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Apesar de eu ter preferido não abordar diretamente o pensador Marx, a importância de suas filosofias, de suas reflexões, e sim repensar a questão do socialismo no mundo de hoje, parece-me que, ao fazer isso, não estou absolutamente sendo infiel ao tema, porque é impossível pensar o problema do socialismo sem pensar em Marx, e é impossível pensar em Marx sem pensar a questão do socialismo. Nessa medida, preferi abordar Marx sem isolá-lo de sua influência histórica, ou seja, exatamente como um pensamento que se revelou, uma ação que se revelou, uma práxis que se revelou — enquanto mundo real.
Aqui parece-me que se coloca a primeira questão: falar hoje sobre o socialismo é certamente falar sobre alguma coisa que atravessa uma profunda crise. Portanto, isso também nos leva a pensar na chamada crise do marxismo. Diria que essa crise do socialismo é uma crise dupla. Em primeiro lugar, é uma crise das sociedades que se identificavam e eram identificadas como socialistas, e isso que se convencionou chamar de socialismo realmente existente. Parece-me um problema teórico seguramente importante, e até decisivo, discutir até que ponto é possível caracterizar essas sociedades, muitas das quais já não existem mais como formas de socialismo. Certamente se o socialismo implica participação de todos, democratização profunda das relações sociais e controle social sobre os processos político-econômicos, dificilmente essas sociedades poderiam ser consideradas socialistas, e, creio que elas, em grande parte, se desviavam das exíguas e escassas indicações, digamos assim, que Marx prudentemente as fez escassas, a respeito do que deveria ser uma sociedade socialista.
Mas, independente disso, o fato é que essas sociedades identificavam-se como socialistas, mais particularmente como marxistas, inspiradas no marxismo, e eram assim identificadas pelo conjunto da reflexão do nosso tempo. E nessa medida o colapso dessas sociedades certamente coloca um problema grave para nós socialistas e para nós marxistas. Acho que não é, digamos, difícil fazer um diagnóstico breve dizendo que a razão principal do colapso dessas sociedades foi precisamente a falta de democracia. E é, me parece, a falta de democracia que explica, inclusive, o seu colapso econômico. Ou seja, o fato de que, não havendo um controle social da produção, a produção não pôde, evidentemente, responder a demandas efetivas da sociedade, criando-se uma economia louca, na qual era possível fazer submarino com casco de titânio e fabricar um papel higiênico absolutamente inutilizável pela sua falta de qualidade. Uma economia desse tipo revela claramente o fato de você não ter um controle democrático do que deve ser produzido numa sociedade, e isso deve ter sido um dos fatores principais do colapso, também econômico, que essas sociedades sofreram.
Acredito que existam casos em que sociedades inspiradas nesse modelo ainda persistem, como é o caso de Cuba, é o caso da China, mas mesmo nessas sociedades, e na China isso é mais evidente, esse modelo revela uma séria crise. Tenho por Cuba a maior simpatia. Todos reconhecemos em Cuba um enorme esforço de resolver problemas, de incluir os excluídos, como diria D. Mauro Morelli, que me parece são dignos dos maiores elogios. Mas vejo também em Cuba limites sérios do ponto de vista da construção de uma sociedade efetivamente democrática. Espero, sinceramente, que os companheiros cubanos empreendam esse movimento e evitem, assim, que a sociedade cubana passe por crises similares àquelas por que passaram as sociedades do leste europeu.
De qualquer modo, creio que Cuba não será mais um paradigma para a construção de uma sociedade socialista no mundo e particularmente na América Latina. Digamos que este é o primeiro e talvez mais evidente aspecto do que chamei antes de crise do socialismo, dos projetos socialistas, das sociedades socialistas no mundo de hoje. Mas talvez mais grave para nós, de esquerda, é constatarmos o fato de que não há no mundo moderno projetos articulados e, digamos assim, exeqüíveis de socialismo. Existe, para usar expressão de um socialista inglês, Perry Anderson, uma miséria da estratégia da esquerda mundial.
Se pegarmos os dois troncos da esquerda socialista, do movimento socialista, surgidos a partir da Primeira Guerra Mundial, digamos, bolchevique ou comunista, e o tronco social-democrata, veremos que em ambos os casos faltam projetos do que deve ser uma sociedade socialista. Acho que, hoje, todos sabemos mais ou menos o que ela não deve ser. A experiência histórica mostrou-nos que não deve ser aquilo que existiu lá, ou pelo menos que não deve ser tudo aquilo que existiu lá. Mas qual é a alternativa que hoje a esquerda mundial tem para os projetos neoliberais que estão efetivamente no mundo moderno desfrutando de uma situação de hegemonia?
Se pegarmos o lado comunista, essa matriz que surge com os bolcheviques e se generaliza com o nome de movimento comunista mundial, veremos que ele há muito fracassou no Ocidente e as suas propostas de transformação das sociedades ocidentais não ocorreram. O tipo, o modelo, o paradigma de revolução por eles elaborado, falsamente visto como válido para todo o mundo na Terceira Internacional, certamente fracassou no Ocidente.
Progressivamente, os partidos comunistas começaram a adotar políticas reformistas, na prática, inclusive, não muito dessemelhantes daquelas que vinham sendo adotadas pelo outro tronco do movimento operario-socialista, a social-democracia. Houve, nos anos 1970, uma brilhante tentativa, não muito conhecida no Brasil, de revigorar o socialismo, incorporando-lhe a demanda democrática e criando um novo projeto de transformação socialista no mundo ocidental, um movimento que ficou conhecido, falsamente a meu ver, pelo nome de eurocomunismo. E digo falsamente porque propostas do tipo eurocomunistas ocorreram no partido japonês, no partido mexicano e inclusive no Partido Comunista Brasileiro. Acho que esta foi, talvez, a última tentativa séria da esquerda de inspiração comunista, de elaborar uma proposta que transcendia em muito a matriz originária do leninismo, de pensar condições de exequibilidade de um socialismo efetivamente democrático no Ocidente.
