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Primeira Edição: Revista "polémica", n° 1, julho de 1982. Original de 1968. SACHS, Eric, “Marxismo e luta de classe”; editora Práxis, 1a edição, Salvador, 1987, p. 63-85.
Fonte: Centro de Estudos Victor Myer.
HTML: Fernando Araújo
O conceito de partido nasce para o movimento operário moderno junto com o primeiro documento do marxismo militante, o "Manifesto Comunista". Não só que o título original do programa de Marx e Engels é "Manifesto do Partido Comunista" como no próprio texto fala-se pela primeira vez na necessidade da "organização dos proletários como classe e, portanto, como partido político".
Para poder compreender melhor o conceito de partido, "partido político" dos fundadores do socialismo científico naquele momento, não podemos evitar a citação de trechos de sua autoria. O faremos sem querer cansar o leitor de saída. No 3° capítulo do Manifesto, intitulado "Proletários e Comunistas", os autores colocam:
"Qual o relacionamento dos comunistas para com os proletários em geral? Os comunistas não são um partido especial em relação aos demais partidos operários. Eles não têm interesses diferentes do proletariado inteiro. Eles não estabelecem princípios especiais, conforme os quais pretendem modelar o movimento proletário.
Os comunistas se distinguem dos demais partidos proletários unicamente pelo fato de, por um lado, destacar e pôr em relevo os interesses comuns nas diversas lutas nacionais dos proletários, independente de nacionalidade e, por outro lado, sempre defender os interesses do movimento global no decorrer das diversas fases de desenvolvimento, que a luta entre proletariado e burguesia percorre.
Os comunistas são, pois, praticamente, a parte mais decidida, que impulsiona para frente os partidos operários de todos os países; em relação ao resto da massa do proletariado eles têm a vantagem teórica, a do conhecimento das condições, do desenrolar e dos resultados gerais do movimento proletário".
Queremos ressaltar dois problemas fundamentais, que os conceitos expostos contêm.
Em primeiro lugar, o conteúdo do "partido". A afirmação de que "os comunistas não são um partido especial em relação aos demais partidos operários" já causou muitas dores de cabeça aos estudiosos de Marx, aqui e acolá. Não faltou inclusive quem quisesse provar à base da citação que os comunistas nunca deveriam ter formado partidos próprios, outros preferem passar por cima ou simplesmente confessar "nada saber fazer" com essa definição.
A aparente contradição se liquida por si só quando levamos em conta que o conceito de partido na hora do Manifesto ainda não tinha tomado o conteúdo organizatório, que mais tarde iria tomar, sem falar daquele que hoje está tomando. O "partido" do Manifesto poderia ser melhor traduzido, hoje, por "movimento" ou "corrente" independente do seu tamanho. Se não fosse isso, o próprio Manifesto seria inconsequente. Por um lado intitula-se "Manifesto do Partido Comunista" e, por outro, afirma que "os comunistas não são um partido especial...".
Os comunistas em torno de Marx, em 1847, estavam organizados na Liga dos Comunistas, que tinha o seu programa (o Manifesto) e seus estatutos próprios. Mas quando Marx fala da necessidade do partido político do proletariado, ele quer dizer somente que a classe operária tem que se lançar na luta política (como classe para si) coisa que naquela época não era tão natural, como hoje poderia parecer. Mas, de que forma concreta essa luta política da classe se daria, Marx não podia prever ainda. Rejeitava esquemas pré-estabelecidos. Não é gratuitamente que o Manifesto afirma que os comunistas "não estabelecem princípios especiais, conforme os quais pretendem modelar o movimento proletário".
A "organização dos proletários como classe e, portanto, como partido político" só indicava uma necessidade histórica. A maneira como viria a se impor, naquele momento, ainda não podia ser definida.
Com isso chegamos ao segundo problema que a passagem acima citada contém. Marx e Engels expõem aqui uma concepção materialista da luta e do próprio partido. Não só negam que os comunistas estabelecem princípios pré-estabelecidos, como assinalam (mais adiante) que as definições teóricas não são inventadas e não passam de expressões de uma luta de classes existente.
