Anti-Dimitrov

Francisco Martins Rodrigues


5. Pequena História de uma Viragem Histórica


“A vitória do desvio de direita nos partidos comunistas dos países capitalistas significaria a derrocada ideológica dos partidos comunistas e um reforço enorme do social-democratismo.”

STALINE, 1928(1)

Os factos deitam por terra a tese a que se agarra o Partido do Trabalho da Albânia, de que a política de Frente Popular aprovada no 7.º congresso seria uma mera flexão táctica, na linha de continuidade da política anterior da IC. Essa foi a forma que Dimitrov lhe deu, justamente porque precisava de ocultar a ruptura política e ideológica de fundo que representava a política de Frente Popular em relação à política de “classe contra classe”, o 7.º congresso em relação ao 6.º.

A verdade é que a viragem do 7.º congresso, estratégica e não apenas táctica, foi a resultante de uma luta subterrânea de tendências na Internacional, paralela à luta que se desenrolava no interior do partido Bolchevique, e tendo como protagonistas Staline, Dimitrov e Bukarine. A IC morreu no 7.º congresso. Eis o que tenta ainda hoje ocultar a corrente centrista internacional, sob a tese da “continuidade”.

“Classe contra classe” — o canto do cisne

Apenas 18 meses antes de Dimitrov ler o seu relatório na tribuna do 7.º congresso, o 13.º Pleno do Comité Executivo, de Dezembro de 1933, aprovara as teses “Sobre o fascismo, o perigo de guerra e as tarefas dos partidos comunistas”, que deveriam servir de plataforma ao congresso(2). Importa recordar aqui o essencial dessas teses, para medir a profundeza da reviravolta operada na IC em 1934-1935.

“O mundo capitalista passa agora do fim da estabilização capitalista para a crise revolucionária” (tese I, 5). “Seria um erro oportunista de direita não ver hoje as tendências objectivas que conduzem a uma rápida maturação da crise revolucionária no mundo capitalista” (I, 6). “A situação internacional recorda pelo seu carácter a véspera de nova guerra mundial.” “A revolução soviética na China tomou-se um poderoso factor da revolução mundial” II, 1).

“A burguesia quer retardar a derrocada do capitalismo desencadeando uma criminosa guerra imperialista e uma cruzada contra-revolucionária contra o pais do socialismo vitorioso. A grande tarefa histórica do comunismo internacional é mobilizar as mais largas massas contra a guerra antes que ela seja declarada, acelerando assim a queda do capitalismo. Só a luta bolchevique antes da guerra, pela vitória da revolução, pode garantir a vitória da revolução em caso de guerra” (II, 4). “Lutando contra a guerra, os comunistas, enquanto preparam desde agora a transformação da guerra imperialista em guerra civil, devem concentrar esforços em todos os países contra os objectivos fundamentais da máquina de guerra do imperialismo” (III, b).

“A social-democracia continua a desempenhar a função de principal apoio social da burguesia, mesmo nos países de ditadura fascista aberta, porque luta contra a unidade revolucionária do proletariado e contra a URSS” (I, 3).

“Na luta contra a social-democracia, os comunistas devem mostrar aos operários que a nova falência da social-democracia e da II Internacional era historicamente inevitável. Desmascarando e refutando minuciosamente perante as massas todos os sofismas hipócritas e traidores da social-democracia, os comunistas devem chamar os operários à luta revolucionária activa sob a direcção do partido comunista.” “O 13.º Pleno convida todas as secções da IC a lutar com a maior tenacidade, apesar e contra os chefes traidores da social-democracia, para realizar a frente única de luta com os operários social-democratas” (III, c).

“O 13.º Pleno apela a todas as secções da IC para que extirpem sem piedade o oportunismo sob todas as formas e antes de mais o oportunismo de direita.” “Sem isso, os partidos comunistas não conseguirão conduzir as massas operárias a batalhas vitoriosas pelo poder dos sovietes” (III, d).

“Os partidos comunistas devem colocar resolutamente perante as massas o problema da saída revolucionária da crise do capitalismo”, “demonstrar que os males do capitalismo são incuráveis.” “Não, há saída para a crise geral do capitalismo fora da que aponta a revolução de Outubro.” “Os partidos comunistas devem colocar com insistência, no seu trabalho de massa, a questão do poder. A principal palavra de ordem da Internacional Comunista é o poder dos sovietes” (III, e, 1 e 3).

Tratava-se, como se vê, de uma linha inteiramente oposta à que veio a ser aprovada. Nela não havia lugar para os acordos com a social-democracia e os arranjos de frente popular, para o governo de “frente única”, a “democracia popular” ou o “partido operário único”. A questão que se coloca é assim a de saber como pôde nascer todo o arsenal de ideias dimitrovianas, apenas no intervalo de 18 meses.

A desforra de Bukarine

Em 1933, com o triunfo do nazismo na Alemanha, a política de “classe contra classe” entrara na agonia. Sobrevivia ainda nas resoluções oficiais mas era já letra morta para a maioria dos núcleos dirigentes da IC e dos partidos comunistas.

A brusca viragem na situação internacional, com o ascenso agressivo da Alemanha e do Japão, a aproximação a passos largos de nova guerra mundial, a passagem do movimento operário à defensiva, pareciam encerrar definitivamente a perspectiva de auge revolucionário que servira de fundamento à política preconizada por Staline desde 1928.

Fora com base nessa previsão de um auge revolucionário que Staline dera corpo à política de “classe contra classe”, por ele resumida em cinco direcções principais: “intensificar a luta contra a social-democracia e, antes de mais, contra a sua ala ‘esquerda’, apoio social do capitalismo”; “intensificar nos partidos comunistas a luta contra os elementos de direita, agentes da influência social-democrata”; “intensificar a luta contra esse último refúgio do oportunismo nos partidos comunistas que é o espírito de conciliação face ao desvio de direita”; “depurar os partidos comunistas das tradições social-democratas”; “levar à prática a nova táctica do comunismo nos sindicatos” (ou seja, a organização da corrente sindical revolucionária)(3).

