O Manifesto do Partido Comunista. Um Documento Datado e Não Datado

Jacob Gorender

20 de Junho de 1996


Primeira edição: Texto baseado em conferência realizada na PUC-SP em 20/6/96, promovida pelo Núcleo de Estudos de Ideologia e Lutas Sociais da PUC-SP. Transcrição das fitas por Claudia Esteves e Silvio Cesar Silva. Este artigo situa historicamente o Manifesto do Partido Comunista, de Marx e Engels, apresentando as condições em que surgiu e o que significou no momento em que foi redigido e publicado. O artigo também discute a relevância do Manifesto frente às mudanças do capitalismo contemporâneo.
Fonte: Revista Lutas Sociais, nº 4, 1998.
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: Licença Creative Commons licenciado sob uma Licença Creative Commons 3.0.

Fico muito honrado em estar aqui fazendo esta conferência. Além de outros motivos, acredito que seja a primeira — pelo menos neste recinto, na PUC, talvez mesmo em São Paulo — a respeito do sesquicentenário do Manifesto do Partido Comunista. Este é o título exato do documento, conhecido também, simplesmente, como Manifesto Comunista.

Já foi dito aqui, pelo professor Lúcio Flávio, que no ano próximo se comemora o sesquicentenário do lançamento do Manifesto, que atravessou todo este tempo talvez como o documento político mais difundido no mundo e que se mantém até hoje vivo, palpitante e, em muitos aspectos, extremamente atual. Sendo a primeira conferência, creio ser minha obrigação situá-lo historicamente. Em que condições surgiu e o que significou no momento em que foi redigido e publicado?

O Manifesto Comunista foi lançado em nome de uma organização que se chamava Liga dos Comunistas. Uma organização de trabalhadores alemães, principalmente trabalhadores exilados que viviam em Paris e, um pouco, também em Londres. A Liga fora antes denominada de Liga dos Proscritos, de Liga dos Justos e acabou se chamando Liga dos Comunistas. Jovens naquele momento — Marx estava nos 30 anos, Engels, nos 28 —, eles já eram, entretanto, os criadores de uma doutrina posteriormente denominada de materialismo dialético e histórico. Mas não eram ainda figuras com grande projeção. Tornaram-se membros da Liga em meados de 1847, permanecendo nela uns seis meses.

Em que circunstâncias tal organização trabalhava?

Em 1847, já se sentia que se aproximava uma tormenta revolucionária na Europa, a qual abrangeria os principais países do continente. Não a Inglaterra, que era um país politicamente estável, já com sua revolução burguesa realizada, mas principalmente os países que viviam sob o jugo de monarquias absolutistas. Desenvolvia-se um movimento fundamentalmente antimonárquico, republicano e democrático, com algumas tinturas de reivindicações socialistas, procedentes de uma classe operária que já tinha corpo e materialidade suficientes para aparecer na cena política. Prenunciava-se, portanto, uma turbulência, que iria abranger a França, a Alemanha, a Áustria, a Itália, a Hungria e mais alguns países, provocando insurreições e guerras civis.

Torna-se necessário compreender o que era a classe operária naquele momento, para que não tenhamos visões anacrônicas, transportando o que é a classe operária de hoje para a de 150 anos atrás. Na verdade, uma classe operária industrial só havia na Inglaterra, a pioneira da Revolução Industrial. Ali, já existiam fábricas de grande porte onde se aglomerava um proletariado industrial. A França ainda era um país de manufaturas, de oficinas um tanto artesanais. Na Alemanha, a classe operária estava em gestação inicial, mas já havia um proletariado têxtil que fazia greves, demonstrando presença e influenciando o pensamento de Marx e Engels.

Para se ter uma ideia do que era o ambiente, digamos, "operário" naquela época, basta dizer que a Liga dos Comunistas se compunha de militantes ativistas, que enfrentavam a polícia, atuavam clandestinamente, difundiam documentos etc. e que foram os pioneiros do socialismo na Alemanha e, de certo modo, também na Europa. Mas o grosso dessa Liga era constituído de alfaiates, quer dizer, de artesãos. Afora os alfaiates havia marceneiros ou relojoeiros, ninguém de categoria propriamente fabril. Isso tem importância na caracterização do momento político, social e revolucionário em que Marx e Engels iriam elaborar o Manifesto. Eles o elaboraram, em nome desta Liga, que realizou um Congresso em novembro de 47 e os incumbiu de redigir o documento. Marx e Engels entregaram o texto, já redigido, por volta de fevereiro de 48.

