela situação em que se encontra e tornar mais consequente a luta. A hora é de definição de posições para toda a esquerda — é de vencer a herança pequeno-burguesa pela linha proletária militante.
Ernesto Martins
(Agosto de 1966)
O debate sobre estratégia e tática não seria conclusivo, se não incluísse as perspectivas insurrecionais na luta contra a ditadura aberta das classes dominantes do País e o imperialismo. O fato de rejeitarmos as teorias do caminho pacífico — principalmente depois do golpe de abril — obriga-nos a formular e fundamentar a alternativa insurrecional que se esboça nas lutas de classes no país e que está estreitamente vinculada à conjuntura interna nacional. Isso se impõe com maior urgência ainda porque o simples apelo à luta armada ainda não é uma alternativa revolucionária ao reformismo e à ideologia pequeno-burguesa reinante nas esquerdas.
Por luta armada muita coisa pode ser compreendida: atos de terror individuais, ação isolada de comandos na cidade, tentativas de golpes de mão, apoio a uma das facções das Forças Armadas burguesas, etc. Os nossos reformistas não são tão categoricamente contra toda luta armada como possa parecer. Prova disso é que grande parte deles confiou bastante tempo nos esquemas de "resistência" de Ladário, Ademar e Kruel, e renovará as suas esperanças em qualquer esquema de cobertura armada que porventura aparecer, para uma frente ampla, ou menos ampla ou nacionalista qualquer. Eles são, sim, contra a preparação política da luta armada no seio do proletariado e dos seus aliados, pois poderia "assustar" a burguesia nacional e são, especificamente, pelo menos no momento, e sob os mais diversos pretextos, contra a guerra de guerrilha.
Mas mesmo essa posição não deve ser tomada como absoluta. A experiência mostra que há facções reformistas e pequeno-burguesas nos partidos comunistas oficiais, que cedem à pressão e apóiam a luta de guerrilha, empenhando-se então em limitar essa luta — que não puderam evitar — a objetivos reformistas, como a "redemocratização" e a "soberania" do país, tentando enquadrá-la nas tradicionais alianças com facções da classe dominante. Esse fenômeno se deu tanto na Guatemala como na Venezuela, sendo que é neste último país onde mais desastrosamente se revelam seus resultados. Na Venezuela, onde a luta de guerrilha estava subordinada a "frentes únicas" com partidos burgueses, vemos as lideranças do PC e do MIR abandonarem essa forma de luta armada, quando se torna um obstáculo aos objetivos reformistas.
O que define a luta revolucionária da classe operária é a unidade e interdependência de métodos e objetivos. O uso isolado de métodos revolucionários, as concessões oportunistas feitas à pressão das bases radicais, não significam um rompimento com o reformismo e a ideologia da classe média, que prevalecerão e se farão sentir em todos os momentos de crise. É a origem das traições. E os revolucionários da Venezuela e dos demais países deste continente, os que se decidiram e se empenham em encontrar uma estratégia de luta armada na luta contra as suas classes dominantes e o imperialismo já as sentiram na própria carne.
Em segundo lugar, não podemos encarar o problema da luta armada e insurrecional isolado do contexto geral das lutas de classe. "A guerra é a continuação da política por outros meios". Essas palavras citadas mais de uma vez por Lênin, tomam hoje uma atualidade toda especial na nossa situação.
A forma de luta armada que está em foco, e que está hoje dentro de um raciocínio estratégico e tático, é a guerra de guerrilha. Está, de um lado, pelo precedente histórico. A experiência dos últimos 25 anos revelou o impacto dessa forma de luta armada nas lutas de classe. Revoluções vitoriosas, como a chinesa e a cubana, mostraram que não se trata de uma estratégia isolada, mas de uma forma de luta armada apropriada a países com um problema agrário agudo, países que não conheceram soluções em termos de revolução burguesa e onde existe uma aliança de classe em potencial entre o proletariado e a grande maioria da população do campo. Trata-se de países que travam igualmente uma luta contra o imperialismo.
