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Este ensaio pretende dar uma explicação compreensível e coerente de uma das leis fundamentais da história humana, a lei do desenvolvimento desigual e combinado. É a primeira vez, em minha opinião, que se tenta fazer isto. Procurarei demonstrar o que é esta lei, como funcionou nas principais etapas da história e também como pode clarificar alguns dos mais importantes fenômenos sociais e problemas políticos de nossa época.
A lei do desenvolvimento desigual e combinado é uma lei científica da mais ampla aplicação no processo histórico. Tem um caráter dual ou, melhor dizendo, é uma fusão de duas leis intimamente relacionadas. O seu primeiro aspecto se refere às distintas proporções no crescimento da vida social. O segundo, à correlação concreta destes fatores desigualmente desenvolvidos no processo histórico.
Os aspectos fundamentais da lei podem ser brevemente exemplificados da seguinte maneira: O fato mais importante do progresso humano é o domínio do homem sobre as forças de produção. Todo avanço histórico se produz por um crescimento mais rápido ou mais lento das forças produtivas neste ou naquele segmento da sociedade, devido às diferenças nas condições naturais e nas conexões históricas. Essas disparidades dão um caráter de expansão ou compressão a toda uma época histórica e conferem distintas proporções de desenvolvimento aos diferentes povos, aos diferentes ramos da economia, às diferentes classes, instituições sociais e setores da cultura. Esta é a essência da lei do desenvolvimento desigual. Essas variações entre os múltiplos fatores da história dão a base para o surgimento de um fenômeno excepcional, no qual as características de uma etapa inferior de desenvolvimento social se misturam com as de outra, superior.
Essas formações combinadas; têm um caráter altamente contraditório e exibem acentuadas peculiaridades. Elas podem desviar-se muito das regras e efetuar tal oscilação de modo a produzir um salto qualitativo na evolução social e capacitar povos que eram atrasados a superar, durante certo tempo, os mais avançados. Esta é a essência da lei do desenvolvimento combinado. É óbvio que estas duas leis, estes dois aspectos de uma só lei, não atuam ao mesmo nível. A desigualdade do desenvolvimento precede qualquer combinação de fatores desproporcionalmente desenvolvidos. A segunda lei cresce sobre a primeira e depende desta. E, por sua vez, esta atua, sobre aquela, afetando-a no seu posterior funcionamento.
A descoberta e formulação desta lei é o resultado de mais de dois mil e quinhentos anos de investigações teóricas sobre as formas de desenvolvimento social. As primeiras observações sobre ela foram feitas pelos filósofos e historiadores gregos. Mas a lei como tal foi levada a primeiro plano e efetivamente aplicada, pela primeira vez, pelos fundadores do materialismo histórico, Marx e Engels, há aproximadamente um século. Esta lei é uma das maiores contribuições do marxismo à compreensão científica da história e um dos mais poderosos instrumentos de análise histórica.
Marx e Engels, por sua vez, derivaram a essência desta lei da filosofia dialética de Hegel. Hegel utilizou a lei em suas obras sobre a história universal e a história da filosofia, porém sem lhe dar um nome especial nem reconhecimento explícito.
Da mesma maneira, muitos pensadores dialéticos, antes e depois de Hegel, utilizaram esta lei em seus estudos e aplicaram-na mais ou menos conscientemente, para a solução de complexos problemas histórico-sociais e políticos. Os mais destacados teóricos do marxismo, desde Kautsky e Luxemburgo até Plekhanov e Lênin, reconheceram a sua importância, observaram seu funcionamento e conseqüências e usaram-na para a solução de problemas que confundiam a outras escolas de pensamento.
Citemos um exemplo de Lênin, que baseou nesta lei sua análise da primeira etapa da revolução russa de 1917. Em suas "Cartas de Longe" escrevia, da Suíça, aos seus colaboradores bolcheviques:
"0 fato de que a revolução (de fevereiro) tenha ocorrido tão rapidamente... deve-se a uma conjuntura histórica incomum, na qual se combinavam, de maneira 'altamente favorável', movimentos absolutamente distintos, interesses de classe absolutamente diferentes e tendências políticas e sociais absolutamente opostas". (Collected Works, Book I, pág. 3 1.)