Poucos anos depois. Engels define isso de maneira clara, quando diz, na sua Introdução às "Revelações Sobre o Processo dos Comunistas de Colônia":
"Comunismo não significa mais arquitetar, por meio da imaginação, uma sociedade ideal, a mais perfeita possível e, sim, conhecimento da natureza, das condições e dos objetivos gerais, decorrentes da luta travada pelo proletariado".
Com a derrota da Revolução de 1848, a Liga dos Comunistas entrou em crise e foi finalmente dissolvida. Contribuiu para isso o surgimento de uma facção minoritária no seu meio, liderada por Willich—Schapper, que não se conformava com o esgotamento da situação revolucionária e que pretendia continuar a luta da mesma forma, a qualquer preço.
Investindo contra essa facção, Marx a acusava:
"No lugar de uma concepção crítica, a minoria propaga uma dogmática, no lugar de uma materialista, uma idealista. No lugar das condições reais, a mera vontade torna- se para ela a força motriz da revolução".
Aqui, provavelmente, pela primeira vez, são usados termos como "idealismo" e "voluntarismo" numa linguagem militante. Que isso não foi a última vez, nós o sabemos, inclusive por experiência própria. O problema volta em níveis diferentes, acompanhando praticamente toda a história e o desenvolvimento do partido político da classe operária. Demorou para que o partido tomasse forma e conteúdo. A Primeira Internacional fundada em 1864, isto é, 17 anos depois da publicação do Manifesto Comunista, ainda não era formada por partidos. Apesar disso, representava um marco decisivo no caminho da sua formação.
Na Internacional, formada por iniciativa de operários franceses e ingleses, prevaleciam ainda as formas de sociedade mais ou menos secretas, mais ou menos conspirativas (proudhonistas, nazzinistas e outras). A Inglaterra estava representada principalmente por sindicatos legais. Somente os alemães, que chegaram mais tarde, já dispunham de embriões de partidos (os lassalianos e os marxistas em torno de Bebel e do velho Liebknecht).
A história da Primeira Internacional hoje é pouco conhecida e difundida, mas ela conserva a sua importância pelo fato de ter dado lugar à formulação de concepções marxistas fundamentais para a intervenção política da classe operária. Essas concepções foram elaboradas em debates acirrados, que caracterizaram os seus diversos congressos. Engels diria mais tarde que toda a história da Internacional tinha sido uma luta entre o marxismo e as seitas. E foi essa luta ideológica a que preparou a fusão do marxismo com o movimento operário existente. Mas, para que os resultados surgissem era preciso superar a forma organizatória da Associação Internacional, que tinha dado o que podia dar. Praticamente acabou depois da Comuna de Paris encerrando as suas atividades com novos apelos à classe operária de formar partidos políticos nos seus respectivos países, para levar a sua luta a um nível mais alto.
O apelo vingou, a situação estava amadurecendo e o partido político da classe operária começou a tomar conteúdo e forma organizatória nos principais países europeus. O processo foi demorado e percorreu toda uma fase histórica. Ainda em 1892, Engels escrevia a Kautsky:
"Na nossa tática, uma coisa é certa para todos os países e tempos modernos: temos de levar os operários à formação de um partido próprio, independente e oposto a todos os partidos burgueses".
Três anos antes, no centenário da queda da Bastilha, tinha sido fundada em Paris a Segunda Internacional, composta predominantemente por partidos. Delegados franceses, ingleses, alemães, belgas, itálianos, holandeses, dinamarqueses, suecos, noruegueses, suíços, húngaros, tchecos, austríacos, poloneses, russos, romenos, búlgaros, espanhóis, portugueses, norte-americanos e — para não esquecer a América Latina — argentinos, estavam presentes ao ato de fundação. Nem todas as sessões representavam partidos já formados mas a grande maioria dos membros da Internacional já o eram e se compreendiam como partidos marxistas.
Que partidos eram esses? Qual o seu caráter, sua forma organizatória?
Em primeiro lugar, eram organizações de massas. Eram partidos que visavam organizar o operariado e, embora no início só atingissem uma fração do proletariado, a sua tendência era abranger a classe toda. Todo operário que reconhecesse o programa, os estatutos e que pagasse a sua contribuição, era aceito como membro do partido.