A experiência mostra igualmente que os movimentos de guerrilha surgiram em fases de recesso do ciclo revolucionário, em momentos de aparente consolidação da contra-revolução. Na China as guerrilhas iniciaram as suas atividades quando o terror branco de Chang-Kai-Chek obrigou os comunistas a fugir das cidades, onde deixaram dezenas de milhares de cadáveres de companheiros não enterrados. A condição da futura vitória era a sobrevivência militar durante a longa época do reinado da contra-revolução. Em Cuba, o período de luta foi muito mais curto, mas foi igualmente a ação da guerrilha que cristalizou e formou o movimento de massas. Isso foi possível porque a luta de guerrilha requer recursos relativamente pequenos para iniciar a ação contra as Forças Armadas regulares muito superiores. O que decidiu a sobrevivência e posterior vitória — além das condições objetivas favoráveis — foram fatores qualitativos: consciência e moral políticas e objetivos de luta definidos.
Estas características da guerra de guerrilha, que chegaram a influir decisivamente nas lutas de classe em escala internacional, produziram certas generalizações que, de um lado, apresentam essa forma de luta como arma milagrosa, que resolve definitivamente o problema da luta revolucionária em todas as circunstâncias e, de outro, generaliza os métodos de luta de determinadas guerrilhas, em determinadas condições históricas, tanto no que diz respeito à sua tática militar, quanto aos aspectos políticos da luta. No que diz respeito à tentativa de apresentar a guerrilha como remédio final e definitivo nas lutas de classe, temos precedentes anteriores, que nos ensinam a não perder de vista o conjunto da luta de classe e das suas múltiplas formas, que se sucedem e se completam. Toda nova arma que as classes exploradas "descobriram" e aplicaram no decorrer da sua luta, tendia a ser generalizada da mesma maneira. Foi assim que se deu com a luta de barricadas, com a greve geral, etc., — cada qual tinha de se livrar do caráter de solução final e única, para encontrar o lugar que lhe cabia no conjunto da luta de classe.
Do mesmo modo, sempre prevaleceu uma tendência a generalizar a aplicação da estratégia e tática da revolução vitoriosa precedente, para garantir a vitória da próxima. Mas é justamente a aplicação mecânica de formas de luta que impede o real aproveitamento das experiências revolucionárias. No caso, impedem que a guerra seja de fato uma continuação da política por outros meios. Impedem que nós possamos de fato aproveitar os ensinamentos da guerra de guerrilha na luta contra a classe dominante e seu associado imperialista.
Para poder avaliar concretamente o papel da guerrilha no contexto da luta geral, é preciso ter em mente que a guerrilha em si não basta para o desfecho de uma guerra contra forças armadas regulares. A guerrilha mina, desgasta e desmorona a máquina opressora das classes dominantes, mas para derrotar militarmente um exército é preciso um outro exército. E aí é preciso, igualmente, lembrarmo-nos das palavras de Clausewitz de que uma batalha só é ganha definitivamente, quando um dos exércitos está eliminado. Por isso, na China, a última fase da guerra civil se caracteriza pela formação de um Exército de Guerrilheiros, que passa por todas as fases de organização militar, de batalhão a regimento, de brigada a divisão, para derrotar finalmente os exércitos de Chang-Kai-Chek em batalha de campo aberto.
Outra forma de desfecho vitorioso de uma guerra de guerrilha nos mostrou Cuba. Os guerrilheiros cubanos nunca foram em número suficiente para compor uma divisão, e muito menos para formar um exército. Quando desceram da serra para entrar na capital não ultrapassavam 1.800 homens, enquanto o exército de Batista ainda tinha 25 mil soldados em armas. O que decidiu a vitória foi a greve geral, o levante das cidades, que tornou à ditadura militar impossível a continuação da guerra. Foi o levante nas cidades que deu o golpe de misericórdia no exército de Batista.
Por trás dessas duas formas de desfecho da guerra de guerrilha, que determina toda uma tática militar durante a luta, há duas infra-estruturas sociais e políticas diferentes. O que é característico da guerrilha na Ásia, no seu exemplo clássico chinês, não é tanto a densidade da população dos países onde se desenrola — para sobreviver, a guerrilha chinesa tinha de se refugiar justamente em lenan, uma das regiões menos povoadas da China — mas o fato de se desenrolar num país ainda não transformado pela revolução burguesa. Foi o antagonismo criado por relações feudais — em sua forma específica asiática — que transformou a guerrilha em levante camponês em massa, o que forneceu a infra-estrutura para os exércitos de guerrilha, na última fase da guerra.
Esta infra-estrutura falta na América Latina. Não é puro acaso, certamente, que 70% dos guerrilheiros de Fidel eram camponeses sem terra, assalariados do campo, a facção mais radical da população rural, produto de uma sociedade capitalista. Em Cuba não chegou a haver um levante camponês. O fator decisivo foi o proletariado das cidades que lançou mão do seu método de luta clássico — a greve geral.
