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As premissas fundamentais da teoria de Mach e Avenarius são expostas com franqueza, simplicidade e clareza nas primeiras obras filosóficas desses autores. Procedamos, agora, à sua analise, deixando para mais tarde as correções e as depurações por eles efetuados posteriormente.
“A tarefa da ciência — escrevia Mach em 1872 — não pode consistir senão em: 1) investigar as leis das relações entre as representações (psicologia); 2) descobrir as leis das relações entre sensações (as percepções) (física); 3) explicar as leis da relação entre as sensações e as representações (psico-física)”(1).
Eis o que está bem claro.
As relações entre as sensações, e não entre os objetos ou os corpos de que nossas sensações são a imagem, constituem objeto da física. Mach repete o mesmo pensamento em 1883, em sua Mecanica:
“As sensações não são os “símbolos dos objetos”; antes o “objeto” é que é um símbolo mental referente a um complexo de sensações relativamente estável. Não são os objetos (os corpos), mas as cores, os sons, as pressões, os espaços, os tempos, (o que chamamos comumente de sensação), que constituem os verdadeiros elementos do universo”(2).
Voltaremos depois a esta pequena palavra, “elementos”, fruto de doze anos de “meditações”. Consideremos apenas, no momento, que Mach reconhece aqui, com todas as letras, que os objetos ou os corpos são complexos de sensações e opõe nitidamente seu ponto de vista filosófico à teoria contraria, segundo a qual as sensações são “símbolos” dos objetos (seria mais exato dizer: imagens ou reflexos dos objetos). Essa última teoria constitui o materialismo filosófico. O materialista Friedrich Engels, o bem conhecido colaborador de Marx e fundador do marxismo, fala invariavelmente, sem exceção, em suas obras, dos objetos e suas representações ou imagens mentais (Gedanken-Abbilder), imagens mentais essas que, aliás, não têm outra origem senão nas sensações. Pareceria que essa concepção fundamental da “filosofia marxista” deveria ser conhecida de todos quantos falam dessa filosofia e, com maior razão, dos que a proclamam pela imprensa. Mas, em virtude da extrema confusão criada pelos nossos discípulos de Mach, vemo-nos forçados a repetir truísmos. Tomemos a introdução do Anti-Dühring e vejamos a passagem que começa assim: “Para o metafísico, as coisas...” ((3)). Ou, então, a primeira parte do capitulo filosófico dessa obra:
“De onde o pensamento pode deduzir tais princípios? (Trata-se dos primeiros princípios de todo conhecimento). De si mesmo? Não... Não se trata aqui senão das formas de ser do mundo exterior, e essas formas, o pensamento nunca as pode criar ou tirar de si mesmo, mas, antes, do mundo exterior... Os princípios não são o ponto de partida da pesquisa (como pretende Dühring, que queria ser materialista, mas não chegou a aplicar o materialismo com espirito consequente), mas, antes, o seu resultado final; não são aplicados à natureza e à historia da humanidade, mas delas derivam; não é a humanidade ou a natureza que se regem e se modelam de, acordo com tais princípios, mas os princípios não são verdadeiros senão na medida em que concordam com a natureza e a historia. Tal e a concepção materialista: a que o Sr. Dühring lhe opõe é idealista, subverte todas as relações, tudo põe em desordem e constrói o mundo real segundo a ideia..." (Ibid., p. 21).