Essa política, a que Bukarine fizera oposição activa, alegando que conduziria à “desagregação” da Internacional, deparara também com a resistência encarniçada dos elementos oportunistas que se haviam anichado na direcção dos partidos e que se tinham habituado a interpretar a política de frente única como a marcha a reboque da social-democracia e a conciliação com o parlamentarismo e o reformismo. Em 1929-1930, essa resistência de direita dera lugar a sucessivas crises de direcção nos partidos comunistas dos Estados Unidos, Alemanha, Checoslováquia, Itália, Polónia, Bulgária, Grã-Bretanha, Índia, Suécia, etc. A aplicação da linha do 6.º congresso só fora possível com o afastamento dos principais adeptos do bukarinismo: Tasca, Groz, Ewert, Lovestone, Dimitrov...

Durante os anos da grande crise mundial, a radicalização das massas operárias tirara espaço de manobra à corrente oportunista e dera certa vitalidade à política de “classe contra classe”. A social-democracia revelava-se como uma agência degenerada do imperialismo, um inimigo implacável da luta operária e da ditadura do proletariado na União Soviética. As teses bukarinistas sobre a estabilização do sistema capitalista eram desmentidas pela derrocada de Wall Street, que Staline previra certeiramente a um ano de distância. A política revolucionária independente conduzida pelos comunistas afirmava-se como a única que correspondia às necessidades da classe operária nos países capitalistas, flagelada pela fome, o desemprego e a repressão. Os êxitos espectaculares da “segunda revolução” da União Soviética, com o fim da NEP, a industrialização e a colectivização da agricultura, alimentavam a confiança nas forças do campo revolucionário.

Todavia, a política de “classe contra classe” não conseguiu um triunfo decisivo em nenhum partido da IC. A sua aplicação era minada por uma resistência tenaz, que renascia continuamente no interior dos partidos, e só podia manter-se à custa de uma radicalização extrema dos conflitos e da limitação drástica da democracia interna. Era um avanço contra a corrente, que só conseguia impor-se através dos métodos da “guerra civil”.

Esta particularidade, que os historiadores social-democratas e revisionistas atribuem ao carácter “brutal” de Staline, retrata de facto a fraqueza da corrente de esquerda por ele chefiada. Staline pretendia manter-se fiel à herança do leninismo, mas não sabia como combater as enormes reservas de oportunismo acumuladas nos partidos comunistas pelo período da estabilização do capitalismo, pelo crescimento impetuoso da nova pequena burguesia assalariada, pelo desdobramento envolvente dos aparelhos militares, políticos, económicos, ideológicos de ditadura da burguesia.

Não se podia fazer uma política revolucionária sem reconhecer que a correlação das forças de classe mudava aceleradamente. Staline afirmara no 16.º congresso do partido Bolchevique, em 1930, que havia “uma viragem das massas para o comunismo” e renovara o apoio aos partidos comunistas “que mantêm uma luta irreconciliável contra a social-democracia, agente do Capital na classe operária, e que romperam definitivamente com todos os desvios do leninismo que levavam a água ao moinho da social-democracia”(4). Faltara-lhe assinalar que este deslocamento à esquerda das massas inferiores do proletariado e campesinato, instruídas pela crise do capitalismo, era superado de longe pelo deslocamento à direita das suas camadas superiores, na esteira do imperialismo, em proporções nunca antes vistas.

Só a compreensão deste fenómeno novo, que Lenine entrevira já em 1916, teria armado os comunistas com as respostas novas que a situação exigia para dar continuidade a uma política de hegemonia do proletariado. Essas respostas não chegaram porém a ser dadas — nem quanto à neutralização do envolvimento pequeno-burguês, nem quanto à política de alianças, nem quanto à preparação da insurreição armada, nem quanto às novas perspectivas das revoluções de libertação nacional.

Por este vazio passava justamente a reanimação obstinada das posições de direita que se entrincheiravam nas direcções dos partidos e, à sombra do acatamento formal da linha de “classe contra classe”, a transformavam com frequência numa caricatura rígida e paralisante.

De modo que, quando em 1933 se dissiparam as esperanças num auge revolucionário que abrisse caminho a novas revoluções proletárias, o oportunismo lançou-se ao contra-ataque em força, pondo de novo tudo em causa: a “classe contra classe” não só não dera nenhuma vitória revolucionária como deveria ser responsabilizada pela derrocada do partido alemão, pelo aventureirismo putchista reinante no partido chinês, pela falta de entusiasmo que minava a maioria dos partidos; com os seus ataques inconsiderados à social-democracia, os comunistas tinham-se isolado perigosamente das forças intermédias e facilitado o avanço do fascismo; havia que pôr de lado os apelos à revolução proletária e estabelecer um compromisso a qualquer preço com a social-democracia e os partidos democrático-burgueses para evitar desastres maiores; nos países coloniais, havia que pôr termo à política “suicida” de demarcação e crítica face à burguesia nacional ascendente; o perigo para os partidos comunistas não vinha do oportunismo de direita mas do sectarismo, do aventureirismo e do “esquerdismo”.

Era afinal a polémica de 1929 entre Staline e Bukarine que voltava a primeiro plano. Agora já não com o argumento da estabilização do capitalismo, mas precisamente com o argumento contrário. Porque não havia estabilização e crescia a ameaça fascista e o perigo de guerra, era necessário desistir do “doutrinarismo” de uma política revolucionária independente e conformar-se ao objectivo, mais modesto mas mais viável, da defesa das liberdades e da paz, em aliança com a democracia burguesa.

