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O horror, o pavoroso, o impensável.
Treze mil e duzentas pessoas presas pela Securitate em Timisoara: 7600 foram imediatamente passadas pelas armas. Nas valas, os cadáveres, mãos e pés cortados, unhas arrancadas, cabeças meio arrancadas dos corpos, caras queimadas com ácido, a maior parte dos corpos esventrados e sumariamente recosidos. Testemunhas viram os tanques passar sobre crianças. A mulher do pastor Laszlo Tokes, grávida de seis meses, foi obrigada pela Securitate a abortar.
Sente ainda, sem dúvida, caro leitor, a emoção que o invadiu na véspera de Natal de 1989, no momento em que leu essas linhas no jornal La Libre Bélgique.(1) Depois, o telejornal da TF1 revelou-lhe que acabava de se descobrir, na Roménia, cadáveres esvaziados de sangue. E foi assim que ficou a saber que Ceausescu, que sofria de leucemia, renovava o seu sangue todos os meses fazendo matar inocentes.(2)
Depois de tantas revelações traumatizantes, como não ter escolhido como seu o lado da liberdade e da democracia? Como não se associar à homenagem prestada por esse homem político francês ao
«levantamento vitorioso do povo e do exército contra o comunismo, o sistema político mais bestial e criminoso que oprimia a Roménia desde há mais de 40 anos»?(3)
Do que foi feito de todas estas revelações que nos gelaram o sangue, falaremos depois. Notemos por agora que nos parece impossível abordar a experiência dos países de Leste, entre os quais a Roménia, «por um canudo»,(4) abstraindo-nos do conjunto da história revolucionária deste século e da actual situação mundial no seu conjunto.
Em 20 anos, encontrámos bastantes militantes de esquerda que se excitavam tanto com os erros do socialismo, colocando mal a questão, que por fim se arrumaram do lado da barbárie imperialista. No decurso de conferências que demos durante este último ano, alguns levantaram-se para exclamar: «À ditadura da burocracia romena ou chinesa, prefiro a democracia burguesa». Nada pode ilustrar melhor a passagem de uma certa «esquerda» para o lado do imperialismo. Para melhor situar as nossas posições no que respeita ao Leste e à Roménia, lembremos então alguns factos que são essenciais para julgar na sua perspectiva verdadeira as «revoluções pela democracia e pela liberdade».
A democracia burguesa, nascida com a Revolução Francesa passou por muitas transformações para vir a ser hoje a democracia das multinacionais, uma democracia imperialista. Aliás, a comemoração da tomada da Bastilha ofereceu-nos algumas imagens maravilhosas que ilustram como a democracia burguesa se transformou em democracia imperialista: Mitterrand festejando 200 anos de revolução ao lado de um Mobutu; ainda Mitterrand arrastando atrás de si um longo séquito de dignitários chegados das colónias e das neocolónias francesas às festividades do 14 de Julho; Mitterrand, sempre ele, limpando da história os Robespierre e os Saint-Just. E, vendo os folhetins televisivos que a França produziu em 1989, adquire-se a convicção de que Luís XVI e Maria Antonieta foram os heróis de 1789. E é neste ambiente que uma certa «esquerda» ataca encarniçadamente a «ditadura burocrática» dos regimes socialistas, para afirmar que o nosso regime político, lá por ser burguês, não deixa de representar a melhor encarnação da Democracia. Forma hábil para mascarar os traços essenciais do nosso sistema de ditadura da grande burguesia.
Nos nossos países capitalistas, as eleições «livres» não são outra coisa senão um biombo para esconder os verdadeiros centros de poder: conselhos de administração das multinacionais, altos cenáculos das instituições do Estado. O parlamento é apenas uma cena (muitas vezes vazia) onde se desenrolam peças trágico-cómicas; não é o lugar onde se decidem as batalhas reais entre os interesses socioeconómicos antagónicos. Raymond Aron pretende que num regime pluralista «o poder emana da competição entre os grupos e as ideias».(5) Mas quem poderá ter ilusões sobre a natureza das eleições «livres» organizadas nos Estados Unidos, esse grande bastião da democracia burguesa? Os partidos republicano e democrata agrupam forças e interesses bastante diversos, canalizam toda a espécie de protestos, mas fazem-no sob a direcção e a dominação sem falhas da grande burguesia americana. Há competição, crítica e autocrítica, «checks and balances»,(6) democracia, mas apenas no interior de uma única classe e numa óptica apenas, a da defesa da livre empresa e do sistema imperialista mundial. A maneira como os chefes dos republicanos e dos democratas competem em patriotismo para mergulhar na guerra contra o Panamá diz muito sobre este pluralismo de voz única.
A nossa «democracia» é apenas um derivado, afinal bastante marginal, de três dados materiais fundamentais.
As multinacionais e os seus aliados directos, os pequenos e médios patrões possuem todos os meios de produção que constituem as alavancas mais importantes da ordem social.
Controlam todas as engrenagens vitais da máquina do Estado, instrumento de coacção concebido para proteger a ordem económica existente.
Dominam os aparelhos ideológicos (redes de ensino, media, igrejas) para justificar a ordem capitalista que impõem como uma ordem natural.
Esta «democracia», profundamente enraizada na espessa camada das empresas capitalistas que cobre os nossos países, é inseparável da história e da realidade actual do imperialismo. Enquanto se não manifestam forças significativas para atacar frontalmente os fundamentos do capitalismo, a ditadura burguesa exerce-se de maneira liberal, pluralista e «democrática».
Esta fachada democrática tem, além do mais, a vantagem de camuflar uma actividade sistemática de espionagem contra todas as forças opostas ao sistema, um trabalho de infiltração, de controlo das actividades da esquerda, realizado numa tão larga escala que não está ao alcance de nenhuma ditadura aberta do Terceiro Mundo. E logo que uma crise profunda desponta ou que o regime se aventura numa guerra externa (guerra das Malvinas, ataque contra a Líbia, agressão ao Panamá), as medidas extraordinárias apagam as aparências democráticas.
Desde 1981, já vimos muitos «progressistas» que, seguindo o trilho de Mitterrand, rejeitaram estas verdades julgadas demasiado elementares. Bebendo a grandes goles o ódio anticomunista que os media quotidianamente nos servem, passaram a detestar a tal ponto os erros e as fraquezas dos países socialistas que acabaram por tornar-se defensores da nossa democracia, sistema imperfeito, concordam, mas «a humanidade ainda não encontrou nada melhor».(7) Então, toca a andar em frente, sob a batuta do tio François. E passemos sobre os pormenores, as colónias francesas que as nossas tropas guardam, o reforço das multinacionais francesas, aquelas pequenas guerras no Tchad, no Médio-Oriente ou noutros lugares onde o dever de ingerência nos chama.
Com efeito, um traço distintivo da democracia burguesa actual é que ela se apresenta como uma democracia imperialista. A verdadeira natureza da «nossa» democracia exprime-se mais claramente na realidade política, económica e social do Terceiro Mundo. Fazem-nos crer que os países industrializados abrigam homens inteligentes e diligentes que, pelo seu trabalho intenso, conquistaram o bem-estar e a democracia. Fora deste paraíso situa-se o imenso espaço selvagem do Terceiro Mundo, que está apenas no início do processo de arranque económico e que muitas vezes é regido por déspotas sanguinários que caracterizam as sociedades atrasadas.
Na realidade, o nosso mundo, ou pelo menos o mundo imperialista, já se tornou numa aldeia e os seus bairros mais miseráveis dependem da junta de freguesia onde se sentam, sob o ar enganador de velhos sábios, as multinacionais. O neocolonialismo em África, na América Latina e na Ásia não é senão a ditadura política e económica da «nossa» grande burguesia que impõe a sua vontade através dos chefes locais: presidentes da República, altos funcionários, banqueiros, grandes empresários e comerciantes do Terceiro Mundo. Quem quiser apanhar a face autêntica da «nossa» democracia, tem de observar os massacres, os genocídios, o terror estatal que organizam, supervisionam e justificam no Salvador e no Peru, em Moçambique e no Zaire, na Palestina e na Turquia, nas Filipinas e na Indonésia. Em praticamente todos os países do Terceiro Mundo, os quadros dos serviços de repressão oficiais foram formados e treinados pelo Ocidente e muitas vezes colocados sob a supervisão directa de oficiais superiores vindos do mundo «livre». Os esquadrões da morte que se encarregam das tarefas sujas, dos assassínios selvagens, são quase todos oriundos destes serviços oficiais e colocados sob a direcção da extrema-direita ocidental, parte integrante da «nossa» democracia. Matanças legais e ilegais em África, na América Latina e na Ásia, são patrocinadas por políticos locais que receberam a sua educação das ideologias que a democracia ensina nas nossas universidades e junto dos nossos partidos democráticos. Duarte e Cerezo Arevalo, Houphouet-Boigny e De Klerk, Mobutu e Abdou Diouf, Hassan II e Aquino são produtos da «nossa» democracia. É no Terceiro Mundo que vemos claramente que a «nossa» democracia é um sistema de terror de Estado e de genocídios permanentes.