Isso implicava num predomínio absoluto de operários entre os membros da base, embora houvesse intelectuais entre os dirigentes. Mas mesmo assim havia diferenças entre as sessões nacionais. Enquanto na Alemanha, na Inglaterra e nos países escandinavos o elemento operário tinha peso maior entre as lideranças (August Bebel era marceneiro), no outro extremo, na Itália, por exemplo, o papel do advogado, do professor e do médico era muito mais pronunciado em todos os escalões do partido. Isso não dependia somente das tradições de lutas já criadas nos diversos países, como também do nível de seu sistema escolar e educativo.
Quase todos os partidos da Segunda Internacional se formaram e cresceram em torno de atividades eleitorais e parlamentares, que eram os instrumentos indicados para arregimentar a classe. Luta política era luta em torno de leis destinadas a defender os interesses da classe operária no quadro da sociedade exploradora. Os partidos operários nascidos numa época não revolucionária, no fundo, só podiam lutar por reformas. Com o tempo, verificou-se uma polarização no seio desses partidos. Enquanto nas alas esquerdas, os revolucionários viam na luta pelas reformas um meio para mobilizar e organizar a classe, criando assim um ponto de partida mais favorável para o futuro assalto contra a sociedade capitalista, a direita via nas reformas um fim em si, querendo melhorar a situação do operariado no quadro da sociedade existente. Geralmente surgia um "centro" entre os dois pólos, que em última análise não fazia mais do que reforçar a direita. Assim, no partido alemão, o mais poderoso da internacional, de 1895 em diante, distinguem-se nitidamente três correntes: a esquerda representada por Rosa Luxemburgo, o centro por Kautsky e a direita por Ebert.
Sem querer diminuir a importância que essa forma de partido político da classe operária tinha na sua época — era o instrumento principal para a formação da classe operária independente nos países industriais do Ocidente — ela ficou superada e entrou num beco sem saída, quando as lutas de classes se aguçaram com o salto qualitativo que a sociedade capitalista de livre concorrência deu em direção ao imperialismo. A falência da Segunda Internacional, no início da Guerra Mundial de 1914, não dizia respeito unicamente ao conteúdo da sua política, mas igualmente à forma de organização dos seus partidos.
A renovação do conceito de partido veio do oriente da Europa. Foram Plekanov e Lênin que defenderam o "partido de quadros" (embora Plekanov não tivesse mais forças para ir até o fim). "Quadros", tirado da terminologia militar francesa, abrange o conjunto de cada um dos seus componentes, de especialistas militares, do sargento até o oficial do Estado Maior, destinado a treinar e liderar a massa dos recrutas, em caso de guerra.
A noção do "partido de quadros" surgiu nas condições peculiares sob as quais se desenrolavam as lutas de classe na Rússia tzarista. Em si, significava um rompimento frontal com a concepção do partido político, que tendia a abranger a classe operária toda.
O que caracterizava as lutas de classes na Rússia tzarista era que se desenrolavam sob a repressão mais violenta que então se conhecia, na Europa e que qualquer movimento político tinha de se dar na mais completa clandestinidade.
Em segundo lugar, o proletariado russo, jovem e recém-vindo do campo, ainda não tinha criado tradições de luta e formas de organização própria. As lideranças políticas no seio da classe ainda tinham de ser criadas.
Em terceiro, os revolucionários russos, ao contrário dos europeus, tinham que contar com a proximidade da revolução. Não se tratava ainda da revolução socialista, da qual ainda não se cogitava e, sim, burguesa, pela abolição do absolutismo tzarista. A Rússia não tinha passado pelo aburguesamento, em grande parte evolutivo, da Europa Ocidental, com suas repúblicas parlamentares ou monarquias constitucionais. O absolutismo tzarista só podia ser derrubado por uma revolução, isto é, por um movimento insurrecional. O partido, que tinha que liderar o operariado nessa revolução e garantir que a classe preenchesse o seu papel, de antemão escolheu formas organizatórias adaptadas à perspectiva insurrecional.
