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Primeira Edição: Política Operária nº 51, Set-Out 1995
Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
No centenário da morte de Friedrich Engels (5 de Agosto de 1895), recordamos a sua personalidade fascinante de revolucionário, em que o pensador original se une ao militante e homem de acção.
Nada mais afastado da realidade do que a imagem por vezes divulgada de Engels como um mero colaborador de Marx.
Filho de um rico industrial, Friedrich Engels parecia fadado a uma confortável carreira burguesa. Mas os tempos eram de grande agitação democrática e nacionalista nos meios estudantis.
Em breve o pai teve de mandar o jovem irreverente, que se declarava comunista e ateu, administrar uma fábrica da família em Inglaterra, esperando que “ganhasse juízo”. O efeito foi oposto. Engels começa a frequentar os meios operários de Manchester, acompanha o dia-a-dia duma greve geral e, para maior desgosto da família, passa a viver com uma operária irlandesa!
“Bastaram alguns dias na fábrica do meu velho para me pôr face a face com o que até então não me apercebera — a bestialidade que representa ser-se um industrial, em luta activa contra o proletariado”, escreve horrorizado ao seu jovem amigo Karl Marx, com quem trava amizade em Paris. É desta fase o seu primeiro trabalho, Situação da classe operária na Inglaterra, estudo exaustivo que marca o começo dum compromisso com os explorados, até ao fim da vida.
Regressado à Alemanha, Engels lança-se em actividades clandestinas, e acaba por ter que se exilar em Bruxelas, onde reencontra Marx. Juntos escrevem as suas primeiras obras filosóficas, A Sagrada Família e A Ideologia Alemã, de crítica à escola idealista. São anos de crise económica, de miséria e de efervescência operária. Assumindo-se definitivamente como comunistas, Marx e Engels fundam a Liga dos Comunistas e redigem o “Manifesto do Partido Comunista” onde, pela primeira vez, a história é vista sob o ângulo da luta de classes e se argumenta a necessidade do derrubamento do capitalismo. Logo depois rebenta a revolução de 1848, que, de Paris, alastra a grande parte da Europa e em que a burguesia democrática se vê ultrapassada pelo proletariado na luta contra a reacção.
Engels regressa com Marx à Alemanha em tumulto. Acreditam que a luta poderá ser levada às últimas consequências, até à revolução comunista. Lançam em Colónia um diário que exerce grande influência, integram o Comité de Salvação Pública, participam em comícios com milhares de trabalhadores, mas a cidade é ocupada pela tropa e fogem para não ser presos. Um ano depois, já com Marx novamente no exílio, Engels ainda participa num novo levantamento, organiza destacamentos de operários e bate-se no último reduto revolucionário, no Palatinado. Por fim, derrotada a insurreição, vê-se forçado ao exílio na Suíça e depois em Londres, onde já se encontrava Marx.
Com o movimento de massas em refluxo e a reacção triunfante, a actividade política tornava-se difícil. Marx lança-se a trabalhar furiosamente na obra da sua vida, O Capital, e Engels não tem dúvida em sacrificar os seus próprios projectos, conformado a gerir os negócios familiares para poder sustentar o amigo. Mas nunca perdem de vista a luta prática. À medida que o movimento democrático e revolucionário se reanima, dedicam-se a aglutinar núcleos operários. Em 1865, os esforços de ambos são coroados pelo primeiro congresso da Associação Internacional dos Trabalhadores e pouco depois é publicado o primeiro volume de O Capital. É o momento alto das suas vidas – finalmente, a organização e a crítica independente do proletariado afirmam-se perante a sociedade burguesa.
A vida da Internacional é contudo acidentada. O proletariado, de formação muito recente, mostra-se receptivo às teorias de Proudhon, que exprimem mais a nostalgia pelo passado artesanal do que o avanço para os horizontes do comunismo. O marxismo inicia uma difícil luta contra o reformismo.