Também o exemplo de Cuba não é apresentado aqui para uma simples generalização das condições de luta na América Latina. Nem no sentido da afirmação de os assalariados do campo representar a única base material que a população do campo fornece para a luta de guerrilha. As condições variam de país a país na América Latina e nós tivemos exemplos de levantes camponeses na Bolívia, por exemplo, em 1952 — embora tenha se dado em seguida à ocupação da capital pelos mineiros.
Mas o fato de não se colocar no continente o problema da revolução burguesa antifeudal, tem de se refletir numa tática apropriada na luta de guerrilha. Em Cuba as contradições existentes no campo asseguraram aos guerrilheiros apoio e solidariedade de vastas camadas camponesas, e isso garantiu a sua sobrevivência, mas essas contradições não eram bastante profundas para transformar esse apoio e solidariedade igualmente em insurreição generalizada. Mas, independente das particularidades que cada país latino-americano oferece, tanto no que diz respeito às tradições históricas próprias e ao grau de desenvolvimento capitalista, pesa sobre a revolução continental o fato de faltar o impulso antifeudal, que pôde ser aproveitado pelos revolucionários chineses, por exemplo.
Outra diferença, vital para a guerrilha que se desenrola hoje em condições latino-americanas, diz respeito às condições políticas internacionais e seus reflexos nas lutas de classe nacionais — especificamente, ao papel desempenhado pelo imperialismo e as mudanças sofridas nas últimas décadas.
Na China a guerrilha surgiu como forma de luta de classe de uma vanguarda proletária mobilizando os camponeses contra a classe dominante e todos os matizes do domínio imperialista. Nesta fase os comunistas chineses propagaram a formação de SOVIETES de camponeses pobres e desencadearam a luta sob o signo da "Ditadura Revolucionária dos Operários e Camponeses" como fase da revolução burguesa, a ser transformada em proletária conforme padrão clássico leninista. Mas a guerrilha chinesa só passou para a ofensiva com e em conseqüência da guerra contra o Japão, isto é, na luta contra um imperialismo determinado, em aliança tácita com outro imperialismo. Foi em conseqüência dessa contradição inter- imperialista, que originou a Segunda Guerra Mundial, a aliança entre a União Soviética e as Potências Ocidentais, e sob pressão americana direta, que Chang-Kai-Chek teve de cessar a guerra civil e se instalou na China um "duplo poder".
Foi nessa fase que o Exército Vermelho dos Guerrilheiros se transformou em Exército de Libertação Nacional, apelando diretamente para a burguesia nacional chinesa para uma luta comum contra o invasor estrangeiro, que ameaçava a soberania do país, e sua própria sobrevivência como classe. Embora essa "colaboração de classes" fosse mais teórica do que real — tratava-se de um simples armistício interno rompido ainda antes do dia da derrota do Japão e os comunistas nunca conseguiram a formação de um governo de coalização ou de defesa nacional em conjunto com o Kuomintang — a literatura política dessa época deixou profundos marcos. Dentro do "aproveitamento" sem critério da experiência da revolução chinesa, qualquer movimento de guerrilha em novas condições parecia ligado de antemão a uma luta de "libertação nacional", embora enfrentasse uma frente única hostil da classe dominante, aliada ao imperialismo, contra qualquer tentativa de transformação social. Na época histórica em que a contradição inter-imperialista deixou de desempenhar o papel predominante e as burguesias nacionais se alinham com o imperialismo associado na defesa do sistema capitalista em escala mundial, a repetição das táticas de "libertação nacional", com seus apelos às burguesias nacionais, aplicado de modo genérico, só podia trazer revezes e derrotas, seja na guerra de guerrilha, como na Venezuela, ou na luta "pacífica", como na Indonésia.