A necessidade premente de uma viragem na táctica da IC atirava para a frente as propostas de direita, e com tanto maior energia quanto mais resistia a corrente de esquerda a reconhecer a mudança na situação internacional. A inferioridade política e ideológica em que se encontravam as forças de esquerda reduzia-as com efeito a tentar deter a avalanche do oportunismo reforçando os diques das suas velhas posições, em vez de partir audaciosamente em busca de posições novas. As teses do 13.º Pleno, atrás citadas, ainda insistiam em anunciar, por exemplo, o início de novo ascenso revolucionário na Alemanha...

Não foi assim difícil formar-se na IC um terreno propício ao retorno do bukarinismo sem Bukarine. Aqueles que durante cinco anos haviam sido combatidos como oportunistas e capituladores desforravam-se agora ao aparecer como os únicos detentores de soluções políticas adequadas à situação difícil a que se chegara. A IC estava madura para a viragem à direita.

Essa viragem tornou-se inevitável quando a corrente de direita nos partidos comunistas recebeu o reforço inesperado de uma corrente semelhante que viera formando-se no interior do partido bolchevique e na sociedade soviética. Em 1934, o oportunismo europeu e soviético soldaram-se numa corrente única, determinando a viragem à direita no 17.º congresso do PC(b) da URSS e a viragem subsequente no 7.º congresso da IC, consagrada no relatório de Dimitrov.

Isto obriga a fazer aqui uma referência, embora breve, a um acontecimento que não pertence ao âmbito deste trabalho e que a corrente centrista moderna se obstina em decretar tabu — a luta de tendências no 17.º congresso do partido bolchevique e o papel nela desempenhado por Staline.

Quem venceu no “congresso dos vencedores”?

É um facto hoje reconhecido que a reviravolta na assembleia mundial do comunismo foi tornada possível pela brusca inflexão da política soviética no 17.º congresso do PC(b) da URSS, no ano anterior. Esse congresso, que passou à história como o “congresso dos vencedores”, pelos êxitos que assinalou na realização do I Plano Quinquenal, saldou-se por um indiscutível revés para a linha que Staline viera promovendo na União Soviética e na Internacional.

Na aparência, o congresso decorreu em ambiente de harmonia eufórica. O I Plano Quinquenal transformara a face económica e social da URSS, que se afirmava na cena internacional como o bastião poderoso do socialismo, em vias de industrialização acelerada e apoiada na primeira agricultura colectivizada da História. Os kulaks e os nepmen (comerciantes, industriais, especuladores) tinham sido liquidados como classe. A oposição trotskista afundara-se no descrédito pela passagem do seu chefe a apoiante da social-democracia. Os oposicionistas de direita admitiam os seus erros e ofereciam colaboração leal ao partido.

Ninguém discutia já a justeza da linha geral traçada por Staline em 1930: “Levar até ao fim a ofensiva em todas as frentes contra os elementos capitalistas.”(5) A perspicácia e firmeza com que Staline vencera as ameaças de aniquilamento ou de restauração capitalista e conduzira o regime a marchas forçadas para o socialismo eram unanimemente celebradas.

Sob esta apoteose, lavrava porém o fogo de uma nova luta de classes. O crescimento explosivo da indústria, da técnica, da ciência e do aparelho económico projectara para primeiro plano uma camada compacta de quadros, que começavam a intervir na cena política em defesa dos seus interesses próprios, disputando posições e influência no seio do partido dos sovietes e das instituições.

A burguesia soviética da fase de transição (kulaks, nepmen, velha intelectualidade) fora destroçada, apenas para ceder o lugar a uma nova burguesia, embrionária ainda, mas muito mais poderosa porque, em vez de resíduo da velha, sociedade, dominava as alavancas do novo sistema, e muito mais disfarçada porque não carregava os estigmas da propriedade privada e do capital e, pelo contrário, se fazia acreditar como a elite do poder soviético e do socialismo,

O regime de ditadura do proletariado, extremamente fraco e instável pela pequenez da classe operária (que ainda por cima sofrera a tremenda sangria da guerra civil) enfrentava sérias ameaças de desnaturação. Ao cancro da burocracia, em crescimento desmesurado, somava-se agora o núcleo social muito mais dinâmico e poderoso, dos quadros. Assim, as transformações operadas pelo plano quinquenal, parecendo trazer um reforço prodigioso à ditadura do proletariado, na realidade ameaçavam acabar de destruí-la.

O velho dilema leninista a que Staline procurara manter-se fiel nos anos difíceis — quem vencerá a quem? — tomava nova acuidade na hora do triunfo, no justo momento em que parecia ter-se extinguido. Por entre os hinos ao socialismo vitorioso, decidia-se a questão de saber se o poder reverteria definitivamente para os operários e camponeses ou para a camada ascendente dos quadros.

O significado histórico do 17.º congresso foi justamente ter consagrado a vitória da segunda via sobre a primeira.

A linha “moderada” que viera despontando no partido em torno de Kirov, Ordjonikidze, etc. e que parecia nada ter a ver com a antiga linha de Bukarine, era na realidade a sua herdeira. Reclamava que se pusesse de parte a tese de Staline sobre a tendência para a exasperação da luta de classes, que se reconhecesse a legitimidade dos privilégios materiais e da autoridade dos quadros, que se decretasse uma nova Constituição consagrando a limitação dos sovietes e funções administrativas, que se instaurasse no partido e no Estado um novo clima de convivência tolerante, de “humanismo socialista”.

Agora, que os elementos capitalistas tinham desaparecido, alegavam os moderados, desaparecera a razão da luta dos anos anteriores, dessa tensão de esforços, dessa vigilância de classe. Declarar abolidos os conflitos de classe era logicamente a questão mais vital para a nova burguesia em ascenso.