Estas verdades também elementares para qualquer homem de esquerda. Mas segue-se que a democracia popular não pode ser instaurada no Terceiro Mundo senão como ditadura do povo trabalhador contra todas as forças da «democracia imperialista». O povo da Nicarágua paga já bem caro o facto de o ter esquecido e de ter aceitado uma «democracia para todos» que teria de dar, mais cedo ou mais tarde, a vitória aos reaccionários, apoiados pelas forças econômicas, políticas e militares do imperialismo.
As primeiras manufacturas, esses germes da sociedade industrial europeia surgiram do genocídio dos povos da África negra e da América índia. A descoberta dos impérios dos Incas e dos Astecas pelos «civilizadores» europeus custou 60 milhões de mortos à população indígena. E, é claro, toneladas de ouro.
A partir do início do século XVI, os comerciantes europeus capturaram e depois venderam entre 100 e 200 milhões de negros. Dezenas de milhões de homens perderam a vida na Ásia e na África quando as conquistas coloniais do século passado que destruíram as sociedades locais, deram origem a fomes, espalharam doenças desconhecidas, impuseram o ópio e o álcool. A revolução industrial na Europa nos séculos XVIII e XIX foi acompanhada da expulsão violenta de milhões de camponeses das suas terras e pelo trabalho forçado das crianças e das mulheres, 12 a 15 horas por dia. Os Estados burgueses europeus lançaram-se numa Primeira Guerra Mundial visando uma nova partilha das colónias: milhões de trabalhadores pagaram com a vida esta rivalidade entre colonialistas.
Face a estas realidades, o socialismo não podia nascer e manter-se senão através da ditadura do proletariado, unindo todas as camadas populares contra a burguesia.
Por esta razão podemos afirmar que, no contexto actual da «democracia imperialista», a experiência fundamental de Lénine e de Stáline adquire um muito particular significado para os povos que desejam libertar-se da opressão imperialista. O Chile em 1973 e a Nicarágua em 1990 constituem provas a contrario.(8) Cuba, a China, a Coreia do Norte e a Albânia continuam, neste momento, fiéis à via socialista, defendendo também esta experiência fundamental do partido bolchevique.
Os operários e camponeses russos, tendo sofrido o terror secular do tsarismo, pagaram um preço excessivamente elevado durante a Primeira Guerra Mundial: quase três milhões de vítimas. Desta insuportável opressão, os bolcheviques extraíram a energia, a coragem e a determinação necessárias para dirigir a revolução socialista e quebrar pela força a ditadura burguesa. A terra e os meios de produção tornaram-se propriedade pública, a máquina do Estado opressivo do tsarismo foi sistematicamente desmantelada e substituída pelo Estado dos operários e dos camponeses.
Ajudadas pelos exércitos intervencionistas ingleses, franceses e checos, as classes reaccionárias e as forças tsaristas desencadearam um terror branco contra o socialismo. Praticamente sós contra o mundo inteiro, os bolcheviques conseguiram levar as amplas massas camponesas a seguir a classe operária e a organizar um terror de massas contra os seus inimigos.
Foi nesse baptismo de fogo que o bolchevismo lançou profundas raízes entre os camponeses pobres. Sem esse implacável terror vermelho não teria havido socialismo na Rússia e o terror branco teria restabelecido esse bastião da reacção mundial que foi o tsarismo.
Foi Lénine quem elaborou os princípios essenciais da edificação socialista sob a ditadura do proletariado. Mas faleceu em 1924, apenas começado esse trabalho. Entre 1924 e 1953, o partido bolchevique, dirigido pelo camarada Stáline, realizou no essencial os planos de Lénine. Graças a um heroísmo popular sem precedentes, a União Soviética edificou uma indústria e uma agricultura socialistas. Stáline não tinha o génio de Lénine e, numa situação nacional e internacional extraordinariamente difícil e complexa, cometeu alguns erros que Lénine teria provavelmente conseguido evitar. Mas, no essencial, o partido bolchevique e o povo soviético cumpriram, sob a sua direcção, as tarefas que Lénine lhes havia legado.
As realizações da ditadura do proletariado na União Soviética entre 1924 e 1953 agitaram toda a situação mundial e mudaram profundamente a relação de forças a nível internacional. Os que mostram desprezo e ódio por estas realizações, escondem com o seu «anti-stalinismo» ou, sob a quimera de um mundo ideal, uma aversão ao socialismo realmente existente — lutando, sofrendo, vacilando, mas em marcha. Entre 1921 e 1941, o partido bolchevique realizou a industrialização socialista, permitindo-lhe fazer frente aos exércitos fascistas. Graças à revolução cultural, formou um exército de técnicos e de especialistas, bem qualificados e politicamente conscientes, que dirigiu o esforço de guerra. A colectivização da agricultura bloqueou a tendência espontânea para a diferenciação de classes no campo e impediu o florescimento de uma classe de kulaques, a ameaça interna mais perigosa para o socialismo. O número de membros do partido bolchevique passou de 250 mil em 1918 para 2,5 milhões nas vésperas da guerra, e o partido enquadrou e dirigiu com inquebrantável vontade toda a resistência antifascista.(9) Depois da guerra, Stáline e o partido dirigiram a reconstrução de um país devastado, elevando o índice da produção industrial de 1085 pontos em 1940 para 1713 em 1950.(10) Dos anos 20 aos anos 50, o partido bolchevique teve um papel essencial no reforço do movimento comunista internacional e a própria existência da União Soviética tornou possível a segunda vitória de importância mundial, a revolução socialista chinesa.
Os sucessos da edificação socialista na URSS, ligados à sua política externa de independência e de paz, impulsionaram o movimento de descolonização em África e na Ásia.
Recordar estas verdades parece-nos essencial para abordar os acontecimentos da Europa de Leste e isto pela boa razão de que, hoje em dia, as concepções do socialismo burguês e do socialismo reaccionário, denunciadas em 1848 no Manifesto do Partido Comunista, dominam amplamente a esquerda europeia. Não queremos criticar Ceausescu na companhia de socialistas burgueses que pedem ao proletariado
«que fique na sociedade actual, mas que se desfaça das odiosas representações que faz dela».(11)
A propósito da sociedade socialista, são as concepções contra-revolucionárias elaboradas durante os anos 20 e 30 pela social-democracia que dominam actualmente os meios progressistas europeus. A social-democracia que justificou a guerra imperialista de 14-18, que esmagou a insurreição operária na Alemanha e que defendeu com unhas e dentes o sistema colonial. Em 1930, o seu chefe Karl Kautsky pregava uma «revolução democrática» contra a «aristocracia soviética». Esperava ver em breve «insurreições camponesas» contra a «degenerescência fascista do bolchevismo». O seu programa fundamentava-se sobre «a nossa reivindicação de democracia para todos», «a democracia pura». Defensor do multipartidarismo, Kautsky pregava o derrubamento do partido bolchevique e a tomada do poder por uma coligação de sociais-democratas e de democratas burgueses para fundar «uma República democrática parlamentar».(12)
É notável reencontrar em 1989, durante os movimentos contra-revolucionários que a China e a Roménia conheceram, praticamente palavra por palavra, esse programa anticomunista.
Desde final dos anos 50, quando a maioria dos partidos comunistas da Europa ocidental passaram para o lado da ordem estabelecida, raras são as organizações políticas e os intelectuais que ousam remar contra a maré da ideologia imperialista e defendem a experiência histórica da ditadura do proletariado.
Quase todas as teses anticomunistas que circulavam nos anos 20 nos meios clericais, liberais, sociais-democratas e fascistas são hoje consideradas como verdades estabelecidas por toda a esquerda reformista. O método de análise de classe é substituído pela demagogia moralizante senão mesmo pelo panegírico da sociedade imperialista. O exemplo tipo é a condenação em bloco, como o mais arbitrário dos crimes, da colectivização e da depuração organizadas pelo partido bolchevique durante os anos 30.
Em 1928, a União Soviética conta sete por cento de camponeses sem terra, 35 por cento de camponeses pobres, 53 por cento de camponeses médios e cinco por cento de camponeses ricos, os kulaques, que possuem 20 por cento dos cereais comercializados.(13) A evolução espontânea reforça os kulaques que, através de um acrescido controlo sobre o trigo comercializado, podem levar a fome às cidades e sabotar a indústria socialista. Não há outra via senão a da colectivização, durante a qual explode o ódio secular dos camponeses pobres e médios contra os kulaques. Esta luta de classe organizada pelos camponeses pobres e médios é o factor decisivo da colectivização, posto que o partido bolchevique, com 200 mil membros no campo, continua muito fraco no meio camponês.(14) A colectivização é realizada através de uma guerra civil nos campos, com os camponeses ricos e os reaccionários matando grande número de quadros e de dirigentes entre os camponeses pobres e abatendo o gado para sabotar a economia colectiva. O terror que os camponeses pobres exercem contra os kulaques é, em boa parte, uma reacção inevitável a séculos de opressão.
