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16. Depois da Revolução de Outubro surgiram graves divergências nas altas esferas do Partido sobre a atitude a adoptar em relação aos outros partidos «socialistas» (Governo bolchevique homogéneo ou coligação com os mencheviques e os socialistas revolucionários?) De 11 a 14 de Novembro, Lenine discursou sobre este assunto na sessão do Comitê de Petrogrado do Partido. As actas do Comitê Central de 1917 foram publicadas por ocasião do décimo aniversário da Revolução de Outubro. Nesta edição figurava, em primeiro lugar, a acta da sessão de 11 a 14 de Novembro de 1917. Esta acta foi mencionada na primeira composição do sumário, mas, devido a ordens vindas da direcção, foi retirada e ocultada ao Partido. As razoes disso não são difíceis de compreender. Sobre a questão da coligação com os outros partidos «socialistas», Lenine pronunciara-se na sessão da seguinte forma:
«Nem sequer podo falar seriamente em relação à coligação. Trotski disse há já bastante tempo que a coligação era impossível. Trotski compreendeu-o e, desde então, não houve melhor bolchevique que ele».
O seu discurso terminou com a palavra de ordem:
«Por um Governo Bolchevique homogéneo sem nenhum compromisso!»
Diz-se que a ordem de retirar a acta, proveio do Instituto Histórico do Partido, sob o pretexto que «indubitavelmente» o discurso de Lenine não fora transcrito exactamente. É verdade: o discurso de Lenine, de nenhuma das maneiras está de acordo com a história da Revolução de Outubro que hoje se escreve.
17. Convém assinalar que a referida acta da sessão do Comitê de Petrogrado do Partido, é uma prova da forma como Lenine se comportava em relação às questões de disciplina, sobretudo nos casos onde se tentava utilizar a disciplina para dissimular uma linha claramente oportunista. A propósito do relatório do camarada Feinikchtein, Lenine declarou:
«Se a cisão se verifica, tanto pior. Se tendes a maioria, tomai o poder no Comitê Central Executivo e trabalhai. Nós recorreremos aos marinheiros».
Precisamente é por esta atitude ousada, radical e intransigente de apresentar a questão, que Lenine salvou ao Partido da cisão.
Uma disciplina de ferro, mas sobre a base revolucionária. Em 4 de Abril, na Conferência do Partido (da qual Estaline oculta as actas) Lenine dizia:
«Os nossos próprios bolcheviques confiam no Governo. Tal só pode explicar-se pola euforia da Revolução. Isso é a morte do socialismo. Tendes confiança no Governo, camaradas? Se for assim, não podemos seguir o mesmo caminho.»
E mais adiante:
«Entendo que existe na Rússia uma tendência em favor da união, a união com os «partidários da guerra até ao fim». Isso é uma traição ao socialismo. Penso que vale mais ficar só, como Liebknecht: um contra cento e dez.»
18. Porque apresentou Lenine de maneira tão brutal a questão de um contra centro e dez? Porque na Conferência de Março de 1917 as tendências semi-conciliatórias, se revelavam muito fortes. Nesta Conferência, Estaline apoiava a moção do Soviete de Krasnoianks, que dizia:
«É necessário apoiar a acção do Governo provisório na medida em que dê satisfação às reivindicações da classe obreira e dos campesinos revolucionários na presente revolução».
Melhor ainda: Estaline era partidário da união com Tsereteli. Eis um extracto exacto da acta:
«Ordem do dia: proposta de união com Tsereteli.
Estaline: devemos aceitar. Devemos definir as nossas propostas para a união. A união é possível na base de Zimmerwald-Kienthal.»
Às objecções de vários membros da Conferência, observando que a união seria demasiado desatinada, Estaline respondeu:
«Não devemos antecipar nem profetizar os desacordos. O Partido não vive sem desacordos. Os pequenos desacordos podem ser liquidados no interior do Partido».
