A Alternativa Italiana do PCI


Da Herança de Togliatti à Presença de Berlinguer


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Ao marxismo pode-se chegar por diversas vias. Nós chegamos pela via seguida por Karl Marx, isto é, partindo da filosofia idealista alemã, de Hegel. Aguardamos que nos demonstrem que esta origem é menos legítima que uma outra proveniente de outros pontos de partida: das ciências matemáticas, por exemplo, ou do naturalismo, ou da filosofia positiva, ou do humanitarismo, ou da literatura, ou (porque não?) de uma fé religiosa. Por nossa parte, a via que seguimos é, em relação às outras, a via mestra e traz todas as vantagens de assim o ser.
Togliatti
La Nostra Ideologia, in L’Unità, 23.9.1925.

O leitor poderá estranhar que comecemos um livro sobre o PCI com um documento de 1944, e com a figura de Palmiro Togliatti e não com um texto de Antonio Gramsci. As razões para tal explicam-se, primeiro, porque a política do PCI actual tem uma certa continuidade desde o pós-guerra. Ainda no tempo do fascismo, defendia-se a ditadura do proletariado como a forma de superação da ditadura italiana de então. Há depoimentos, hoje, que atestam ter Gramsci discordado desta posição. Mas estava isolado, na prisão.

Em segundo lugar, a questão de Gramsci e Togliatti. Para nós, não resta dúvida que Gramsci foi também instrumentalizado por Togliatti para referendar as posições políticas adoptadas em todo este período pelo PCI. Dentro do quadro estalinista da época, Gramsci foi transformado num mero seguidor de Lenine, um Lenine, aliás, que já tinha sido «purificado» pelo marxismo-leninismo de Estaline. Mutatis mutandis, Togliatti está para Gramsci como Engels está para Marx, sem com isto estarmos a desmerecer Engels ou Togliatti. Mas pensamos que estes dois estavam longe das elaborações geniais dos seus respectivos amigos.

Ainda uma breve observação, que lamentamos não podermos aqui desenvolver: querendo fazer de Gramsci um leninista, à medida que os leitores italianos liam Lenine (mas também Gramsci), aconteceu que se formou uma «leitura gramsciana» de Lenine em Itália. Os condicionamentos da realidade italiana e a força do pensamento de Gramsci inverteram os termos da operação que Togliatti quis levar a cabo...

Os artigos de Togliatti correspondem a três decénios diversos. O primeiro, apresenta o espírito do partido de tipo novo que Togliatti lançou em Salerno, quando do seu retomo em, Itália, com o Norte ainda ocupado. Mas o discurso aqui apresentado fez-se no Norte, imediatamente depois da rendição nazi. O segundo texto apresenta reflexões sobre a questão do estalinismo que o XX Congresso do PCUS levantou. O terceiro foi publicado postumamente, apesar da oposição soviética na época. Eram notas para a futura reunião da direcção do seu partido em que não chegou a participar...

Os textos de Berlinguer são de grande actualidade e esclarecem sobremaneira as posições actuais do PCI

Togliatti: Um Partido de Tipo Novo
(1945)


Discurso de Palmiro Togliatti aos quadros operários de Sesto San Giovanni libertada, em 20-5-1945. Publicado em Rinascita, n.º 34, 29-8-1969.

Camaradas. As condições em que hoje trabalhamos são profundamente diferentes daquelas em que se trabalhava no passado. Vejo entre vós muitos camaradas com os cabelos brancos que decerto se recordam do trabalho de há vinte anos, quando, após o Congresso de Livorno, criámos as secções comunistas. Criámos e demos vida ao Partido Comunista após Livorno porque sabíamos que se se pretendia o bem da classe operária era necessário criar, na Itália, um partido fiel aos interesses e às aspirações da classe operária. Dedicámo-nos a essa missão com todas as nossas energias e sentimos orgulho em dizer que conseguimos fazer do Partido Comunista um grande partido que agora lança as suas raízes na realidade da vida italiana, nas fábricas, nas oficinas, nos campos, um partido para o qual olha a parte melhor do povo italiano na esperança de nele encontrar um guia. Cada um dos militantes do Partido Comunista deve sentir a responsabilidade que lhe advém do facto de ser militante deste partido. Deve sentir que as situações favoráveis ou desfavoráveis, as grandes questões que se põem para reconstruir o nosso país, dependem em grande parte daquilo que formos capazes de fazer no meio das massas. Lembrem-se de quando se pôs o problema da insurreição nacional, quando se tratou de organizar as greves, ainda sob o fascismo, quanta resistência foi preciso vencer. Àqueles que não compreendiam, falámos, explicámos; por meio deste trabalho desfizemos toda a resistência, mesmo a dos outros partidos. Porque somos a vanguarda das massas operárias conseguimos desencadear as greves de Março de 43, de 44, armámos os trabalhadores e fizemos a insurreição nacional.