O que havia ocorrido? Um setor da nobreza e dos proprietários rurais russos, a oposição burguesa, os intelectuais radicais, os operários e soldados insurretos, junto com os aliados do imperialismo - forças sociais absolutamente antagônicas - haviam se unido momentaneamente contra a autocracia czarista. Cada qual pelas suas próprias razões. Todas juntas sitiaram, isolaram e derrubaram o regime dos Romanov. Essa. extraordinária e irrepetível conjuntura de circunstâncias e combinações de força surgiu da totalidade de desigualdades prévias do desenvolvimento histórico russo por seus largamente adiados e não resolvidos problemas sociais e políticos exacerbados pela primeira guerra imperialista mundial.
As diferenças, que haviam desaparecido superficialmente na ofensiva contra o czarismo, se manifestaram imediatamente e não passou muito tempo até que esta aliança de fato, de forças opostas por natureza, se desintegrasse e rompesse. Os aliados da revolução de fevereiro de 1917 se transformaram nos inimigos irreconciliáveis de outubro de 1917.
Como se chegou a isto? A queda do czarismo, na época, produziu um desigualdade nova e superior, na situação, que pode ser sentida na seguinte fórmula: por um lado, as condições objetivas estavam maduras para a tomada do poder pelos operários; por outro, a classe operária russa - e sobretudo sua direção - não haviam apreciado corretamente a situação real nem experimentado, a nova relação de forças. Ou seja, subjetivamente, não estavam amadurecidas para realizar a tarefa suprema. Pode-se dizer que o desenvolvimento da luta de classes, de fevereiro a outubro de 1917, consistiu no reconhecimento crescente, por parte da classe operária e seus líderes revolucionários, do que era preciso fazer, bem como das condições objetivas e da preparação subjetiva. A brecha aberta entre eles foi preenchida na ação pelo triunfo dos bolcheviques na Revolução de Outubro, que combinou a conquista operária do poder com o mais amplo levante camponês.
Este processo está totalmente explicado por Trotsky em sua "História da Revolução Russa". A própria revolução russa foi o exemplo mais claro do desenvolvimento desigual e combinado na história moderna. Em sua análise clássica deste acontecimento, Trotsky deu ao movimento marxista a primeira formulação explícita da lei.
Trotsky, como teórico, é, célebre sobretudo pela formulação da teoria da Revolução Permanente. Contudo, sua exposição da lei do desenvolvimento desigual e combinado poderia ser comparada àquela em importância. Trotsky não só deu nome a essa lei, como também foi o primeiro que a expôs em seu pleno significado e lho deu expressão acabada.
Estas duas contribuições à compreensão científica dos movimentos sociais estão, de fato, intimamente ligadas. A concepção de Trotsky da Revolução Permanente resultou de seu estudo das peculiaridades do desenvolvimento histórico russo, à luz dos novos problemas que se apresentaram ao socialismo mundial na época do imperialismo. Esses problemas eram particularmente agudos e complexos em países atrasados, onde a revolução democrático-burguesa não tinha ocorrido, e exigiam a solução de suas tarefas mais elementares em um momento em que estava colocada a revolução proletária. Os frutos de suas idéias sobre esta questão, confirmados pelo desenvolvimento real da Revolução Russa, prepararam e estimularam sua subseqüente elaboração da lei do desenvolvimento desigual e combinado.
Certamente, a teoria de Trotsky da Revolução Permanente é a aplicação mais frutífera desta verdadeira lei aos problemas cruciais da luta de classes internacional de nosso tempo - época de transição da dominação capitalista ao mundo socialista - e oferece o mais alto exemplo de seu penetrante poder. Contudo, a lei é aplicável não apenas aos acontecimentos revolucionários da época presente como também, como veremos, a toda evolução social. Possui também aplicações mais amplas.
Deixando de lado o enquadramento histórico do qual surgiu a lei do desenvolvimento desigual e combinado, passemos agora à análise do alcance de sua aplicação.
Embora tenha se originado do estudo da história moderna, a lei do desenvolvimento desigual e combinado tem raízes em acontecimentos comuns a todos os processos de crescimento, tanto na natureza como na sociedade. Os investigadores científicos enfatizaram o prevalecimento das desigualdades dominantes em muitos campos. Todos os elementos constituintes de um objeto, todos os aspectos de um acontecimento, todos os fatores de um processo em desenvolvimento não se realizam na mesma proporção ou em igual grau. Mais ainda, sob diferentes condições materiais, as mesmas coisas exibem diferentes proporções e graus de crescimento. Qualquer camponês ou trabalhador urbano sabe disso.