Estaline considerava que as divergências com Tsereteli eram «pequenos desacordos». Em relação aos adeptos de Tsereteli, Estaline era partidário duma ampla democracia: «O Partido não vive sem desacordos.»
19. E agora permitam-me que vos pergunte, camaradas directores do Instituto Histórico do Partido, porque não foram publicadas até hoje as actas da Conferência do Partido de Março de 1917? Enviais questionários com inumeráveis perguntas em apertadas colunas. Reunis os mais ínfimos pormenores, alguns dos quais sem qualquer interesse. Porquê ocultais, pois, as actas da Conferência de Março, que para a história do Partido são de capital importância? Essas actas mostram-nos as disposições dos elementos dirigentes do Partido nas vésperas do regresso de Lenine à Rússia. Perguntei várias vezes ao Secretariado do Comitê Central e ao Buró da Comissão Central de Controle, porque razão a Secção Histórica oculta ao Partido esse documento duma importância principal. Vós conheceis esse documento e o mantéis retido. E não se publica porque compromete cruelmente a conduta política de Estaline nos fins de Março e começos de Abril, isto é, durante o período em que Estaline se esforçava por elaborar «por ele próprio» uma linha política.
20. No mesmo discurso na Conferência de 4 de Abril, Lenine declarou:
«O Pravda reclama do Governo que renuncie às anesões. Isso é uma imbecilidade, uma burla desordeira de...»
A acta não foi completada. Não encerra poucas lacunas, mas a idéia geral e o significado do discurso são absolutamente claros. Estaline era um dos redactores do «Pravda», onde escrevia artigos semi-patrióticos e apoiava o Governo provisório, na medida em que o julgava necessário. Embora com certas reservas, Estaline acolhia favoravelmente o Manifesto de Kerenski—Tsereteli a todos os povos, documento social-patriota mentiroso, que mais não provocou do que a indignação de Lenine.
Eis a razão camaradas do Instituto Histórico do Partido, pola qual não publicais as actas da Conferência de Março de 1917 e as ocultais ao Partido.
21. Anteriormente citei o discurso que Lenine pronunciou na sessão do Comitê de Petrogrado do Partido de 11 a 14 de Novembro. Onde foi publicada a acta? Em parte nenhuma. Porquê? Porque o proibistes vós. Recentemente foi editada uma compilação das actas do primeiro Comitê legal de Petrogrado em 1917. Convém dizer que essa compilação incluía a acta da sessão de 11 a 14 de Novembro, como consta do sumário já composto. Mas, depois, a acta foi suprimida por ordem do Instituto Histórico sob o pretexto de que, «visivelmente», o discurso de Lenine fora deformado durante a transcrição polo secretário. Em que consiste esta «visível» deformação? Em que esse discurso de Lenine era uma impiedosa refutação das falsas asserções da actual escola histórica de Estaline-Iarovlavski a respeito de Trotski. Todos os que conheceram o estilo oratório de Lenine reconhecerão sem vacilar a autenticidade das frases transcritas. Sob as palavras de Lenine a propósito do acordo, e por detrás da sua ameaça: «nós recorreremos aos marinheiros», sente-se o Lenine vivo de então. Ocultaste-lo ao Partido. Porquê? Por causa da opinião de Lenine sobre Trotski, e mais nada.
Ocultais as actas da Conferência de Março de 1917 porque comprometem Estaline. Ocultais as actas da sessão do Comitê de Petrogrado, unicamente porque embaraçam o trabalho de falsificação guiado contra Trotski.