Os social-democratas russos não foram os primeiros na história que tiveram de lutar em condições de clandestinidade. Os partidos alemão, austríaco e italiano, conheceram fases de repressão e de proibição das suas atividades no fim do século passado. Sua situação, entretanto, era diferente da dos russos. No ocidente os partidos chegaram a ser proibidos depois de aproximadamente uma década de atividades legais, durante a qual tinham conseguido penetrar profundamente na classe operária. Conseguiram, portanto, manter na clandestinidade muitos traços de um trabalho de massas. As próprias tradições de luta criadas pelo proletariado alemão na fase legal garantiam as suas atividades na clandestinidade.
O mesmo não se podia dizer da Rússia, onde tudo estava por fazer ainda, pois o proletariado russo não conhecera uma situação de legalidade até então.
As diferenças de concepção de Lênin e da facção adversária da social-democracia russa (que tornar-se-ia conhecida como "menchevique", a minoria) tornaram-se óbvias no Congresso de fundação, de fato, do POSDR, em Londres, em 1903, na questão dos Estatutos. Lênin propunha uma formulação pela qual podia ser membro da nova organização: "quem reconhecer o seu programa e apoiar o partido tanto do ponto de vista material como pela atuação numa de suas organizações."
Martov, o futuro dirigente menchevique, exigia igualmente o reconhecimento do programa e a contribuição financeira, mas de resto bastava para ser membro que "dê ajuda pessoal ao partido, de maneira regular e sob a orientação de uma das suas organizações".
Para o observador desprevenido poderia parecer uma divergência sobre o sexo dos anjos, mas certamente não para as partes empenhadas. Lênin exigia a integração incondicional no partido e visava uma organização de quadros. Martov, de seu lado, tinha em mente uma reprodução do partido de massas ocidental, onde os membros podiam atuar sob o controle de um dos membros do partido.
Lênin já tinha exposto a sua concepção de partido no seu célebre "O Que Fazer?". O livro continua um marco na história do marxismo mas em cada obra desse gênero é preciso saber distinguir o que é duradouro e o que limitado pelo tempo e espaço.
Condicionada às condições russas de então é a noção do partido composto por revolucionários profissionais (ou talvez seja melhor dizer "profissionalizados", pois um militante revolucionário não pode deixar de ser um profissional), que são sustentados pelo partido para poder dedicar-se inteiramente às tarefas políticas. Esse esquema, a experiência o mostrou, não funciona em países onde a classe operária já desenvolveu tradições de luta e formas de organização próprias. Nessas condições, o partido dos revolucionários profissionais fica isolado da classe e geralmente se condena a uma existência de seita.
Igualmente condicionados às condições russas de então são os plenos poderes delegados à direção do partido, com seus direitos de nomeação de direções inferiores, de cooptação e de intervenção em todos os níveis. Ensaiados em outras condições e em outros países (numa fase em que tudo que era russo era revolucionário) levaram depressa a degeneração e fracassos.
Abstraindo esses aspectos especificamente russos, o conceito fundamental de Lênin de um partido que só abrangia a parte mais adiantada da classe operária, receberia em breve um reforço inesperado pelo desenrolar das lutas de classe no Ocidente. O próprio Lênin estava longe de supor que seus pontos de vista poderiam encontrar um campo de ação nos partidos de massa europeu-ocidentais. Mas na medida em que se cristalizava o fenômeno do imperialismo, com todas as consequências sobre a estrutura de classe dos países industrializados, tornou-se claro que a velha forma de organização política deixara de ser funcional. A política imperialista possibilitou a diferenciação de camadas no seio do proletariado, com a criação do que frequentemente foi chamada de “aristocracia operária”, a base material do reformismo. O fenômeno é mencionado pela primeira vez por Engels (ainda numa fase pré-imperialista), quando fala da situação da classe operária inglesa, que teve uma situação privilegiada em relação à continental, em virtude da exploração das colônias pela classe dominante britânica que por sua vez podia pagar salários mais altos. Com o florescimento do imperialismo, em muitos países partes do operariado puderam ser "integradas" na sociedade burguesa, conseguindo um nível de vida que permitia uma acomodação económica, social e política. Esse fenômeno já se tornou claro depois da Primeira Guerra Mundial, por ocasião das tentativas de revolução socialista no Ocidente.