Os moderados obtiveram desde logo vitórias significativas no congresso: concessão de parcelas individuais aos kolkozianos, desaceleração do ritmo da industrialização e revisão do 2o Plano Quinquenal para incentivar a produção de bens de consumo, reabilitação dos antigos oposicionistas de direita.

A força da corrente moderada reflectiu-se na ascensão meteórica de Kirov, eleito para o novo Comité Central pela prática unanimidade do congresso e eleito secretário do CC, enquanto sofria a humilhação de 270 votos contrários(6). Bukarine, atacado durante anos como “O Bernstein soviético”, discursou no plenário do congresso, defendendo a “unidade a todo o preço para enfrentar o fascismo” e “o novo papel da ciência na produção” (ou seja, dos quadros na sociedade)(7). Ouvido com “aplausos prolongados”, segundo noticiava o Pravda voltou a ser eleito para o CC e designado para cargos responsáveis (director do Izvestia, redactor da nova Constituição). Zinoviev e Kamenev, readmitidos no partido, também falaram no congresso. Tem pois pleno fundamento a conclusão de que “foram evidentes no 17.º congresso o êxito político e a popularidade dos moderados”(8).

É forçoso concluir que o poder de Staline sobre o partido não era em 1934 tão absoluto como tradicionalmente fez crer a crítica trotskista e social-democrata, forçada por isso a minimizar a reacção, para ela inexplicável, surgida no 17.º congresso.

O “culto da personalidade”

Como explicar então a autêntica apoteose que envolveu Staline no congresso? Porque precisavam os moderados de o incensar, em vez de tentar derrubá-lo? E porque desembocou a “harmonia” de 1934 nas convulsões do terror de 1936-39?

O partido bolchevique e o regime soviético chegavam ao congresso já mergulhados na crise. Não por efeito da luta de Staline contra Trotsky, Zinoviev, Kamenev, Bukarine, como pretende a crítica burguesa, mas pela estreiteza política com que fora conduzida essa luta. Staline tentara a partir de 1926 deter o crescimento das correntes de direita no partido pelo recurso a um despotismo “revolucionário” que se afastava rapidamente das concepções leninistas sobre a ditadura do proletariado. O combate de classe, que só podia ser assumido por uma democracia operária cada vez mais ampla e poderosa, fora transferido para as mãos de um aparelho partidário e estatal “monolítico”.

A luta contra a direita mergulhara assim o regime e o partido, não na vitalização revolucionária que seria de esperar, mas numa espiral repressiva insolúvel. Quanto mais se reforçava o “monolitismo” do partido e a autoridade do Estado em nome da defesa do socialismo, mais definhava a ditadura real do proletariado, maior espaço se abria ao crescimento da burguesia, mais inevitável se tornava o reforço constante do aparelho repressivo.

Staline entrava pois no 17.º congresso numa situação contraditória. Ganhara enorme popularidade junto da classe operária e do povo, que viam nele o continuador audacioso da grande revolução iniciada por Lenine, mas essa popularidade reflectia já um apoio politicamente passivo. E as aclamações que lhe dirigiam os representantes da direita, para se ilibarem de suspeitas aos olhos do povo e da polícia, eram ao mesmo tempo uma forma de o manietar. Não seriam poucos os que no congresso saudavam em Staline simultaneamente o revolucionário bolchevique que fora até aí e o novo chefe moderado que esperavam que viesse a ser. Aclamando a sua intransigência passada, esperavam ganhar a sua capitulação futura.

Sobre esta ambiguidade se fundou o servil endeusamento de Staline, que a partir daí e até à sua morte iria corromper a atmosfera da União Soviética e do movimento comunista internacional. Atribuindo-o posteriormente ao “mau carácter” do próprio Staline, os revisionistas procuraram ocultar a natureza social do “culto da personalidade”, como manifestação típica de um regime que procurava desesperadamente manter cristalizadas correntes de classe antagónicas.

Assim, aprisionado numa veneração hipócrita, Staline passou os últimos vinte anos da sua vida numa luta de retaguarda para limitar os estragos do oportunismo que medrava à sombra dessa veneração. Luta que perdeu duplamente, porque foi utilizado como bandeira pelos oportunistas e mais tarde renegado, quando se puderam ver livres dele.

O terror, arma impotente do centrismo

Porque se deixou Staline aprisionar nesta armadilha de um despotismo “revolucionário” que devorou a revolução que pretendia defender? Porque o seu alinhamento na luta de classes em curso na União Soviética era centrista.

Com efeito, o reforço do aparelho policial do Estado era a única trincheira que restava a um regime que julgava poder equilibrar as dinâmicas de classe divergentes do proletariado, do campesinato e dos quadros numa mítica “unidade do povo soviético”. Não vendo nos quadros o novo inimigo de classe, mas apenas a “nova intelectualidade soviética”, fiel por definição ao poder proletário, Staline e os stalinistas tinham forçosamente que limitar e destruir a democracia operária de base e a democracia operária no partido, para evitar que se rompesse a unidade. Um poder policial forte aparecia como o mais seguro pilar do povo contra todos os excessos, contra quaisquer excessos, da esquerda como da direita.

Era, de resto, esta posição centrista na luta de classes que determinava a perspectiva economicista de Staline sobre a construção do socialismo. Colocando no crescimento das forças produtivas a chave do reforço da ditadura do proletariado, punha a classe operária à margem dos instrumentos do poder.

A sua intervenção, em 1931, perante os quadros da indústria, ao expor os problemas da repartição e fixação da mão-de-obra, da escala de salários, das relações de trabalho, etc., numa perspectiva que reduzia os operários a mera força de trabalho à disposição dos quadros(9), revela a penetração de um ponto de vista tecnocrático, que não tinha precedentes na sua obra teórica e que iria surgir com cada vez maior evidência nos seus escritos posteriores.