22. Permiti-me, evocar, de passagem, um episódio relativo ao camarada Rikov. A reimpressão, nas compilações do Instituto Lenine, dum artigo de Lenine que contém algumas linhas desagradáveis sobre Rikov, surpreendeu muitos camaradas. Eis o que é dito num parágrafo desse artigo:
«A Rabotchaia Gazeta, órgão dos mencheviques-internacionalistas, tenta incomodar-nos, recordando que em 1911 a polícia prendeu o bolchevique-conciliador Rikov para «deixar a liberdade» de movimento aos bolcheviques do nosso Partido «nas vésperas das eleições para a IV Duma.» (A Rabotchaia Gazeta sublinha-o de modo particular)
Assim, Lenine coloca o Rikov de 1911 entre os bolcheviques sem partido. Como foi possível que estas linhas tenham sido publicadas? Não é verdade que actualmente apenas se extraem dos escritos de Lenine as passagens mais severas a respeito dos oposicionistas? Quanto aos representantes da maioria actual, só se autoriza a seu respeito a publicação dos elogios (se os há). Como foi possível, pois, que tenham aparecido na imprensa as frases acima transcritas? Todos explicam este facto da mesma maneira: Julgam os historiadores estalinistas que é necessária uma completa objectividade (desde já!) a respeito de Rikov.
23. Iaroslavski dedica ao autor destas linhas nove décimos das suas calúnias e falsificações. Faz-se difícil imaginar mentiras tão desajeitadas, tão confusas e tão peçonhentas ao mesmo tempo. Seria errado pensar, todavia, que Iaroslavski sempre foi assim. Mesmo escreveu de maneira totalmente diferente. Com o mesmo estilo pesado e insípido, mas num sentido diametralmente oposto. Por volta da Primavera de 1923, Iaroslavski dedicou um artigo aos começos da actividade política e literária do autor destas linhas. O artigo é um veemente panegírico duma leitura insuportável. Só a contragosto pode-se citá-lo, mas que remédio queda, temos que nos resignar a isso. Como inquiridor, Iaroslavski confronta com volúpia, os comunistas culpados de fazer circular o «testamento» de Lenine, as cartas de Lenine sobre a questão nacional e outros documentos suspeitos, nos quais Lenine teve a audácia de criticar Estaline. Confrontemos, logo, Iaroslavski consigo mesmo:
«A brilhante actividade literária e jornalística do camarada Trotski — escrevia Iaroslavski em 1923 — valeu-lhe o epíteto de «rei dos panfletários». Assim o chama o escritor inglês Bernard Shaw. Os que acompanharam a sua actividade durante um quarto de século, puderam convencer-se que o seu talento de panfletário e polemista se desenvolveu, elevou e expandiu durante os anos da nossa Revolução proletária. Mas desde o começo desta actividade era claro que nos encontrávamos em presença dum grande talento. Todos os seus artigos jornalísticos transbordavam de inspiração. Todos se distinguiam polo sentido do pitoresco, pola sua eloqüência. E, contudo, nessa época era-se obrigado a escrever sob a pressão da censura czarista, que truncava o pensamento e o estilo ousado de todos aqueles que tentavam elevar-se por cima da vulgaridade. Mas as forças subterrâneas em gestação eram tão grandes, tão forte o pulsar do coração do povo prestes a despertar, tão violentos os antagonismos que surgiam, que nem um só censor era quem de sufocar o espírito criador que emanava de personalidades tão brilhantes como então era a de L. D. TROTSKI.
Provavelmente, muitos tiveram a oportunidade de ver uma fotografia, bastante difundida, de Trotski na sua juventude, quando da sua primeira deportação para a Sibéria: fogosa cabeleira, lábios característicos, alta fronte, sob a qual refervia já uma torrente impetuosa de imagens, de idéias e de estados de espírito que por vezes, obrigavam o grande camarada Trotski, quer a escolher vereas um tanto afastadas do grande caminho histórico quer, polo contrário, a enveredar ousadamente por becos sem saída. Mas, em todos estes esforços, tínhamos perante nós um homem profundamente devotado à Revolução, feito para desempenhar um papel de tribuno, cuja palavra incisiva, flexível como o aceiro, fazia em anacos os adversários e de cuja pena brotavam às mãos cheias (?) obras-primas dum pensamento exuberante»
(sublinhado de Trotski)
E mais adiante:
«Os artigos que possuímos compreendem um período de mais de dous anos, que vai de 15 de Outubro de 1900 a 12 de Novembro de 1902. Os camaradas da Sibéria liam apaixonadamente estes brilhantes artigos e aguardavam impacientemente a sua publicação. Poucos sabiam quem era o autor e os que conheciam Trotski estavam então longe de pensar que ele seria um dos chefes reconhecidos do Exército Revolucionário e da maior Revolução que o mundo conheceu».