É importante determo-nos na evolução de Marx e Engels. (Não entrarei em detalhes, certamente nas conferências posteriores tudo isso será esmiuçado.) No momento em que o Manifesto foi redigido, Marx e Engels já tinham elaborado a concepção que, mais tarde, veio a se chamar de marxismo, embora Marx tenha dito que ele próprio não era marxista, pois não queria o nome dele vinculado a uma doutrina como algo dogmático.

A doutrina já estava, em seu fundamental, elaborada em 47. Considera-se que o marco inicial do marxismo — ou como Althusser diria depois, a "ruptura epistemológica" — se encontra em A ideologia alemã. Uma obra escrita em 45, mas não editada naquele momento, vindo a público quase cem anos depois, em 1932. Nesta obra, encontramos a concepção filosófica materialista dialética, que aproveita elementos da dialética de Hegel e do materialismo de Feuerbach, reelaborados criativamente numa concepção completamente nova.

Encontramos, também nesta obra, a concepção da historiografia como uma sucessão de modos de produção e de superestruturas ideológicas, jurídicas e políticas, que decorrem num grau, maior ou menor, desses modos de produção. Em A ideologia alemã, há a concepção de que a vida social tem sua base na produção que os homens realizam, sendo movida pelas contradições entre as forças produtivas e as relações de produção — elementos constitutivos do modo de produção —, tendo os seus demais aspectos uma influência ou uma determinação nessa base produtiva. Isso se fará presente, é claro, no Manifesto do Partido Comunista, cuja redação literária intensamente inspirada, de altíssimo nível, extremamente comunicativa, expõe essa concepção e a torna acessível aos leitores comuns. Não é necessária uma cultura universitária para compreender o Manifesto. Daí a facilidade que ele teve para se difundir.

Em A ideologia alemã, como nos trabalhos posteriores de Marx e Engels até o Manifesto Comunista, já se encontram alguns elementos da economia política do marxismo. Marx e Engels uniam elementos extraídos dos clássicos da economia inglesa — fundamentalmente de Adam Smith e David Ricardo e de alguns de seus predecessores e sucessores — a certas idéias da alienação hegeliana para elaborar uma nova teoria econômica. Entretanto, a idéia de que a classe operária é produtora da mais-valia ainda não estava presente nestas obras. Ela só se tornaria realmente clara com a elaboração da máxima obra de Marx, O Capital. Mas, a tese de que a classe operária é a classe básica, que sustenta a formação social burguesa, está presente desde A ideologia alemã até o Manifesto Comunista.

Vejamos agora, sucintamente, que relação o Manifesto teve com os acontecimentos 48. Justamente quando Marx e Engels entregavam o texto já redigido, a revolução irrompia em Paris. O monarca Luís Felipe de Orleans e o seu ministério eram derrubados e se implantava um governo republicano. Tais acontecimentos tiveram imediata repercussão na Alemanha, onde surgiu um movimento revolucionário democrático-burguês, instalando-se uma Assembléia Constituinte em Frankfurt. Lembremos que a Alemanha ainda era um conjunto de Estados, não existia a Alemanha unificada. O maior Estado era a Prússia, com um regime monárquico absolutista. Logo depois, também irrompia um movimento revolucionário em Viena, derrubando a ditadura monarquista-conservadora do primeiro-ministro Metternich, já há quase trinta anos dominante na política austríaca e, podemos dizer, de toda a Europa. Surgiram movimentos insurrecionais na Hungria e na Itália. Enfim, era um clima revolucionário que se difundia pela Europa.

O Manifesto não teve nenhuma influência nesses acontecimentos. Foi publicado primeiro em alemão, depois em francês e em outras línguas, porém destituído de uma influência imediata nos eventos de 1848.

Marx e Engels, em particular, assim que surgiu o movimento revolucionário na Alemanha, imediatamente se transferiram da França para o seu país natal. Passaram a atuar, não como membros da Liga dos Comunistas, que não tinha organização e suficiente estrutura para dirigir um movimento tão grande como aquele, porém como membros do movimento democrático-popular em curso. Logo conseguiram se assenhorear de um jornal diário, A Nova Gazeta Renana, do qual Marx se tornou redator-chefe.