Em Cuba, a guerrilha tinha renunciado de antemão à fórmula da "guerra de libertação nacional", mas assim mesmo a revolução cubana se deu sob circunstâncias políticas que não se repetirão no Continente. A mais importante é a inatividade do imperialismo diante da guerrilha cubana. Quando aquele se deu conta do caráter da revolução, já tinha passado o momento propício para uma intervenção eficiente. A arma secreta política da revolução cubana — inédita e irrepetível na história — era o fato de poder esconder, perante o imperialismo e a burguesia cubana, o seu verdadeiro caráter. Hoje, qualquer invasão de terras por camponeses latino-americanos movimenta conselheiros militares norte-americanos, qualquer tentativa de esconder o caráter e os objetivos de uma luta de guerrilha é estéril e só pode confundir e dificultar a mobilização das massas. A classe dominante não se confunde menos. A cobertura política da guerrilha tem de ser adaptada conscientemente às contradições concretas da luta de classe do país em que se desenvolve.
Na América Latina, as guerrilhas combatentes, desde os cubanos, foram iniciadas por destacamentos, em média entre 50 e 200 homens treinados militar e politicamente. A única exceção nesse sentido fornece a Colômbia, onde a guerrilha dispondo de raízes históricas particulares (e freqüentemente se misturando com uma espécie de cangaço), era um movimento de massa camponês, aproveitado freqüentemente nas lutas entre os partidos conservador e liberal, sem objetivos de caráter nacional e desligado do movimento político operário da cidade. Esse gênero de guerrilha está se esgotando e é justamente no decorrer do aprofundamento das contradições de classe no continente inteiro e da politização da guerrilha colombiana, que está se aproximando mais e mais da forma de guerrilha latino-americana defendida pela esquerda revolucionária.
O que caracteriza esta forma de guerra de guerrilha é o fato dela ser trazida da cidade para o campo. São quadros políticos com treino militar, oriundos em sua maior parte da cidade — estudantes, operários e revolucionários profissionais — que se deslocam para a serra. Nesta primeira fase a participação de quadros camponeses geralmente é mínima ou não existente.
O primeiro problema que se coloca para um destacamento de guerrilha desse gênero, antes mesmo de começar a luta, e supondo que tenha resolvido o problema da escolha da área de ação mais propicia, é a da preparação POLTTICA da guerra de guerrilha. Esta tem sido interpretada frequentemente como uma preparação política LOCAL, isto é, um trabalho preparatório entre os camponeses na região onde devia aparecer a guerrilha armada. Em primeiro lugar, não é este o sentido da preparação política da luta de guerrilha, que tem um papel em escala nacional a desempenhar. Preparar politicamente significa antes de tudo preparar as classes exploradas para a necessidade da luta armada contra o regime. Em segundo lugar significa divulgar claramente os objetivos dessa luta, para que os trabalhadores da cidade e do campo saibam para que a guerrilha está lutando, mesmo quando no início, e em certas fases da luta, os combatentes no campo não tenham ainda recursos materiais para transmitir diretamente as suas posições. Foi este recurso que Fidel Castro usou, quando anunciou publicamente que ia desembarcar em determinada data no litoral de Cuba. Este método saiu caro, de 80 combatentes só sobreviveram uma dúzia, mas hoje há outros recursos políticos mais racionais de preparação política da luta armada.
A preparação política local entre os camponeses é uma arma de dois gumes. A experiência mostra que hoje em dia, quando toda reação do continente está esperando a irrupção de focos de guerrilha, qualquer agitação local põe em movimento sistemas de vigilância, capazes de fazer abortar os movimentos armados no seu momento mais crítico: na saída. Foi esse o caso da guerrilha de Salta(10), por exemplo; o trabalho político anterior entre os camponeses, realizado durante um ano levou ao desbaratamento do dispositivo militar. A preparação deste é um trabalho absolutamente conspirativo, que tem de contar com o fator surpresa. O trabalho político entre os camponeses terá de ser feito com a arma na mão, devendo a guerrilha já estar preparada para defender a sua sobrevivência em qualquer eventualidade. E justamente o exemplo de Cuba mostra que, uma vez escolhido o terreno apropriado para a ação, a preparação política local anterior se torna dispensável. Fidel Castro relata sobre a marcha dos sobreviventes do desembarque:
"... quando chegamos à Sierra Maestra, era evidente que haviam certos tipos de luta que ainda não havíamos organizado; ou seja, sequer havíamos feito um estudo geográfico da Sierra Maestra; sequer havíamos efetuado uma organização prévia em Sierra Maestra... Talvez seja bom insistir nestes fatos, para que sirvam de exemplo a outros povos explorados. Devemos dizer que não conhecíamos sequer um camponês de Sierra Maestra, e inclusive, as únicas noções que tínhamos sobre Sierra Maestra eram as que havíamos aprendido nos livros de geografia...".