Ora, mesmo os partidos que adotaram o eurocomunismo terminaram por abandoná- lo. Abandonaram até a própria formulação, o nome do partido, como é o caso do Partido Comunista Italiano, e de certo modo do Partido Comunista Brasileiro. Mas o fato é que se constata hoje que quem adotou o eurocomunismo abandonou-o, a meu ver apressadamente, em muitas das suas demandas; e os que não adotaram estão cada vez mais condenados ao gueto político. Têm perdido consensos eleitorais sistematicamente, e têm hoje uma escassa influência em todos os países do mundo. Diria, portanto, que esse tronco do movimento operário, tão importante no século XX, é um tronco em extinção, que não tem nenhuma proposta de socialismo efetiva para o mundo moderno. Por outro lado, também a social-democracia atravessa uma profunda crise.
É difícil falar em social-democracia em geral. Ela conheceu várias etapas: uma coisa é a social-democracia até 1917, até 1914, mais precisamente até o início da Primeira Guerra Mundial, quando a social-democracia congregava todos os partidos socialistas da época e todos os partidos de inspiração marxista, quer dizer, o partido bolchevique até 1917 chamava-se Partido Operário Social-Democrata Russo. Ou seja, social-democracia era o conjunto do movimento socialista da época. A partir da ruptura de 1914/1917, temos que rever o quadro da Primeira Guerra Mundial, onde a social-democracia tenta, ao meu ver com muita inteligência teórica, elaborar uma proposta de transformação socialista no Ocidente, que incluísse os valores democráticos, através de reformas.
Vários fatores inviabilizaram essa proposta, inclusive o nazismo, a explosão da Segunda Guerra Mundial; temos uma terceira etapa da social-democracia, que se inicia em 1945 e que é uma etapa muito fecunda. Graças ao boom econômico ocorrido naquele período, a social-democracia conseguiu obter ganhos importantes para os trabalhadores e conseguiu, finalmente, constituir esse conjunto de direitos sociais, e portanto de cidadania, que formam o chamado estado do bem- estar (welfare state). Só que esse estado do bem-estar atravessa hoje uma séria crise, uma crise fiscal, de natureza grave e está, digamos assim, perdendo a possibilidade de se manter nos países onde foi estabelecido, até mesmo na Inglaterra, onde mais se desenvolveu, graças à ação do Partido Trabalhista Britânico.
Isto atesta o fato, que a social-democracia não percebeu, de que o aprofundamento da cidadania política e particularmente da cidadania social é incompatível com a persitência da lógica do capitalismo. A social-democracia de hoje fez uma opção clara por reformas, sim, mas por reformas no interior da ordem capitalista. E por isso a social- democracia, hoje, não tem um projeto exeqüível da transformação socialista no mundo moderno. Quero dizer, limita-se, freqüentemente, quando está no poder, a gerir a lógica do capital, como é o caso, por exemplo, dos atuais governos socialistas na França, e mais intensamente ainda na Espanha, de modo que também esse tronco do movimento socialista parece-me, hoje, carente de propostas efetivas para o mundo moderno.
E aqui, parece-me, coloca-se uma questão: será que essa crise que envolve sociedades e que envolve capacidade projetual do movimento socialista de esquerda no mundo de hoje é uma crise também do marxismo? Acho que a pergunta é pertinente por, pelo menos, duas razões: em primeiro lugar, todos esses estados que agora entram em colapso se diziam, e eram considerados, inspirados no marxismo. Então, o marxismo tem de vir à tona no momento em que se discute, em que se constata, mais do que se discute, o fracasso desse modelo; em segundo lugar, porque o marxismo não pretende apenas ser uma interpretação do real, mas o marxismo tem o objetivo explícito, lembremos da 11ª tese de Feurbach, não só de interpretar o mundo, mas de transformá-lo. Então, digamos assim, essa miséria da estratégia, a falta desse projeto estratégico alternativo, hoje, sem dúvida, coloca também em questão esse lado do marxismo que também pretende ser instrumento de transformação do mundo.
Eu diria, sinceramente, e simplificando, que certamente uma leitura do marxis- mo que, especificamente, entrou em crise junto com essas sociedades ditas socialistas — e acho que entrou em crise definitiva — é o chamado 'marxismo-leninismo', entre aspas, porque esse marxismo-leninismo é uma dogmatização, talvez, do que há de pior em Marx e do que há de pior em Lenin, mas certamente é um empobrecimento radical tanto do pensamento de Marx, neste caso sobre- tudo da riqueza, da variedade, dos ensaios críticos de Marx, mas também um empobrecimento de uma leitura do marxismo que já, por si, apresenta problemas — a leitura de Lenin, de Trotski, dos bolcheviques em geral. Lenin tem inúmeros méritos, é um pensador marxista importante.
Lenin desenvolveu uma reflexão sobre o capitalismo moderno em seu livro sobre o Imperialismo que, digamos, em sua essência, permanece válida até hoje, mas seguramente traz inúmeros conceitos que me parecem historicamente superados. Por exemplo, suas concepções de Estado, de luta de classe e de revolução são diretamente inspiradas no Manifesto Comunista de 1848 e, certamente, correspondia à realidade européia naquele momento. As reflexões leninistas correspondiam às condições da Rússia czarista de 1917, mas certamente já não correspondiam às condições européias de 1917 e não correspondem às condições do mundo moderno. Que teoria de Estado, por exemplo, aparece no manifesto de 1848 e é reproduzida por Lenin? É uma concepção restrita do Estado, como sendo o comitê executivo das classes dominantes, da burguesia, em particular, e como algo que tem um único recurso de poder que são a coerção e a violência. Isso está dito no manifesto e repetido, literalmente, em O Estado e a Revolução, de Lenin.