A depuração do partido, organizada por Stáline entre 1936 e 1940, foi necessária na previsão da guerra que aí vinha, mas foi acompanhada de erros graves, alguns inevitáveis num combate tão complexo, outros devidos a análises erradas ou atitudes arbitrárias.
Stáline tinha compreendido que a exacerbação dos conflitos internacionais e a iminência de uma guerra de agressão contra a União Soviética imprimia um carácter muito particular às lutas políticas no interior do partido. Sabia que, na previsão do conflito mundial que se aproximava, a Alemanha nazi e as outras potências imperialistas enviariam numerosos espiões, sabotadores e agentes de diversão para a URSS.
Os restos das classes exploradoras e os antigos reaccionários procurariam inevitavelmente vingar-se do socialismo ligando-se às potências imperialistas «libertadoras». Os oportunistas e os derrotistas no partido, impressionados pela «superioridade» esmagadora do imperialismo, poderiam entrar em contacto com o inimigo. Os sucessos económicos das União Soviética haviam minado a vigilância de alguns bolcheviques que se consagravam inteiramente aos problemas económicos, negligenciando a luta de classes.(15) Stáline organizou uma vasta mobilização popular para apoiar a depuração e impôs exigências muito grandes aos novos membros do partido no que respeita à sua devoção ao socialismo, ao seu espírito de sacrifício, ao seu ardor no trabalho e à disciplina.
No decurso dessa depuração, graves erros de organização foram cometidos: aconteceu que as regras do centralismo democrático não foram respeitadas, o arbitrário substituía por vezes o exame rigoroso, os serviços policiais foram, em certos momentos, subtraídos ao controlo do Partido. Isto conduziu a erros políticos de envergadura, tomando a repressão uma extensão demasiado considerável e sendo a pena de morte aplicada em numerosos casos em que se não justificava em absoluto. Se ela se impunha no caso de um traidor como Trótski, ela não se impunha no caso de um oportunista como Bukhárine(16) e foi um erro grave no caso de um revolucionário como Piátnitski.(17)
Mas a prova de fogo da guerra antifascista mostrou que, contrariamente a todos os outros países do mundo, a União Soviética produziu muito poucos colaboracionistas. Na Europa Ocidental, pelo contrário, a previsão de Stáline de que os oportunistas se juntariam ao ocupante nazi realizou-se plenamente. Na Bélgica, Henri De Man, presidente do Partido Socialista, e Victor Grauls e Achille Van Acker, dois dos seus principais dirigentes, prestaram publicamente homenagem à acção libertadora de Adolf Hitler. Na França, a maioria dos sociais-democratas votaram plenos poderes ao colaborador Pétain e os expulsos do Partido Comunista Francês como Jacques Doriot, Pierre Celor e Henri Barbé tornaram-se chefes do partido fascista, o Partido Popular Francês.(18)
Há 35 anos, um áspero e violento debate dilacerou e dividiu o movimento comunista internacional. A esquerda, dirigida por Mao Tsé-Tung e Enver Hoxha, afirmava que se deviam manter e desenvolver todas as ideias de Lénine e de Stáline, embora corrigindo os erros cometidos; a direita, dirigida por Nikita Khruchov, pretendia que Stáline tinha desnaturado completamente o socialismo e que era preciso mudar de orientação para dar um verdadeiro impulso à sociedade socialista. Durante 35 cinco anos, Nikita Khruchov, Tito e Togliatti, e depois Dubcek, Ceausescu e Gorbatchov invectivaram o stalinismo, a ditadura, o dogmatismo, a ortodoxia, o sectarismo, o pensamento rígido e pretenderam trazer a renovação, as ideias criativas, o retorno ao leninismo, o socialismo democrático. Hoje assistimos ao estilhaçar de todas essas promessas empoladas. A Leste, entre outros na Roménia e na União Soviética, vivemos a falência irremediável da corrente revisionista. Esta corrente demagógica desagua na restauração do capitalismo e na integração no mundo imperialista.
Nikita Khruchov começou por afirmar, em 1956, que o imperialismo estava fortemente enfraquecido, que já não podia desencadear grandes guerras de agressão, que a sua natureza agressiva tinha mudado. A União Soviética, dizia, quer ter relações de amizade e cooperação confiante com os Estados Unidos para desse modo assegurar a segurança dos povos. Foi o início da colaboração com a pior força de opressão e de guerra no mundo. Nikita Khruchov continuava a pretender que já não era necessário para os países do Terceiro Mundo prosseguir e aprofundar os movimentos de massas anti-imperialistas: os países do Terceiro Mundo podiam desenvolver-se de modo acelerado graças à ajuda económica da União Soviética. Ainda segundo Nikita Khruchov, o sistema capitalista nas metrópoles imperialistas, iria transformar-se de maneira pacífica, pela via parlamentar, em regime socialista, dado o enfraquecimento do capitalismo. Fanfarrão, Nikita Khruchov clamava que o socialismo havia definitivamente triunfado na União Soviética e na Europa de Leste e que a restauração do capitalismo era a partir de então impossível. A profecia de um burro, pronunciada em 1961. E a partir desta tese seguia-se logicamente que a ditadura das massas trabalhadoras tinha deixado de ser uma necessidade; Nikita Khruchov pregava a democracia para o povo inteiro, mesmo para as forças burguesas. Como as classes exploradoras haviam desaparecido, já não havia lugar para lutar contra a sua resistência. Querer continuar a luta de classes sob o socialismo era pregar a repressão, o arbitrário, o permanente entrave à democracia. Nikita Khruchov punha-se então a falar de humanismo e de valores universais da humanidade: as ideias da grande burguesia e o seu estilo de viva tornaram-se de bom-tom. Como já não havia luta de classes a travar, o partido tornava-se o partido do povo inteiro: os elementos corruptos, que buscavam privilégios e enriqueciam de modo ilegal, subiam no partido e já não arriscavam ser desalojados.(19)
Lénine e Stáline construíram o socialismo num período de 36 anos; Nikita Khruchov, Bréjnev e Gorbatchov tiveram necessidade de trinta e seis anos para apagar completamente os princípios marxistas-leninistas que fizeram da URSS o primeiro Estado socialista do mundo. Quando a direita afirma hoje que a derrocada de Leste prova o falhanço do «stalinismo», demonstra uma manifesta desonestidade intelectual: a sua contrapartida soviética, de Nikita Khruchov a Gorbatchov, teve de bater-se mais de 30 anos para desfazer-se dos princípios revolucionários de Lénine e de Stáline.
Ceausescu seguiu, no essencial, as teses revisionistas de Nikita Khruchov. Como a experiência de luta revolucionária do Partido Comunista Romeno era bastante limitada quando tomou o poder graças ao apoio do Exército Vermelho, o socialismo assentou, desde o início, em bases bastante fracas. No entanto, em 1965, Ceausescu proclamou «a vitória definitiva do socialismo na nossa pátria» e «o desaparecimento das classes exploradoras» e portanto da luta de classes... num país onde a influência ideológica do fascismo continuava a ser bastante forte.(20) O socialismo, quer dizer, a ditadura do proletariado, é a continuação da luta de classes sob outras formas. Os comunistas que o esquecem encontram-se já na ladeira escorregadia da degenerescência política. De qualquer modo, a burguesia, tanto nacional como internacional, não perde nunca de vista esta verdade e age em consequência de maneira constante e tenaz.
O estágio para os novos membros do partido foi suprimido. Arrivistas, reformistas e mesmo fascistas infiltraram-se em grande número.
«A proposta de suprimir o estágio dos candidatos assenta nas modificações essenciais que se verificam na estrutura da nossa sociedade: as classes exploradoras foram liquidadas; os operários, camponeses e intelectuais colaboram estreitamente e aplicam com determinação a política do Partido; o nível político das massas populares, o nível dos seus conhecimentos elevou-se.»(21)
Em 1959, o partido contava 750 mil membros, esse número duplicou em 1965, para atingir três milhões e 850 mil em 1989. Como o partido já não servia para defender a ditadura do proletariado e travar a luta de classes sob as formas mais complexas que esta toma na sociedade socialista, toda a espécie de correntes burguesas e pequeno-burguesas podia facilmente lá entrar.
A exigência principal feita aos quadros dizia respeito à sua capacidade técnica e científica.
«O que antes de tudo deve caracterizar um dirigente é o conhecimento profundo do desenvolvimento da actividade do sector onde trabalha.»(22)
Numerosos tecnocratas sem convicções revolucionárias, sem prática revolucionária entre as massas, sem empenhamento na luta anti-imperialista internacional invadiam o partido.