Através das páginas do jornal, Marx comentava os acontecimentos do dia-a-dia e traçava uma tática e uma estratégia para a classe operária, no processo da revolução democrático-burguesa na Alemanha.

O movimento revolucionário teve diferentes características nos vários países. Apresentou-se mais radical na França. Rapidamente, no entanto, as burguesias foram se recompondo e tratando de apaziguar as situações, temerosas que elas se radicalizassem com a presença da nova classe operária e dos setores populares em geral, que não se contentariam simplesmente com reivindicações puramente políticas.

Na França, em junho de 48, se dava o choque entre os soldados e os operários dos chamados ateliers nacionais — oficinas de trabalho criadas pelo Estado, o qual, entretanto, pretendia fechá-las. As lutas de barricadas se concluíram com uma repressão violenta dos trabalhadores. Na Alemanha, a burguesia não mostrou vigor nem radicalidade suficientes para enfrentar os exércitos da monarquia prussiana, recuando até que, no final do ano, o movimento também estava esmagado.

Marx e Engels, com a situação irrespirável na Alemanha, se transferiram para a Bélgica, de onde são expulsos e vão se radicar em Londres. Seria o exílio definitivo. Os dois passariam a residir na Inglaterra e, fora viagens eventuais ao continente, não sairiam mais de lá.

Se não teve influência direta nos acontecimentos de 48, o Manifesto não morreu com eles. Reproduziu-se na língua original, o alemão, e nas outras línguas para as quais foi traduzido. Difundiu-se em russo no Leste da Europa, depois em polonês e também nos Estados Unidos. Foi alcançando assim um grande número de países do mundo e se tornou um documento perene.

Não posso entrar aqui em detalhes, mas no Brasil, o Manifesto teve também numerosas edições, a primeira em 1930. Um estudo sobre a trajetória desse documento no Brasil foi feito pelo Prof. Edgar Carone, historiador aqui presente. Um estudo, sem dúvida, primoroso. Certamente, a comemoração do sesquicentenário dará ensejo a edições aperfeiçoadas, talvez com um aparelho crítico mais desenvolvido em relação às edições anteriores.

Na trajetória do Manifesto, podemos verificar o que ele trouxe de novo para a situação em que surgiu e para as situações posteriores e, também, o que faz dele um documento tão difundido, tão palpitante e vivo. Aqui precisamos ter em vista a situação mundial em meados do século XIX. Eu já me referi ao fato de que a classe operária era ainda incipiente, fora da Inglaterra. Enquanto classe operária moderna, existia em alguns núcleos de poucos países. Além disso, se tomarmos, por exemplo, o continente americano, o que tínhamos em 1848? O escravismo florescia no Sul dos Estados Unidos, com cerca de quatro milhões de escravos negros de origem africana. O Brasil também era um país escravista. Nas Américas, o trabalho no sentido conceituado no Manifesto ainda não existia, exceto embrionariamente e contraposto ao trabalho escravo predominante. Nas Antilhas também. No Haiti, o trabalho escravo havia sido abolido e substituído por um regime de pequenos camponeses. Na Ásia, dominavam os regimes pré-burgueses. Na Rússia, o capitalismo crescia em um meio dominado pelas relações feudais.

Nesse sentido, podemos dizer que o Manifesto é um documento que se alça sobre o futuro. Ele fala no presente, mas a sua vitalidade decorre do fato de ter apostado no desenvolvimento da sociedade capitalista junto com a classe operária, surgida da grande indústria fabril.