Em "Life of the Past", G. G. Simpson, uma das mais notáveis autoridades em matéria de evolução, desenvolve este mesmo ponto, dizendo:
"O mais importante a respeito das proporções da evolução é que variam enormemente e que as mais rápidas delas parecem ao mesmo tempo as mais lentas para os seres humanos (incluindo os paleontólogos, poderia dizer-se). Se seguirmos uma linha de filogenia em seu registro fóssil, é quase certo que verificaremos que distintos caracteres e partes evoluem em proporções bastante diferentes e, em geral, que nenhuma parte evolui por longo tempo na mesma proporção. O cérebro do cavalo evolui rapidamente enquanto o resto do corpo muda muito pouco. A evolução do cérebro é muito mais rápida, durante um espaço de tempo relativamente curto, do que em qualquer outro momento. A evolução do pé fica praticamente estacionada durante toda a evolução do cavalo, mas em três oportunidades sofre mudanças relativamente rápidas em seu mecanismo".
"As proporções da evolução também variam muito de uma família a outra, e igualmente entre famílias ligadas. Há uma série de animais atualmente existentes que mudaram muito pouco em longos períodos de tempo: um pequeno branquiópode chamado Lingula, por cerca de 400 milhões de anos; o Limidus, o "caranguejo ferradura' - mais um escorpião que um caranguejo -, em 175 milhões de anos ou mais; o Esphenodon, um réptil parecido a uma lagartixa, agora confinado à Nova Zelândia, por cerca de 15 milhões de anos; o Didelphis, um gambá americano, por cerca de 75 milhões de anos. Estes e outros animais , para os quais a evolução se deteve há muito tempo, tiveram que evoluir todos numa proporção comum relativamente rápida."
"Há, por outro lado, diferentes características de proporções nos distintos grupos. A maior parte dos animais terrestres evoluiu mais rápido que a maioria dos aquáticos - esta generalização não contradiz o fato de que alguns animais aquáticos tenham evoluído mais rápido que alguns terrestres." (pág. 137-138.)
A evolução de uma ordem inteira de organismos passou, durante um ciclo completo, por uma fase inicial de crescimento lento, restrito, seguido por um período mais curto mas intenso de "expansão explosiva", voltando a cair em uma prolongada fase de mudanças menores.
Em "O Significado da Evolução" (pág. 72-73), G. G. Simpson assinala:
"O tempo de expansão rápida, alta variabilidade e começo de radiação adaptativa... são períodos que aumentam as oportunidades que se apresentam aos grupos capazes de continuá-la". Tal oportunidade para uma expansão explosiva se abriu aos répteis quando evoluíram, ao ponto de ficarem independentes da água como meio de vida e passarem a viver na terra, na árida vida dos vertebrados. Quando um "período mais tranqüilo, posterior à radicação, se completou", o grupo pode entrar indulgentemente no gozo progressivo da conquista obtida".
A evolução de nossa própria espécie logrou, através da primeira fase de tal ciclo, entrar na segunda. Os antecessores animais imediatos do gênero humano passaram por um prolongado período de crescimento restrito, como o demonstra o seu pequeno cérebro, comparado a outros. O gênero humano atingiu a sua fase de "expansão explosiva" só no último milhão de anos, aproximadamente, após o primata do qual descendemos ter adquirido os necessários poderes sociais. Contudo, o posterior desenvolvimento do gênero humano não duplicou o seu cicio de evolução animal, porque o crescimento da sociedade provém de uma base qualitativamente diferente e é governado por suas leis específicas.
A evolução dos distintos organismos humanos é marcada por uma considerável irregularidade. O crânio desenvolveu suas atuais características entre nossos antecessores símios, muito antes das nossas mãos articuladas com o polegar oposto. Somente depois de nossos antecessores terem adquirido a postura ereta e as mãos para trabalhar, é que o cérebro dentro do crânio desenvolveu as suas atuais proporções e complexidades.
O que é válido para ordens inteiras e para espécies de animais e plantas também o é para espécimes individuais. Se a igualdade prevalecesse no crescimento biológico, cada órgão do corpo poderia desenvolver-se simultaneamente e no mesmo grau de proporções, mas tão perfeita simetria não existe na vida real. No crescimento do feto humano, alguns órgãos aparecem e amadurecem antes dos outros. A cabeça e o pescoço formam-se antes dos braços e pernas, o coração na terceira semana e os pulmões mais tarde. A culminação de todas estas irregularidades se manifesta nos recém-nascidos, que são gerados em diferentes condições, com deformações e em distintos intervalos entre a concepção e o nascimento. O período de nove meses de gestação não passa de uma média estatística. A data do nascimento pode variar dias, semanas ou meses dessa média. O sinus frontal, um desenvolvimento tardio que só possuem os primatas e os homens, não se dá nos jovens humanos e sim depois da puberdade e, em muitos casos, nunca chega a ocorrer.