Nessas condições, também os partidos revolucionários do Ocidente não podiam mais tender a se expandir pela classe operária inteira sem trazer para as suas fileiras toda a gama de ilusões reformistas e democratistas que dominavam vastas partes do proletariado. As mudanças das condições materiais de luta fizeram com que os revolucionários do Ocidente chegassem a conclusões semelhantes às de Lênin, começando a falar do partido como Vanguarda da Classe.
As consequências teóricas e práticas da nova situação criada foram tiradas com a fundação da Internacional Comunista.
Nas teses sobre as tarefas principais da nova Internacional, redigidas por Lênin, consta nos parágrafos 3 e 4:
"Significa igualmente querer minimizar o capitalismo e a democracia burguesa e enganar os operários, se supuséssemos, como fizeram os antigos partidos e dirigentes da Segunda Internacional, que a maioria dos trabalhadores e exploradores seria capaz, sob as condições de escravidão Capitalista... desenvolver uma clara consciência socialista, pontos de vista e caráter socialistas."
"Para vencer o capitalismo são necessárias relações mútuas justas entre o Partido Comunista, o proletariado, a classe revolucionária e a massa, isto é, a totalidade dos trabalhadores e explorados. Somente se o Partido Comunista for realmente vanguarda da classe revolucionária, contando com os melhores representantes dessa classe nas suas fileiras, constituídas por comunistas conscientes e fiéis à causa, formados e endurecidos em lutas tenazes, somente se esse partido souber ligar-se indissoluvelmente à vida da sua classe e, por meio desta, com toda a massa de explorados, somente nessas circunstâncias esse partido estará em condições de liderar o proletariado na impiedosa luta final contra todo o poder do capitalismo".
O que as teses de Lênin ressaltam aqui é justamente o aspecto do partido como vanguarda de classe. Trata-se de uma reformulação do papel e da função do partido, resultado de experiências surgidas em pólos tão diferentes como na Rússia tzarista atrasada e na Europa Ocidental industrializada. Nesse sentido e somente neste, pode-se falar de um partido de novo tipo, um "partido leninista". Essa caracterização, entretanto, não tem nada em comum com as aventuras voluntaristas que posteriormente se deram na Internacional, quando os partidos de todo o mundo foram reduzidos a apêndices da facção vitoriosa do partido soviético. Estudando mais detalhadamente o material desse Segundo Congresso da Internacional, principalmente as 21 condições de admissão, vemos que não há princípios organizatórios a serem impostos às sessões nacionais, a não ser a premissa da existência de um centralismo democrático, que garanta a capacidade de ação do partido e a submissão de todas as atividades, como a parlamentar, de imprensa e editorial, à linha política definida pela maioria dos seus militantes. Os detalhes organizatórios ficam a cargo dos partidos nacionais, que têm de levar em conta as tradições de luta já criadas pelo seu proletariado.
A posterior "bolchevização" das sessões nacionais da Internacional, iniciada por Zinoviev e levada a termo por Stalin, forçou os partidos a copiar literalmente o estatuto soviético (pós-revolucionário), com Comitês Centrais e Birôs Políticos, desprovendo-os do centralismo democrático, cortando as possibilidades do seu futuro amadurecimento e desenvolvimento revolucionário. De modo que a experiência do "partido do novo tipo" foi curta e não chegou a se desdobrar nas várias condições que as lutas de classes em países diferentes oferecem. O que ficou para nós é um ponto de partida; a experiência nós próprios temos de colher.
Mesmo entre os revolucionários, o conceito do partido como vanguarda não se impunha pacificamente. Houve o célebre debate entre Luxemburgo e Lênin, em 1904, e muita gente até hoje pretende tomar as polêmicas de então como ponto de partida para opor uma concepção "luxemburguista" à leninista. A intenção peca pela origem.