De Londres, Marx e Engels acompanham com entusiasmo a revolução da Comuna de Paris, que confirma as suas previsões: o proletariado é capaz de tomar o poder e de lançar os alicerces de um novo estado, baseado no povo em armas e na democracia participativa em acção. A dura derrota mostrou-lhes que isso passa pela destruição do aparelho de Estado e pela ditadura do proletariado sobre a burguesia – é o coroamento da teoria marxista da revolução.
Para já, porém, o esmagamento da Comuna alarga a influência das ideias anarquistas e reformistas. Com parte da organização dominada por Bakunine, Marx e Engels tentam em vão imprimir-lhe uma orientação coerente e a AIT acaba por morrer ingloriamente nos Estados Unidos.
Mesmo assim, a influência do marxismo continua a alastrar e dá origem ao primeiro grande partido operário de massas, o PSD alemão. Como o partido resultava dum compromisso entre diversas correntes, Engels expõe o marxismo de forma sistemática numa série de artigos que vêm a constituir o Anti-Dühring, a sua obra mais importante.
Nos últimos anos, após a morte de Marx, Engels, dedica-se ao trabalho insano de decifrar, redigir e editar os manuscritos deixados pelo seu companheiro, a fim de completar a publicação de O Capital. É também desse período A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Ao mesmo tempo, corresponde-se assiduamente com os dirigentes do movimento operário, um pouco por todo o mundo, preparando o nascimento da II Internacional.
Em 1890, aos 70 anos, Engels está presente na gigantesca manifestação do lº de Maio em Hyde Park, acompanhando com entusiasmo juvenil a reanimação do movimento operário inglês sob o impacte dos sectores mais pobres do proletariado, que rompem, aliás fugazmente, a hegemonia dos chefes trade-unionistas.
A Internacional renasce. Mas à medida que cresce por toda a Europa, Engels, reverenciado como fundador da Liga dos Comunistas e companheiro de Marx, vai ficando isolado, remetido ao lugar de glória de museu. Em Abril de 1895, poucos meses antes de morrer, ainda ele protesta contra os cortes realizados por Liebknecht ao seu prefácio às Lutas de Classes em França de Marx, “a ponto de me transformar num pacífico adorador da legalidade a todo o custo”. Consegue que a edição seja suspensa mas já não está ao seu alcance deter a corrupção reformista do movimento, que levará à bancarrota da II Internacional.
Tornou-se moda invocar o “mecanicismo” e o “determinismo” das concepções de Engels. É uma crítica que ignora a riqueza do seu pensamento.
Com uma invulgar vastidão de conhecimentos, capaz de passar do estudo da família primitiva ao da filologia irlandesa, dominando uma série de línguas, apaixonado pelas questões militares da revolução, jornalista e panfletário, verdadeiro enciclopedista moderno, aberto a tudo o que era novo, Engels não tinha nada dos criadores de sistemas filosóficos fechados, como era moda no seu tempo. Ocupou boa parte dos seus últimos anos a lutar contra o simplismo das vulgarizações marxistas que alastravam no movimento social-democrata, Quando entrou em polémica com Dühring, por exemplo, foi para opor às “verdades imutáveis” deste uma noção profundamente dialéctica da evolução, apoiada no exame exaustivo dos factos, em que nada é considerado estável e duradouro.
Naturalmente, a síntese esboçada por Engels em Dialéctica da Natureza (texto publicado a partir de apontamentos por ele deixados com a menção “a rever”), com base nos conhecimentos científicos da época, teria que se ressentir da passagem do tempo.
Censura-se também por vezes a Engels o facto de não ter provocado uma ruptura aberta entre duas linhas na II Internacional, permitindo que os dirigentes oportunistas continuassem a creditar-se como marxistas até à traição de 1914. Para alguns, Engels deveria ser mesmo considerado como o mentor do revisionismo de Bernstein, Kautsky e Plekhanov.