A noção de que o aparelho económico devia ser dirigido em função dos interesses do poder proletário dava lugar pouco a pouco à noção inversa, que subordinava os produtores às exigências dos mecanismos económicos e portanto aos detentores das suas alavancas — os quadros. Escapando-lhe a inversão de relações de classe que se ocultava sob esta lógica economicista, Staline ficava desarmado para a defesa da ditadura do proletariado e deixava aberto, apesar dos seus esforços em contrário, o caminho à formação de um novo regime de capitalismo de Estado de fachada “socialista”.

Staline representava já, pois, em 1934 uma corrente intermédia, historicamente ultrapassada, que tentava bloquear pela repressão um processo social cuja dinâmica interna lhe escapava.

“Já não há mais nada para demonstrar, nem ninguém para derrotar, porque todos compreenderam que a linha do partido triunfou.” “O partido está agora soldado num todo coerente, como nunca estivera antes.”(10) Estas palavras de Staline no 17.º congresso, que pareciam anunciar uma época nova de pacificação e unidade, iriam marcar, pelo contrário, a entrada no período do terror, que se desencadeou de forma incontrolada no fim desse mesmo ano com o assassinato de Kirov e que atingiu proporções alucinantes em 1936-1939. O fuzilamento da maior parte dos delegados ao congresso e do Comité Central nele eleito, assim como de centenas de milhares de comunistas, fala eloquentemente sobre o valor real da aparente harmonia aí exibida. Os acontecimentos mostraram que o congresso marcara na realidade a entrada da ditadura do proletariado numa terrível agonia.

Este facto, de que a corrente centrista ainda hoje se recusa a tomar conhecimento, para poder preservar a lenda piedosa de um avanço incessante do socialismo enquanto Staline foi vivo, explica-se precisamente pelo carácter subterrâneo, não declarado, mistificado, que assumiu a nova etapa da luta de classe na União Soviética a partir do 17.º congresso.

Incapaz de apreender o movimento ascensional da nova burguesia, que abria caminho através do fervilhar de intrigas à sua volta, Staline tentava anular as concessões consentidas no congresso e assegurar-se do poder que lhe escapava, pelo recurso à polícia e pela redução dos conflitos políticos a meras conspirações de espiões e sabotadores pagos pelo imperialismo (que, naturalmente, proliferavam, embora a burguesia procure hoje transformá-las em invenções do “cérebro doente” de Staline).

Era uma luta perdida, porque nenhum aparelho policiai estava à altura de cumprir a tarefa que só podia ser desempenhada pela libertação da energia revolucionária da classe operária, organizada no partido e nos sovietes, mas já então reduzida ao papel de espectadora passiva de uma luta que lhe dizia vitalmente respeito.

Staline desferia golpes às cegas, que atingiam indistintamente oportunistas, traidores e revolucionários, mas era impotente para deter a ascensão inexorável do novo regime porque não atacava a sua estrutura de classe, o poder efectivo dos quadros, que esvaziavam um a um os alicerces da ditadura do proletariado e remodelavam lentamente a sociedade à medida dos seus interesses. Por isso, o duelo subterrâneo pelo poder que se travava em torno de Staline, com a sua guerra de aparelhos e tenebrosas maquinações policiais, era favorável à infiltração da burguesia e tinha que terminar pela derrocada do poder proletário.

Vinte anos mais tarde, depois de se ver livre das últimas resistências convulsivas de Staline, a nova burguesia, já perfeitamente configurada como classe, pôde enunciar, pela boca de Kruchov, as leis da sua dominação incontestada sobre o proletariado e o campesinato. Fora ela a grande vencedora do “congresso dos vencedores”.

O nacionalismo soviético dá luz verde para o 7.º congresso

É neste quadro que se pode entender o impulso dado pelo 17.º congresso à viragem de fundo na Internacional no ano seguinte. Porque os interesses da nova burguesia em formação projectavam-se também no campo da política externa, onde iriam substituir o internacionalismo proletário, o apoio prioritário à IC e ao movimento revolucionário mundial por uma política cada vez mais declaradamente nacionalista. Com o 17.º congresso, criaram-se as condições para uma aliança entre o nacionalismo soviético nascente e o oportunismo europeu. Desta aliança surgiu a política dimitrovista de Frente Popular.

O congresso deparou com uma situação internacional nova, que obrigava a um realinhamento geral da política externa soviética. O campo imperialista dividia-se em dois blocos rivais, o bloco fascista, militarista e agressivo animado pela Alemanha e o Japão, e o bloco democrático-burguês, interessado em manter o status quo imposto em Versalhes. Adensavam-se as ameaças de nova guerra imperialista mundial. A ponta de lança da cruzada anti-soviética, ao passar das mãos da Inglaterra e da França para as da Alemanha, tomava nova agressividade.

Foram por isso perfeitamente justificadas as decisões sobre a entrada da URSS na SDN e a negociação de tratados de assistência mútua com a França, Checoslováquia, etc. Tratava-se de ganhar tempo, neutralizar o expansionismo alemão, retardar na medida do possível a eclosão da guerra.

Mas esta nova orientação necessária da política externa soviética, ao pôr em marcha uma aproximação com o bloco Inglaterra-França, criava um terreno favorável ao retorno das teses de Bukarine, velho paladino da aliança com a democracia burguesa e a social-democracia, atirando para segundo plano o apoio à causa revolucionária do proletariado e dos povos oprimidos. Bastava dar mais um passo na aliança táctica temporária com o bloco democrático-burguês para a transformar numa estratégia inteiramente nova, nacionalista, pragmática, de apoio ao reformismo internacional, de abandono da revolução.