Uma concepção de luta de classe está explícita no manifesto como uma guerra civil mais ou menos oculta que explodirá, necessariamente, em uma revolução violenta. E, finalmente, uma concepção de revolução que era entendida como um momento explosivo, algo concentrado num curto lapso de tempo implicando a quebra da máquina estatal e a construção de uma outra máquina estatal. Quer dizer, todo estado é restrito, é coercitivo, portanto é uma ditadura, e, portanto, a alternativa a esse estado de ditadura da burguesia é a ditadura do proletariado. Isso não está no manifesto, mas está em Marx, logo depois, e, seguramente, marcou a obra de Lenin. Essa concepção não esgota a reflexão marxista sobre estado e revolução e, eu diria foi historicamente superada; depois voltarei a falar sobre isso, porque as condições da luta de classe no mundo mudaram radicalmente a partir da segunda metade do século XIX, particularmente do século XX, e como isso alterou o estado capitalista, a sua pureza e, necessariamente, é preciso elaborar uma nova teoria da revolução.
Veja bem, nas obras de Marx e de Engels existem vários momentos onde eles superam claramente suas reflexões de 1848. Marx chega a falar na possibilidade de uma revolução pacífica em países como a Holanda, a Inglaterra e os Estados Unidos. Engels, no final da vida, chega a elaborar, ou reelaborar, claramente a teoria marxista do Estado, falando que todo Estado é fruto de um contrato entre o príncipe e o povo, e portanto só há violência quando uma parte rompe o contrato. Quer dizer, ele cria toda uma teoria da revolução e justifica a violência apenas como uso defensivo. Diz ele: "Crescemos na democracia”. E se a classe dominante quebrar a regra do jogo temos o direito de usar a violência para contra-atacar a violência das classes dominantes, que é, portanto, uma nova idéia do uso da violência no processo revolucionário. Mas não só Marx e Engels superam as suas teorias do Manifesto de 1848, mas certamente existe uma enorme riqueza de reflexões sobre estado e revoluções na época em que Lenin fazia a revolução bolchevique que, infelizmente, se perderam para a revolução marxista.
E refiro-me, claramente, às reflexões de alguém que por ser tachado de revisionista foi excluído do rol das pessoas que deviam ser lidas, como herético. Bernstein, por exemplo. Acho que ele cometeu vários equívocos na sua análise do capitalismo, na época, mas certamente tem contribuições que nenhum marxista pode ignorar. Pensadores como Rosa de Luxemburgo, como os pensadores austro-marxistas, Max Adler, Otto Bauer, enfim, vários pensadores que elaboraram, a partir do marxismo, reflexões sobre o mundo contemporâneo, sobre o Estado, sobre a revolução, certamente diferentes e, eu não hesitaria em dizer, mais ricas e mais abrangentes do que aquelas elaboradas por Lenin e pelos bolcheviques.
O que ocorre com a vitória da revolução bolchevique e com a necessidade de construir o socialismo num só país — de limitar, portanto, a expansividade da revolução à União Soviética? O fato de que essa leitura específica do marxismo que Stalin rapidamente decodificou, habilmente, com o nome de marxismo-leninismo, porque pegava mal ele dizer stalinismo, então ele criou esse belo pseudônimo. Essa leitura já problemática e mais ainda dogmatizada por Stalin tornou-se a corrente hegemônica do marxismo, e foi praticamente identificada por marxistas e não- marxistas como marxismo. Acho que chegou o momento, se queremos realmente resgatar essa capacidade do marxismo, de reformularmos propostas alternativas do mundo contemporâneo, de rompermos definitivamente com essa identificação esquemática entre marxismo e marxismo-leninismo, e não apenas tentarmos saber o que Marx diz, e sim, particularmente, sabermos o que dizem essas correntes heréticas e subterrâneas, que se desenvolveram, paralelamente, ao nascimento do bolchevismo, e que têm importantíssimas contribuições a dar, hoje, para uma retomada da potencialidade criativa do marxismo.
Essa herança do marxismo foi rica, tem sido, pelo menos, para pensar. Isso sem falar da riqueza categorial do método marxista. Acho que Luckács, em História e Consciência de Classe, disse uma vez uma coisa muito correta: "A ortodoxia no marxismo é uma questão de método." Acredito que várias das afirmações de Marx, e até todas, se revelem equivocadas ou superadas; só podemos nos dizer ortodoxamente marxistas, se formos capazes de ser fiéis ao método de Marx. É um método dialético da compreensão dos fenômenos sociais como totalidade formada por múltiplas determinações. E a história não é senão a gestação de novas determinações. É impossível pensar a totalidade, portanto aplicar corretamente o método marxista sem incorporar às reflexões as novas determinações que vão se desenvolvendo.
Então, nessa medida, o revisionismo, antes de ser um mal, longe de ser alguma coisa herética, é certamente um momento essencial do próprio método marxista. Não se pode ser ortodoxamente marxista sem ser revisionista.