A acusação é injusta, já que Engels lutou até ao último alento contra a maré reformista que submergia o marxismo. De qualquer modo, a crítica deve ser analisada no quadro da evolução do movimento operário, muito diferente da que os dois amigos tinham antecipado.
Nos últimos anos de vida, Engels reconheceu o erro em que incorrera com Marx quando na juventude, perante as convulsões de 1848-49, chegaram a pensar que a Europa estivesse madura para a revolução socialista e que esta fosse possível pela acção duma vanguarda audaciosa. “A revolução proletária, ou envolverá a maioria dos proletários, ou não será nada”. Daqui deduzia Engels a necessidade de os comunistas, em período não revolucionário, se dedicarem a um trabalho longo e paciente de propaganda, baseado na actividade parlamentar e sindical, não se deixando seduzir pelas tácticas abstencionistas do anarquismo, que os levariam ao definhamento em seitas.
O princípio era justo mas, nas novas condições sociais da Europa, dava lugar ao florescimento do oportunismo e do reformismo nos partidos social-democratas. A luta de Engels era impotente para deter a invasão do movimento operário pela ideologia burguesa. Hoje podemos concluir que Engels não encontrou solução para o novo tipo de conflitos trazidos pela era imperialista que começava.
Também na questão nacional. O pensamento de Engels, formado na época do ascenso democrático-burguês, conservara traços de nacionalismo; exaltava, por exemplo, a capacidade dos alemães, mas achava os eslavos incapazes de vir a constituir-se como nações-estado. Nos últimos anos, esse ponto de vista levou-o a pronunciar-se favoravelmente à Alemanha, centro do progresso capitalista, na eventualidade duma guerra defensiva contra a Rússia, então o baluarte do obscurantismo e da reacção. O que esta opinião não tinha em conta era que o progresso do capitalismo trazia no bojo o expansionismo, a agressão e a reacção em toda a linha – o imperialismo nascente, afinal. A Alemanha avançada era muito mais perigosa que a Rússia atrasada.
Coube a Lenine, anos mais tarde, ultrapassar esse impasse e actualizar a teoria e a táctica da revolução – não já nas metrópoles do capitalismo, corrompidas pelo reformismo, mas nos “elos fracos da cadeia imperialista”, nos países dependentes.
“Se no início de Novembro já era demasiado tarde para tentar a resistência armada ou se uma parte do exército, ao encontrar oposição séria, se teria passado para o lado da Assembleia e decidido assim o conflito a favor desta, é coisa que nunca se conseguirá saber. Mas tanto na revolução como na guerra é sempre necessária fazer face ao inimigo; aquele que ataca tem sempre vantagem; e tanto na revolução como na guerra é sempre necessário jogar tudo por tudo no momento decisivo, sejam quais forem as possibilidades. (…) Uma derrota depois dum duro combate é um facto de tanta importância revolucionária como uma vitória facilmente obtida. As derrotas de Paris, em Junho de 1848, e de Viena, em Outubro, contribuíram certamente mais para revolucionar o espírito do povo destas duas cidades do que as vitórias de Fevereiro e Março. A Assembleia e o povo de Berlim teriam provavelmente partilhado o destino destas duas cidades mas teriam caído com glória e deixado atrás de si no espírito dos sobreviventes um desejo de desforra que, em tempos de revolução, é um dos maiores incitamentos à acção enérgica e apaixonada. (…) Numa revolução, aquele que detém uma posição decisiva e a abandona, em vez de obrigar o inimigo a pôr as suas forças à prova no combate, merece sempre o nome de traidor” (Revolução e contra-revolução na Alemanha, XIII).
Aqui está um bom exemplo daquilo que Álvaro Cunhal costuma apelidar de “provocação esquerdista”. E Engels, como classificaria a prudência do PCP no Verão de 75?
Inclusão | 16/10/2018 |