E essa única concepção materialista, Engels a aplica repitamo-lo invariavelmente, sem exceção, denunciando, em Dühring, sem compaixão, o menor desvio do materialismo para o idealismo. Todo leitor, mesmo o menos atento, do Anti-Dühring e do Ludwig Feuerbach, encontrará dezenas de passagens em que Engels fala dos objetos ou de suas representações no cérebro humano, na consciência, no pensamento, etc. Engels não diz que as sensações ou as representações são “símbolos” dos objetos ou que o materialismo consequente deve substituir, aqui, as imagens”, as figuras ou as representações por “símbolos”, como o demonstraremos detalhadamente mais adiante. Trata-se, caso, não dessa ou daquela definição do materialismo, mas a antinomia entre o materialismo e o idealismo, da diferença entre as duas correntes fundamentais da filosofia. Cumpre ir dos objetos para a sensação e para o pensamento? Ou, antes, pensamento e da sensação para os objetos? Engels segue o primeiro lineamento, o do materialismo. O segundo, do idealismo, é o seguido por Mach. Nenhum subterfúgio, nenhum sofisma (e encontraremos muitos) poderão dissimular o fato indiscutível e evidente de que a doutrina de Ernst Mach, segundo a qual os objetos são complexos de sensações, não passa de idealismo subjetivo, de fastidiosa repetição da teoria de Berkeley. Se os objetos são “complexos de sensações”, como diz Mach, ou “combinações de sensações”, como quer Berkeley, conclui-se necessariamente o mundo não passa de minha representação. Partindo de tal premissa, não podemos admitir a existência de outros homens além de nós mesmos: solipsismo do mais puro. Mach, Avenarius, Petzoldt e tutti quanti, por mais que o neguem, não podem, na realidade, anulá-lo sem recorrer a gritantes absurdos lógicos. Para melhor evidenciar esse elemento fundamental da filosofia de Mach, citemos, ainda, a título complementar, algumas passagens das obras desse autor. Eis um trecho escolhido, tomado da Análise das sensações:
“Temos diante de nós um corpo pontudo S. Quando o tocamos, pondo-o em contacto com nosso corpo, sentimos uma picada. Podemos ver esse corpo sem sentir a picada. Mas, quando a sentimos, encontramos a ponta. Desse modo, a ponta visível é o elemento constante e a picada um elemento acidental, que pode, conforme as circunstancias, ser ou não relacionado com o elemento constante. A repetição frequente de fenômenos análogos nos habitua, enfim, a considerar todas as propriedades dos corpos como ações partindo de tais elementos constantes e atingindo nosso eu por intermédio do nosso corpo, ações essas que chamamos de sensações” (pp. 9 e 10).
Por outras palavras, os homens “costumam” colocar-se, do ponto de vista do materialismo e ver nas sensações os resultados da ação dos corpos, dos objetos, da natureza, sobre os nossos órgãos dos sentidos. Esse “costume”, perigoso para os filósofos idealistas (embora adotado pela humanidade inteira por todas as ciências naturais!), muito entristece Mach, que se propõe a destruí-lo:
“...Mas, por isso mesmo, os elementos constantes perdem todo o seu conteúdo sensível e tornam-se puros símbolos do pensamento”.
Velha mania, senhor professor! Repetição textual das afirmações de Berkeley, segundo o qual a matéria é puro simbolo abstrato. Antes, na verdade, é Ernst Mach que sai vagando pela abstração pura, porque, se ele não reconhece que a realidade objetiva, que existe independentemente de nós, constitui simplesmente nosso “conteúdo sensível”, não lhe resta senão o puramente abstrato (o Eu em letras maiúsculas e em itálico, outro!)... e “o piano louco que pensou que fosse o único piano que havia no mundo”. Se o “conteúdo sensível de nossas sensações” não é o mundo exterior, conclui-se que nada existe fora desse Eu inteiramente dedicado a ocos raciocínios “filosóficos”. Estúpido e estéril mister.
“É certo, portanto, que o mundo não é feito senão de nossas sensações. Mas, nesse caso, conhecemos tão somente as nossas sensações, e a hipótese da existência dos elementos constantes, bem como a de suas ações reciprocas engendrando as nossas sensações, torna-se inteiramente ociosa e supérflua. Tal ponto de vista não pode convir senão a um semi-realismo ou a um semi-criticismo bem hesitantes”.
Citamos todo o paragrafo 6 das Observações antimetafísicas, de Mach. Nada se vê, de ponta a ponta, senão um plágio de Berkeley. Nenhum argumento. Nenhum vislumbre de pensamento, a não ser que o seja que “não percebemos senão as nossas sensações”. Daí não decorre senão uma conclusão, a saber: “o mundo é feito apenas de minhas sensações”. Mach não tem o direito de escrever, como o fez, nossas em lugar de minhas. Somente essa palavra atesta, nele, a tendencia ao compromisso que acusa nos outros. Porque, se a “hipótese” da existência do mundo exterior, da existência da agulha independentemente de mim e de uma ação recíproca entre o meu corpo e a ponta da agulha é “ociosa”, se essa hipótese é verdadeiramente “ociosa e supérflua”, é sobretudo ocioso e supérfluo “admitir” a existência dos outros homens. Apenas o eu existe: os homens e todo o mundo exterior caem na categoria dos supérfluos “elementos constantes”. Desse ponto de vista, não é permitido falar de nossas” sensações, e Mach, fazendo-o, demonstra à evidencia que não compreende as coisas senão “pela metade”. Isso prova que sua filosofia se reduz a uma fraseologia oca e inútil, na qual o próprio autor não tem a menor fé.