Tudo indica que esse passo foi dado pelo 17.º congresso. Seria necessário conhecer o relatório de Manuilski ao congresso sobre a actividade do partido Bolchevique na Internacional Comunista para avaliar toda a amplitude da viragem aí decidida. Do que não resta dúvida é que o relatório de Staline, na sua parte internacional, deslocava o eixo da análise para o conflito entre os dois blocos imperialistas, não chamava a primeiro plano a luta revolucionária do proletariado como principal factor para dificultar o desencadeamento da guerra e a necessidade dos partidos comunistas trabalharem para transformar a guerra imperialista em guerra civil contra a burguesia, nem referia o papel da revolução chinesa e das lutas de libertação nacional no quadro da situação mundial.

Os alertas contidos no relatório, sobre a necessidade de preparar o proletariado com vistas a um novo auge revolucionário, ficaram muito longe do combate enérgico que se exigia contra as tendências de capitulação patentes nos partidos, contra qualquer confusão oportunista entre a manobra táctica da União Soviética e uma política de colaboração de classes. Neste campo, como no da política interna, as ressalvas de princípios feitas por Staline no 17.º congresso não foram suficientes para anular uma posição geral de cedência à pressão de direita que dominava o partido.

Deste modo, a viragem na política externa da URSS abriu as comportas à pressão oportunista de direita que se viera acumulando nos órgãos dirigentes da IC e nos partidos. As posições revolucionárias de princípio que até aí resistiam em torno da política de “classe contra classe” encontraram-se subitamente desamparadas e submergidas pela argumentação premente da direita: se a União Soviética se aliava à democracia burguesa para travar a ameaça fascista, porque não fariam o mesmo os comunistas em cada país?

Isto explica a reviravolta que se desencadeou no Comité Executivo logo após o congresso do PC(b) da URSS. “Nos órgãos dirigentes da IC — escrevem os revisionistas soviéticos — procedeu-se à revisão gradual de algumas teses caducas ou desajustadas, que dificultavam a união da classe operária contra o fascismo.”(11)

Essa revisão, iniciada por Manuilski, foi logo em seguida tomada em mãos por Dimitrov, que fora integrado no secretariado do CEIC em Março de 1934, imediatamente após a sua libertação das prisões nazis. Numa carta ao CEIC e ao Comité Central do partido Bolchevique, Dimitrov expôs o essencial das novas teses, que envolviam uma mudança radical de atitude face à social-democracia e à democracia burguesa. As mesmas ideias foram por ele expostas na comissão de redacção dos projectos para o 7.º congresso, onde obteve de imediato o apoio de Thorez, Manuilski, Kuusinen, mas deparando com a oposição de Bela Kun, Losovski, Wang Ming, que “persistiam nas orientações caducas”(12).

A escolha dos relatores ao congresso, a 28 de Maio, indicou desde logo a tendência da deslocação no CEIC, Foram com efeito preferidos Dimitrov, Pieck, Togliatti, Manuilski, antes criticados pelas suas tendências oportunistas, enquanto eram excluídos “os fautores da linha mais intransigente (Piatnitski, Knorin, Bela Kun), os quais tinham desempenhado papel de primeiro plano na direcção da IC durante os últimos anos”.(13)

Os debates no CEIC atingiram o auge no Verão-Outono de 1934. Em 22 de Agosto, as posições de direita fizeram novo passo em frente, quando Kuusinen introduziu na comissão de redacção a ideia do ataque ao “sectarismo de esquerda” como perigo principal para os partidos.(14) Estava delineado o sentido da viragem e o seu alcance. A falta de acordo, contudo, levou a adiar a convocação do congresso, alegando-se como justificação o “pedido de várias secções”(15). Os factos iriam mostrar que se tratava de uma manobra da corrente de direita, que precisava de ganhar tempo para desagregar resistências.

Golpe na Internacional

“O Congresso acolheu as novas teses tácticas com grande entusiasmo e de forma unânime”, congratulou-se Dimitrov no discurso de encerramento do debate. “Em nenhum dos anteriores congressos da IC se manifestara uma coesão ideológica e política comparável à actual.” “Nenhum dos oradores levantou objecções às teses tácticas formuladas nem à resolução proposta.”(16)

Esta “unanimidade” levanta desde logo as maiores suspeitas quando se constata que até hoje só é conhecido um breve resumo das actas, ao contrário do que até então fora norma nos congressos da IC.(17) De resto, são os revisionistas soviéticos que contradizem esta versão ao afirmar que “as teses caducas manifestaram-se ainda nos discursos de alguns delegados”(18).

É mesmo assim incontestável que a linha proposta por Dimitrov encontrou uma ampla e entusiástica aprovação por parte da grande maioria dos delegados ao congresso. Mas o que Dimitrov não disse no seu relatório foi que esse apoio fora previamente assegurado pela “limpeza” que durante o ano e meio anterior ao congresso desalojou e suprimiu praticamente todas as resistências que se manifestavam à guinada à direita. Como os próprios revisionistas confessam com incomparável jesuitismo, referindo-se à preparação do congresso, “os partidos comunistas que chocavam, na viragem para a nova política, com a resistência tenaz dos grupos e elementos oportunistas sectários de esquerda, receberam a ajuda da IC(19).