(sublinhado de Trotski)
E terminando:
«O camarada Trotski proclamou, mais tarde, o seu protesto contra o pessimismo da classe intelectual (hum!) russa. Proclamou-o, não por palavras, mas por actos, ombro a ombro com o proletariado revolucionário da grande Revolução proletária. Para isso precisou de muitas energias. A campina siberiana não lhas tinha destruído; apenas conseguiu convencê-lo ainda mais da necessidade de fazer tábua rasa de todo esse regime sob o qual eram possíveis os factos que ele mesmo descrevia» («Sibirskie Ogni», n.º 1-2, Janeiro-Abril de 1923)»
Se Iaroslavski fez uma cambalhota de 180º no decurso de apreciações ulteriores, devemos reconhecer apesar de tudo que, de certo modo, permaneceu inteiramente igual a si mesmo: tão insuportável nos elogios como nas calúnias.
24. Sabe-se que Olminski não ocupa o último lugar dentre os encomendados de «desmascarar» e «difamar» o «trotskismo». Particularmente se insurgiu contra o meu livro sobre a Revolução de 1905, publicado primeiramente em alemão. Todavia, também Olminski teve duas opiniões a este respeito: uma em vida de Lenine, a outra no tempo de Estaline.
Em Outubro de 1921 alguém levantou a questão da publicação do meu livro «1905» polo Instituto Histórico do Partido. Olminski escreveu-me, sobre este assunto, a seguinte carta:
«Caro Leão Davidovitch:
O Instituto Histórico publicará, naturalmente de bom grado, o seu livro em russo. Mas o problema consiste em saber quem fará a tradução. Não se pode confiar a qualquer a tradução dum livro de Trotski! Toda a beleza e particularidades de estilo se perderiam. Talvez pudesse desviar uma hora por dia dos seus outros importantíssimos quefazeres de Estado, para se dedicar a esse trabalho que também é muito importante. Poderia talvez ditá-lo a uma dactilógrafa?
Outra pergunta: Porque não prepara você uma edição completa das suas obras literárias? Poderia encarregar desse trabalho alguém que o faga sob a sua direcção. Já seria tempo! De outro modo, a nova geração, que não conhece avondo a história do Partido, que desconhece velhas e novas publicações dos seus chefes, expor-se-ia a desviar-se sempre da linha. Devolvo-lhe o livro, esperando voltar a recebê-lo com o texto em russo.
Seu
M. Olminski
17.10.1921»
Assim se expressava Olminski nos finais de 1921, isto é, depois das diferenças sobre a paz de Brest-Litovsk e sobre os Sindicatos, disparidades às quais os Olminski e companhia tentaram, mais tarde, atribuir uma importância exagerada. Nos finais de 1921, Olminski pensava que a edição do livro «1905» constituía «um importante trabalho de Estado». Olminski foi o instigador da publicação das minhas obras, que julgava necessárias à educação dos membros do Partido. No Outono de 1921, Olminski já não era membro das Juventudes... Conhecia o passado. Conhecia melhor do que ninguém as minhas discrepâncias com os bolcheviques. Ele próprio abriu polémicas contra mim nos passados anos. E ainda nada disso o impedia de insistir, no Outono de 1921, a respeito da publicação das minhas obras completas, no interesse da nova geração. Não seria Olminski «trotskista» em 1921?