Mas vejamos nele um exemplo flagrante da confusão e do equívoco. Podemos ler no paragrafo 6 do capitulo XI da Análise das sensações:
“Se eu pudesse ou se alguém pudesse, com o auxilio de diversos processos físicos e químicos, observar o meu cérebro no momento em que sinto uma sensação, seria possível determinar qual o processo em vias de ultimação no organismo estão ligadas essas ou aquelas sensações” (p. 198).
Muito bem! Quer dizer que nossas sensações estão ligadas a determinados processos que se desenvolvem em nosso organismo em geral e em nosso cérebro em particular? Sim, Mach formula muito claramente essa “hipótese” e seria difícil não a formular do ponto de vista das ciências naturais. Mas, permitam-me, trata-se da mesma “hipótese dos elementos constantes e sua ação reciproca" que o nosso filosofo acaba de proclamar ociosa e supérflua! Os corpos, diz-nos, são complexos de sensações; ir mais além assegura-nos Mach, considerar as sensações como produtos da ação dos corpos sobre os nossos órgãos dos sentidos, é cair na metafísica, é cultivar, à Berkeley, uma hipótese ociosa e supérflua, etc. Ora, o cérebro é um corpo. Ele também não passa, portanto, de um complexo de sensações. Nesse caso, eu constato os complexos de sensações por intermédio de outro complexo de sensações (mesmo porque o eu também não é mais do que um complexo de sensações). Excelente essa filosofia, que começa por decretar que as sensações são os “verdadeiros elementos do mundo” e constrói sobre essa base um berkeleyismo “original”, introduzindo sorrateiramente opiniões diametralmente opostas, segundo as quais as sensações estão ligadas a determinados processos que se desenvolvem no organismo! Mas tais “processos” não estão relacionados com a troca de matérias entre o “organismo” e o mundo exterior? Poderia verificar-se essa troca de matérias se as sensações do organismo não lhe dessem uma ideia objetivamente exata desse mundo exterior? Mach não formula questões tão embaraçantes; reúne mecanicamente fragmentos da doutrina de Berkeley e concepções tiradas das ciências naturais, inspiradas espontaneamente na teoria materialista do conhecimento.
“Surge, às vezes, esta questão (escreve no mesmo ponto): a matéria (inorgânica) não tem, igualmente, a faculdade de sentir?”
Quer dizer que não se pode formular a questão da sensibilidade da matéria orgânica? Então, as sensações não são primordiais e representam apenas uma das propriedades da matéria? Neste ponto, Mach salta por cima de todos os absurdos do berkeleyismo!
"Essa questão — diz ele — é absolutamente natural se se adotam como ponto de partida as concepções físicas comuns, segundo as quais a matéria constitui um elemento real, imediato, constante, servindo de base para todo o orgânico e todo o inorgânico."
Guardemos bem essa confissão verdadeiramente preciosa de Mach, de que, segundo as noções físicas comuns, geralmente aceitas, a matéria é considerada como a realidade imediata, de que apenas uma variedade (a matéria orgânica) é dotada da faculdade, claramente expressa, de sentir.
“Mas — continua Mach —, se é assim, a sensação deve aparecer inesperadamente no edifício construído de matéria ou deve existir, por assim dizer, nos próprios alicerces desse edifício. Do nosso ponto de vista, essa questão está errada. Para nós, a matéria não é o elemento primário. Esse dado primário é, antes, representado pelos elementos (que se chamam sensações, num certo sentido bem determinado)”.
As sensações constituem, portanto, os elementos primários, embora não estejam “ligadas” senão a determinados processos na matéria orgânica! E, enunciando tamanho absurdo, Mach acredita criticar o materialismo (as “concepções físicas comuns”) por não resolver a questão da “origem" das sensações. Belo exemplo de “refutação” do materialismo pelos fideístas e seus aduladores! Que outra doutrina filosófica “resolve” um problema para a solução do qual ainda não se reuniram dados em quantidade suficiente? O próprio Mach não diz, na mesma alínea, que enquanto esse problema (o de saber “até que ponto as sensações se estendem no mundo orgânico”) não for resolvido em algum caso especial, será impossível responder a essa questão”?