A primeira realização histórica do Manifesto, a meu ver, consiste em que ele tirou a perspectiva dos trabalhadores — principalmente dos operários industriais — do terreno das utopias para o terreno da luta política concreta. O que era o movimento dos trabalhadores, naquela época, nos países mais avançados? Era um movimento dominado por seitas utópicas e conspirativas. A própria Liga dos Comunistas — organização a que Marx e Engels aderiram e da qual se tornaram sócios — era também uma organização utópica e conspirativa. O que havia de mais elaborado no pensamento socialista eram as idéias de Fourier, Cabet, Proudhon, Owen, e Saint-Simon. Todos eles projetavam uma sociedade perfeita, igualitária, com uma distribuição harmoniosa dos produtos, em que não haveria exploração, nem miséria, e que surgiria pronta e acabada, não se sabe como. Propunham comunidades ideais, como os falanstérios de Fourier, ou a organização chamada Icária, de Cabet, e assim por diante. Algumas dessas comunidades foram tentadas na América do Norte e até no Brasil. Tivemos um falanstério, uma organização pretensamente socialista, arquitetada por Fourier, a qual surgiu no Brasil escravista, patrocinada por Dom Pedro II. Numa viagem à Europa, nosso imperador foi abordado por partidários de Fourier e aceitou que alguns viessem ao Brasil para organizar o falanstério. Este acabou fracassando, como seria de se esperar.

Marx e Engels transferiram a perspectiva da classe operária para a luta política concreta, a luta de classes concreta. A sociedade do futuro, à qual deviam aspirar os trabalhadores, não seria obtida pela graça de filantropos ou de governantes, não viria pronta e acabada, mas seria o resultado da luta política travada durante muitos anos. A luta de classes concreta dos trabalhadores, desde o terreno sindical e reivindicativo até o terreno político, com vistas à conquista do poder do Estado.

Esta, segundo me parece, é a grande virada que vem com o Manifesto. Saímos da perspectiva utópica e entramos na organização e na luta concretas dos trabalhadores. Daí surgiriam os grandes partidos dos trabalhadores do século XIX, os partidos que então eram chamados de social-democratas. Entre eles, o partido social-democrata russo, o partido de Lênin e seus companheiros, que iriam realizar a revolução de outubro de 1917. Por aí, podemos perceber uma linha que estabelece uma conexão do Manifesto Comunista — aparentemente, em 1848, sem conseqüências concretas — com grandes acontecimentos futuros, que marcaram fundamente o século XX.

É interessante como Marx e Engels explicam, no próprio Manifesto, a adoção da designação de comunista. Afirmam que não poderiam adotar a designação de socialistas, porque havia, já naquela época, uma grande variedade de socialismos na Europa. Daí que façam a crítica do socialismo feudal, do socialismo conservador, do socialismo pequeno burguês. Diversas variantes do socialismo já se apresentavam naquela época, sucintamente criticadas no Manifesto e, antes dele, em A sagrada família, A ideologia alemã e outras obras. Marx e Engels declararam que a única designação que poderia identificar o que pretendiam e também o que deveria ser o movimento dos trabalhadores é a designação de comunista. Daí seu texto se chamar Manifesto do Partido Comunista.

Marx e Engels também definem o papel dos comunistas em relação aos outros partidos de trabalhadores, aos outros partidos operários. Não colocam os comunistas como uma elite. Não há no Manifesto, o termo vanguarda, popularizado com Lênin e, pior ainda, com Stalin. Marx e Engels não dizem que os comunistas devem ser uma vanguarda, que têm o privilégio de ser vanguarda. Dizem apenas que os comunistas possuem uma visão própria do movimento geral e de conjunto da história e da luta dos operários. Com semelhante visão das coisas, não pretendem dominar o movimento operário, mas exercer influência sobre ele. Não há propriamente uma tese organizativa de partido no documento. Naquela época, a concepção de partido não tinha chegado à elaboração que teria uns cinqüenta anos mais tarde, tendo sido os operários pioneiros e até modelares para a própria burguesia.

O Manifesto apresenta um programa das transformações socialistas. Um programa que também quer se distinguir das utopias, referidas anteriormente. Há ali uma série de medidas com certo caráter gradual, que não pretendem implantar a sociedade socialista de imediato. A proposta consiste em que o Estado se aproprie de um certo conjunto de fábricas, que iriam competir com as fábricas burguesas e vencê-las pela competição. O programa apresenta vários itens — abolição do direito de herança, emancipação das mulheres, educação universal, desarmamento dos exércitos organizados, paz universal —, alguns deles, hoje, parecem realizáveis até dentro dos limites burgueses. Todavia, naquela época, eram proposições avançadas e tinham, pelo menos, o mérito de serem concretas, de não terem a pretensão de fantasiar uma sociedade ideal já constituída.