Ai de nós se hoje, em que alcançamos esta primeira grande vitória, adormecêssemos à sombra dos louros conquistados. Hoje temos de compreender bem quais são as condições do nosso trabalho e lutar e combater dia a dia para oferecer à classe operária, ao povo italiano, a toda a Itália, a solução destes graves problemas.

Éramos um pequeno partido, um partido de propagandistas e agitadores que andavam nas fábricas e sabiam falar mais ou menos aos operários. Hoje já não podemos ser apenas isto. Devemos ser algo de muito diferente; devemos ser um grande partido que, através do trabalho dos quadros dirigentes, dos operários e dos camponeses se esforce dia a dia para resolver todos os problemas que surgem nas fábricas, nas cidades, nos campos e resolvê-los no interesse das massas trabalhadoras.

Devemos guiar as massas trabalhadoras na resolução destes problemas. Compreendeis muito bem que deve dar-se uma grande transformação no nosso partido, na sua organização, na formação dos seus quadros, no modo de trabalhar da sua direcção e dos seus dirigentes. Já não podemos ser um partido de poucos mas bons, devemos acolher nas nossas fileiras todos os elementos que aceitarem o nosso programa para resolver todos os problemas das massas operárias e trabalhadoras. Por isso devemos ter nas nossas fileiras todos os operários que compreendam o nosso programa e trabalhem para a sua realização. Por isso, não devemos afastar os técnicos, especialmente os das fábricas, que compreendem que para eles se abre um período novo, já não de colaboração com o patrão mas de colaboração com os operários, com o sector mais inteligente dos operários, para criar um regime no qual os técnicos terão a sua quota-parte na direcção das fábricas e na vida produtiva do país. Devemos construir um partido sólido e bem organizado. Devemos ter células bem organizadas em todas as fábricas, em todas as oficinas. Devemos ter as nossas secções nas cidades. O partido deve transformar-se num viveiro de energias do povo, ao qual se dirijam todos os trabalhadores para se aconselharem, para a resolução de todos os problemas, para sair da miséria. As secções comunistas devem estar à frente do trabalho de todo o povo, devem ser capazes de compreender todos os problemas do povo e não esquecer nenhum. Não há problemas que não nos interessem. Por exemplo, o problema das massas de fugitivas, de prisioneiros que regressam da Alemanha, dos outros países, da Inglaterra, da África, da Índia. Esses homens foram arrancados ao nosso país já há bastantes anos, não viram nada, não viram o fascismo transformar-se em instrumento dos alemães. São homens que regressam com ideias falsas, que talvez venham a reagir aos lenços encarnados e aos operários armados. Ai de nós se repelíssemos esta massa de irmãos que regressam. Devemos ajudá-los a resolver as questões mais elementares. Têm necessidade de sapatos, de fatos; devemos procurar que cada secção se transforme num centro de assistência que lhes explique qual é a nova situação. Lembrem-se que se trata de dois milhões de homens. Só se actuarmos deste modo, se conseguirmos fazer-lhes entender a nova situação, se nos preocuparmos com as suas necessidades conseguiremos que não se voltem contra nós. Apresentei este exemplo para fazer-lhes compreender que devemos interessar-nos por todos os problemas dos trabalhadores, porque é do interesse da classe operária e da nação.

Em Nápoles, ao falar pela primeira vez em público, exprimi-me deste modo: disse que o nosso partido deve ser um partido novo e quero que compreendam bem o que significa. Significa que nós não renegamos nada do passado, não rejeitamos nada das lutas que travámos, mas compreendemos que na Itália existe uma situação nova na qual a classe operária deve assumir a direcção do país e se o nosso partido não muda profundamente a sua orientação não seremos capazes de guiar o povo por este caminho que se abre diante de nós.

Partido novo quer dizer um partido com uma orientação política não sectária, que enfrente todas as questões que surgirem com um espírito novo.

O problema das relações com os socialistas é decisivo. O PSI é um partido de operários, de trabalhadores que são companheiros, que são irmãos. Sabemos que hoje, se a classe operária italiana quiser exercer a função que lhe compete na direcção do país, não deve permitir que as suas forças se dividam contra o interesse da classe trabalhadora.