A diferença entre o materialismo e a doutrina de Mach reduz-se, portanto, pelo menos no que diz respeito a esta questão, seguinte; o materialismo, de pleno acordo com as ciências naturais, considera a matéria como o elemento primário, e a consciência, o pensamento, a sensação, como o elemento secundário, porque a sensibilidade não se relaciona, em sua forma mais acabada, senão com as formas superiores da matéria (com a matéria orgânica), e não se pode senão admitir, “nos alicerces do próprio edifício da matéria”, a existência de uma propriedade análoga à sensibilidade. Tal é, a título de exemplo, a hipótese do celebre naturalista alemão Ernst Haeckel, do biologista inglês Lloyd Morgan e de muitos outros, sem falar na intuição de Diderot citada linhas atrás. A doutrina de Mach coloca-se de um ponto de vista oposto, do ponto de vista idealista e logo conduz ao absurdo, porque, em primeiro lugar, a seu ver a sensação é o elemento primário, embora se relacione com certos processos se desenvolvendo no seio de uma matéria organizada de um modo determinado; e, em segundo lugar, porque o seu postulado fundamental — de acordo com o qual os corpos são complexos de sensações — é prejudicado pela hipótese da existência de outros seres vivos e, em geral, de “complexos” outros como o mencionado grande Eu.
A palavra elemento, que não poucos ingênuos tomam (como veremos) por uma especie de inovação ou de descoberta, resulta, na realidade, tão somente em complicar a questão, acrescentando-lhe um termo que nada quer dizer e não faz senão criar a enganadora aparência de uma solução ou de um progresso. Enganadora aparência, porque ainda resta estudar e estudar o processo graças ao qual a matéria, que parece não ser dotada de nenhuma sensibilidade, se liga a outra matéria composta dos mesmos átomos (ou eléctrons), mas provida da faculdade, muito nítida, de sentir. O materialismo formula claramente essa questão ainda não solucionada, incitando, por isso mesmo, à sua solução e a novas pesquisas experimentais. A doutrina de Mach, variedade de confuso idealismo, obstrui o problema e desvia o estudo do seu bom caminho, por intermédio do subterfúgio puramente verbal da palavra elemento.
Citemos um trecho do trabalho filosófico de Mach que é o seu livro final, a suma de sua obra; nele veremos tudo quanto há de falso nesse subterfúgio idealista. Podemos ler em Conhecimento e erro:
“Quando não há a menor dificuldade para construir (aufzubauen) com sensações, isto é com elementos psíquicos, qualquer elemento físico, é absolutamente impossível figurar-se (ist keine Möglichkeit abzusehen) a possibilidade de se representar (darstellen) um estado psíquico por meio dos elementos massas e movimentos, em uso na física moderna (tomando-se tais elementos em toda a sua rigidez — Starrheit —, isto é, no estado que é próprio apenas dessa ciência especial)”(4).
Engels fala frequentemente, com clareza, das rígidas concepções de um grande numero de naturalistas contemporâneos e de suas ideias metafísicas (no sentido marxista do termo; isto é: de suas ideias anti-dialéticas). Veremos, mais adiante, que é precisamente nesse ponto que Mach se desorienta por falta de compreensão ou de conhecimento das relações entre o relativismo e a dialética. Mas não é esse o caso, agora. Basta observar aqui o “idealismo" de Mach, que aparece com evidencia, apesar de uma terminologia confusa que se pretende nova. Não há, parece-lhe, a menor dificuldade para construir com sensações, isto é, com elementos psíquicos, qualquer elemento físico. Notável! Construções certamente comodas, porque são puramente verbais e não passam da oca escolástica servindo para introduzir sub-repticiamente o fideísmo. Depois disso, não é de estranhar, portanto, que Mach dedique suas obras aos imanentes e esses últimos, adeptos do idealismo filosófico mais reacionário, se lhe lancem nos braços. O “positivismo moderno” de Ernst Mach está atrasado apenas de cerca de dois séculos. Berkeley demonstrou, suficientemente, em seu tempo, que, “com sensações, isto é, com elementos psíquicos”, nada se pode construir, senão o solipsismo. Quanto ao materialismo, ao qual Mach ainda opõe aqui suas concepções, sem, entretanto, nomear francamente o “inimigo” com todas as letras, já vimos, com o exemplo de Diderot, qual é sua verdadeira maneira de ver. Consiste, não em tirar a sensação de movimentos da matéria ou de relacioná-la a esses movimentos, mas em considerá-la como uma das propriedades da matéria em movimento. Engels colocava-se, no caso, do ponto de vista de Diderot. Ele se diferençava dos materialistas “vulgares”, tais como Vogt, Büchner e Moleschott, inclinados a admitir que o cérebro secreta o pensamento como o figado secreta a bile. Mach, entretanto, opondo continuamente suas concepções ao materialismo, ignora, sem duvida, todos os grandes materialistas, tanto em Diderot como Feuerbach e Marx e Engels. Assim são, aliás, todos os professores oficiais da filosofia oficial.