E vejam bem, assim como a Igreja talvez canonize Lutero, é importante que nós, marxistas, hoje tenhamos de canonizar o revisionismo e dizer claramente que é impossível ser marxista sem ir além da letra de Marx. Se formos repetir como teoria do Estado o que Marx disse em 1848 diante de um Estado completamente diferente do Estado que conhecemos hoje, certamente não seremos marxistas, seremos, quando muito, marxistas-leninistas. Nesse momento, há uma dualidade indubitável do marxismo e de Marx no mundo moderno: ao elaborar o marxismo e a categoria da totalidade como categoria central da reflexão sobre o social, numa era de fragmentações pós-modernas, onde está na moda o fragmento, o micro, a idéia de que o todo é impossível de se compreender, acredito que, nesse momento, e diante dessa nova e enésima manifestação de racionalismo, temos que resgatar e insistir na atualidade da proposta marxista de pensar a sociedade como uma totalidade, o que, evidentemente, não deve ser confundindo com totalitarismo. A totalidade do marxismo é uma totalidade aberta, como eu disse antes, sempre incorporando novas determinações, e portanto é inimiga mortal de qualquer totalidade fechada, totalitária.
E lembraria o fato de que o marxismo se revelou capaz de compreender com riqueza, e talvez mais do que as outras correntes, os novos desenvolvimentos sofridos pelo capitalismo, sobretudo no século XX. E eu recordaria autores, por exemplo, como Rudolf Hilferding que foi, talvez, quem fez a primeira grande elaboração sobre o novo tipo de capital, o capital financeiro que vem se formando desde os anos 1910-1920, e que inspirou diretamente Lenin ao escrever o Imperialismo — Etapa superior do capitalismo, que na verdade recolhe as reflexões econômicas de Hilferding, e dá a elas uma dimensão política. Mas, para não ficar em pensadores marxistas tão antigos, eu recordaria que análises fundamentais do capitalismo contemporâneo têm sido feitas por marxistas como Baran Sweezy, como o primeiro Claus Orffe, como James O' Connor; enfim, o marxismo não deixou de pensar o capitalismo contemporâneo e de apresentar respostas teóricas extremamente pertinentes para entender suas metamorfoses, a sua nova forma.
Mais interessante ainda é observar que o marxismo talvez tenha sido a corrente de pensamento mais rica ao avaliar criticamente as sociedades do chamado socialismo realmente existente. E aqui também temos uma tradição que vem de longe. Há análises brilhantes, inclusive com previsões catastróficas que terminaram por se confirmar, do tipo de proposta bolchevique de construção socialista de um pensador, por exemplo, como Karl Kautsky, que também ficou marginalizado porque Lenin escreveu contra ele o livro chamado A revolução proletária e o Renegado Kautsky. Kautsky nunca foi renegado, ele tinha um marxismo diferente do de Lenin, ao seu modo, avaliou criticamente, e com alguma profundidade, a proposta de construção da sociedade soviética no momento em que ela vinha se fazendo.
E todos se recordam dos trabalhos de Trotski ao longo da década de 1930, na tentativa de compreender o que estava acontecendo, as degenerações que ocorriam sob o governo de Stalin; e ele fazia essas análises de um ponto de vista claramente marxista. Mas, também no nosso tempo, Rosa de Luxemburgo fez a mesma coisa. Talvez as mais brilhantes análises do socialismo realmente existente tenham sido feitas por marxistas, como, por exemplo, Charles Betelheimer, Rudolf Bahro. Agora, recentemente foram publicados em português um livro de Alex Callinicos e outro de Robert Kuhn, que são extremamente interessantes. Portanto, o marxismo não ficou perplexo diante do que ocorria naquelas sociedades. Várias correntes marxistas foram capazes de denunciar os desvios, as degenerações, a falta de humanismo daquelas sociedades e, ao mesmo tempo, de propor, através de categorias marxistas, uma maneira de compreender criticamente a gênese e os desdobramentos dessas sociedades. Nessa medida, acho que o marxismo não foi conivente com aquelas sociedades e que, portanto, ele, na sua totalidade, não está envolvido com a crise que as destruiu. Tanto mais que, em várias das suas versões, as mais ricas, as denunciou desde o momento de sua instalação.
Finalmente, não hesitaria em dizer que o marxismo ainda é, ao meu ver, a corrente de pensamento que tem mais possibilidades de oferecer uma proposta adequada e exeqüível de um socialismo democrático no nosso tempo. Quando digo a mais adequada, quero insistir no fato de que não é a única. Uma das piores coisas que o marxismo-leninismo, em um dado momento, fez crer é que o marxismo se julgava a única interpretação válida no mundo. E diria que o marxismo é uma entre outras, mas certamente me parece, e por isso me considero marxista, a mais rica. Lembro-me que o deputado Genoíno dizia que se aprende tanto com Gramsci quanto com Hannah Arendt. Não concordo com isso, acho que, enquanto socialistas, aprendemos mais com Gramsci do que com Hannah Arendt. Aprendemos com Gramsci conceitos mais ricos de revolução, mas certamente também aprendemos com Arendt.
Sem cair no relativismo e dizer que todos são iguais, acho que devemos ter hoje, enquanto marxistas, uma posição claramente pluralista: é preciso estar sempre aberto para as reflexões que vêm de outras correntes de pensamento. Imaginem quão pobre seria a concepção de socialismo se não incorporássemos a ela, por exemplo, todos os valores que o cristianismo introduziu no mundo e, particularmente, a rica reflexão que vem sendo feita pela teologia da libertação, que, aliás, é influenciada também pelo marxismo num processo de mão dupla.