Entretanto, Ceausescu declarava que «a unidade no seio do PCR é indestrutível».(23) Ele pretendia, ainda em 1965, que
«o partido comunista romeno é seguido pelo povo inteiro com uma devoção e uma confiança sem limites».(24)
Isto era baixar toda a vigilância na luta de classes nacional e internacional. Por outro lado, ao aproximar-se imprudentemente dos capitalistas ocidentais durante os anos 70, Ceausescu permitiu que numerosos quadros superiores fossem seduzidos pelo estilo de vida da grande burguesia internacional. Enquanto Ceausescu tagarelava sobre o fim da luta de classes, elementos reaccionários e fascistas estendiam a sua influência no povo com a ajuda eficaz do imperialismo, no domínio, entre outros, da propaganda. Assim, o partido foi cercado ao nível das massas por uma direita renascente. No interior do partido, as correntes políticas praticando o burocratismo e pregando o tecnocratismo e a convergência com o capitalismo tomavam conta de todas as engrenagens essenciais.
Quando aborda o drama romeno, a pseudo-esquerda que chafurda na democracia imperialista não liga absolutamente nada a estes pontos essenciais do revisionismo, bem pelo contrário. Subscreve plenamente estas posições burguesas de Ceausescu, mas critica a «repressão» contra os elementos abertamente fascistas ou pró-imperialistas, as suas «violações dos direitos humanos» contra esses reaccionários declarados. Nós criticamos Ceausescu por não ter formado o partido como uma força de combate e instrumento de mobilização das massas trabalhadoras, de não ter empenhado os trabalhadores na luta para proteger o socialismo e reprimir eficazmente tanto os agentes externos como os antigos fascistas e os novos elementos burgueses surgidos no seio do partido e do Estado socialista.
No fim da vida, Ceausescu, diante dos ataques do imperialismo e dos complots dos soviéticos, tentou retornar a certos princípios essenciais do socialismo. Em 20 de Dezembro, após as manifestações contra-revolucionárias de Timisoara, declarava:
«Os dados disponíveis permitem-nos declarar que estas acções de carácter terrorista foram organizadas e desencadeadas em estreita ligação com os meios reaccionários, nacionalistas, imperialistas e com os serviços de espionagem de diversos países estrangeiros. A finalidade destas acções antinacionais provocadoras foi gerar a desordem com vista a desestabilizar a situação política e económica, criar as condições para o desmembramento territorial da Roménia, para a destruição da independência e da soberania da nossa pátria socialista, fazer marcha atrás, retornar à situação de dominação estrangeira, liquidar o desenvolvimento socialista da nossa pátria.»(25)
Esta análise de Ceausescu era pertinente e as coisas desenrolaram-se exactamente como ele indicou. A sua própria responsabilidade na degenerescência, como a sua impotência frente às forças anti-socialistas desencadeadas, não muda nada. A pseudo-esquerda deitou-nos muitas vezes à cara: «Então vocês ousam apoiar essas afirmações de Ceausescu, desse Vampiro dos Cárpatos, desse Rei-Sol?» Pois sim, adversários do revisionismo de Ceausescu, sem ilusões de que ele pudesse endireitar a situação, ousamos afirmar que estas últimas tomadas de posição correspondiam, no essencial, à realidade da luta de classes. Como também afirmamos que os que apoiaram o golpe de Estado em nome da «liberdade» e da «democracia» ajudaram o imperialismo e a reacção romena a liquidar os últimos restos do socialismo.
Mas, isolado no seu próprio partido, Ceausescu não tinha já os meios de endireitar uma situação que ele próprio havia ajudado a fazer apodrecer. O fruto estava maduro. O golpe de Estado, bem orquestrado e acompanhado de uma campanha de intoxicação que ultrapassou as melhores façanhas de Goebbels, encontrou pouca resistência.
Para justificar o derrubamento de Ceausescu, alguns fazem referência à «enormidade da cólera popular». Parece-nos uma interpretação bastante discutível do que realmente se passou: minado a partir do interior, o regime romeno deixou de se defender, estando a maioria dos seus quadros de acordo com a restauração da liberdade capitalista reclamada pela oposição. E além disso, essa «enorme cólera popular» tomou muitas vezes os tons do clericalismo, do nacionalismo, do anticomunismo, enfim, de todas as ideologias que fizeram a desgraça dos povos dos Balcãs durante os anos 30 e 40. Um marxista bater-se-á sempre, remando contra a maré destas ideologias assim que elas tomam conta das massas.
A rapidez da derrocada do regime revisionista romeno permite também julgar do verdadeiro valor desse grotesco cavalo de batalha da direita que é o «totalitarismo socialista». No entanto, a influência desta «análise» faz-se também sentir no seio da esquerda. Assim, ouve-se formular a seguinte tese: Como o poder económico e político se confundem no regime socialista, assim que os dirigentes cometem erros graves, vem ao de cima uma ditadura burocrática que ultrapassa, na sua cegueira repressiva, tudo o que as democracias ocidentais têm de pior. Ora, a derrocada, como os castelos de cartas, dos regimes do Leste, refuta esse raciocínio.
A repressão antipopular no Ocidente tem raízes históricas muito mais profundas. É constituída por um conjunto coerente e sólido de medidas tecnológicas, políticas, econômicas e científicas aterradoras, tem à sua disposição reservas importantes entre os fascistas e as forças de direita e sobretudo, na época do imperialismo, possui uma dimensão internacional que é essencial. Vejamos como a burguesia «depura» todas as engrenagens importantes do seu sistema de elementos «potencialmente subversivos», através de uma selecção política, ideológica e social rigorosa e comparemo-la com a infiltração no Partido Comunista Romeno, ao mais alto nível, de elementos burgueses, anti-socialistas e pró-ocidentais. A Stasi da RDA, tão caluniada, ruiu após algumas procissões, enquanto que uma República Federal mal desnazificada lança unidades de elite contra a esquerda e dispõe de computadores superpoderosos e de laboratórios de tecnologia de ponta para apanhar todos os «inimigos da liberdade».
Quando os fundamentos do regime capitalista são colocados em perigo, nenhum Estado burguês hesita a massacrar dezenas e, se for necessário, centenas de milhares de trabalhadores: a Alemanha em 1918 e a Hungria em 1919, a contra-revolução de Franco em Espanha, o período fascista com Mussolini e com Hitler, a guerra de agressão britânica contra a Grécia antifascista em 1944-1950. A repressão nos países socialistas não pode ser comparada com o terror sistemático que a polícia americana faz reinar há décadas nos ghettos negros, nem com o terror do exército britânico na Irlanda. Para apanhar um antigo agente da CIA tornado presidente do Panamá, o exército americano não hesitou em massacrar cinco mil civis. Tal como a CIA, segundo recentes revelações, havia perfeitamente preparado a exterminação de mais de 500 mil «comunistas» que ameaçavam a ordem neocolonial na Indonésia. O imperialismo está pronto a massacrar numa tal escala logo que os seus interesses são ameaçados num país do Terceiro Mundo. Que aconteceria se os trabalhadores visassem o próprio coração do seu sistema nas metrópoles?
Para tornar aceitável o deslizamento para posições de «combatentes da liberdade» dizem-nos:
«A imagem de Ceausescu de tirano sanguinário não é desprovida de fundamento: as massas sofreram a opressão e a indigência, e o socialismo não era senão uma pura ficção odiosa.»
A nosso ver, as campanhas anti-socialistas que a burguesia leva a cabo nunca se fundamentam nos problemas reais que as massas podem experimentar num país socialista. Nessas campanhas exprime-se, primeiro que tudo, o ódio de classe, a aversão pela própria ideia do poder dos trabalhadores, a oposição cega a qualquer experiência socialista. Mesmo quando nada pode dar uma parecença de justificação à sua histeria anticomunista, os escribas da direita escarram as suas acusações contra qualquer regime socialista. Alguns oportunistas pretenderam que os «erros reais» de Ceausescu estavam na base das acusações lançadas pelos media; ora, com Ceausescu liquidado, logo as mesmas acusações foram lançadas contra Fidel Castro. Estes oportunistas que se vergaram perante o furacão e que uivaram com os lobos que Ceausescu eram um louco trágico, um fóssil do arqueo-stalinismo, ajudaram a reforçar uma corrente política que visa derrubar os regimes progressistas e socialistas da Albânia, de Cuba, da Coreia do Norte, de Angola, de Moçambique, da Nicarágua, do Vietname e do Laos. Enumerando todos estes países, o jornal da extrema-direita espanhola ABC escreve:
«O sucesso da revolução popular na Roménia semeou o medo nas outras ditaduras comunistas.»