Para caracterizar as opiniões primordiais, fundamentais, de Avenarius, tomemos sua primeira obra filosófica pessoal, editada em 1876: A filosofia, concepção do mundo segundo o principio do menor esforço. Prolegômenos à critica da experiência pura, Bogdanov diz em seu Empiromonismo(5):
“O idealismo filosófico serviu de ponto de partida para o desenvolvimento das concepções de Mach, enquanto uma tendencia realista caracteriza, à primeira vista, Avenarius".
Isso, Bogdanov o diz porque acreditou na palavra de Mach (ver Analise das sensações, p. 295), mas bem sem razão e sua asserção é diametralmente oposta à verdade. O idealismo de Avenarius, ao contrario, aparece com tanta evidência na obra citada, publicada em 1876, que o próprio Avenarius o reconheceu em 1891. Ele escreveu em seu prefacio a A concepção humana do universo:
“O leitor do meu primeiro trabalho sistemático, A filosofia, concepção do mundo segundo o principio do menor esforço, pensará, com razão, que vou tentar resolver os problemas que comporta uma critica da experiência pura, partindo do ponto de vista idealista... Mas a esterilidade do idealismo filosófico teórico fez-me duvidar de que meu primeiro rumo fosse o certo”(6).
Esse ponto de partida idealista de Avenarius é comumente admitido na literatura filosófica; recorro a Couwelaert, que qualifica o ponto de vista de Avenarius, tal como foi exposto nos Prolegômenos, de “idealismo monista”(7); entre os autores alemães, cito o discípulo de Avenarius, Rudolf Willy, que disse que, “em sua juventude e, sobretudo, em seu primeiro trabalho de 1876, Avenarius estava inteiramente fascinado pelo que se chama idealismo gnoseológico”(8).
Seria, aliás, ridículo negar o idealismo dos Prolegômenos, de Avenarius, onde ele mesmo diz, sem rodeios, que “somente a sensação pode ser admitida como existente”(9) pp. 10 e 65 da segunda edição alemã). É assim que Avenarius expõe o conteúdo do paragrafo 116 de sua obra. Eis o paragrafo em sua integridade:
“Reconhecemos que o ser (das Seiende) é uma substância dotada de sensibilidade; abstraída a substância (admitir que não há nem substância e nem mundo exterior é, parece-lhe, “mais econômico”, demanda “menos esforço"), resta a sensação: o ser será, então, concebido como uma sensação desprovida de qualquer substrato estranho à sensação" (nichts Empfindungsloses).
Nesse caso, a sensação existe sem a “substância”, o pensamento existe sem o cérebro! Existem realmente filósofos capazes de defender essa filosofia desmiolada? Sim, existem. O professor Richard Avenarius é um deles. E força é deter-nos tão pouco nessa defesa, por difícil que seja, para um homem são de espirito, tomá-la a serio. Citemos as reflexões de Avenarius nos §§ 89-90 do mencionado trabalho:
“O postulado segundo o qual o movimento engendra a sensação não repousa senão sobre uma experiência aparente. Tal experiência, isto é, a percepção considerada como um ato, consistiria em suscitar a sensação numa substância determinada (cérebro) graças a um movimento (excitações) transmitido a essa última e com o concurso de outras condições materiais (do sangue, por exemplo). Ora, além desse fato nunca ter sido observado de modo direto (selbst), para que tal experiência hipotética fosse, em todos os seus pormenores, uma experiência verdadeira, seria necessário, pelo menos, ter a prova empírica de que a sensação pretensamente suscitada no seio de determinada substância pelo movimento comunicado não existisse anteriormente nessa mesma substância sob qualquer forma, de modo que a sensação não pudesse ser explicada senão por uma ação criadora do movimento comunicado. Somente a prova de que não existia anteriormente nenhuma sensação, por minima que fosse, lá onde a sensação aparecia agora, pode estabelecer um fato que, significando certa ação criadora, estaria em contradição com todas as outras experiências e transformaria, de ponta a ponta, toda nossa concepção da natureza (Naturanschauung). Mas nenhuma fornece e nem pode fornecer tal prova. Ao contrario, a existência de uma substância absolutamente desprovida de sensibilidade e que adquire, sendo o caso, tal faculdade, não passa de uma hipótese. E semelhante hipótese complica e obscurece nosso conhecimento, em vez de simplificá-lo e esclarecê-lo.