O desenvolvimento da organização social e das estruturas sociais particulares exibe desigualdades não menos pronunciadas que a história biológica dos antecessores: da raça humana. Os diversos elementos da existência social apareceram em tempos diferentes, evoluíram em proporções enormemente distintas e se desenvolveram, sob distintas condições, em graus diferentes. Os arqueólogos dividem a história humana em idade da Pedra, do Bronze e do Ferro, em função dos principais materiais usados na fabricação de ferramentas e armas. Essas três etapas de desenvolvimento tecnológico tiveram imensas diferenças temporais de duração. A Idade da Pedra durou cerca de novecentos mil anos; a Idade do Bronze, de três a quatro mil anos A.C.; a Idade do Ferro tem menos de quatro mil anos. Contudo, os diversos grupos do gênero humano atravessaram essas etapas em diversas épocas, em várias partes do mundo. A Idade da Pedra acabou por volta de 3.500 A.C. na Mesopotâmia; cerca de 1.600 A.C. na Dinamarca; em 1492 na América e ainda não se encerrara em 1.800 na Nova Zelândia.
Uma desigualdade parecida pode ser assinalada na organização social. A etapa de selvageria, baseada na coleta de ervas alimentares, caça e pesca, estende-se por muitas centenas de milhares de anos, ao passo que a barbárie, baseada na criação de animais e no cultivo de cereais, data de oito mil anos A.C.. A civilização tem menos de seis mil anos de existência.
A produção regular, ampla e crescente de alimentos produziu um avanço revolucionário no desenvolvimento econômico, e elevou a produção alimentícia das aldeias muito acima daquela das tribos atrasadas, que continuavam subsistindo com base na coleta de alimentos. A Ásia foi o lugar de nascimento da domesticação de animais e da horticultura. É incerto qual desses ramos da produção se desenvolveu antes, mas os arqueólogos descobriram remanescentes de comunidades camponesas mistas, com os dois tipos de produção de alimentos, que remontam a oito mil anos A.C.
Existem tribos puramente pastoris que dependem exclusivamente do rebanho de animais para a sua existência, como também povos completamente agrícolas, cuja economia está baseada no cultivo de cereais ou tubérculos.
A cultura desses grupos especializados tem um desenvolvimento unilateral, em conseqüência de seu tipo particular de produção dos meios básicos de vida. O modo de subsistência puramente pastoril não tem, porém, as potencialidades inerentes ao desenvolvimento agrícola. As tribos pastoris não podem incorporar na sua economia os tipos mais elevados de produção de alimentos, em qualquer escala, sem abandonar e mudar inteiramente seu modo de vida. Isto acontece especialmente depois da introdução, do arado, que supera as técnicas de queimada e de semeadura da horticultura. Não podiam desenvolver uma divisão extensa do trabalho nem avançar da aldeia à cidade enquanto continuassem como simples guardadores do seu rebanho de gado.
A superioridade inerente da agricultura sobre a criação de gado é demonstrada pelo fato de que as populações densas e as mais avançadas civilizações, como a asteca, a inca ou a maia o provaram, se desenvolveram com base na agricultura.
Os agricultores puderam incorporar facilmente a domesticação de animais; ao seu modo de produção, mesclando ou combinando o cultivo do alimento com o pastoreio de animais, assim como transferindo animais de tração à tecnologia da agricultura, com a invenção do arado.
Foi a combinação da criação de gado com o cultivo de cereais em áreas mistas que ajudou os povos agrícolas, dentro da sociedade bárbara, a superar as tribos meramente pastoris, e a se transformarem, nas condições favoráveis dos vales dos rios da Mesopotâmia, Egito, Índia e China, nos berços da civilização.
Desde o advento dos povos civilizados, existiram três; diferentes níveis essenciais de progresso, que correspondem a seus modos de assegurar as necessidades vitais: a coleta de alimentos, a produção elementar de alimentos e a produção mista, com um alto desenvolvimento da divisão do trabalho e uma crescente troca de mercadorias.