Hoje, passados 150 anos, podemos fazer um balanço do Manifesto do Partido Comunista. Um balanço que ocorre numa situação de maré baixa, na qual sofremos os efeitos da dissolução da União Soviética e do naufrágio dos regimes comunistas do Leste Europeu. Queiramos ou não, tivéssemos nós simpatia ou não pela União Soviética — os que de certo modo, eram partidários dela e os que eram críticos —, todos nos beneficiamos da força que ela deteve até desaparecer. Toda a esquerda, inclusive a esquerda social-democrata e a esquerda trotskista, podia ser levada a sério porque tinha mísseis, armamento nuclear, aviões, exércitos e assim por diante. Havia uma superpotência no campo da esquerda e hoje não há mais.

As correntes com alguma ligação com o marxismo perderam credibilidade. Não só para os adversários, mas para as grandes massas, pois fracassou a tentativa concreta da aplicação do marxismo. Podemos dizer, como dizem muitos: "mas o marxismo não foi bem aplicado na União Soviética, ele foi traído". Lembremos a célebre obra de Trotski, A revolução traída. Contudo, que outro exemplo temos para contrapor a este? Nenhum. A culpa pode ser atribuída a Stalin, a Kruchev e a Gorbachev, ou aos três, mas acaba repicando em Lênin e também em Marx. Por isso, as ruas que tinham o nome de Marx e de Lênin mudaram de nome em Moscou. Os russos não querem saber do marxismo e do leninismo. Ainda existe, na Rússia, um partido comunista, mas é minoritário e não tem, nem de longe, a expressão que teve quando era o partido único e detinha o poder de maneira totalitária.

A primeira frase do Manifesto, "um espectro percorre a Europa" — o espectro do comunismo — hoje soa, de certo modo, irônica, como se tivesse um certo fundo falso. O espectro é de fato um espectro, não tem substância, é um fantasma, nem dá medo. Dava medo em 1848 — assim Marx supunha —, mas hoje já não.

Ainda há menos de uma semana, aqui mesmo na PUC, foram lançados os números de duas revistas marxistas, que heroicamente insistem em ser editadas no Brasil. O ato, para o qual as pessoas foram convidadas a comparecer, teria um debate intitulado "O marxismo morreu. Viva o marxismo?" Mesmo os marxistas declaram que o marxismo morreu e se perguntam se ele pode ressuscitar. Isto reflete bem a conjuntura, o estado de espírito defensivo em que o marxismo se encontra neste momento e que, fundamentalmente, tem suas razões objetivas nas derrotas práticas, concretas, que ocorreram em relação às maiores realizações do marxismo, neste século. Eu repito, não adianta dizer que na União Soviética não se aplicou o marxismo, que este foi traído, que Stalin foi o culpado. Os homens comuns não acreditam nisso, porque a própria burguesia se incumbiu de convencê-los que ali estava a encarnação do marxismo. É difícil negar que estava mesmo. O regime soviético foi inspirado em quem? Em Adam Smith, em Ricardo, em Keynes? Foi inspirado em Marx, seja através de Lênin, seja através de Stalin.

Gostaria de abordar brevemente alguns aspectos com relação ao contexto do próprio Manifesto. Um dado constante em Marx, que vem desde o Manifesto e também de seus escritos anteriores, é a confiança na classe operária industrial, a classe operária nova, que se formava dentro das fábricas resultantes da Revolução Industrial. Trata-se de algo fundamental, pois era a classe operária que substituía os artesãos das pequenas oficinas e das manufaturas. Era um novo tipo de trabalhadores, com uma nova organização, que se utilizava de instrumentos recém-criados de produção. Nos sucessivos prefácios que vão escrevendo para novas edições e também nos seus escritos posteriores como em O Capital, há uma confiança fundamental que esta é a classe do presente e do futuro, que a sociedade capitalista cresce mas, com ela, cresce também a classe operária industrial. Uma classe que não tinha nada a perder com a revolução, senão os seus grilhões, que não tinha propriedade, mas vendia sua força de trabalho em troca de salário a fim de produzir mais-valia para os donos das fábricas, para os burgueses.