25. O camarada Lunatcharski também é um dos detractores da oposição. Acusa-nos, como os outros, de pessimismo e cepticismo. Este papel assenta-lhe maravilhosamente. Por sua vez, Lunatcharski age não só por opor o «trotskismo» ao leninismo, mas também para difundir — dissimuladamente — todo o género de insinuações de ordem pessoal.
Como alguns outros, Lunatcharski é quem de escrever sobre uma única questão tanto num sentido como noutro. Em 1923, publicou um folheto intitulado «Silhuetas Revolucionárias». Este folheto contém um capítulo que me é dedicado. Não o citarei completo devido ao exagero desmedido dos elogios. Mencionarei apenas duas passagens em que Lunatcharski fala da minha atitude para com Lenine:
«Trotski tem um carácter mordaz e imperioso. Apenas em relação a Lenine, depois da fusão, manifestou constantemente, uma comovedora e delicada condescendência e com a modéstia própria dos autênticos grandes homens, reconhece-lhe prioridade».
(pg. 25)
E, algumhas páginas adiante, escrevia:
«Quando Lenine recebeu a ferida que nos parecia mortal, ninguém melhor do que Trotski expressou os sentimentos que nos possuíam. No meio da terrível tempestade dos acontecimentos mundiais, Trotski, esse outro chefe da Revolução russa, apesar de pouco inclinado ao sentimentalismo, declarou: «Quando se diz que Lenine pode morrer, as nossas vidas parecem inúteis e até deixamos de ter desejo de existir».
(pg. 13)
Que pensar destes homens, que tão depressa podem escrever uma cousa como outra, segundo o trabalho que se lhes confia?
26. Os casos que acabo de demonstrar, por exemplos tirados de 1917, poder-se-ia achar o rasto nos anos ulteriores. Não quero dizer com isto que não tenham existido divergências entre Lenine e mim. Houve-as. Os desacordos, a respeito da paz de Brest-Litovsk prolongaram-se por várias semanas, e durante alguns dias revestiram-se dum carácter até violento.
Tentar apresentar as divergências como se fosse uma conseqüência da minha «subestimação dos campesinos» é ridículo e, no melhor dos casos, uma tentativa de me adjudicar a plataforma de Bukharine, com o qual nada tinha em comum. Não pensei um único instante, durante os anos 1917-1918, na possibilidade de incilar as massas camponesas na guerra revolucionária. Quanto à apreciação do estado de espírito das massas lavradoras e operárias depois da guerra imperialista, concordava com Lenine. Se insisti para que se retardasse o mais possível o momento de capitulação ante os Hohenzollern, não era com o fim de suscitar a guerra revolucionária, mas para demonstrar às massas obreiras alemãs, e européias em geral, que não existiam convenções secretas entre nós e os Hohenzollern, e, também, para estimular os trabalhadores da Alemanha e da Áustria a intensificar a sua actividade revolucionária. A decisão de declarar terminado o estado de guerra sem assinar a paz obedecia ao desejo de verificar se os Hohenzollern eram capazes ainda de continuar a guerra contra a revolução. Esta decisão tinha sido adoptada pola maioria do nosso Comitê Central e pola maioria da nossa fração no Comitê Central Executivo pan-russo. Lenine considerava esta decisão como o menor dos males, no momento em que uma parte considerável dos dirigentes do Partido preconizava a «guerra revolucionária» bukharinista, ignorando não só a postura dos campesinos, mas também a das massas operárias. Com a assinatura do tratado de paz esta divergência episódica com Lenine desfaz-se e o trabalho continuou no mais cabal acordo. Mas Bukharine ampliou as suas diferenças com Lenine sobre Brest-Litovsk, no quadro duma táctica concreta de «comunismo de esquerda», com o qual não tinha eu nada em comum.