Merece ser lembrado que, em plena histeria anticomunista, no final de Dezembro de 1989, os jornais do mundo inteiro viraram o seu tiro para Cuba. O jornal espanhol antes citado, continuava assim:
«Castro, como Ceausescu, só pode ser derrubado pelo exército porque ele fez desaparecer qualquer possibilidade de reagrupamento político sob a sua ditadura arqueo-stalinista. Hoje, um dos dois morreu. Resta apenas um louco trágico do absolutismo, o ditador de Havana.»(26)
O Libre Belgique falava, em 28 de Dezembro, de Castro nestes termos:
«Um potentado a envelhecer, metendo na prisão aqueles que o criticam.»
Alguns, aterrados pela violência da campanha anticomunista, apoiaram, «em nome do socialismo», a direita e o imperialismo na Roménia. Exclamaram: mas não podemos nunca apoiar um Ceausescu! Entre esta gente, alguns apoiaram certamente a guerra de agressão contra as Malvinas, porque «não podiam nunca estar do lado dos generais fascistas argentinos». Apoiaram a guerra de agressão de Bush contra o Panamá, porque «nunca poderiam ver-se na companhia de um ditador como Noriega». No que nos respeita, não «apoiamos Ceausescu na medida em que temos lutado, desde 1968, contra o revisionismo. Mas defendemos o socialismo romeno (minado pela doença revisionista, moribundo) e Ceausescu, contra o assalto final da direita pró-imperialista (do social-democrata Roman à clerico-liberal Doina Cornea) e do imperialismo ocidental. A Roménia de Ceausescu oferecia um melhor terreno de luta para os que aspiram à ditadura do proletariado do que uma Roménia recolonizada pelo imperialismo alemão e francês. Sob Ceausescu, a indústria romena continuava nacionalizada e o país mantinha a independência; no seio do Partido Comunista Romeno, os marxistas-leninistas que se opunham ao revisionismo podiam fazer um trabalho ideológico e organizacional. A história mostrou que os marxistas-leninistas eram demasiado fracos, que a correcção revolucionária já não era possível e que a derrota frente ao assalto da direita se tornou inevitável. O combate para reconstituir um partido comunista revolucionário será portanto longo e difícil. Mas jamais um comunista digno desse nome, constatando a fraqueza das forças marxistas-leninistas no seio do PCR, poderia usar tal situação como pretexto para se juntar ao campo da direita e do imperialismo.
É útil, neste passo, determo-nos sobre certas características da luta de classes virulenta da qual a Roménia foi teatro em Dezembro de 1989.
Muitos militantes anticapitalistas deixaram-se influenciar pelas torrentes de desinformação que nos submergiram a propósito da Roménia. No entanto, esta campanha nada tinha de novo e não deveria ter apanhado os progressistas de surpresa. Dezenas de livros redigidos por especialistas militares ensinam-nos que na doutrina oficial da NATO a desinformação é tão vital como a artilharia pesada para a guerra. Como disse o coronel Roger Trinquier, especialista da guerra anticomunista:
«A guerra é hoje um conjunto de acções de todas as naturezas — políticas, sociais, econômicas, psicológicas, armadas, etc. — que visa o derrubamento do poder estabelecido num país.»(27)
Em qualquer luta importante, as informações que os media burgueses fornecem são constituídas por uma sábia mistura de falsidades, de meias verdades, de factos verídicos. Na sua autobiografia, Joseph Smith, um dos melhores peritos da CIA em black propaganda, quer dizer, na ciência da mentira, explica que utilizou durante anos «o senhor Li, o melhor jornalista de Singapura», para espalhar no mundo inteiro as falsas notícias que prepararam o ambiente para a intervenção americana no Vietname. Mas segundo Smith, mentir de maneira convincente é ainda a menor das proezas.
«Dizer que os comunistas são maus é apenas tagarelice. Apresentar actos maus, mascarados de comunistas, eis o que pode ter uma credibilidade efectiva.»(28)
Como é possível que gente progressista não se tenha lembrado de tais confissões, no momento em que o moinho da desinformação rodava na Roménia? Recordamo-nos de um episódio da guerra antifascista na Grécia, narrado por Richter na sua excelente obra sobre a guerra civil grega. Os nazis afirmavam que os partisans gregos torturavam e extirpavam os prisioneiros. E apresentaram à imprensa internacional um balde completamente cheio de olhos que os comunistas tinham arrancado às suas vítimas. A revelação causou uma impressão extraordinária. Foram necessários longos meses para que a encenação fascista fosse denunciada: os nazis haviam extirpado cadáveres, desenterrados para a ocasião.
Em 24 de Dezembro de 1989, lembrando-nos dos preceitos elementares da guerra psicológica ensinados nos exércitos imperialistas, tomámos conhecimento com muito cepticismo das imagens que a TV nos apresentava a carnificina de 4630 corpos em Timisoara. Através de uma observação atenta das fotos, médicos do Partido do Trabalho da Bélgica chegaram rapidamente à conclusão de que se tratava de uma encenação montada e foram os primeiros a denunciá-la publicamente. Ora, qualquer homem de esquerda poderia ter chegado à mesma conclusão. Mas a guerra psicológica tem precisamente a finalidade de criar um clima de histeria anticomunista que leva as pessoas a ver o que se lhes diz para ver e a acreditar na veracidade do que é apenas encenação e mentira. E isso pegou mesmo, em Dezembro de 1989, a propósito da Roménia.
O primeiro-ministro belga, Wilfried Martens, pôde afirmar durante a emissão Le Septième Jour da BRT, em 24 de Dezembro de 1989: «Houve 12 mil mortos em Timisoara.» Ele acreditava sem dúvida nisso. Ora, sabemos hoje que houve 90 mortos em Timisoara, entre os quais certo número de comunistas. O factor de exagero é de 133. Imagina-se um homem de esquerda a declarar na TV que houve 655 mil mortos aquando da agressão americana ao Panamá? No entanto, o factor de exagero seria exactamente o mesmo: 133. Segundo as actuais estimativas, claramente baixas, houve cinco mil mortos no Panamá. Mas as regras da guerra psicológica ensinam que os estragos de uma operação executada por um exército imperialista devem ser, não multiplicadas por 133, mas divididas, digamos, por 20. Assim, as cinco mil vítimas serão reduzidas a 250.(29)
Mas, para os mais excitados pela guerra da intoxicação, 12 mil cadáveres era ainda um número muito prosaico. Com um pouco de imaginação, eles serviram-nos a verdade sob a seguinte forma:
«Só em Timisoara, 12 mil pessoas foram mortas, atrozmente assassinadas. Muitas foram enterradas vivas e queimadas.»(30)
Com efeito encontramo-nos perante uma das características mais interessantes da civilização ocidental e da sua «democracia», posta em evidência centenas de vezes desde que os bravos cristãos foram exterminar a população índia da América: os banhos de sangue horripilantes que os colonialistas e os imperialistas causam entre os povos agredidos são mascarados, ocultados ou negados absolutamente pelos assassinos que, ao contrário, efabulam incansavelmente acerca de banhos de sangue imaginários cometidos pelas próprias vítimas.
Em 27 de Dezembro de 1989, a imprensa democrática afoga-se nestas efabulações nauseabundas. «O preço da liberdade: 100 mil mortos?», titula o Bilk, e Le Journal et Independance faz-lhe o eco: «70 mil mortos, 300 mil feridos: o preço da liberdade». Seguem-se histórias sobre os assassinos da Securitate de pôr os cabelos em pé. Eugène Ionesco, dramaturgo de origem romena de pensamento medieval, insurge-se contra «os khmers vermelhos, os nazis da Securitate». E todas estas «carnificinas» confirmam a sua opinião que ele exprime nestes termos:
«É preciso que os comunistas desapareçam da vida romena».(31)
Eis-nos regressados à quintessência, ao núcleo puro da propaganda imperialista: difundir massacres imaginários para excitar matanças bem reais.
Todas as afirmações com que iniciámos este capítulo, e que fomos buscar textualmente a La Libre Belgique, se revelaram falsas. Como falsas eram as «informações» sobre os corredores subterrâneos donde podiam surgir por toda a parte, em Bucareste, os homens da Securitate, sobre a água envenenada pelos comunistas, sobre a intervenção de «mercenários» palestinianos e sírios, sobre os órfãos transformados por Ceausescu em máquinas de matar, sobre a destruição do centro de Sibiu, sobre um comboio de 40 helicópteros voando em socorro de Ceausescu, sobre a fome em certas regiões da Roménia...(32) E no entanto, este encadeamento de mentiras permitiu a Le Pen pronunciar a sua diatribe contra «o comunismo, esse sistema bestial e criminoso» e, o que é muito mais grave, esta intoxicação massiva levou ecologistas, sociais-democratas e terceiros-mundistas a subscrever as palavras do chefe fascista. Assim, reunido em 9 de Fevereiro de 1990, o parlamento belga votou por unanimidade dos 133 presentes este texto:
«A Câmara dos Representantes congratula-se com o facto de a revolução popular de 22 de Dezembro ter arrastado a queda do ditador romeno Ceausescu; recorda que esta revolução popular visava pôr fim a um regime verdadeiramente totalitário dominado pelo partido comunista, no qual os direitos humanos eram permanentemente violados e as minorias eram oprimidas e onde a liberdade e a democracia eram inexistentes.»