Os gregos da época clássica eram altamente conscientes desta disparidade de desenvolvimento entre eles próprios e os povos que ainda se mantinham numa, etapa mais atrasada de desenvolvimento social. Assinalaram esta diferença fazendo uma distinção marcante entre os gregos civilizados e os bárbaros. A conexão e distância histórica entre eles foi explicitamente assinalada pelo historiador Tucídides, ao afirmar:
"Os gregos viviam anteriormente como os bárbaros vivem hoje".
A desigualdade do desenvolvimento histórico mundial raras vezes foi tão notável como quando os nativos da América se enfrentaram pela primeira vez com os invasores brancos que vinham da Europa. Encontraram-se ali duas rotas de evolução social completamente separadas, produtos de dez a vinte mil anos de desenvolvimento independente nos dois hemisférios. Ambas se viram obrigadas a comparar suas proporções de crescimento e a medir seus respectivos resultados globais. Esta foi uma das mais marcantes confrontações de diferentes culturas em toda a História.
Naquele momento a Idade da Pedra chocou-se com o final da Idade do Ferro e o começo da mecanização. Na caça e na guerra, o arco e a flecha tiveram que competir com o mosquete e o canhão; na agricultura, a enxada e o bastão, com o arado e os animais de tração; no transporte aquático, a canoa com o navio; na locomoção terrestre, as pernas humanas com o cavalo e os pés descalços com a roda. Na organização social, o coletivismo tribal contra as instituições e costumes feudal-burgueses; a produção para o consumo imediato da comunidade contra uma economia monetária e o comércio internacional.
Poderíamos multiplicar estes contrastes entre os índios americanos e os europeus ocidentais. Contudo, a desigualdade dos produtos humanos de enormes etapas separadas de desenvolvimento econômico foi, aparentemente, demasiado violenta. Surgiram grandes antagonismos; trataram de manter-se separados uns dos outros e, assim como no princípio os chefes astecas identificaram os recém chegados brancos com deuses, os europeus, reciprocamente, olhavam e tratavam os nativos como animais.
Como sabemos, a desigualdade de produtividade e poder destrutivo na América do Norte não foi superada pela adoção, pelos índios, dos métodos dos brancos e sua assimilação gradual e pacífica à sociedade de classes. Pelo contrário, nos quatro séculos seguintes chegou-se à expropriação e aniquilação das tribos indígenas.
Se os colonizadores brancos desenvolveram sua superioridade material sobre os povos nativos, eles pr6prios estavam atrasados em relação à pátria de origem.
O atraso geral do continente norte-americano e suas colônias, em comparação ao ocidente europeu, predeterminou as principais linhas de seu desenvolvimento desde o começo do século X-VI até meados do século XIX. Neste período, a tarefa central dos americanos foi alcançar a Europa e superar a disparidade no desenvolvimento social dos dois continentes. Como e por quem foi feito isto é o principal tema da história norte-americana ao longo destes três séculos e meio.
Isto exigiu, entre outras coisas, duas revoluções para completar a tarefa. A revolução colonial, que coroou a primeira etapa de progresso, deu ao povo americano instituições políticas mais avançadas que as de qualquer outro lugar do velho mundo e aplainou o caminho para a rápida expansão econômica. De toda maneira, depois de haver conquistado a independência nacional, os EUA tiveram ainda que conquistar a independência econômica dentro do mundo capitalista. A diferença econômica entre esse pais e as nações do ocidente da Europa limitou-se à primeira metade do século XIX e encerrou-se virtualmente com o triunfo do capitalismo industrial do Norte sobre os poderes escravistas, na guerra civil. Não foi necessário muito tempo para que os Estados Unidos superassem a Europa Ocidental.
Estas mudanças na posição dos Estados Unidos ilustram a desigualdade de desenvolvimento entre os centros metropolitanos e as colônias, entre os diferentes continentes e entre os países de um mesmo continente.
Uma comparação entre os diversos modos de produção nos diversos países demonstraria mais abruptamente suas desigualdades. O escravismo havia virtualmente terminado como modo de produção, nos países da Europa, antes de ser introduzido na América, em virtude das necessidades dos próprios europeus. A servidão havia desaparecido na Inglaterra antes de surgir na Rússia e houve tentativas de implantá-la nas colônias norte-americanas depois de ter sido varrida na metrópole. Na Bolívia, o feudalismo floresceu sob os conquistadores espanhóis e fez deteriorar o escravismo, ao passo que, nos Estados Unidos, este surgiu freando o feudalismo.
O capitalismo estava altamente desenvolvido no ocidente da Europa, enquanto que no Leste era implantado só superficialmente. Uma disparidade similar no desenvolvimento capitalista prevaleceu entre os Estados Unidos e México.