Muitas pessoas inteligentes se surpreendem, à menor oportunidade, com a palavra de ordem: «nem paz nem guerra!» Surge-lhes como uma contradição em si, quando, entre as classes sociais, como entre os Estados, não é raro verificar-se uma relação «nem paz nem guerra». Basta recordar que poucos meses depois de Brest-Litovsk, quando a situação revolucionária na Alemanha se definiu, nós declaramos caduca a paz de Brest-Litovsk sem por isso declarar a guerra à Alemanha. Durante os primeiros anos da Revolução permanecíamos, frente aos Aliados, numa situação «nem paz nem guerra». As mesmas relações existem actualmente entre nós e a Inglaterra. No começo das negociações de Brest-Litovsk, todo o problema estava em saber se a situação revolucionária tinha já amadurecido avondo na Alemanha no princípio de 1918, para que, sem continuar a guerra, (não tínhamos armas), não tivéssemos necessidade de assinar a paz.
A experiência demonstrou que Lenine tinha razão: tal situação não existia.
A partir de 1923, os falsificadores deformaram completamente o conteúdo desde diferendo. Todos os castelos de cartas levantados sobre a minha política de Brest-Litovsk foram discutidos e refutados, na base de documentos incontestáveis, no volume XVII das minhas Obras.
Nas minhas relações pessoais com Lenine, essas divergências não deixaram o menor rasto de amargura. Poucos dias depois da assinatura da paz, fui encarregado, por proposta de Lenine, da defecção do trabalho militar.
27. A luita em torno da questão sindical foi mais viva e mais longa. Martinov, o novo teórico de Estaline, esse náufrago que as vagas da NEP trouxeram às nossas praias, apresentou os desacordos sobre a questão sindical como divergências relacionadas com o caso da NEP. Em 1923, Martinov a este respeito escrevia:
«Em 1905, L. Trotski raciocinava com mais lógica e mais coerência que os bolcheviques e os mencheviques. Mas o defeito dos seus raciocínios consistia em que Trotski era «demasiado conseqüente». O quadro esboçado por ele antecipava uma encantadora e muito precisa idéia da ditadura bolchevique dos três primeiros anos da Revolução de Outubro, que, como se sabe, acabou num beco sem saída, depois de ter separado o proletariado do campesinato, o que teve por resultado obrigar o Partido Bolchevique a recuar consideravelmente».
(Krasnaia Nov., n.º 2, 1933, pg. 262)
O «trotskismo» predominou até a introdução da NEP. O bolchevismo só começou a partir da NEP. É de notar que Martinov raciocinou da mesma maneira a respeito da Revolução de 1905. Segundo ele, em Outubro, Novembro e Dezembro de 1905, isto é, no ponto culminante da Revolução, predominava o «trotskismo». A política verdadeiramente Marxista só começou depois do esmagamento da insurreição de Moscovo, digamos mesmo, quando das eleições da primeira Duma imperial. Martinov opõe hoje o bolchevismo ao «trotskismo» em virtude desta mesma idéia que o fazia opor, há vinte anos, o menchevismo ao «trotskismo». E os seus escritos passam por ser Marxistas e alimentam os jovens «teóricos» do Partido!
28. No seu «testamento», Lenine não alude à discussão sindical para apresentar como um desacordo provocado pola minha famosa «subestimação dos lavradores». Lenine refere-se-lhe como a uma divergência suscitada polo Comissariado do Povo para os Transportes, censurando-me, não pola minha pretensa «subestimação dos lavradores», mas por me prender demasiado com o lado «puramente administrativo» da questão. Creio que estas palavras atingem o ponto essencial da diversidade de opiniões de então.