A classe operária cresceu com a própria indústria, tornou-se cada vez mais numerosa, concentrada, como Marx sempre previu e insistiu, mas somente até os anos 70 deste século. Entretanto, a partir desta data, nos principais países capitalistas, a indústria continuou crescendo, porém não a classe operária. A classe operária começou a encolher e continua em processo de encolhimento. As novas tecnologias, os novos métodos de administração, a reengenharia, a reestruturação produtiva, todas essas metodologias estudadas recentemente, vão fazendo com que a produção industrial exija um número cada vez menor de operários. A contrapartida é o aumento do número de desempregados. De onde eles vêm? Vêm das fábricas que não precisam mais deles, ultrapassando os 10% da população ativa na França, na Alemanha, na Espanha, na Itália e assim por diante. São numerosos em todos os países capitalistas e estão em crescimento no Brasil. É o chamado desemprego estrutural.

É necessário examinar tal questão, que desafia os marxistas. No Brasil, na última vez em que veio ao nosso país antes de falecer — creio que em 94, num simpósio em Marília, do qual também participei —, Ernest Mandel enfrentou esta questão. Afirmou que não podemos aceitar a definição de que a missão de construir o socialismo cabe a uma classe operária masculina industrial. Penso ser isto uma força de expressão de Mandel, porque Marx nunca falou em classe operária masculina, nem esta é mencionada em algum documento marxista. Mesmo porque na Revolução Industrial e ainda depois, as empresas empregavam grande número de mulheres e também de crianças. Com o tempo, a legislação foi protegendo as trabalhadoras, proibindo o trabalho feminino, fora de certas condições. Mas, tirando a força de expressão, usada para facilitar a argumentação de Mandel, o que propõe em troca? Ele propõe substituir o conceito de classe operária pelo de classe dos assalariados. Ora, isso também não é satisfatório, é fugir do problema porque, hoje, os assalariados são a maioria esmagadora nas sociedades capitalistas modernas. Em qualquer país capitalista avançado, 80% ou mais das pessoas ocupadas são assalariados. O que acontece é que os assalariados compõem segmentos muito diferenciados. Entre os assalariados se incluem os profissionais de especialização avançada, os pesquisadores de laboratórios e departamentos de pesquisa das grandes empresas, altamente remunerados e com uma ideologia em nada parecida com a dos trabalhadores manuais.

Entre os próprios trabalhadores manuais, também se nota uma diferenciação muito grande. Há um núcleo minoritário com empregos permanentes, duradouros ou até vitalícios. E há uma maioria que tem trabalho precário e temporário. E há ainda desempregados permanentemente, que às vezes nem mais procuram emprego, porque já desanimaram — pelas estatísticas, estão na faixa de 12 a 13% na Europa ocidental. Na verdade, o número é maior pois, estatisticamente, são registrados como desempregados apenas os que procuram emprego. Aqueles que desanimam e não mais o procuram, os aposentados prematuramente, estes não são computados. Portanto, computando os desanimados e marginalizados, os sub-empregados, os empregados que fazem bicos, o número de desempregados em qualquer país capitalista seria o dobro do que assinalam as estatísticas.

Como tratar esse conjunto de segmentos como uma classe, como a classe dos assalariados? Que comunidade de interesses existe entre setores tão diferenciados? Este é um desafio que temos a enfrentar, porque a vida mudou, surgiram fenômenos e acontecimentos a respeito dos quais Marx não podia ter idéia.

Não direi que a classe operária vai desaparecer, como alguns já prefiguram. Mas, no momento, o fenômeno do encolhimento da classe operária tem o seu reflexo em todas as organizações que se baseiam nela, dos sindicatos aos partidos políticos. Em conseqüência disso, temos uma grande retração — em toda parte — do movimento sindical, do movimento grevista, das lutas reivindicativas. Dentro do movimento sindical, cresceram, sobretudo, aqueles setores de trabalhadores assalariados que não são fabris, que estão ocupados em atividades de serviços. Setores que, na época de Marx, não tinham importância ou tinham importância pequena — como, por exemplo, os trabalhadores da educação, os trabalhadores dos serviços de saúde e de lazer e outros. Daí que Marx não tenha examinado com suficiente atenção em O Capital a questão dos serviços. Todos esses trabalhadores dos serviços são assalariados e muitos ganham baixos salários, porém não são trabalhadores fabris. Passar por cima desta diferença conduz a erros colossais de avaliação.