Também Rosa aplicava o termo de "vanguarda", quando falava do partido político da classe operária, embora lhe desse outro conteúdo do que Lênin. Deve-se esta atitude, antes de tudo, ao fato dela militar em condições completamente diferentes que os bolcheviques. Ela estava empenhada em formar uma ala esquerda no Partido Social-democrático alemão, mas a situação aí encontrada tornava-se inviável a criação de uma facção de esquerda, com disciplina própria, à base de uma organização de quadros como se dera na Rússia. Isso teria isolado a esquerda alemã do proletariado e deixado este à mercê dos direitistas. Este fator objetivo fez com que Rosa de Luxemburgo sustentasse ainda (naquela época) a noção do partido que tendia abranger a classe toda. Desse ponto de vista, ela teve razão em muitos detalhes da sua polêmica com Lênin, inclusive quando atacava o centralismo extremo, que a realidade das condições russas impunha.
Isso, porém, era seu ponto de vista teórico. Ao mesmo tempo que militava na Alemanha, ela era fundadora e continuava a fazer parte da direção do Partido Polonês, que por sua vez se considerava parte da social-democracia russa, pois a maioria do território polonês estava anexada ao Império dos Tzares. E, na prática, o Partido Polonês estava sob um centralismo ainda mais rígido do que os bolcheviques. A oposição no seio do Partido Polonês, que protestava contra esse estado de coisas (Radek, Djerzinsky, Unschiich, etc.), chegou a colaborar diretamente com Lênin, quando não encontrou mais espaço de expressão no próprio partido.
Rosa conhecia, evidentemente, por experiência própria, as condições sob as quis se desenrolava a luta de classes sob o tzarismo. O que ela não queria era teorizar e generalizar as necessidades dessa luta sob essas condições peculiares, que ela via como exceção passageira de um país atrasado. Teoricamente ela defendia o conceito de partido da Segunda Internacional, que naquela época ainda não tinha perdido a sua razão de ser, no Ocidente.
Mais duvidoso era o conceito de Luxemburgo sobre o papel do espontaneísmo, questão estreitamente ligada ao problema organizatório. Não estamos querendo endossar aqui as críticas burocráticas posteriores contra Rosa, que pegavam qualquer papel positivo à espontaneidade. Para Lênin, o fator espontâneo nas lutas de classes e no próprio movimento operário fazia parte de qualquer estratégia realista. Assim mesmo havia divergências entre os dois revolucionários e ela se manifestou talvez melhor na questão insurrecional durante a Revolução Russa de 1905. Rosa defendia o ponto de vista que era inútil querer organizar um insurreição, pois essa tinha de surgir espontaneamente do seio das massas proletárias e populares ou, então, não se dava. Lênin, ao contrário, exigia desde o início que se preparasse e organizasse a insurreição contra o tzarismo. E a única insurreição armada maior, que se deu durante a Revolução de 1905, a de Moscou, foi deflagrada e liderada pelos bolcheviques.
Finalmente, as divergências entre Lênin e Luxemburgo nunca chegaram a ter esse peso que os "luxemburguistas" de hoje pretendem atribuir. Sinal é que no congresso de Londres, em 1907, Rosa defendeu abertamente e se solidarizou com a atuação dos bolcheviques durante a revolução e, desse momento em diante, Lênin e Luxemburgo aluaram em conjunto na ala esquerda da Segunda Internacional.
O que os "luxemburguistas" de hoje pretendem, no fundo, é responsabilizar os princípios que Lênin defendia na questão organizatória pelas deformações que a Revolução Russa iria sofrer posteriormente.
Trata-se evidentemente de uma atitude de puro idealismo querer explicar o curso de uma revolução por padrões organizatórios "errados". Somente as seitas têm a liberdade de escolher padrões de organização conforme princípios pré-estabelecidos. Movimentos vivos encontram as formas de organização apropriadas para vencer. O simples fato de a Revolução Russa ter sido vitoriosa, em 1917, mostra que os bolcheviques tinham adotado formas de organização apropriadas nas circunstâncias em que tiveram de atuar.
E aqui vale a pena, talvez, perder algumas palavras sobre o conceito partidário de Trotsky e dos trotsquistas de hoje.
O próprio Trotsky pouco ou nada contribuiu para a elaboração de formas organizatórias revolucionárias. Em 1903, no Congresso de fundação da Social-Democracia Russa limitou-se a apoiar as formulações dos mencheviques e quando destes se separou, ele e seus adeptos nunca formaram uma organização propriamente dita e se empenhavam numa estéril tentativa de reunificar numa só organização bolcheviques e mencheviques. O fato de os bolcheviques representarem o obstáculo maior a essas tentativas levou Trotsky, em 1912, a fazer frente única com os mencheviques, fundando o chamado Bloco de Agosto, frente única dirigida contra Lênin.