Annemans, um pequeno Le Pen flamengo, congratulou-se com essa unanimidade e fez notar muito judiciosamente que
«antigamente, estas posições eram avançadas unicamente pela direita.»
A guerra psicológica contra a Roménia de Ceausescu, esta utilização sistemática, concertada e obsessiva da mentira, nada tem a ver com «erros de deontologia jornalística»: procede de uma necessidade política que está na base da mobilização contra-revolucionária. Elementos fascistas e golpistas militares estão sempre prontos a usar a violência para se impor; mas é-lhes necessário arrastar uma grande parte das massas no ódio ao comunismo para poderem conseguir a tomada do poder. Assim, para obter o apoio popular ao golpe de Estado, a Securitate foi descrita como uma «guarda pretoriana», dispondo de armas ultra-sofisticadas, operando em redes subterrâneas clandestinas cobrindo toda a cidade de Bucareste, «assassinos atirando cegamente sobre a multidão». Mas depois da vitória, o general Ionel revela-nos que o exército perdeu durante os combates 196 oficiais e sargentos.(33) Aparentemente, a Securitate não atirava às cegas nem sobre a multidão: deu provas de grande precisão e discernimento. Quando tudo estava acabado, a imprensa livre pôde mesmo dizer algumas verdades: os dividendos políticos das mentiras já estavam em caixa. No Nouvel Observateur, de 11 de Janeiro de 1990, Guy Sitbon faz algumas constatações que poderiam também ter sido feitas (mas então com uma carga política diversamente explosiva!) algumas semanas antes.
«Os quatro edifícios da Securitate estão terrivelmente maltratados, crivados de balas ou calcinados. Face a eles, o imóvel do Comité Central, ocupado desde as primeiras horas pelos insurrectos e que era suposto ser o alvo da Securitate, não foi arranhado: nenhum impacto de tiro, três vidros partidos. Porque é que a sede dos democratas foi poupada enquanto as da polícia secreta foram carbonizadas? Resposta fornecida pelas testemunhas mais fiáveis: os agentes da Securitate dispararam pouco. Não eram bastante numerosos nem estavam suficientemente armados e motivados. Disparavam um ou dois tiros a intervalos regulares. O exército ripostava com um dilúvio de aço e de pólvora. Este tiro de barragem infernal que se ouvia na televisão, era o exército que o produzia.»(34)
Depois veio o processo e o assassinato de Nicolae e de Elena Ceausescu. Raramente foi dado ao mundo civilizado assistir a uma farsa tão nojenta, tão degradante, tão grosseiramente fascista como este processo. E no entanto toda a matilha dos nossos «democratas» aplaudiu, uns com moderação, outros freneticamente. Imagine o caro leitor que após uma revolução nas Filipinas ou no Zaire, os revolucionários prendessem a senhora Aquino ou o senhor Mobutu e que lhes atirassem com um «processo» diante de um tribunal militar secreto, do género do processo Ceausescu, para os fuzilar de seguida no local. Durante 20 anos, os imperialistas haviam de nos encher os ouvidos sobre o carácter bárbaro, desumano, sanguinário do novo regime revolucionário que tivera início por um processo de modelo «stalinista e totalitário».
Vale a pena recordar algumas passagens desta farsa de justiça.
«A acusação: Que Ceausescu nos fale então das suas contas nos bancos suíços.
«Elena: Provas, provas, provas. Ceausescu: Não há nenhuma conta, você é um provocador.
«A acusação: Bem, bem, não há contas mas se elas existirem, está de acordo que o dinheiro reverta para o Estado romeno? Ceausescu: É uma provocação.
A acusação: Hoje há mais de 64 mil vítimas em todas as nossas cidades. Reduziste o povo à pobreza. Há gente instruída, verdadeiros sábios, que fugiram do país para te escapar. Quem são então os mercenários estrangeiros que disparam? Quem os mandou vir?
Ceausescu: Isto é uma provocação.
«A acusação: Que razões vos impedem de responder?
Ceausescu: Falarei somente diante da Grande Assembleia Nacional e diante da classe operária. Perante este golpe de Estado não vou responder. Foram vocês que fizeram vir mercenários. (...) Tu traíste o povo, tu destróis a independência da Roménia.
«Elena: Eles dizem que se mataram crianças. Não é verdade.
A acusação: Os acusados recusam-se a reconhecer o genocídio, não apenas o de Timisoara e de Bucareste. Trata-se de 25 anos de crimes. Se ao menos tivessem fuzilado velhos como vocês. Mas vocês arrancaram os tubos de oxigénio nos hospitais, vocês fizeram explodir os depósitos de plasma sanguíneo.»(35)
A direita acusa falsamente a esquerda de todos os crimes que ela própria tem o hábito de cometer. Herman Bodenmann, presidente da Comissão Bancária suíça, teve de fazer um relatório referente às «contas suíças» de Ceausescu:
«Não há nenhum indício de semelhantes contas. Parece ser habitual, quando da queda de um ditador, lançar-se a afirmação de que ele teria escondido o seu dinheiro na Suíça. O único dinheiro vindo da Roménia para a Suíça, foi no quadro de transacções comerciais normais.»(36)
Os adeptos do antigo regime, que foi realmente sanguinário (durante a guerra, sob o regime de Antonescu, pelo menos 209 mil judeus foram massacrados, acusam Ceausescu de «genocídio. Alguns dias depois da execução de Ceausescu, em 27 de Dezembro, Kouchner, secretário de Estado francês, recebe um relatório oficial romeno indicando 766 mortos durante os acontecimentos de Dezembro, em todos os hospitais. No fim de Janeiro, o presidente do tribunal militar de Bucareste, Adrian Nitoiu apura a exacta dimensão do «genocídio»: 689 pessoas mortas e 1200 feridas. O balanço definitivo estabelecerá 1033 mortos, dos quais 270 militares e civis pertencentes ao Ministério da Defesa. Em Sibiu, entre 205 mortos houve 120 presumíveis membros da Securitate.(37) Quer dizer que o número de comunistas e de partidários de Ceausescu entre as vítimas era considerável!
Não foi por acaso que o ignóbil assassinato de Ceausescu foi aplaudido pelos nossos fanáticos dos «direitos humanos». Durante os últimos anos, a burguesia ocidental fez uma barulheira incessante sobre o tema dos «direitos humanos» na Roménia para proteger os elementos pró-imperialistas romenos. Fez tal barulho que levou a crer que Ceausescu «matava todos os opositores».
Na realidade, os agentes do imperialismo, a quem o Ocidente assegurou bem os «direitos humanos», gente como Manescu, Iliescu, Mazilu e Cornea, estão hoje de perfeita saúde. As vítimas das «violações sistemáticas dos direitos humanos» estão vivas, enquanto que o violador dos direitos humanos foi abatido como um cão. É portanto falso crer que os «direitos humanos», usados desde Jimmy Carter como uma das armas ideológicas principais do imperialismo, são um conceito humanista acima das classes. Este conceito serve não apenas para defender por toda a parte os reaccionários e os fiéis do imperialismo; visa também excitar o ódio contra os seus adversários, os «stalinistas» e outros «ditadores». E também não é de espantar quando se lê panegíricos da morte e do assassínio escritos pelas mais peritas penas em cantar os «direitos humanos». A Libre Belgique esmerou-se neste registo após a execução sumária de Ceausescu:
«Poderemos humanamente censurar um punhado de homens e mulheres, que fazem tudo para assegurar uma transição tão harmoniosa quanto possível entre a tirania e a democracia, por tomar decisões que lhes parecem capazes de servir a sua causa? (...) Poderemos ser severos por terem executado Ceausescu que, vivo, continuava a ser uma ameaça potencial?»(38)
Assim os nossos «defensores dos direitos humanos» justificam o assassinato de comunistas porque esses crimes «parecem servir a causa» da direita! E confessam: Ceausescu vivo continuaria a ser uma ameaça potencial. Com efeito, se os golpistas tivessem feito um processo público com acusações tão grotescas, teriam sido irremediavelmente desmascarados.
Para o marxismo, a análise da base material da sociedade constitui uma diligência fundamental. Mas então, qual é a base material do poder de um homem que alguns classificam de «vampiro dos Cárpatos» e outros de revisionista? Como se poderá afirmar que a base material desta sociedade foi socialista?