O comunismo de guerra esgotara-se. A agricultura, e todo o resto da economia, estavam num beco sem saída. A indústria tinha-se desordenado. Os Sindicatos convertiam-se em organizações de agitação e de mobilização, perdendo toda a sua independência. A crise dos Sindicatos não foi uma «crise de crescimento», foi uma crise de todo o sistema do comunismo de guerra. Fora da NEP, não se via solução possível. A minha proposta de integrar o aparelho sindical no sistema de administração económica (excessiva preocupação com o lado «puramente administrativo» do problema) não era uma solução em si mesma. Mas a resolução dos «Dez»(3*) sobre os sindicatos também não era, porque nas condições existentes (a agricultura num beco sem saída), as organizações sindicais, representando os interesses materiais e culturais da classe obreira e, paralelamente, escola do comunismo, sentiam o terreno fugir-lhes debaixo dos pés.
Sob o golpe da insurreição de Kronstadt cristalizava-se uma nova orientação económica do Partido, abrindo assim aos Sindicatos uma perspectiva completamente nova. Mas é de notar que o Partido, no seu X Congresso, aprovou por unanimidade as primeiras bases da NEP. A resolução sobre os Sindicatos, infelizmente, não foi posta de acordo com estas bases, conservando assim as suas contradições internas. Viu-se isso alguns meses mais tarde. A resolução sobre os Sindicatos, votada polo X Congresso, foi transformada profundamente ainda antes do XI Congresso. A nova resolução, redigida por Lenine e adaptando o trabalho sindical às condições da NEP, foi adoptada por unanimidade.
Considerar a discussão sindical separadamente do problema de conjunto da nossa política económica, significa ainda hoje, sete anos passados, que não se compreendeu o sentido da discussão. A censura que me é feita de «subestimar o campesinato» mana desta incompreensão. Precisamente foi no decurso desta discussão sindical que lancei a palavra de ordem: «indústria, face à aldeia». Os falsários tentam apresentar agora as cousas como se eu tivesse sido contra a NEP. Todavia, os factos e uma enfiada de documentos incontestáveis provam que já, por ocasião do X Congresso, erguera mais duma vez a palavra da necessidade da passagem ao imposto em espécie e, dentro de certos límites, à forma mercantil da distribuição (comércio livre). Só a rejeição destas propostas me obrigou — visto a ruína progressiva da economia — a procurar outra solução, em sentido inverso, isto é, a solução «puramente administrativa» através da mais sólida integração dos Sindicatos — somente como aparelho — na administração económica do comunismo de guerra. Não só não me opus à transição da NEP, mas polo contrário, esta confirmava as minhas próprias experiências na esfera da economia e da administração. Eis o verdadeiro conteúdo da discussão sindical.
Infelizmente, o volume das minhas Obras dedicadas a este período não foi dado ao prelo polas Edições do Estado.
29. Se se acreditar nos historiadores e teóricos actuais do Partido, poder-se-ia supor que os seis primeiros anos da Revolução foram preenchidos plenamente polos desacordos a respeito da Brest-Litovsk e dos Sindicatos. Tudo o mais não existiria: nem a preparação da Revolução de Outubro, nem a própria Revolução, nem a edificação do Estado, nem a organização do Exército Vermelho, nem a guerra civil, nem os quatro Congressos da Internacional Comunista, nem o trabalho em geral de propaganda do comunismo, nem o trabalho para pôr no devido tom a direcção dos partidos comunistas estrangeiros e do nosso próprio Partido. De todo este trabalho, de todos os seus aspectos essenciais em que estive ligado a Lenine por uma solidaridade absoluta não restam, segundo os historiadores actuais, que duas fases: Brest-Litovsk e os Sindicatos.
30. Estaline e os seus auxiliares desenvolveram esforços muito insanos no sentido de apresentar a discussão sindical como uma luita «encarniçada» levada por mim contra Lenine.