A desigualdade é a "lei mais geral do processo histórico" (História da Revolução Russa, pág. 5). Estas desigualdades são a expressão específica da natureza contraditória do progresso social e da dialética do desenvolvimento humano.
A desigualdade do desenvolvimento entre os continentes e países é acompanhada por um semelhante crescimento desigual dos distintos elementos dentro de cada grupo social ou organismo nacional.
Em uma obra sobre a classe operária norte-americana, escrita por Karl Kautsky no começo do século, o marxista alemão assinalava alguns dos contrastes marcantes no desenvolvimento social da Rússia e dos Estados Unidos nessa época.
"Dois estados existem" -escreveu - "diametralmente opostos um ao outro. Cada um deles contém um elemento extremamente desenvolvido em comparação com o seu nível capitalista. Na Rússia é o proletariado. Em nenhum outro país como na América do Norte se pode falar com tanta propriedade da ditadura do capital, ao passo que em nenhum o proletariado adquiriu tanta importância como na Rússia".
Esta diferença no desenvolvimento, que Kautsky descreve nos seus primórdios, se acentuou enormemente em suas etapas ulteriores. Trotsky fez uma análise extraordinária do significado de tais desigualdades para explicar o curso de uma história nacional, no primeiro capítulo de sua "História da Revolução Russa", sobre "as peculiaridades do desenvolvimento russo". A Rússia czarista continha forças sociais que pertenciam a três diferentes etapas do desenvolvimento histórico. No alto estavam os elementos feudais: uma monstruosa autocracia asiática, um clero estatal, uma burocracia servil, uma nobreza territorial privilegiada. Mais abaixo, havia uma fraca e impopular burguesia e uma intelectualidade covarde. Estes fenômenos opostos estavam organicamente inter-relacionados. Constituíam distintos aspectos de um processo social unificado. As condições históricas que fortificaram e preservaram o predomínio das forças feudais - a lentidão do desenvolvimento russo, a sua economia atrasada, o primitivismo de suas formas sociais e seu baixo nível de cultura - haviam freado o crescimento das forças sociais e acentuado sua debilidade social e política.
Este foi um aspecto da situação. Por outro lado, o extremo atraso da história russa havia deixado sem resolver os problemas agrários e nacionais, provocando descontentamento, fome de terra no campesinato e anseio de liberdade nas nacionalidades oprimidas. Enquanto isso, aparecia a indústria capitalista, dando origem a empresas altamente concentradas, sob a dominação do capital financeiro estrangeiro, e a um proletariado não menos concentrado, armado com as últimas idéias, organizações e métodos de luta.
Esta violenta desigualdade na estrutura social da Rússia czarista forneceu a base para os acontecimentos revolucionários que explodiram, quando da queda da decadente estrutura medieval em 1917, e culminaram em poucos meses levando ao poder o proletariado e o partido bolchevique. Somente analisando e compreendendo isto, é possível captar porque a revolução russa se deu desta maneira.
As pronunciadas irregularidades que se produziram na história induziram alguns pensadores a negar que haja, ou possa haver, alguma causalidade ou lei no desenvolvimento social. A escola mais conhecida de antropólogos norte-americanos, encabeçada pelo falecido Franz Boas, nega explicitamente que possa haver alguma seqüência determinada de etapas que possam ser descobertas na evolução social, ou que as expressões culturais estejam ligadas à tecnologia ou à economia. Segundo R. H. Lowitt, o expositor mais conhecido deste ponto de vista, os fenômenos culturais apresentam meramente o caráter de "um caos sem plano", uma "selva caótica". A "selva caótica" está na cabeça desse anti-materialista e anti-evolucionista, e não na história ou na constituição da sociedade.
É possível que os povos que vivem, no século XX, sob as condições da Idade da Pedra, possuam um rádio - resultado do desenvolvimento combinado. Mas é categoricamente impossível encontrar tal produto da eletrônica contemporânea enterrado com os resquícios humanos da Idade da Pedra depositados há muitíssimos anos.
Não é preciso ser muito esperto para perceber que um coletor de alimentos, de ervas, um caçador, um pescador ou um caçador de aves, existiram muito antes que a produção de alimentos em forma de horticultura ou criação de gado. Ou que as ferramentas de pedra precederam as de metal; que a palavra precedeu a escrita; que as cavernas existiram antes das aldeias; que a troca de bens precedeu a moeda. Numa escala histórica geral, estas seqüências são absolutamente invioláveis.