Chamo a atenção de vocês para a atualidade de Marx e para a possibilidade de que conceitos elaborados por ele e pelos marxistas tenham respostas satisfatórias para questões que nos são hoje absolutamente vitais. Vejam, por exemplo, o conceito de democracia. Certamente, a tradição bolchevique, Lenin, Trotski e os bolcheviques empobreceram o conceito de democracia. Uma vez dei-me ao trabalho de fazer uma pesquisa nas obras completas de Lenin, e cheguei à conclusão de que, na maioria esmagadora das vezes em que ele usa a expressão 'democracia', o faz sempre adjetivando-a: democracia proletária, democracia burguesa, democracia dos explorados, democracia dos exploradores. A força de tantos adjetivos, terminou por se perder a natureza do substantivo, isso que tenho chamado, como Enrico Berlinguer, de 'valor universal da democracia'. Nessa vertente do pensamento marxista, codificada no marxismo-leninismo, certamente, a democracia foi vista, freqüentemente, como um instrumento, como alguma coisa que era usada quando nos interessava e que jogávamos fora quando era o momento oportuno de bater no adversário.
Quer dizer, uma concepção certamente empobrecedora e que explica muito, embora não seja a única explicação, a concepção extremamente restritiva da democracia que vigorou nas sociedades do Leste europeu. Mas vejam bem, há outras leituras, feitas neste mesmo momento, por autores marxistas, que desautorizam essa visão restritiva da democracia: Rosa Luxemburgo, por exemplo, polemizando com Lenin e Trotski, num texto em que elogia a revolução bolchevique, mas lamenta a sua falta de democracia, diz uma coisa belíssima: "liberdade, para os membros do partido, não é liberdade; liberdade é para quem pensa diferentemente". E dizia mais, neste texto de 1918: "Essa restrição da liberdade que vocês estão propondo vai acabar levando a ditadura do proletariado a se converter em ditadura do partido, a ditadura do partido em ditadura do comitê central e a do comitê central em ditadura do secretariado geral. "Trata-se de uma capacidade de previsão que honra Rosa Luxemburgo e honra também o método marxista que ela usou para fazer essa previsão.
O 'renegado' Kautsky, por exemplo, tem observações extremamente interessantes sobre democracia, numa das quais ele diz que: "Democracia não é o meio para o fim socialismo, o socialismo é o meio para o fim democracia." Queremos o controle social da produção porque queremos transformar a sociedade, torná- la cada vez mais democrática. Essa colocação de Kautsky, um marxista culto e ortodoxo, até ortodoxo demais em alguns casos, no sentido ruim da palavra ortodoxo, é uma colocação que me parece extremamente fecunda e que nos faz deixar de lado esse dualismo do "lutamos pela democracia até um certo ponto e, depois, quando tomamos o poder, construímos o socialismo sem democracia", como se a democracia fosse uma etapa de um processo. Acho que essa idéia de Kautsky nos dá claramente a noção de que a democracia não é um caminho para o socialismo; a democracia é o caminho do socialismo. Socialismo e democracia se constroem juntos.
Outras reflexões marxistas sobre democracia também foram feitas por Otto Bauer e Max Adler, os chamados austro-marxistas, quando começaram a falar da necessidade de o mundo moderno integrar democracia direta, de base, participativa, com democracia representativa. Enquanto Lenin dizia "democracia proletária é igual a democracia conselhista, democracia de base" (soviet em russo quer dizer conselho) ao passo que "democracia representativa é igual a democracia burguesa", Max Adler e Otto Bauer viram muito bem que no mundo contemporâneo é impossível constituir uma democracia eletiva apenas com base na representação direta, onde os parlamentos representativos se tornaram inevitáveis. Mas, para que os parlamentos não se dissociem dos movimentos reais da sociedade, é preciso que eles sejam integrados, também, ou pressionados por movimentos que vêm das ruas, da formação de conselhos populares, conselhos de moradores, entidades eclesiais de base.
Vejam bem: tivemos no Brasil, recentemente, um belo exemplo da fecundidade dessa integração entre democracia direta, que vem das ruas, e democracia representativa parlamentar, no caso da votação do impeachment do Collor. Acho que isto é uma prova de que essa integração é extremamente fecunda, não só para consolidar efetivamente a democracia, mas para promover reformas substantivas. Não vou nem falar aqui, pois quem me conhece, mesmo de longe, sabe que eu sou um profundo admirador da figura do Antônio Gramsci, da importância enorme da reflexão marxista de Gramsci para uma concepção moderna de democracia. Ele nos legou a idéia de que é preciso, para transformar a sociedade, obter o consentimento das pessoas; de que a hegemonia é algo que não implica coerção, mas implica o convencimento e a participação, que impede-nos de imaginar o Estado apenas como coerção. Por isso, o Estado, se quer ser democrático, e, particularmente, o Estado do socialismo, tem de se basear sobretudo no consentimento, sobretudo na hegemonia, portanto no diálogo e na discussão. Tem de se basear, numa palavra, na democracia.
Outra coisa que demonstra a atualidade do marxismo é também a possibilidade que ele revelou ao elaborar uma nova estratégia de revolução, alternativa e diferente da estratégia da revolução proposta no manifesto de 1848 e executada por Lenin na revolução bolchevique de 1917. Essa última estratégia apoia-se na idéia de que o Estado é um conjunto de aparelhos repressivos. Lenin diz isso claramente: para ele "trata-se de criar, de certo modo, um contrapoder, um contra-Estado e tomar de assalto o Estado existente, quebrá-lo" (a expressão é de Marx e Lenin a repete muito) "e construir no lugar um novo tipo de Estado".