"Que encontramos em Sierra Maestra? Encontramos os primeiros camponeses que quiseram juntar-se a nós, alguns poucos camponeses, muito esporádicos; primeiro os revezes, a dispersão; alguns camponeses que ajudaram a reunir os restos daquelas forças. Esse grupo de camponeses — muito reduzido — ajudou-nos a entrar mais para o interior de Sierra Maestra; e então começaram a se incorporar outros camponeses.
Naturalmente começamos a fazer um trabalho de politização entre os camponeses, a explicar-lhes quais os objetivos da revolução".(11)
Isso não significa que toda guerrilha tenha de se iniciar em tais condições desvantajosas, mas a insistência no trabalho político local, como "condição prévia" para uma luta de guerrilha, evidentemente não se baseia em experiência histórica e, freqüentemente, não passa de um pretexto para adiar a ação da guerrilha para o dia do juízo final.
Mas há outro motivo ainda, que torna problemático os efeitos e a necessidade da "preparação política local". Uma das condições da sobrevivência da guerrilha contra os exércitos de hoje e seus recursos fornecidos pelo Pentágono, é a mobilidade, sua extrema mobilidade. Significa isso que a guerrilha deve estar sempre preparada a deixar regiões a penetrar em outras novas. Se a locomoção da guerrilha para novas regiões dependesse de um trabalho político local prévio, ela ficaria paralisada e à mercê das forças superiores do Exército. A guerrilha tem de fazer constantemente trabalho político, aproximar-se sempre de novas camadas do campo, e ela fará esse trabalho de politização com a arma na mão.
Ao fator da mobilidade da guerrilha é oposto frequentemente a questão da necessidade de bases, em forma de "regiões libertadas" ou "zonas de segurança" como fator de sobrevivência. Em parte trata-se de deduções tiradas de leitura da guerrilha chinesa, principalmente da fase de lenen — que ainda não se repetiu sob as condições da luta na América Latina. Mas, de outro lado, trata-se de uma tentativa diletante de querer generalizar aspectos de uma luta já avançada e desenrolada. Mesmo os guerrilheiros chineses, que começaram a luta em 1927/28, tiveram de esperar até 1934, até acumular forças para poder estabelecer e defender com sucesso semelhantes bases territoriais. Mesmo abstraindo das condições particulares em que se desenvolveu a guerrilha na China, e as mudanças no armamento que se verificaram então nas Forças Armadas de repressão (não por último o papel da aviação), tais generalizações não visam outra coisa do que querer começar a luta pelo fim. E a mesma atitude daqueles que quando discorrem sobre guerrilha começam a raciocinar em termos de "exércitos de libertação". Querer começar a luta de guerrilha com semelhante tática é entregar os combatentes à destruição.
Um dos aspectos particulares levantados pelas condições latino-americanas são as relações entre guerrilha e partido político. Em suma há duas opiniões que se enfrentam nos debates que se desenrolam em torno dessa questão. Por um lado, os que sustentam o ponto de vista que, para o desencadeamento da guerra de guerrilha, é necessária a prévia formação de um partido político revolucionário, para sustentar e orientar a luta e assegurar a unidade da ação da guerrilha com a luta nas cidades. A outra opinião defende o ponto de vista que, especialmente nas condições particulares da América Latina, é a ação armada da guerrilha que dará lugar ao surgimento de novos partidos revolucionários.
Essa controvérsia sobre a primazia de partido ou guerrilha não deve ser confundida com outra argumentação que preestabelece um novo ascenso do movimento de massa como condição para a criação de focos.
Esse argumento, que não se alimenta de nenhuma experiência real — como já assinalamos antes — equivale a um antiguerrilhismo envergonhado.
No que diz respeito à controvérsia partido x guerrilha, que tem a sua razão de ser, parece-nos, todavia que o modo como está sendo colocado, isto é, o modo como está sendo generalizado por ambos os lados, dificulta a sua solução. Pelo papel político que atribuímos à guerrilha na luta de classes, pressupõe-se que o foco armado sai apoiado em concepções políticas definidas e com objetivos políticos claramente delineados, que possam mobilizar as massas exploradas do país numa luta em escala nacional. E isso pressupõe a existência de uma vanguarda política, que já tenha realizado esse trabalho indispensável de esclarecimento teórico que para nós, marxistas, sempre foi uma atividade muito prática, a do conhecimento do terreno em que a luta tem de ser travada, a do saber para que lutar. A forma ideal que essa vanguarda pode tomar é a do partido revolucionário, mas há condições que podem dificultar ou atrasar a formação desse partido. Tradições políticas particulares em cada país, derrotas recentes, recesso do movimento de massas e outros fatores, como justamente a falta de uma resistência armada à vitória da reação, podem tornar mais penoso o processo de formação do partido.