A guerra e o desenrolar futuro das luta de classes fez com que Trotsky rompesse com os reformistas, se aproximasse dos bolcheviques, integrando o partido de Lênin e desempenhando o seu conhecido papel de destaque na Revolução e na guerra civil.
Anos mais tarde, já no exílio, na França, Trotsky diz no seu "Diário" que não tinha tido um papel insubstituível durante os Dias de Outubro. Com a presença de Lênin a revolução teria se dado de qualquer maneira. Trotsky, porém, não explica porque chegou a essa conclusão. Parece uma simples reverência perante o gênio de Lênin e em nenhum lugar da sua vasta obra literária entra no mérito da questão. Acontece que da genialidade de Lênin faz parte o fato de ter formado e forjado o partido político do proletariado russo em condições de liderar o proletariado na revolução. Sem a existência desse partido e a continuidade da sua ação durante quinze anos, o próprio Lênin nunca teria "feito" a revolução. Acontece que sem esse partido não teria havido Lênin, tal como a história o conheceu — e é também problemático se o próprio Trotsky teria tomado o lugar na história que chegou a ocupar.
Trotsky nunca voltou a esse assunto. Uma avaliacão teórica, autocrítica, não condizia muito com seu temperamento e naquela época ainda não era hábito exigir auto-crítica para pecados passados.
De resto, nota-se nas apreciações históricas de Trotsky uma preocupação latente de relegar a importância e o papel dos "velhos bolcheviques" a um segundo plano. Durante as lutas de facções, porém, quando se criou um "culto a Lênin" (que teria revoltado o fundador do Estado Soviético), começaram as polêmicas sobre quem era o "discípulo mais fiel" do mestre. Trotsky, que nessa disputa bizantina levava evidente desvantagem, em virtude do seu passado anti-bolchevique, procurou compensá-la por uma extrema fidelidade aos "princípios" leninistas, também na questão organizatória. O "partido leninista" tornou-se um dogma, também para o trotsquismo.
Foi essa a herança que os trotsquistas de todo mundo retomaram. De saída, os adeptos de Trotsky no exterior se constituíram como "bolcheviques—leninistas" e embora os rótulos tenham mudado com o tempo, sua atitude em relação ao problema do partido não mudou, nem evoluiu. Qualquer trabalho crítico ou criador, qualquer tentativa de comparar essa herança com as necessidades que tempo e espaço impunham, esbarrou no medo de serem chamados de "antileninistas". Mas, dogmatismo nunca fez parte do método de Lênin.
Aliás, não queremos ser injustos. Há uma inovação que as organizações trotsquistas criaram: o direito de formar facções.
No 10° Congresso do Partido Comunista Soviético, que se realizou durante os dias críticos do levante de Kronstadt, em 1921, Lênin propôs e foi aceita a proibição de formar facções no seio do Partido. Não é que antes a existência de facções tenha sido permitida. Não existia nenhum "direito" nesse sentido mas elas foram frequentemente toleradas como fato consumado. Como essa proibição formal de 1921 posteriormente foi usada por Stalin contra Trotsky e este chegou a reivindicar a sua suspensão no decorrer da luta interna no PCUS, o direito de formar facções entrou nos estatutos das organizações trotsquistas. E lançando um olhar sobre o movimento trotsquista nos mais diversos países, é preciso constatar que os seus militantes souberam fazer uso desse direito, não se contendo com meias medidas.
Um problema fundamental da vanguarda, principalmente quando constituída por uma organização de quadros, era a sua ligação com o movimento de massas. Na própria Rússia, os revolucionários chegaram a criar um partido de massas, entre fevereiro e outubro de 1917, no qual a antiga organização de quadros representava a espinha dorsal da vanguarda, que por sua vez encontrou o seu campo principal de atuação nos soviets.
Nos países ocidentais, onde os soviets (como os raete(1) na Alemanha, Áustria e Hungria) só tiveram uma existência passageira, pesaram os sindicatos como forma básica de organização operária.