Se a pretendida experiência, segundo a qual o movimento comunicado engendra a sensação no seio de uma substância, que, desde esse momento, começa a sentir, revela-se, com profundos estudos, não passar de uma aparência, contém por outro lado, pode-se dizer, tantos dados que isso permitiria constatar a origem, pelo menos relativa, da sensação no movimento, bem como constatar principalmente que a sensação existente, mas latente, ínfima, ou inaccessível por qualquer motivo à nossa consciência, é liberada, ou aumentada, ou elevada à consciência pela ação do movimento transmitido. Mas esse diminuto vestígio do conteúdo da experiência não passa, igualmente, da aparência. Se, por uma observação ideal, analisamos um movimento que, emanando de uma substância em movimento A e transmitido por diversos centros intermediários, atinge a substância B, dotada de sensibilidade, quando muito verificaremos que a sensibilidade da substância B se eleva ou se desenvolve à proporção que o movimento é comunicado a essa última, mas não constataremos que tal se passa por causa do movimento".
Citamos propositadamente, em sua integridade, essa refutação do materialismo por Avenarius, afim de que o leitor possa ver a que verdadeiramente mesquinhos sofismas recorre a filosofia empiro-criticista “mais moderna". Confrontemos, agora, as reflexões do idealista Avenarius e as do materialista... Bogdanov, tão somente para punir esse último por ter traído o materialismo!
Tempo atrás há cerca de nove anos, Bogdanov, então meio chegado ao “materialismo das ciências naturais” (adepto, em outros termos, da teoria materialista do conhecimento adotada instintivamente pela grande maioria dos naturalistas contemporâneos), Bogdanov, que o confusionista Ostwald ainda não havia desencaminhado senão pela metade, escrevia:
“Desde a antiguidade até os nossos dias, o costume, em psicologia descritiva, consiste em dividir os fatos de consciência em três grupos: as sensações e as ideias, os sentimentos e os impulsos... Ao primeiro grupo pertencem as imagens dos fenômenos do mundo exterior ou do mundo interior, tomadas em si mesmas pela consciência... Tais imagens são chamadas sensações quando são diretamente suscitadas, através dos órgãos dos sentidos, por fenômenos exteriores correspondentes”(10).
Podemos ler um pouco mais adiante:
"A sensação... surge na consciência por um impulso proveniente do meio exterior e transmitido pelos órgãos dos sentidos” (p. 222).
Ou ainda:
"As sensações constituem a base da vida da consciência, a ligação direta dessa última com o universo exterior” (p. 240).
“A cada momento do processo da sensação, há transformação da energia da excitação exterior em fato de consciência"(p. 133).
Mesmo em 1905, Bogdanov, tendo resolvido, com o auxilio benevolente de Ostwald e Mach, abandonar a concepção materialista em filosofía e adotar o idealismo, escreve ainda (por esquecimento?) no Empiromonismo:
“Sabe-se que a energia da excitação exterior, após a sua transformação, na parte terminal do nervo, numa forma telegráfica de corrente nervosa ainda pouco estudada, mas que nada tem de mística, atinge primeiramente os neurônios dispostos nos centros ganglionares, medulares e subcorticais chamados inferiores.”(11)
Para todo naturalista, que não é desviado pela filosofia professoral, do mesmo modo que para todo materialista, a sensação constitui, realmente, a ligação direta da consciência com o mundo exterior, a transformação da energia da excitação exterior num fato de consciência. Essa transformação, todo homem a observou milhões de vezes e continua a observá-la na realidade. O sofisma da filosofia idealista consiste em considerar a sensação não como uma relação entre a consciência e o mundo exterior, mas como um anteparo, uma parede separando a consciência do mundo exterior; não como a imagem de um fenômeno exterior quê lhe seja correspondente, mas como "o único elemento existente”. Avenarius não faz mais que modificar levemente a formula do bispo Berkeley. Não conhecendo ainda todas as condições das relações, observadas a todo momento, entre as sensações e a matéria organizada de modo determinado, não admitamos senão a existência da sensação: eis a que conduz o sofisma de Avenarius.