O adiamento do congresso serviu assim à corrente chefiada por Dimitrov para impor uma mudança efectiva da linha dos partidos e inclusive a substituição dos dirigentes que defendiam a política de “classe contra classe”, a fim de colocar o 7.º congresso perante o facto consumado e abafar qualquer contestação de esquerda. E necessário denunciar este golpe oportunista de grandes proporções, que a corrente centrista procura ainda hoje manter oculto. Os factos falam por si:

— Em França, Dimitrov conferenciou com Thorez em Maio de 1934, animando-o a “libertar a política de frente única das fórmulas dogmáticas que nela se tinham instalado”(20). Esta desautorização da política traçada pelo ó.º congresso e pelos plenos do CEIC, que era a única em vigor, encontrou naturalmente a melhor receptividade por parte de Thorez. Apoiado pelo delegado da IC junto do PCF, Fried, tomou de imediato uma série de iniciativas de aproximação ao partido Socialista, visando o apoio ou mesmo participação num governo “democrático”, assim como a luta pela “ampliação da democracia”, conforme lhe era aconselhado em carta do CEIC de 11 de Junho(21). A França iria tornar-se o laboratório e o principal sustentáculo da viragem, como adiante veremos com mais detalhe.

— Na Alemanha, o KPD “atravessava uma grave recaída no sectarismo”, segundo os revisionistas; Pieck e Ulbricht eram acusados de desvios de direita e de se aproximarem dos social-democratas. Mas a intervenção do Secretariado e do Presidium do CEIC em Dezembro de 1934 levou à condenação dos sectários e do doutrinarismo de esquerda(22). Sob a direcção de Pieck e Ulbricht, o KPD foi, juntamente com o PCF, um dos primeiros partidos a propor a fusão aos social-democratas.

— Na Itália, Togliatti, há muito em desacordo cauteloso com a linha de “classe contra classe”, começou a pôr a viragem em prática um ano antes do congresso, assinando um pacto com o PSL em Agosto de 1934(23).

— Na Bulgária, Dimitrov e Kolarov, afastados da direcção do partido desde 1929 sob a acusação de oportunismo, promoveram em Março de 1935 uma conferência em Moscovo, formaram uma direcção paralela à do interior e acabaram por obter o reconhecimento do CEIC como direcção legítima do partido(24).

— Em Espanha, também sem esperar pelo 7.º congresso, o PCE propôs um pacto de unidade ao PSOE em 12 de Junho de 1935(25).

— Na Áustria, o PC propôs a fusão ao partido Socialista Revolucionário ainda antes do 7.º congresso(26).

— Nos Estados Unidos, Browder realizou, no 8.º congresso do partido, na Primavera de 1934, uma espectacular viragem para o campo nacional, condensada na fórmula que viria a ficar célebre, “o comunismo é o americanismo do século XX”(27).

— Na América Latina, o CEIC promoveu em Outubro de 1934 uma conferência conjunta, que decidiu orientar os partidos para a construção de “amplas frentes anti-imperialistas, acabando com a subestimação do nacional-reformismo burguês”(28). Começaram de imediato a ser “corrigidos os “desvios dogmáticos e sectários” na generalidade dos partidos, nomeadamente na Argentina, Chile, Cuba(29). No Brasil, a formação da Aliança Nacional Libertadora, na Primavera de 1935, inseriu-se já na mesma linha, embora sob as cores radicais do “tenentismo”.

— Na Índia, o PCI assinou, por indicação do CEIC, um pacto de acção com o partido Socialista do Congresso, ala esquerda da burguesia nacionalista(30).

— Na Indonésia, a nova linha foi introduzida em Abril de 1935 por Musso, enviado do CEIC(31).

— Na África do Sul, a linha “dogmática e sectária” de Wolton, representante do CEIC desde 1930, foi derrotada antes do 7.º congresso(32).

— Na Mongólia, Kolarov, do CEIC, próximo colaborador de Dimitrov, orientou no 9.º congresso do partido a liquidação dos “desvios e erros esquerdistas”(33).

Quanto aos partidos que, por uma razão ou por outra, chegaram ao 7.º congresso sem ter ainda mudado de linha e de direcção, é curioso citar o caso de:

Portugal — O relatório de actividade aprovado pela direcção do PCP foi substituído no próprio congresso, a conselho dos responsáveis da IC, por não se enquadrar na nova linha que ia ser aprovada. Bento Gonçalves leu na tribuna do 7.º congresso um relatório improvisado(34). A sua prisão logo após a chegada a Lisboa proporcionou a constituição de uma nova direcção mais “dimitrovista”, em que se destacava Álvaro Cunhal, ele também regressado de Moscovo, onde participara no 6.º congresso da ICJ e onde assimilara perfeitamente a nova linha, como se verificou mais tarde.

O quadro que daqui resulta (e esta lista é só exemplificativa) é o de uma ofensiva à escala de todo o MCI para liquidar sob acusações de “esquerdismo”, “dogmatismo”, “sectarismo” os focos de resistência que se mantinham nas posições do 6.º congresso. Liquidação que teve lugar, insista-se, antes de reunir o 7.º congresso e quando era ainda obrigatória a aplicação das decisões do congresso anterior. Será preciso mais para demonstrar a existência de um golpe na IC, guiado por Dimitrov?

Razão tem o historiador atrás citado quando considera que “a importância histórica do 7.º congresso assentou mais nas orientações já em curso que ratificou... do que no conteúdo efectivo dos seus trabalhos”(35). O terreno fora desbravado antes...

Apoteose oportunista

Thorez pôde assim apresentar-se no 7.º congresso da IC como um vencedor, como o precursor de uma nova política audaciosa que tivera que abrir caminho pelos seus próprios meios, contra a inércia conservadora da cúpula da IC. “Quando lançámos a ideia da frente popular, retomada em seguida pelo 7.º congresso da IC — vangloriou-se ele mais tarde — isto era o começo de uma nova via para o nosso país. Nessa época, a IC aprovou-nos e apresentou-nos como exemplo aos comunistas dos outros países, porque não tínhamos ficado presos a fórmulas paradas, porque tínhamos procurado, nas condições do nosso país, as formas do desenvolvimento histórico”(36).