Um caso especial foi o da Inglaterra, onde o poderoso Labour Party (Partido Trabalhista), fundado por sindicatos e agremiações políticas reformistas dominava a classe operária. Quando, depois da Primeira Guerra Mundial, foi fundado um pequeno Partido Comunista, sua existência se dava praticamente à margem do movimento operário. Lênin insistiu junto aos camaradas ingleses para ingressar, como organização, no Partido Trabalhista, cujos estatutos previam a existência de entidade políticas com certa autonomia. Os comunistas ingleses resistiram por muito tempo e quando finalmente aceitaram os argumentos de Lênin, já era tarde. Os dirigentes do Partido Trabalhista, alertados pela discussão travada em público, fecharam as portas ao PC britânico, que dessa;maneira ficou condenado à impotência política.
O caso inglês era especial, entre outras coisas em virtude da própria constituição do Labour Party.
Mas, independente disso, semelhante atitude não poderia ter sido tomada pêlos comunistas da Alemanha, por exemplo, onde o Partido Social-democrático liderou a contra-revoluçâo de 1918/19, sendo responsável pela morte de milhares de revolucionários, entre os quais Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht. Na Alemanha os comunistas estavam condenados a aguentar à margem do movimento de massas, até que conseguiram cindir o partido centrista (o Partido Social-democrático Independente) e se constituir, por sua vez, como partido de massa.
Outro caso clássico foi o dos comunistas chineses. Partido pequeno, com poucas centenas de militantes, ingressou em 1923. após muita resistência e discussões, no Kuomintang, o partido da revolução burguesa e anti-imperialista de Sun-Yat-Sen. A experiência chinesa teve um desfecho trágico, quando cinco anos depois, o Kuomintang, já sob a liderança de Tchiang- Kai-Chek, fez as pazes com as potências imperialistas e reprimiu violentamente o movimento operário e comunista. Estes, em consequência, tiveram de retirar seus quadros sobreviventes para o campo, fora do alcance do terror branco, iniciando assim a "longa marcha".
Trotsky, naquela época, criticava violentamente a liderança de Stalin e Bukarin, responsável pelo desastre e, sem dúvida, estava com a razão. Acontece, porém, que Trotsky desde o início tinha estado contra o ingresso dos comunistas no Kuomintang.
A falha dos comunistas chineses (e da direção de Moscou) foi que, por inércia ou oportunismo, não souberam romper os laços com o Kuomintang na hora certa, não reconhecendo as mudanças da situação que estavam se esboçando a olho nu. Mas, se tivessem ficado fora do partido de Sun-Yat-Sen, naqueles anos críticos de ebulição revolucionária, teriam ficado à margem do movimento de massas e é pouco provável que chegassem a liderar uma revolução vitoriosa.
Bem, que têm essas situações a ver com os problemas que nós enfrentamos hoje no Brasil?
Esse esboço certamente não discute e não entra no mérito da nossa situação e dos problemas que enfrentamos. Visa, sim, embora não esgote as questões aqui levantadas, destruir mitos enraizados também no nosso meio e fornecer subsídios para uma discussão que se impõe já.
O nosso problema imediato ainda não é o da constituição do partido revolucionário da classe operária brasileira. Não se constitui esse partido sem a participação ativa da classe. Não se pode afirmar, com a melhor boa vontade, que o nosso proletariado já esteja disposto a enfrentar esse problema, quê ainda não corresponde à sua experiência de luta. As forças políticas existentes no seio e fora da classe, ainda enfrentam problemas de organização pré- partidários. Mas mesmo nesta fase, os problemas aqui levantados já estão presentes de forma embrionária. E quanto mais cedo conseguirmos obter clareza em relação a eles, menos acidentado será o caminho para o partido revolucionário da classe operária brasileira, quando amadurecer a situação. O aguçamento das contradições de classe no país indica que isso não representa mais uma perspectiva para um futuro remoto.
Notas de rodapé:
(1) Rat (plural raete ou rate): o equivalente alemão de Soviete em russo, isto é, conselho. (retornar ao texto)
Uma colaboração do |
Inclusão | 04/03/2013 |