Isto mesmo vale para as relações com os trabalhadores católicos. Aprendemos que as manifestações que fizemos no passado contra o Partido Popular foi um erro, porque, se é verdade que nas cúpulas do Partido da Democracia Cristã há elementos conservadores que não compreendem os problemas do momento, sabemos que nos campos, nas fábricas, os trabalhadores demo-cristãos têm os mesmos interesses dos trabalhadores comunistas e socialistas. Quando discutimos com eles descobrimos que procuram a renovação política do nosso país através da reforma agrária e industrial, através da República. Sabemos que podemos estar de acordo com a maioria dos democratas-cristãos na solução destes três problemas fundamentais. Em Roma, pretendemos criar uma organização sindical única: socialista, comunista e democrata-cristã. No seu Congresso de Nápoles esta organização sindical elaborou um programa, que ainda não conhecem mas que brevemente será dado a conhecer aos operários de Milão e de Turim. Poderá vir a ser aperfeiçoado com o seu contributo, mas na generalidade segue a linha fundamental das aspirações das classes trabalhadoras e da luta pela organização e pela emancipação do trabalho.

Estendemos as mãos aos católicos, queremos trabalhar e combater com eles. Àqueles que, no campo católico, a coberto de pretextos religiosos conduzem uma campanha contra nós e não têm vergonha de repetir as velhas calúnias adoptadas pelo fascismo, a esses nós respondemos: trabalhais contra o interesse da nação, agis contra os interesses do povo. Sacrificámos os nossos melhores elementos pela liberdade do povo. Poderá um partido que, como o nosso, deu multidões de heróis e de mártires pela causa da liberdade ser apenas um partido de materialistas abjectos? Vamos trabalhar unidos, trabalhadores católicos, se queremos que os elementos reaccionários não consigam desfazer esta unidade.

Devemos fazer entrar no nosso partido muitos jovens e muitas mulheres. Preocupemo-nos sobretudo com o problema feminino. Aproximemo-nos das mulheres, ajudemo-las a organizar as suas organizações femininas para a defesa dos seus interesses próprios de mulheres, mas deixemos que se conduzam por si mesmas. A mulher que luta pela sua emancipação é uma grande aliada da classe operária na luta pela emancipação do trabalho.

Camaradas, convido-vos a trabalhar e a combater assim. Sei que haveis de encontrar-vos muitas vezes diante de grandes dificuldades. Para organizar e dirigir as massas que vêm ter connosco, tendes de organizar os novos quadros. Os velhos camaradas, sobretudo não devem barrar o caminho aos jovens; ajudem-nos e velem por eles. Vós, velhos camaradas, deveis ensinar os jovens camaradas a trabalhar, a ter lugares de direcção em todas as organizações populares que devem surgir na nova Itália. Não bloqueeis o caminho aos novos quadros, ajudai-os a andar para a frente, controlai-os, dirigi-os no trabalho, mas não os encerreis dentro de limites em que não possam desenvolver-se.

Sei que ireis ter grandes dificuldades a superar, mas como as vencestes durante vinte anos, como soubestes, quando caía um grupo de camaradas, fazer nascer um novo grupo, como soubestes organizar as greves contra os fascistas e contra os alemães, com a mesma coragem, com o mesmo espírito lançai-vos na realização desta grandiosa tarefa. A Itália precisa que em cada província, nas cidades e nos campos, haja uma forte, grande e sólida organização comunista. E não só por causa da nossa organização. A Itália tem necessidade deste grande partido porque este partido a há-de conduzir para novos destinos. Prá frente, camaradas, dai todas as vossas forças, avançai, trabalhai para a solução deste problema. Fazei do PC o guia de todos os trabalhadores, dos operários, do povo italiano, no caminho da construção de uma Itália nova, feliz, livre de qualquer escravidão, de toda a opressão.

Viva o Partido Comunista!

Togliatti: Sobre o Estalinismo
(1956)


Entrevista a Nuovi Argumenti (revista quinzenal dirigida por Alberto Moravia e Alberto Carocci), nº 20, Maio-Junho de 1956. Reeditado em Rinascita, nº 35, 6-9-1968.

1) Na sua opinião, que significa a condenação do culto da personalidade na URSS? Quais são os motivos internos, externos, políticos, sociais, económicos, psicológicos, históricos?