De facto, no 7.º congresso, os chefes do PCF foram acolhidos desta vez não com críticas ao seu oportunismo, como era tradicional, mas por uma verdadeira apoteose. “O mérito do PCF — declarou Dimitrov — está em ter compreendido que é necessário fazer hoje, em não ter dado ouvidos aos sectários que entorpeciam o partido e dificultavam a realização da frente única contra o fascismo”. No meio de grande ovação Dimitrov fez aclamar o pacto PCF-SFIO como uma táctica “à maneira bolchevique”... O movimento operário francês, disse ainda Dimitrov, ocupa de novo o primeiro lugar à cabeça da Europa capitalista.” E considerou os comunistas franceses “dignos descendentes da Comuna de Paris(37).

No 7.º congresso, o PCF foi projectado como o modelo de política eficaz, liberta de peias “dogmáticas”. Foram-lhe atribuídos quatro dos 30 lugares do Presidium do CEIC(38). Facilmente se imagina o efeito que isto terá tido na difusão do “mal francês” por todo o movimento comunista.

Nem é de estranhar que as figuras que emergiram desta campanha anti-esquerdista e se afirmaram no 7.º congresso fossem, quase sem excepção, os futuros cabecilhas revisionistas: Thorez, Togliatti, Pieck, Ulbricht, Ibarruri, Browder, Carrillo, Codovilla, Kuusinen, Cunhal. Eram estes o “odres novos” que Dimitrov reclamava para receber o “vinho novo” do congresso...

Compreende-se agora melhor a decadência acelerada do espírito revolucionário nos partidos ao longo dos anos 1940-1950 e a facilidade com que, vinte anos mais tarde, estes personagens, definitivamente convertidos ao revisionismo, promoveram golpes em série nos partidos agonizantes, para se desembaraçarem das últimas resistências. Eles beneficiavam da experiência e das posições ganhas durante o golpe centrista de 1934-1935. O centrismo abrira caminho ao revisionismo, não só na ideologia e na política, mas também nos métodos típicos de luta interna.

Uma pergunta: a ocultação do golpe oportunista internacional de 1934-1935, em que ainda hoje se obstina a corrente centrista, tem como objectivo evitar o desprestígio da IC ou esconder o nascimento pouco limpo do centrismo?

A capitulação de Staline

“A crítica a Dimitrov é um subterfúgio de quem não tem coragem para atacar frontalmente Staline. Dimitrov foi o discípulo fiel de Staline e expôs no seu relatório os pontos de vista daquele. Há pois que escolher: ou se defende Dimitrov ou se enfileira na campanha anti-stalinista dos trotskistas” É assim que a corrente centrista moderna, quando se vê sem argumentos políticos para defender a política do 7.º congresso, tenta bloquear o debate, agitando a bandeira de Staline. Fazendo-o mete-se porém em trabalhos majores ainda.

O 7.º congresso assistiu à primeira exibição internacional do culto de Staline, que daí até à sua morte iria sempre em aumento. Togliatti encarregou-se de ler uma inflamada saudação aos seus dotes de chefe e de teórico. Dimitrov, no seu relatório, excedeu-se na bajulação, em termos até então desconhecidos, chamando-lhe “mestre supremo da obra revolucionária”, “sábio”, “grande”.

Isto levaria a crer numa identificação total de ideias entre Dimitrov e Staline no 7.º congresso... se não fosse o facto estranho de o mestre não ter correspondido por qualquer forma às homenagens dos discípulos.

Com efeito, Staline, presente no 1.º congresso como delegado do partido bolchevique e aí reeleito para o Presidium do CEIC, não tomou a palavra, nem nos plenários nem nas reuniões de comissões. Depois do congresso, manteve-se igualmente silencioso quanto à nova linha. Como observa um historiador revisionista italiano, “dá que pensar o facto de Staline não ter expresso publicamente por qualquer forma o seu aval à nova política, nem durante os trabalhos do congresso nem posteriormente”. E adianta que Staline “não teria tomado pessoalmente a iniciativa dessa viragem mas ter-se-ia convencido a aceitá-la, sobretudo face às pressões de uma parte do grupo dirigente da Comintern, em primeiro lugar de Manuilski e Dimitrov(39).

É de facto extraordinário que, no congresso da viragem da IC, nos congressos do partido Bolchevique, em todas as intervenções posteriores que se conhecem de Staline, não haja uma palavra para a nova política que viera revolucionar por completo a política da IC. O único testemunho nesse sentido, bastante suspeito aliás, foi o de M. Thorez, que declarou mais tarde ter sido felicitado por Staline pela sua “audaciosa política unitária, conforme ao espírito do leninismo”(40).

Mas este cumprimento — se é que existiu nestes termos — não desfaz o mistério do silêncio público de Staline sobre uma questão de tal importância. Quando se pensa na sua intervenção activa e determinante na vida da IC, sobretudo desde o 6.º congresso, quando se considera a sua autoridade já então incontestável como dirigente da União Soviética e dos comunistas de todo o mundo, este alheamento parece inexplicável.

Na realidade, Staline foi ao 7.º congresso presidir a uma reviravolta política cujo oportunismo não lhe podia escapar mas que era incapaz de deter pelas cedências que já fizera no ano anterior no 17.º congresso do PC(b). A dinâmica fora posta em marcha destruíra as forças de esquerda nos partidos e fizera vir ao de cima as forças de direita. O centrismo de Staline deixara-o sem apoio revolucionário. A partir de agora só podia contar com uma IC dominada pelo oportunismo. Por isso mesmo calava-se. E precisamente por isso, os cabecilhas oportunistas exaltavam-no à porfia para associar o seu nome à nova política, para calar com o peso do seu prestígio as objecções revolucionárias e as suspeitas que ainda se levantavam.