As principais características da estrutura social simples dos selvagens são determinadas por seus primitivos métodos de produzir os meios de vida, que dependem, por sua vez, do baixo nível de suas forças produtivas.
Estima-se que os povos coletores de alimentos requerem, em média, 40 milhas quadradas per capita para se manterem. Não podem produzir nem manter grandes concentrações de população sobre tais fundamentos econômicos. Geralmente agrupam menos de quarenta pessoas e raras vezes excedem a cem. A iniludível estreiteza de sua produção de alimentos e a dispersão de sua força limitam estritamente seu desenvolvimento.
Que se pode dizer a respeito da etapa seguinte de desenvolvimento social, a barbárie? 0 notável arqueólogo V. Gordon Childe publicou recentemente, num livro chamado "Evolução Social", um resumo, dos "sucessivos passos através dos quais as culturas bárbaras entram na via da civilização, em contraste com seu ambiente natural". Childe reconhece que o ponto de partida na esfera econômica foi idêntico em todos os casos, "na medida em que as primeiras culturas bárbaras examinadas estavam baseadas no cultivo dos mesmos cereais, e no pastoreio das mesmas espécies de animais". Ou seja, a barbárie separa-se das formas selvagens de vida pela aquisição e aplicação de técnicas produtivas mais elevadas para a agricultura e a criação de gado.
A chegada ao resultado final - a civilização - exibe diferenças concretas em cada caso, "contudo, em toda parte, significa a agregação de grandes populações nas cidades, assim como a diferença entre a produção primária (pescadores, agricultores etc.) e a de artesãos especializados em tempo integral, mercadores, burocratas, clero e governantes; uma efetiva concentração do poder político e econômico; o uso de símbolos convencionais para lembrar e transmitir informações (escrita) e também padrões convencionais de pesos e medidas e de medidas de tempo e espaço que levam a um tipo de ciência matemática e calendário".
Ao mesmo tempo, Childe assinala que "os passos que integram este desenvolvimento não apresentam, igualmente, um paralelismo abstrato". A economia rural do Egito, por exemplo, tem um desenvolvimento diferente do da Europa de clima temperado. Na agricultura do velho mundo, a enxada foi substituída pelo arado, ferramenta que não era conhecida pelos maias.
A conclusão geral que Childe tira destes fatos é que "o desenvolvimento da economia rural bárbara das regiões estudadas não apresenta paralelismo e sim convergências e divergências" (pág. 162). Mas isto não é suficiente.
Considerados em sua totalidade e em sua inter-relação histórica, a maioria dos povos que entram na barbárie surge das mesmas atividades econômicas essenciais, o cultivo de cereais e criação de gado. Tiveram um desenvolvimento diversificado de acordo aos diferentes habitats naturais e circunstâncias históricas e comprovam, ao percorrer o caminho rumo à civilização, que não foram detidos na rota ou obliterados, e atingiram por fim o mesmo destino: a civilização.
Que ocorreu com a evolução da civilização? É um "caos sem plano"?, Quando analisamos a marcha do gênero humano através da civilização, vemos que seus segmentos avançados passaram sucessivamente pelo escravismo, feudalismo e capitalismo e agora estão a caminho do socialismo. Isto não significa que cada setor da humanidade tenha passado por esta seqüência invariável de etapas históricas, como cada um dos povos bárbaros passou através da mesma seqüência de, etapas. Mas a sua efetiva consecução permite a quem chega mais tarde combinar ou comprimir etapas históricas inteiras.
O curso real da história, a passagem de um sistema social a outro, de um nível de organização a outro, é muito mais complicado, heterogêneo e contraditório do que aquele que se pode dar num esquema histórico geral. O esquema histórico universal das estruturas sociais - selvageria, barbárie, civilização - com suas respectivas etapas, é uma abstração. É uma abstração indispensável e racional, que corresponde às realidades essenciais do desenvolvimento e serve como guia para a investigação, mas não pode subestimar diretamente a análise de nenhum segmento concreto da sociedade.
Uma linha reta pode ser a distância mais curta entre dois pontos, mas a humanidade freqüentemente deixou de lado esse adágio e seguiu aquele que diz que "o caminho mais longo é o mais perto de casa".