É justamente o surgimento de um foco armado com uma posição política que oferece uma perspectiva revolucionária tanto para as forças lutando no campo, como as da cidade, que pode acelerar a formação do partido. Condição evidente é que existam em potencial as forças que podem formar o partido no decorrer do aguçamento da luta.
O partido também pode existir em tese. Mas entre os diversos tipos de partidos, mesmo revolucionários, há diferenças. Nas condições da ilegalidade, o partido será de quadros, limitado pelas condições da clandestinidade. Não será um partido de massa. Com poucos milhares de militantes seremos, sem dúvida, nas condições de hoje, um partido revolucionário, mas sempre limitados pela ilegalidade, de atingir as vastas massas dos explorados deste país. O foco as atingirá em escala muito maior, porque concentra a atenção de amigos e inimigos e repercute materialmente. A força física e numérica dessa vanguarda, ou do partido, necessária ao desencadeamento e sustentação de uma luta de guerrilha, variará de país a país, das condições sociais e econômicas do país, e, mais concretamente, do papel e peso específico que as forças revolucionárias da cidade, o proletariado urbano, desempenham nas lutas de classe em seu conjunto.
Por isso nos parece também precipitado querer estabelecer de modo geral para o continente a premissa de que a guerrilha precede ao partido na luta. Trata-se mais de uma tentativa de tornar uma virtude o ponto fraco que caracteriza a luta de classe em quase todos os países latino-americanos: a lentidão com que se formam os novos partidos revolucionários em oposição ao reformismo tradicional. Mas mesmo assim, as condições objetivas e subjetivas variam entre os diversos países latino-americanos. Nossa tarefa, antes de tudo, tem de ser analisar condições e perspectivas da luta no Brasil.
Partimos da análise que, pelas condições objetivas, a revolução no Brasil é socialista, isto é, só pode realizar-se atingindo objetivos socialistas. Que a luta contra o imperialismo na atual fase das relações mundiais só pode ser vencida com a superação das atuais bases capitalista-latifundiárias da economia brasileira e que a alternativa real, que se coloca nas lutas de classe é ditadura da burguesia. associada ao imperialismo x ditadura do proletariado, apoiada pelas massas trabalhadoras do campo.
As massas trabalhadoras do país, incluindo o proletariado industrial, não tem consciência ainda dessa alternativa e, portanto, ainda não se orientaram para uma luta nesse sentido, apesar da oposição mais ou menos consciente dos seus diversos setores, à classe dominante e ao imperialismo. Da parte dos partidos reformistas nunca houve nem o empenho de dar ao proletariado uma consciência de classe no sentido mais amplo. Muito menos ainda houve a preocupação de dar uma educação socialista às massas. Considerando esse aspecto particular das lutas de classes no país e levando em conta que no decorrer do aprofundamento do processo revolucionário será colocado para nós o problema do governo de transição, concluímos que a esquerda revolucionária deve estar preparada para participar ou apoiar um Governo Revolucionário dos Trabalhadores, sustentada pela Frente dos Trabalhadores, da cidade e do campo, como passo decisivo em direção à revolução socialista.
Partimos da premissa que uma Frente dos Trabalhadores da Cidade e do Campo representa a aliança das classes revolucionárias do País, o proletariado industrial, os trabalhadores do campo e os pequenos camponeses e a parte da pequena- burguesia que se alia ao proletariado em ascensão. Que a condição indispensável para a criação de tal aliança de classes revolucionaria é a formação e mobilização do proletariado como classe independente, a única classe em condições de liderar e aprofundar o processo revolucionário. É em torno do proletariado que se aglomerarão e organizarão as massas dispersas dos trabalhadores rurais e as camadas das classes médias assalariadas e semi-assalariadas. A formação desse proletariado como classe independente continua, portanto a tarefa cardinal de qualquer movimento revolucionário conseqüente.