A título de subsídio para esse nosso exame, podemos lembrar que Marx previu a situação em que quase não seria mais necessário o trabalho vivo para produzir as coisas. O sistema fabril chegaria a um ponto em que ele trabalharia automaticamente e os trabalhadores só precisariam realizar tarefas de supervisão e manutenção. Esta foi uma visão realmente genial, profética, pois Marx não conheceu a eletrônica. Em seu tempo, a própria eletricidade tinha um desenvolvimento ainda inicial, ele não podia prever a informática, os computadores, os robôs. Entretanto, esta visão prefigura uma realidade, que aparece no horizonte e nos surpreende. Como este futuro já próximo será enfrentado na sociedade burguesa? Vamos chegar ao ponto em que as coisas não terão valor, só terão valor de uso, ainda na sociedade burguesa? O que será de uma sociedade em que a classe operária não estará mais presente, ou que já será desnecessária?

Notemos que são problemas aos quais Marx só se referiu na obra que é conhecida como os Grundisse, no título alemão. Um rascunho que Marx elaborou em 1859. Quase tudo elaborado nos Grundisse está reelaborado n'O Capital, mas o trecho sobre o fim do trabalho criador de valor não teve seguimento, não foi reelaborado.

Quero terminar me reportando a mais um problema. Não há dúvida de que Marx e Engels tinham uma visão muito otimista do amadurecimento da sociedade burguesa para a transformação socialista na época em que viveram. Isso não sou eu só que afirmo. Também o faz István Mézáros, um marxista húngaro da escola de Lukács, que se refere às lacunas de Marx. Eu prefiro dizer claramente que foram erros de Marx. Ou seja, Marx já considerava a sociedade burguesa pronta, passível de passar para o socialismo, em 48 do século passado. Por que escreveu os Grundisse? Porque achava que vinha uma nova crise cíclica, como de fato veio, e que a revolução ia reproduzir em nível mais alto o movimento de 48. Marx se apressou em colocar no papel todas as grandes pesquisas que tinha feito, porque acreditava que o movimento revolucionário iria exigir toda a sua energia prática, e ele não teria tempo para completar sua obra. Nada disso aconteceu. A revolução não veio no século XIX. Veio no século XX, mas fracassou, veio do jeito que nós sabemos.

Não há no marxismo e nem pode haver em nenhuma ciência social, instrumento metodológico que nos dê a medida de amadurecimento da sociedade burguesa para o socialismo. Há uma frase de Lênin que se costuma reproduzir:

"a sociedade está madura para a revolução quando os de baixo não querem mais viver como antes e os de cima não podem mais governar como antes".

Esta é uma frase muito genérica, não pode ser considerada um termômetro que dê precisão a qualquer avaliação. Em geral, os acontecimentos revolucionários costumam ser imprevistos. A revolução de 17 pegou Lênin de surpresa, quando estava na Suíça. Dois meses antes, afirmou, numa conferência, que não viveria para participar da revolução socialista.

Temos toda essa problemática à nossa vista. Como vocês vêem, faço uma conferência crítica ao marxismo, porque depois de tudo o que aconteceu não adianta a gente querer botar óculos coloridos e ver as coisas róseas, como um novo doutor Pangloss. Precisamos enfrentar, a meu ver, tais desafios com absoluta seriedade e sem afastar os gravíssimos problemas teóricos e práticos. O momento em que estamos vivendo é, de fato, de reviravolta, de virada na história mundial. Há indícios de que o triunfo do neoliberalismo está no ocaso. Porém não é certo que daí venha uma transformação socialista. Mandel também não tinha certeza disso. O próprio Trotski, pouco antes de morrer, apesar de todo o seu dogmatismo, chegou a considerar que a classe operária até podia fracassar e demonstrar-se congenitamente incapaz para ser uma classe dominante. Se eles tiveram dúvidas, nós as temos mais em nossos dias.

Espero que as comemorações do sesquicentenário do Manifesto do Partido Comunista tenham como motivo inspirador o debate em torno de tão sérios desafios. Só assim, creio eu, é que procuraremos, pelo menos, estar à altura do que Marx e Engels realizaram faz um século e meio.


logo lutas sociais
Inclusão 15/07/2016