Ora, acho que essa concepção tem muito sentido nas sociedades que Gramsci chamou de 'orientais', sociedades onde o Estado é tudo e a sociedade civil é primitiva e gelatinosa. Então, nessas sociedades, o poder está efetivamente concentrado como organismo coercitivo. Ora, numa sociedade onde se deu o processo de socialização da política, onde houve uma organização popular, onde se formaram sindicatos e partidos de massa, conquistou-se o sufrágio universal, o poder não se concentra apenas no Estado mas está difuso pela sociedade. Então, diz Gramsci: "não adianta tomar de assalto o Estado, porque o Estado é apenas uma fortaleza das classes dominantes. É preciso conquistar posições na sociedade civil, é preciso ocupar trincheiras e casamatas para que se torne possível a inversão das relações de poder na sociedade e a conseqüente conquista do Estado".
Essas são sociedades que ele chamou de 'ocidentais', sempre entre aspas, não no sentido geográfico, mas no histórico-político. Para tais sociedades ele sugeriu uma nova estratégia de transformação socialista, que ele chamou de 'guerra de posição', por contraste com 'a guerra de movimento'. A guerra de movimento é aquela na qual dois exércitos se põem frente a frente, se chocam frontalmente: quem ganhou, ganhou; quem perdeu, perdeu. E a guerra de posição é aquela na qual progressivamente se ocupam espaços através do território do inimigo, chegando-se ao ponto, em determinado momento, de ganhar a guerra. É interessante que Gramsci diz uma coisa muito significativa: na guerra de posição, a vitória demora, mas, quando ela é conquistada, é definitiva; enquanto na guerra de movimento há sempre a possibilidade dessa vitória ser alterada num segundo choque.
Então, essa proposta da guerra de posição tem o sentido de alguma coisa que se enraíza solidamente na realidade. Não é à toa que ele insiste na idéia da reforma intelectual e moral, ou seja, a transformação social, para Gramsci, implica a modificação da consciência das pessoas e a construção de uma nova relação de hegemonia. Então, um socialismo construído a partir das lutas de uma vanguarda revolucionária geralmente pode levar a um estranhamento entre essa vanguarda e o conjunto da população, gerando assim, como dizia Rosa Luxemburgo, não uma ditadura do proletariado, mas uma ditadura do partido, até, freqüentemente, sobre o proletariado. Já uma transformação socialista feita com base no consenso e na hegemonia certamente é feita pelo conjunto da sociedade.
Então, o conjunto da sociedade está acompanhando as transformações que se fazem necessárias e, como tal, a participação é muito maior, e a solidez das instituições socialistas e democráticas, nesse caso, é seguramente muito maior.
E também, com Gramsci, se criou algo que já vinha de antes e que Kautsky já havia chamado de 'estratégia da derrubada' e 'estratégia do assédio'; quer dizer, a derrubada seria esse choque frontal, o assédio seria esse processo de guerra de posição. Portanto, antes de Gramsci, mas sobretudo com ele, criou-se um novo paradigma, um novo conceito marxista de revolução, que me parece não só o mais adequado ao mundo contemporâneo, o mais exeqüível, mas também aquele que nos interessa mais, porque é aquele em que mais facilmente podemos preservar relações participativas do tipo democrático.
Quer dizer, as revoluções que se dão através da violência, embora em muitos casos sejam necessárias (não vou imaginar que fosse possível derrubar a ditadura de Somoza na Nicarágua através da guerra de posição, porque não havia posições a serem conquistadas, ele não era dono apenas do Estado, mas da economia do país; dificilmente ali poderia ter sido diferente), certamente implicam riscos de regressão que são muito maiores do que no caso da construção de uma sociedade através da luta pela hegemonia e pelo consenso. Muito bem, o socialismo hoje implica a necessidade de pensarmos uma estratégia, que eu chamaria de reformista-revolucionária, para a construção de uma nova ordem social.
E, ao falar de reformismo revolucionário, inspirando-me numa velha idéia de André Gorz, depois usada por Lucien Goldmann, ao propor uma estratégia reformista revolucionária, estou propondo uma terceira via entre os dois modelos de revolução ou de transformação, mais precisamente, que dominaram aqueles dois troncos do movimento operário a que me referi antes. Quer dizer, por um lado acho que devemos abandonar a ruptura revolucionária, a idéia de que só há revolução, que só há transformação, quando se toma o palácio, no caso brasileiro o Palácio do Planalto, no caso de 1917, o Palácio do Inverno, e, a partir desse momento, se começa a introduzir transformações radicais e rápidas na sociedade. Acho que essa concepção de revolução está superada, pelo menos nos países onde há um razoável grau de desenvolvimento da sociedade civil. Isso vale para a maioria dos países da América Latina de hoje. Por outro lado, essa proposta supera também o modelo de transformação da social-democracia. Veja bem, não critico a social-democracia por ela ser reformista, critico-a por ser insuficientemente reformista.
E acho que a idéia da reforma como momento de transformação social, ou melhor, até como momento de revolução, é uma idéia que está presente no próprio Marx. Quando se conquistou, na Inglaterra, pela primeira vez, a fixação legal da jornada de trabalho (se não me falha a memória em dez horas), Marx disse o seguinte: "essa foi a primeira vitória da economia política do trabalho sobre a economia política do capital". Ora, se Marx reconhece que uma reforma desse tipo é uma vitória da economia política do trabalho, então Marx autorizou, claramente, do ponto de vista teórico, a luta por reformas.