Eis o que eu dizia no jogo desta discussão à fracção do Congresso dos mineiros de 26 de Janeiro de 1921:
«O camarada Chliapnikov — cujo pensamento expressarei, talvez, um pouco sumariamente — declarou aqui «Não creiam nesse desacordo entre Trotski e Lenine; apesar de tudo o acordo será refeito e a luita será dirigida somente contra nós». Não creiam, disse ele. Eu não sei em quem é preciso acreditar ou não acreditar. É evidente que nos poremos de acordo. Pode-se discutir ao examinar certas questões muito importantes, mas esta discussão orienta as nossas idéias no sentido da união».
(Extrato do discurso de enceramento, por Trotski, do II Congresso pan-russo dos mineiros, em 26 de Janeiro de 1921)
Eis outra passagem do meu discurso, citado por Lenine no seu folheto:
«No auge da minha polémica com o camarada Tomski disse sempre que era muito claro para mim, que só os homens tendo a experiência e autoridade de Tomski podem ser os nossos dirigentes nos Sindicatos. Disse-o à fracção da Conferência dos Sindicatos, e repeti-o estes últimos dias no Teatro Zimine. A luita ideológica no Partido não tem como objectivo ver uns e outros marcarem pontos, mas exercer uma acção de uns sobre os outros.»
(p. 34 da acta da discussão de 30 de Dezembro. Lenine, Obras, XVIII vol., primeira parte, p. 71)
Eis agora o que Lenine disse sobre esta mesma questão no seu discurso de encerramento do X Congresso do Partido, no qual fixo o balanço da discussão sindical:
«A oposição obreira dizia: Lenine e Trotski pôr-se-ão de acordo. Depois, Trotski tomou a palavra e disse: «Todo aquele que não compreenda a necessidade de nos unirmos, vai contra o Partido; é evidente que nos uniremos, porque somos homens do Partido». Eu apoiei-o. Decerto, às vezes estivemos em desacordo com Trotski. Mas quando, no Comitê Central, se formar um grupo mais ou menos homogéneo, o Partido decide, e decide de modo que nos unimos de acordo com a vontade e as directrizes do Partido. Foi com esta declaração que fomos ao Congresso dos mineiros e vinhemos aqui o camarada Trotski e nós.» (Ou seja, ao Congresso do Partido)
(Lenine, Obras, XVIII vol., primeira parte, p. 132)
Se parece isto acaso com as peçonhentas e grosseiras versões que hoje se encontram sobre a história da discussão sindical em manuais políticos de ignorantes de toda a espécie?
Mas o mais cómico é ver a imprudente maneira como o camarada Bukharine explora a discussão sindical para combater o «trotskismo». Eis como Lenine julgava a sua atitude nesta discussão:
«Até aqui Trotski foi o principal na luita. Mas agora Bukharine «ultrapassou-o» muito e «eclipsou-o» completamente. Deu à luita uma solução completamente nova caindo num erro cem vezes maior que todos os erros de Trotski juntos.
Como é possível que Bukharine tenha rompido, de tal maneira, com o comunismo? É de todos conhecida a sensibilidade do camarada Bukharine e é uma das qualidades que nos leva a gostar dele e que nos impede de deixar de gostar. Sabemos que, por graça, muitas vezes o têm chamado «cera mol». Ora acontece que, sobre essa «cera mol», o primeiro demagogo que apareça, o primeiro indivíduo «sem princípios», pode imprimir seja o que for. Esta expressão rude, que figura entre aspas, foi usada polo camarada Kamenev, e tinha direito a usá-la, na discussão de 17 de Janeiro. Mas é evidente que, nem o camarada Kamenev, nem a qualquer outro, ocorreria a idéia de explicar o que aconteceu, por meio da demagogia sem princípios, e de tudo levar à conta desta».
(Lenine, Obras, XVIII vol., primeira parte, p. 35)
continua>>>
Notas:
(3*) Os «dez» eram: Lenine, Kamenev, Zinoviev, Estaline, Tomski, Losovski, Rudzutak, Kalinine, Sergiev e Petrovski. (retornar ao texto)
Inclusão | 25/10/2007 |
Última alteração | 05/12/2010 |