Aceitando essas premissas, temos de enquadrar o problema da guerrilha no quadro geral da luta de classes no País. A guerrilha não pode SUBSTITUIR a luta de classes. Tem de fomentá-la, aguçá-la, tem de polarizar as forças existentes. Tem de repercutir, conseqüentemente, sobre o comportamento e a atuação dessa classe que consideramos revolucionária, destinada a alterar as relações de forças sociais. Se nós consideramos que essa classe mais conseqüente no processo revolucionário do país é o proletariado, isso determina as condições concretas para o desenrolar da luta de guerrilha.
Um dos aspectos fundamentais dessa realidade nacional é o fato de a INICIATIVA POLÍTICA e a DECISÂO FINAL dos grandes problemas políticos estarem nas mãos de classes urbanas. A atual ditadura representa um governo burguês, independente das concessões que se faça aos aliados latifundiários. Ela foi preparada nas cidades, precedida por movimentos de massas — as "marchas de família", e a mobilização das classes médias reacionárias de Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro — e ela terá de ser derrubada nas cidades. O caminho da revolução — tanto quanto o da reação — passa pelo campo. Se a burguesia, nos momentos decisivos (sem falar das eleições do passado) mobiliza as forças reacionárias rurais, o proletariado só pode vencer em aliança com o potencial revolucionário do campo. Isso em si já justifica a guerrilha. Esta realizará, desde o início, em miniatura a aliança operário-camponesa. Em escala nacional, porém, só atingirá esse objetivo se tiver clareza do papel que as classes desempenham na sociedade brasileira, se souber fazer uso do potencial revolucionário existente.
O potencial revolucionário IMEDIATO com o qual terá de contar são sem dúvida os camponeses, pequenos proprietários, posseiros, meeiros, trabalhadores do campo, etc., cujas aspirações e necessidades a guerrilha terá de levar em conta. Isso é uma questão de sobrevivência para ela. Sem a simpatia e o apoio dessas camadas nenhum foco perdurará.
Mas esse efeito político da guerrilha será, por muito tempo, regional. Ele será transmitido pelos camponeses por zonas maiores ou menores, dentro do alcance das comunicações verbais dos camponeses, pois de organização e de literatura eles não dispõem. Para influir sobre as relações de forças políticas em escala nacional, a guerrilha tem de se fazer ouvir com soluções para os problemas políticos nacionais. Na prática isso significa que ela tem de apelar para o proletariado das cidades.
Apelar para o proletariado não se resume em apelos gerais à luta armada. Estes têm de ser feitos, não há dúvida, mas por muito tempo não passarão de uma palavra de ordem educativa. Apelar para o proletariado significa apelar para sua consciência de classe, encorajar a luta dentro da fábrica, dentro da indústria, dentro das cidades contra o Estado burguês, contra a burguesia em aliança com o imperialismo. E apelar para os métodos tradicionais de luta revolucionaria do proletariado, a fim de prepará-lo para os métodos não tradicionais.
Dirão talvez que essas tarefas competem a um partido. Concordamos que competem a um partido, quando este existe. Mas, em primeiro lugar, se "a guerra é a continuação da política com outros meios", tem de haver e haverá em todas as circunstâncias uma continuidade entre a atuação da guerrilha e do partido. Em segundo lugar, ainda não temos este partido revolucionário. Temos vanguardas de luta ideológica e de propaganda comunista, que estão procurando encontrar o caminho para a ação revolucionária. Sua existência já é uma condição para o início de uma guerrilha conseqüente. E nesse sentido não há dúvida que a guerrilha em parte, preenche o vácuo da não existência de um partido revolucionário. Em parte, e por certo prazo, porque no presente estágio de desenvolvimento do país, no qual o proletariado tem um papel decisivo na luta, o partido se torna indispensável para a mobilização e organização das massas operárias, que não podem ser orientadas simplesmente à distancia.
Embora nas atuais condições de reagrupamento político da esquerda revolucionária do país a guerrilha possa preceder ao partido, a formação deste se torna indispensável no decorrer da luta, como uma condição para a vitória do movimento revolucionário. De outro lado, não temos dúvida que esse partido surgirá e endurecerá com as perspectivas de luta, que uma guerrilha politicamente consciente oferecerá aos quadros revolucionários dispersos no País.