Na história mesclam-se ambas: regularidades e irregularidades. A regularidade é fundamentalmente determinada pelo caráter e desenvolvimento das forças produtivas e o modo de produzir os meios de vida. Contudo, este determinismo básico não se manifesta no desenvolvimento real da sociedade de maneira simples, direta e uniforme, e sim por meios extremamente complexos, desviados e heterogêneos.
Isto está exemplificado com maior ênfase na evolução do capitalismo e suas partes componentes. O capitalismo é um sistema econômico mundial. Nos últimos cinco séculos se desenvolveu de país a país, de continente a continente, e passou através das fases sucessivas do capitalismo comercial, industrial, financeiro e capitalismo estatal monopolista. Cada país, mesmo que atrasado, foi levado à estrutura das relações capitalistas e se viu sujeito às suas leis de funcionamento. Enquanto cada nação entrou na divisão internacional do trabalho sobre a base do mercado mundial capitalista, cada uma participou de forma peculiar e em grau diferente na expressão e expansão do capitalismo, e jogou diferente papel nas distintas etapas de seu desenvolvimento.
O capitalismo surgiu com muito maior força na Europa e América do Norte do que na Ásia e África. Estes foram fenômenos interdependentes, lados opostos de um único processo. O fraco desenvolvimento capitalista nas colônias foi produto e condição do superdesenvolvimento das áreas metropolitanas, que se realizou às custas das primeiras.
A participação de várias nações no desenvolvimento do capitalismo não foi menos irregular. A Holanda e a Inglaterra tomaram a direção no estabelecimento das formas e forças capitalistas nos séculos XVI e XVII, enquanto a América do Norte estava ainda, em grande medida, em posse dos índios. Contudo, na fase final do capitalismo, no século XX, os Estados Unidos superaram amplamente a Inglaterra e a Holanda. À medida que o capitalismo ia captando dentro de sua órbita um país após o outro, aumentavam as diferenças mútuas. Esta crescente interdependência não significa que sigam pautas idênticas ou possuam as mesmas características. Quando mais se estreitam as suas relações econômicas, surgem profundas diferenças que os separam. O seu desenvolvimento nacional não se realiza, em muitos aspectos, ao longo de linhas paralelas, e sim através de linhas angulares, às vezes divergentes como ângulos retos. Adquirem troços não idênticos, mas complementares.
A regra que diz que as mesmas causas produzem os mesmos efeitos não é incondicional e geral. A lei só é válida quando a história produz as mesmas condições, mas geralmente há diferenças para cada país e constantes mudanças e intercâmbios entre eles. As mesmas causas básicas podem conduzir a resultados muito diferentes e até opostos.
Por exemplo, na primeira metade do século XIX, a Inglaterra e os EUA eram ambos governados pelas mesmas leis do capitalismo industrial. Mas estas leis operavam sob diferentes condições nos dois países e produziram resultados muito diferentes na agricultura. A enorme demanda da indústria britânica por algodão e alimentos baratos estimulou poderosamente a agricultura norte-americana, ao mesmo tempo que os mesmos fatores econômicos sufocaram os camponeses da Inglaterra. A expansão da agricultura num país e sua contração no outro foram conseqüências opostas, mas interdependentes, das mesmas causas econômicas.
Passando do processo econômico ao intelectual, o marxista russo Plekhanov assinalava, no seu notável trabalho "Em defesa do materialismo" (pág. 126), como o desenvolvimento desigual dos diversos elementos que compõem uma estrutura nacional permite ao mesmo conjunto de idéias produzir um impacto social muito diferente sobre a vida filosófica.
Falando do desenvolvimento ideológico no século XVIII, Plekhanov assinalava:
"O mesmo conjunto de idéias levou ao ateísmo militante dos materialistas franceses, ao indiferentismo religioso de Hume, e à religião 'prática' de Kant. A razão foi que a questão religiosa na Inglaterra, nesse tempo, não jogava o mesmo papel que na França, nem nesta como na Alemanha. E esta diferença no significado da questão religiosa tinha suas raízes na distinta relação em que estavam as forças sociais em cada um desses países. Similares em sua natureza, mas díspares em seu grau de desenvolvimento, os elementos da sociedade combinavam-se de modo diferente nos distintos países europeus e conduziam, cada um deles, a um estado de consciência muito particular, que se expressava na literatura nacional, na filosofia, na arte etc. Como conseqüência disto, uma mesma questão pode apaixonar os franceses e deixar indiferentes os britânicos. Um mesmo argumento pode ser considerado com respeito por um alemão progressista, enquanto um francês progressista o verá com ódio amargo".
Inclusão | 23/10/2005 |