É preciso primeiro eliminar a concepção economicista e mecanicista da relação entre a infraestrutura económica e a superestrutura política. Entre 1918 e 1921, Lénine mostrou que a sociedade soviética possuía uma base muito complexa, comportando a economia natural camponesa, a pequena produção mercantil, o capitalismo privado, o capitalismo de Estado e a economia socialista. A natureza socialista da União Soviética era determinada pelo «Estado soviético (...) onde está assegurado o poder dos operários e dos pobres». «A ditadura do proletariado é a direcção política do proletariado», que garantia uma transformação progressiva da infra-estrutura económica no sentido do colectivismo.(39)
Na Roménia de Ceausescu, a propriedade pública da grande maioria dos meios de produção, constituía a base económica do socialismo. Mas ela entrava em luta permanente com os factores económicos capitalistas. O mercado mundial imperialista pesava sobre a Roménia. Investimentos estrangeiros, joint-ventures, empréstimos estrangeiros representavam o imperialismo no seio da formação socialista. Desenvolvia-se um sector capitalista privado, parcialmente legal, parcialmente «na sombra». Fracções da burocracia lucravam com o seu controlo sobre os meios de produção para adquirir privilégios ilícitos e para os transformar em propriedade privada de facto. Só a solidez e a consolidação do poder político podiam garantir que esta batalha acabasse com a vitória da economia socialista sobre os factores capitalistas.
A derrocada do socialismo na Roménia demonstra de maneira estrondosa a justeza da análise feita por Mao Tsé-Tung durante os anos 60. O revisionismo é o maior perigo que ameaça a ditadura do proletariado. Um partido comunista pode ver desenvolver-se no seu seio o burocratismo, o tecnocratismo, a busca de privilégios e a ruptura com as massas. Se estes os fenómenos de degenerescência não são eliminados, pode mudar de natureza e tornar-se um partido burguês. A luta entre a via capitalista e a via socialista na economia prossegue durante todo o período da ditadura do proletariado e uma restauração do capitalismo continua a ser possível. O partido deve depurar continuamente as suas fileiras e preservar o seu espírito revolucionário e é necessário mobilizar as massas para denunciar os seus lados sombrios.(40) Por razões diversas, Mao Tsé-Tung não soube resolver o problema, mas teve o mérito histórico de colocar bem a questão.
Mais de 20 anos depois, o trotskista Mandel combateu os marxistas-leninistas a partir de uma posição economicista vulgar. Mantinha que uma restauração do capitalismo não era possível sem uma contra-revolução violenta. Como o socialismo não estava ameaçado e posto que o inimigo principal era a «burocracia», Mandel pregava a «democracia para todos», o multipartidarismo, que tornaria a dar ao socialismo o seu verdadeiro carácter democrático. Em fins de Dezembro de 1989, chegou a ultrapassar a própria imprensa burguesa vociferando contra os «monstruosos crimes stalinistas cometidos em Timisoara». A sua linha de «democracia para todos» foi aplicada na Hungria, na Polónia e na RDA. Ainda em Dezembro de 1989, Mandel declarava:
«Sinto-me verdadeiramente excitado com tudo o que se passa em Berlim»; «a tendência anti-socialista é particularmente fraca».
Mandel saudava «a revolução» em que «tudo o que Trótski sempre esperou pode agora ser realizado»!(41)
Hábil defesa da contra-revolução com um vocabulário de esquerda. Seis meses mais tarde, a restauração completa do capitalismo e a reconquista da RDA pelo imperialismo era um facto.
«A ditadura do proletariado não é possível senão através do partido comunista».(42)
O falhanço romeno suscitou ainda outras questões. «Como desenvolver a democracia socialista sem deixar que se exprimam as concepções burguesas? Quem arbitrará essas discussões? Se forem os dirigentes do partido, como evitar a ditadura exercida pelos dirigentes?» Para responder a isso, importa partir da experiência concreta da luta de classes sob o socialismo e por de lado os sonhos sobre a democracia e a igualdade acima das classes. A revolução socialista cumpre-se em condições históricas determinadas, os partidos reaccionários e burgueses «democráticos» lançam-se sempre na guerra civil contra as forças socialistas. Toda a experiência histórica mostra que o socialismo não pode ser instaurado sem a direcção política do partido comunista, mesmo que outros partidos revolucionários possam ter um papel em aliança com o partido. Sem o partido comunista não há salvação para o socialismo.
Isto pode incomodar alguns, mas a experiência da contra-revolução na Europa de Leste é clara a este propósito. Para a burguesia, a questão chave sob o socialismo é esta: Como alargar a democracia? Para ela, trata-se de criar um espaço legal para os seus antigos partidos esmagados durante a revolução. Para o proletariado, a questão chave coloca-se nos seguintes termos: Como assegurar que o partido comunista mantenha o seu espírito revolucionário, a sua linha socialista e a sua ligação com as massas? Se o partido degenera não há nada a fazer, o socialismo está perdido. Não se remedeia os erros do partido criando organizações burguesas. Os trotskistas que apoiaram o Solidarnosc, a Carta 77 e o Neues Forum para «melhorar o socialismo», não foram senão instrumentos cegos às mãos do imperialismo. A luta decisiva trava-se no interior do partido comunista: é preciso assegurar uma orientação correcta das regras do centralismo democrático, instaurar os mecanismos que permitam às organizações de massas exercer um controlo sobre os membros e os quadros do partido, formular exigências muito rigorosas para os quadros e mobilizar as massas para que elas controlem a sua observação.
Sem uma prática correcta da luta de classes sob a ditadura do proletariado, não há consolidação do socialismo. Stáline pressentiu a importância desta luta de classes, Mao formulou-lhe os princípios, mas ambos cometeram erros esquerdistas na sua aplicação, erros que será necessário analisar de maneira dialéctica, tendo em conta a restauração capitalista levada a cabo em vários países ex-socialistas. Pode-se compreender que um ideólogo da direita liberal como Raymond Aron ache que a continuação da luta de classes sob o socialismo seja uma ideia absurda.
«Perguntamo-nos», escreve, «como 30 anos após a revolução, os ex-banqueiros, que já não são banqueiros, poderiam ainda constituir um inimigo contra quem o Estado socialista deve agir.»(43)
É também a posição de Mandel, que negou com constantemente que o perigo para a ditadura do proletariado venha da aliança entre o imperialismo, das antigas classes contra-revolucionárias e das tendências revisionistas no Partido. Ele, Mandel, afirma
«lutar há mais de meio século, sem descanso nem compromisso contra o reino opressor e detestável (...) das castas burocráticas privilegiadas na URSS e na China».
É uma linguagem que nem Raymond Aron nem Jean-Marie Le Pen recusariam. Fazendo-se conscientemente apóstolo dos partidos burgueses e pró-imperialistas, Mandel ataca Lénine colocando algumas questões que crê serem pérfidas:
«Partidos que tenham uma maioria de membros originários da classe operária mas ao mesmo tempo uma ideologia burguesa serão interditos? Qual é a linha de demarcação entre o “programa burguês” e a ideologia reformista? Suprimir-se-á a social-democracia? (...) Nenhuma verdadeira democracia operária é possível sem a liberdade de constituir um sistema pluripartidário».(44)
Sob um verbalismo tão retumbante como oco, agitando febrilmente a bandeira do anti-stalinismo, Mandel arvorou-se em porta-voz da reconquista imperialista dos países de Leste. Já em 9 de Março de 1990, o seu adjunto Vercammen reclamava para a social-democracia uma liberdade total sob o socialismo. Algumas semanas mais tarde já ninguém podia negar que a social-democracia alemã tivera um papel de vanguarda na infiltração da RDA e na consequente conquista pelo imperialismo alemão ocidental. Qualquer regime socialista deve proibir a existência legal das organizações que combateram durante a guerra civil ao lado da grande burguesia. Enquanto o imperialismo disponha de uma esmagadora superioridade ao nível mundial, o socialismo deve interditar as organizações políticas ao serviço da grande burguesia e do imperialismo. A Nicarágua aí está para nos convencer desta verdade. Proibir a organização política da burguesia em nada impede a expressão de toda a espécie de ideias burguesas. Estas ideias exprimir-se-ão de mil maneiras e o socialismo deve organizar um combate ideológico permanente para lhes demonstrar a falsidade. Sem o desenvolvimento contínuo da democracia socialista, não há reforço das bases socialistas.