Imaginem quantas vitórias da economia política da classe trabalhadora foram conquistadas, por exemplo, no welfare state: direito de aposentadoria, direito de férias, enfim, inúmeros direitos que certamente ainda não dão ao trabalhador uma plena cidadania social, mas que asseguram-lhe inúmeras vantagens, conquistadas ainda no interior do capitalismo. A social-democracia captou essa possibilidade de uma luta por reformas de conquistas efetivas, mas, a meu ver, peca porque toda vez que a dinâmica das reformas entra em conflito com a lógica do capital, e isso se dá, rapidamente, porque o Estado capitalista não é capaz de financiar plenamente os direitos sociais conquistados, há uma crise fiscal. Então toda vez que ocorre esse choque entre o aprofundamento da cidadania e o Estado capitalista, a lógica do capital, a social-democracia tem, em geral, recuado e passado a gerir a lógica do capital.
Então, o reformismo deles é um reformismo que eu chamaria fraco, é um reformismo, no máximo, 'melhorista'. Dizem: vamos melhorar o capitalismo, e, à medida que as reformas se chocam com o capitalismo, eles, em vez de ficarem com as reformas, ficam com o capitalismo. A minha idéia é de que a estratégia socialista revolucionária possível hoje, é aquela que, utilizando as reformas como instrumento fundamental da luta política, tenha clara consciência de que essas reformas devem ser aprofundadas no sentido da superação da lógica do capital, no sentido da transformação do investimento social e não em algo que vise essencialmente ao lucro privado, mas em algo que vise essencialmente ao bem-estar da sociedade. Reformas, portanto, que devem ser feitas tanto na ordem econômica, no sentido de controlar socialmente a produção econômica, mas também na ordem política, no sentido de transformar profundamente o Estado e fazer dele algo permanentemente submetido ao controle social.
Acho que essa nova proposta socialista democrática de construção de uma nova ordem social deve abandonar uma posição que marcou tanto a vertente bolchevique-comunista quanto a vertente social-democrata, que é um viés profundamente estatista; uma identificação seguramente equivocada entre estatal e público. Tanto a social-democracia pensou as suas reformas como algo a ser realizado através da burocracia do Estado, como as sociedades do Leste europeu conceberam a socialização da propriedade como a estatização da propriedade e, na prática, o controle dessa propriedade estatal pela burocracia estatal. Não vou discutir aqui se isso chegou a constituir uma classe, mas que certamente explorava o conjunto da sociedade porque tinha privilégios, porque detinha o controle da propriedade estatal e, nessa medida, impediu que se realizasse uma efetiva socialização da economia.
Devemos, hoje, conceber um socialismo que não confunda e que não identifique o público com o estatal. Acho que deverá haver, é claro, algumas formas de propriedade do tipo estatal: bancos, etc. Mas devemos ser criativos para imaginar formas de controle público da economia que não necessariamente sejam formas de propriedade estatal: cooperativas, pequenas empresas integrando-se em cooperativas maiores, enfim, mecanismos que assegurem a prioridade do público sobre o priva- do numa economia que eu não hesitaria em chamar de economia mista. Acho que há setores que continuarão como propriedade privada, haverá um razoável grau de mercado, submetido, certamente, a um planejamento global. Mas eliminar o mercado por decreto revelou-se inviável. Então,numa economia mista, onde haja uma integração dinâmica entre planejamento e mercado, é possível fazer com que os interesses públicos sejam os prioritários sobre os interesses privados e, portanto, subordinar a lógica do capital, onde ela ainda existir, a uma lógica nova, que vise ao bem-estar da sociedade.
Na economia parece-me que são essas as reformas que devem ser feitas no sentido de transcender a ordem social capitalista. Na política, por outro lado, acho que devemos inventar mecanismos que cada vez mais coloquem a sociedade civil controlando o aparelho de Estado até o ponto de absorver os mecanismos burocráticos do Estado nos organismos hegemônicos e autogeridos da sociedade civil.
E tendemos a esquecer que uma utopia fundamental de Marx (no sentido positivo da palavra utopia) é o fim do Estado. A idéia de Marx é que o socialismo era uma etapa transitória para a realização do comunismo, onde haveria o fim do Estado. E lembro-me que Stalin, com seu enorme cinismo, dizia assim: "dialeticamente, para que o Estado desapareça, tem de se fortalecer cada vez mais; quanto mais forte ele for, mais perto estará de desaparecer”. E, com isso, criou-se aquela monstruosidade que conhecemos. Então, esse viés estatista não é a posição de Marx. Nessa medida, deve-se recuperar a noção do fim do Estado, talvez com um pouco mais de realis- mo do que Marx, não com a idéia de que o Estado possa se extinguir inteiramente, mas certamente com a idéia de que ele pode ser bastante enfraquecido e controlado progressivamente pela sociedade civil.
Alguém poderia dizer que estamos defendendo o neoliberalismo que também fala em enfraquecer o Estado. Não, porque o neoliberalismo pretende enfraquecer o Estado para pôr no seu lugar o mercado, e o mercado com todas as suas terríveis injustiças, um mercado que, no Brasil, exclui de si mesmo quase dois terços da população. Se o neo-liberalismo, nos países desenvolvidos, é a sociedade dos dois terços, quer dizer, dois terços vivem mais ou menos bem e um terço vive miseravelmente, no Brasil é a sociedade do um quarto: três quartos vivem miseravelmente.
Então, não se trata de enfraquecer o Estado para pôr em seu lugar o mercado, mas de enfraquecer o Estado para pôr em seu lugar a sociedade civil. Devemos conceber um caminho democrático e socialista onde a sociedade civil cresça cada vez mais e se torne cada vez mais o sujeito efetivo da construção da cidadania e das políticas sociais. Não se deve entregar sua realização à burocracia estatal, mas ter a sociedade civil como gestora e implementadora da política educacional, da política de saúde etc.