Mencionemos rapidamente, para concluir a caracterização das proposições idealistas fundamentais do empiro-criticismo, alguns representantes ingleses e franceses dessa corrente filosófica. Mach declara, sem rodeios, “subscrever, em todos os pontos essenciais, as concepções gnoseológicas” (erkenntnisskritischen) do inglês Pearson (Mecanica, ed. cit., p. IX). Pearson exprime, por sua vez, a sua concordância com Mach(12). Para Pearson, os “objetos reais” são “percepções dos sentidos” (sense impressions). A admissão da existência das coisas mais além das percepções dos sentidos não passa de metafísica. Pearson combate resolutamente o materialismo (sem conhecer Feuerbach e nem Marx e Engels) e seus argumentos não se distinguem em nada dos que analisamos linhas atrás. Ele está, entretanto, longe de querer simular materialismo (o que constitui a especialidade dos discípulos russos de Mach) que, desdenhando imaginar novos nomes para sua filosofia, dá, com naturalidade, às suas próprias concepções, bem como às de Mach, o qualificativo de “idealistas” (p. 362, loc. cit.). A genealogia de Pearson remonta, em linha direta; a Hume e Berkeley. A filosofia de Pearson — e o veremos mais de uma vez, doravante — distingue-se da de Mach por mais inteireza e maior profundidade.
Mach tem o cuidado de afirmar sua solidariedade aos físicos franceses P. Duhem e Henri Poincaré(13). Nos capítulos do presente livro consagrados à nova física, trataremos das opiniões filosóficas desses escritores, opiniões singularmente contraditórias e inconsequentes. Basta-nos observar aqui que, para H. Poincaré, as coisas são “grupos de sensações”(14), e que Duhem(15) emite, incidentalmente, opinião análoga. Vejamos agora de que maneira Mach e Avenarius, reconhecendo o caráter idealista de suas concepções primitivas, as corrigiram em suas obras posteriores.
Notas de rodapé:
(1) E. Mach, Die Geschichte und die Wurzel des Stazes von des Arbeit. Conferência pronunciada na Associação de Ciências da Boêmia, a 15 de novembro de 1872, págs. 57-58. — N. L. (retornar ao texto)
(2) E. Mach, Die Mechanik in ihrer Entwicklung historischkritische dargestellt, 3.ª ed., Leipzig, 1897, pág. 473. N. L. (retornar ao texto)
(3) F. Engels, Herrn Eugen Dühring Umwälzung der Wissenschaft. N. L. (Trata-se da obra geralmente conhecida como Anti-Dühring. N. do T.) (retornar ao texto)
(4) E. Mach, Erkenntnis und Irrtum, 2.ª ed., 1906, pág. 12, em nota. N. L. (retornar ao texto)
(5) Livro I, segunda ed., 1905, p. 12. N. L. (retornar ao texto)
(6) Der menschliche Welbegriff, 1891, prefacio, pág. XI. N. L. (retornar ao texto)
(7) F. van Couwelaert, L'Empiriocriticisme, na Revue Neo-scolastique, 1907, fevereiro, pág. 51. N. L. (retornar ao texto)
(8) Rudolf Willy, Gegen die Schulweisheit, eine Kritik def Philosophie (Contra a sapiência de escola... Uma crítica da filosofia), Munique, 1905, pág. 170. N. L. (retornar ao texto)
(9) Grifado por nós. N. L. (retornar ao texto)
(10) A. Bogdanov, Os elementos fundamentais da concepção histórica da natureza. São Petersburgo, 1899, pág. 216. N. L. (retornar ao texto)
(11) A. Bogdanov, Empiro-monismo, t. I, 2.a ed., 1905, página 118. - N. L. (retornar ao texto)
(12) Karl Pearson, The Grammar of Science, 2.a ed., Londres 1900. N. L. (retornar ao texto)
(13) Analise das sensações, pág. 4, cf. prefacio à Erkenntnis und Irrtum (Conhecimento e erro). N. L. (retornar ao texto)
(14) Henri Poincaré, La valeur de la science, Paris, 1905. - N. L. (retornar ao texto)
(15) P. Duhem La théorie physique, son object et sa structure, 1906, págs. 6 e 10. - N. L. (retornar ao texto)
Inclusão | 06/02/2014 |