É sob este ângulo que temos de encarar igualmente o problema da liderança e da sua localização durante a luta. Nas condições em que a luta se desenrolará no país, em que a ação da guerrilha não se pode se limitar à mobilização de camponeses e que impõem a formação de um partido revolucionário nos centros do proletariado industrial, não podemos querer deslocar de antemão a direção do movimento para o foco. Ela tem de estar no foco, na cidade, tem de estar presente na ação militar, e na luta de massa, tem de coordenar a luta de classe na cidade e no campo, guiada pelos objetivos políticos da revolução no país e velar por uma estratégia geral que garanta a vitória final. Esta se dará quando a guerra de guerrilha desembocar numa insurreição do proletariado, que liderará as massas exploradas do país contra a reação interna e a intervenção imperialista.
Desde que saímos para a luta ideológica e nos constituímos em vanguarda a nossa atuação foi determinada pelo saber que a revolução no Brasil vencerá como revolução proletária, ou deixará de ser revolução. As circunstancias da nossa atuação mudaram, mas o desenrolar dos acontecimentos só ajudaram a enraizar essa certeza teórica em círculos mais vastos de revolucionários do país. Hoje, quando as necessidades da atuação revolucionária se apresentam em um nível mais alto, a realidade da ditadura militar nos obriga a estudar e aprender com as experiências da luta de classe em escala internacional que não podem ser ignoradas por nenhum comunista militante. Mas a tarefa é maior ainda. Aprender com a experiência é saber aproveitá-la dentro da realidade concreta das lutas de classe no próprio país. E esse um dos segredos das revoluções vitoriosas.
CN da ORM-PO
Julho de 1967
Notas de rodapé:
(1) ISEB - Instituto Superior de Estudos Brasileiros, centro de estudos vinculado ao MEC, criado pelo então Presidente Café Filho. Funcionou como centro irradiador de idéias em torno da política desenvolvimentista durante o governo Juscelino Kubitschek. Foi extinto pelo golpe militar de 1964. (retornar ao texto)
(2) Importante comício da fase final do governo João Goulart, realizado no dia 13 de março de 1964, em frente à Central do Brasil, no Rio de Janeiro. Reuniu cerca de 150.000 pessoas. Jango anunciou uma série de medidas relativas às “reformas de base”. (retornar ao texto)
(3) Fonte: “Desenvolvimento e Conjuntura”, julho de 1961, citado por Otávio Ianni, em “Estado e Capitalismo ”. (Nota do autor). (retornar ao texto)
(4) CENOP = Comissão Nacional de Organização Provisória, órgão criado pelo PCB em 1942, no Rio de Janeiro, com o objetivo de rearticular o partido nacionalmente. (retornar ao texto)
(5)
Conferência de Ialta: Em meio à II guerra mundial, Roosevelt, Stalin e Churchill reuniram-se em segredo, em fevereiro de 1945, na estação balneária de Ialta, na Criméia, para decidir o fim da Guerra e a repartição das zonas de influência entre o Oeste e o Leste. Os acordos assinados visariam assegurar um fim rápido à guerra e a estabilidade do mundo após a vitória final.
Conferência de Potsdam: após a vitoria, em maio de 1945, os aliados se reuniram em Potsdam, Alemanha, entre Julho e Agosto de 1945, para decidir como administrar a Alemanha, que tinha rendido se incondicionalmente nove semanas antes. (retornar ao texto)
(6) DIP = Departamento de Imprensa e Propaganda, órgão criado por Getúlio em dez/39 com o objetivo de difundir a ideologia do Estado Novo junto às camadas populares. Chegou a possuir super poderes, assumindo a centralização das informações e a função de censor de todas as manifestações culturais do País. (retornar ao texto)
(7) Em agosto de 1950, avaliando o governo Dutra como de traição nacional, o PCB lançou o “Manifesto de Agosto ”, que definia o regime como uma ditadura feudal burguesa a serviço do imperialismo. Preconizava uma solução revolucionária que deveria ser articulada em torno de uma “Frente Democrática de Libertação Nacional ”, sob a liderança do proletariado. (retornar ao texto)
(8) Difusão Européia do Livro - São Paulo, 1966. (Nota do Autor) (retornar ao texto)
(9) Termo pejorativo utilizado na época para designar os grandes capitalistas. (retornar ao texto)
(10) Salta = Província situada no noroeste da Argentina, fazendo divisa com Chile, Bolívia e Paraguai. (retornar ao texto)
(11) Fidel Castro, "Três Declarações Fazem História" - Editora Brasiliense, 1962. (Nota do Autor) (retornar ao texto)
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Inclusão | 24/02/2013 |