Nós, socialistas, nós, de esquerda, vivemos hoje num mundo onde não é difícil constatar a presença ainda hegemônica das correntes neoliberais. Vejam bem, uma presença hegemônica aparentemente tão forte que um filósofo, duble de funcionário do Departamento de Estado norte-americano, Francis Fukuyama, chegou a escrever um livro, inteligente, para defender a idéia de que chegamos ao fim da história. Quer dizer, a democracia liberal, entendida como liberalismo político e mercado é o fim da história: quem ainda tem história é quem ainda não chegou lá. Por exemplo, nós ainda não temos história, então vamos passar, até chegar lá, direitinho por aquele modelo europeu e tal...
Lembro-me sempre que o Hitler dizia que o Terceiro Reich ia durar mil anos; durou doze. Então, tenho a impressão de que também esse reino milenar, ou eterno, do mercado liberal, não vai durar tanto tempo assim.
Como vocês sabem, o conjunto de países do Primeiro Mundo vive hoje uma profunda recessão econômica. Não é só o socialismo que está em crise, o capitalismo continua a manifestar traços da sua crise já secular. Como é possível resolver, através de políticas neoliberais a imensa disparidade entre o Norte e o Sul do mundo? Esse modelo neoliberal só faz acentuar as desigualdades sociais, e, vejam bem, um fenômeno como a Somália atual é resultado do capitalismo, não da falta de capitalismo, como alguns neoliberais têm tentando nos vender 'o peixe'. Dizem que a África está assim porque não tem capitalismo, quando o capitalismo chegar lá, resolve. Que o mal do Brasil é a falta de capitalismo, houve até quem propusesse um choque de capitalismo.
Não, a miséria brasileira e a miséria africana são claramente resultado do capitalismo, que não é um fenômeno nacional, e sim um fenômeno internacional. Então, o capitalismo também está em crise e o neoliberalismo apresenta hoje em dia traços de uma profunda crise como modelo de legitimação. É impossível conviver com fenômenos como a Somália, é impossível conviver com a Baixada Fluminense, onde a situação ainda não é tão grave quanto a situação da Somália. O neo- liberalismo começa, portanto, a apresentar sintomas de que a sua hegemonia não será longa. Mesmo no Brasil, onde em alguns momentos a política do Collor chegou a demostrar que duraria, acho que, também no Brasil, ele começa a revelar os seus limites.
Às vezes, nos preocupamos um pouco com a bizarrice do presidente Itamar Franco. Mas, o fato real é que o Itamar tem posto o dedo em alguns problemas importantes, demonstrando claramente que esse negócio de que modernidade é ir para o Primeiro Mundo, não é nada; modernidade é resolver as condições de miséria do povo brasileiro, sem o que não tem modernidade nesse país. Modernidade é importar o BMW? Claro que não. Lembro-me, fui do PCB muitos anos, que todo documento do PCB sempre começava pela parte internacional e tinha uma frase inicial assim: "O socialismo avança no mundo." Podia estar acontecendo coisas trágicas para o socialismo, como o conflito sino-soviético, a intervenção na Tcheco-Eslováquia, mas o socialismo estava sempre avançando.
Então, sem cair nesse baluartismo de achar que o socialismo está sempre avançando no mundo de hoje, acho que há razões pelo menos para um otimismo moderado.
O reino do neoliberalismo começa a revelar cisões, fraturas, começa a demonstrar que como o Reich dos mil anos do Hitler não vai demorar tanto assim, e formas de inquietação começam a se manifestar na Europa e em outros países do mundo, indicando uma possibilidade de uma retomada da esquerda.
O que será essa nova esquerda? Não sabemos ainda. Certamente ela não será uma esquerda apenas proletária. E continuo achando que a classe fabril tem uma centralidade na luta pelas transformações sociais, socialistas, mas certamente não é mais o único sujeito dessas transformações. Temos que conceber uma esquerda que se abra para demandas que provêm de inúmeros outros segmentos da sociedade e demandas que, implicando o aprofundamento da cidadania, certamente têm uma lógica própria que se chocará com a lógica do capital. Estou plenamente convencido de que a expansão da cidadania é incompatível com a permanência do capitalismo. Se fosse compatível, acho que deveríamos abandonar o socialismo.
Se pudermos conseguir todos os direitos sociais e políticos que nos propomos hoje, e que a humanidade certamente vai propor daqui para frente, (e os direitos não acabam hoje, outros direitos vão surgir), e ainda, se todo esse volume de direitos for compatível com o capitalismo, com a lógica do capital, então certamente o socialismo não tem futuro. Acho que não, pois o socialismo é justamente a possibilidade de realizar plenamente essas demandas sociais, e pelo menos durante um certo tempo na história dar também segmento às novas demandas emergentes que certamente se colocarão às gerações futuras. Também o socialismo não é eterno, e nós não sabemos o que vem depois, mas certamente ele é, e insisto nisso, hoje é preciso insistir enfaticamente, uma ordem social capaz de responder às contradições e demandas do mundo contemporâneo. Nesse sentido, acho que a necessidade do socialismo brota das próprias contradições do capitalismo. E isso nos dá razões de esperança e de um otimismo pelo menos moderado.
Sugestões de Leituras:
Marxismo, guerras e revoluções — Issac Deutscher. Ática, 1991. SP.
A vingança da História: o marxismo e as revoluções do leste — Alex Callinicos. Jorge Zahar Ed. 1992. RJ
A crise da crise do marxismo: Introdução a um debate contemporâneo — Perry Anderson. Brasiliense, 1983. SP.
Depois da queda: o fracasso do comunismo e o futuro do socialismo — Robin Blackburn (org.). Paz e Terra, 1992. RJ.
Inclusão | 10/09/2014 |