Logo que o partido comunista age de forma autenticamente revolucionária e quando a luta de classes é correctamente levada por diante, a democracia socialista pode desenvolver-se plenamente. O socialismo continuará a ser muito vulnerável por tanto tempo quanto a democracia socialista não for largamente desenvolvida. As massas trabalhadoras devem estar associadas à elaboração das leis, dos regulamentos e das medidas políticas e participar na verificação da sua concretização. O socialismo consolida-se à medida em que os trabalhadores, através da luta, aprendem a defender os princípios e as realizações da ditadura do proletariado e a criticar as infracções aos princípios e os erros, venham de onde vierem. Uma vida democrática dinâmica na base permitirá a expressão de numerosas ideias e propostas que podem consolidar e desenvolver a sociedade socialista.(45)
Notas de rodapé:
(1) La Libre Belgique, 26 de Dezembro 1989, «Charniers et exécutions sommaires: les Roumains au bout de l'horreur», por R.V. (retornar ao texto)
(2) NRC-Handelsblad, Raymond Van den Boogaard, «Massagraf in Timisoara werd kerkhof van betrouwbaarheid». (retornar ao texto)
(3) Le Pen Jean-Marie, Le Monde, 27 de Dezembro de 1989, «La Roumanie après l'exécution de Nicolae Ceausescu et les réactions». (retornar ao texto)
(4) No original é utilizada a expressão idiomática «par le petit bout de la lorgnette», cuja tradução literal é «pela pequena ponta da luneta». (N. Ed.) (retornar ao texto)
(5) Aron Raymond, Démocratie et totalitarisme, éd. Gallimard, 1965, p. 169. (retornar ao texto)
(6) Em inglês no original, a expressão checks and balances designa o sistema de poderes e contrapoderes (freios e contrapesos) que visa garantir o equilíbrio político na democracia burguesa. (N. Ed.) (retornar ao texto)
(7) La crise du mouvement révolutionnaire, deuxième congrès du PTB, Março de 1983, pp. 52-55. (retornar ao texto)
(8) A contrario é uma locução latina que significa «em sentido contrário» do argumento precedente. (N. Ed.) (retornar ao texto)
(9) Ellenstein, L'URSS en guerre (tomo 3), éd. sociales, 1974, p. 48. (retornar ao texto)
(10) Les progrès du pouvoir soviétique depuis 40 ans, recueil de statistiques, Moscovo, 1958, p. 26. (retornar ao texto)
(11) Manifesto do Partido Comunista, Marx e Engels, Obras Escolhidas, em três tomos, Ed. Avante!, Lisboa, 1982, t. 1, p. 131. (N. Ed.) (retornar ao texto)
(12) Kautsky, Het bolchevisme in het slop, Arbeiderspers, 1931, pp. 156, 91, 113, 106, 93 e 136. (retornar ao texto)
(13) Ellenstein, Le socialisme dans un seulpays, (tomo 2), éd. sociales, 1973, pp. 67-68. (retornar ao texto)
(14) Idem, ibidem, p. 106. (retornar ao texto)
(15) Staline, Pour une formation bolchevik, 3 de Março de 1937, éd. Naim Frasheri, Tirana, 1968. [Trata-se de uma referência ao discurso, no Plenário do CC do PCU(b), em 3 de Março de 1937 «Sobre as insuficiências do trabalho do partido e as medidas de liquidação dos trotskistas de outros dúplices», I.V. Stáline, Obras, (em russo), t. 14, Pissatel, 1997, pp. 151-173, http://grachev62.narod.ru/stalin/t14/t14_42.htm. (N. Ed.)] (retornar ao texto)
(16) No seu livro Um Outro Olhar sobre Stáline, igualmente disponível em hist-socialismo.net, face a documentos que entretanto ficaram acessíveis, Ludo Martens faz uma avaliação diferente da figura de Bukhárine: «Nas declarações que fez», lembra o autor, «Bukhárine reconheceu que a sua orientação revisionista o levou a procurar relações ilegais com outros opositores, que apostou em revoltas no país para tomar o poder e que adoptou a táctica do terrorismo e do golpe de Estado.» Ver op. cit., p. 147, edição electrónica, e p. 242, edição impressa. (N. Ed.) (retornar ao texto)
(17) Piátnikski foi de facto um revolucionário bolchevique julgado e executado no final dos anos 30 na URSS. Contudo, não nos foi possível encontrar indícios de que o seu julgamento tenha sido injusto (nem o autor refere nenhuma fonte nesse sentido). Aliás, uma tal conclusão terá necessariamente de ser baseada na análise do respectivo processo judicial. Ora, é sabido que tais arquivos continuam, na sua maioria, vedados aos investigadores. Como revela o historiador canadiano Grover Furr, o próprio processo de reabilitação das «vítimas», desencadeado após a morte de Stáline, não assentou no reexame rigoroso das provas e factos apresentados em tribunal, mas sobretudo em decisões de natureza e com objectivos políticos. Ver Grover Furr, Antistalinskaia podlost, Moscovo, Algoritm, 2007, p. 174, obra recentemente publicada em inglês sob o título Khrushchev Lied, Erythros Press and Media, 2011. (N. Ed.) (retornar ao texto)
(18) Gérard-Libois et Gotovitch, L'an 40, éd. CRISP, 1971; Aron Raymond, Histoire de Vichy, Livre de Poche, 1966, capítulo. III; Brunet Jean-Paul, Doriot, éd. Balland, 1986. (retornar ao texto)
(19) Khrouchtchev, Rapport d'Activité au XXe congrès, éd. en langues étrangères, Moscovo, 1956, pp. 35-36, 27, 46-47; Vers le communisme, Recueil de documents du XXIIe congrès, éd en langues étrangères, Moscovo, 1961, p. 17, 585-586. (retornar ao texto)
(20) Ceausescu, Rapport au IXe congrès du PCR, éd. Méridiane, Bucareste, 1965, p. 73-76. (retornar ao texto)
(21) Ibidem, p. 88. (retornar ao texto)
(22) Ceausescu, Oeuvres choisies, tomo 2, «Le rôle dirigeant du parti», p. 299. (retornar ao texto)
(23) Ceausescu, Rapport au IXe congrès du PCR, éd. Méridiane, Bucareste, 1965, p. 73-76. (retornar ao texto)
(24) Idem, ibidem, p. 83. (retornar ao texto)
(25) Ceausescu, discurso de 20 de Dezembro de 1989. (retornar ao texto)
(26) ABC, 2 de Janeiro de 1990, pp. 31 e 13. (retornar ao texto)
(27) Trinquier Roger, La guerre moderne, éd. La Table Ronde, Paris, 1961, p. 15. (retornar ao texto)
(28) Smith Joseph, Portrait of a cold warrior, Ballantine books, Nova Iorque, 1976, pp. 164 e 80. (retornar ao texto)
(29) International Herald Tribune, 9 de Janeiro de 1990. (retornar ao texto)
(30) Blik, 27 de Dezembro de 1989, p. 1. (retornar ao texto)
(31) La Libre Belgique, 3 de Dezembro 1989. (retornar ao texto)
(32) NRC-Handelsblad, Raymond Van den Boogaard, «Massagraf in Timisoara werd kerkhof van betrouwbaarheid». (retornar ao texto)
(33) La Libre Belgique, 4 de Janeiro de 1990. (retornar ao texto)
(34) Sitbon Guy, «La télé m'a menti», Nouvel Observateur, 11 de Janeiro de 1990, p. 40. (retornar ao texto)
(35) LHumanité, 28 de Dezembro de 1989, p. 6-7. (retornar ao texto)
(36) De Morgen, 30 de Dezembro de 1989. (retornar ao texto)
(37) Reitlinger G., The final Solution, Sphère books, 1971, p. 540-541; Libération, 28 de Dezembro de 1989 e 11 de Junho de 1990; Le Monde, 1 de Fevereiro de 1990. (retornar ao texto)
(38) La Libre Belgique, 27 de Dezembro de 1989. (retornar ao texto)
(39) Sobre o Imposto em Espécie (1921), V.I. Lénine, Obras Escolhidas em três tomos, Ed. Avante!, 1979, t. 3, pp. 493, 495. (N. Ed.) (retornar ao texto)
(40) Lin Piao, Rapport au IXe congrès du PCC, 1-14 Agosto de 1969, in: La Grande Révolution Culturelle Prolétarienne, éd. en langues étrangères, Pequim, 1970. (retornar ao texto)
(41) Entrevista a Mandel, em Humo, 21 de Dezembro de 1989, pp. 18-20. (retornar ao texto)
(42) «Discurso de encerramento sobre o relatório do CC do PCR(b)», 9 de Março de 1921, V.I. Lénine, Obras Escolhidas em seis tomos, Ed. Avante!, 1986, t. 5, p. 257. (N. Ed.) (retornar ao texto)
(43) Aron Raymond, Démocratie et totalitarisme, éd. Gallimard, 1965, p. 254. (retornar ao texto)
(44) Xle Congrès mondial de la IVe Internationale, Novembro de 1979, Inprecor, pp. 251, 241 e 236237. (retornar ao texto)
(45) Zhou Enlai, Oeuvres choisies, tomo II, Pequim, 1989: «Maintenir la dictature, élargir la démocratie», pp. 234-241. (retornar ao texto)
Inclusão | 22/03/2013 |
Última atualização | 14/04/2014 |