A condenação do mito da personalidade pronunciada pelos comunistas da União Soviética e as críticas à obra de Estaline significam, na minha opinião, exactamente aquilo que foi dito e repetido pelos dirigentes comunistas soviéticos, nem mais nem menos. Atenção a dois caminhos errados.

O primeiro, o mais grosseiro e ridículo, é defender ou fingir que se defende que, ao formular essa condenação e essas críticas, os comunistas soviéticos passaram, se não para as posições do anticomunismo, pelo menos, para as posições de quem nunca aprovou nem compreendeu a sua acção. Isto é, que eles lançaram ao mar ou prepararam-se para lançar ao mar todas as suas posições de princípio e práticas, todo o seu passado, tudo aquilo que afirmaram, sustentaram, defenderam, realizaram em tantos decénios de trabalho. Compreendo muito bem que esta seja a interpretação dos campeões do anticomunismo, mas não há motivo para lhes prestar hoje mais atenção do que ontem. De resto, eles descobrem o seu jogo ao forçá-lo até ao exagero, como sempre, e mostrando assim a sua má-fé. Não excluo, porém, e quero dizê-lo abertamente, que há também quem, em perfeita boa fé, deslize para essa posição e comece a interrogar-se se, perante as criticas a Estaline e dado que Estaline foi o principal expoente da política comunista durante todo um período, não se deve hoje pôr em dúvida a justeza de todos os momentos importantes dessa política, a partir da oposição decidida aos planos do imperialismo no pós-guerra, passando por Ialta e Teerão até ao pacto de não-agressão com a Alemanha, em 1939, à Guerra de Espanha, etc., etc., e, noutro campo, às directivas para a construção económica socialista e à luta contra quem lhe punha obstáculos e até, uma vez embalado — porque não? — aos actos decisivos da Revolução de Outubro que foram a conquista do poder pelos sovietes dos operários, dos trabalhadores rurais e dos soldados, a dissolução da Assembleia Constituinte e a criação de uma nova estrutura política da sociedade. Àqueles que, de boa-fé, se inclinarem para entender as coisas desta maneira temos que dizer que se enganam. Naturalmente que acerca das acções através das quais os comunistas soviéticos chegaram à conquista do poder e à criação da sua actual estrutura social é sempre possível discutir e há de discutir-se certamente por muito tempo com o objectivo de determinar as características, o conteúdo e as consequências, com a finalidade de as avaliar historicamente com maior exactidão. Os camaradas soviéticos estão hoje a libertar a sua historiografia de erros e exageros que se tinham introduzido nela para exaltar, além do seu mérito, a figura de Estaline e isto permitirá um juízo histórico cada vez mais exacto. Não é de excluir, é mesmo de prever, que venham a ser corrigidos muitos juízos, que venham a ser determinadas com mais rigor as críticas a determinadas fraquezas, erros, aspectos negativos da acção realizada em momentos determinados. Seria, porém, grave erro pensar que esta revisão particular, que tende a situar os homens e todos os acontecimentos na sua luz correcta, comporte da parte dos comunistas soviéticos uma repulsa radical ou uma crítica radical, destrutiva, à sua acção, tal como se vem desenvolvendo há mais de meio século. Esta acção continua a ser, na linha do desenvolvimento através das etapas que todos conhecem, o primeiro grande modelo histórico de actividade revolucionária consequente para o advento da classe operária à direcção da sociedade e para a construção de uma sociedade socialista.

O segundo erro consiste em considerar as críticas a Estaline e a denúncia do culto da sua personalidade como episódios de uma luta pessoal ou de grupos, que se desenvolveria entre os dirigentes do Partido Comunista e do Estado soviético e que seria essencialmente uma luta pelo poder. A grande imprensa dos países capitalistas dedicou-se especialmente a este género de interpretação, interpretação que estende a tudo o que acontece na União Soviética. Tem os seus especialistas, que são capazes de pesar, para cada deslocação de responsáveis de um dicastério para outro, de uma organização para outra, exactamente quantos gramas de influência política perdeu este ou aquele dirigente, quantos metros avançou para o poder exclusivo este ou aquele grupo de homens, e assim por diante. As maiores parvoíces aparecem quando destes subtis juízos hipotéticos se pretende subir para a oposição e até para a luta entre civis e militares, por exemplo, entre técnicos e homens do partido, etc., etc. O técnico e o homem do partido coincidem com frequência na União Soviética. Quanto aos militares todos sabem que, em todas as lutas internas de partido que se deram a partir da Revolução, nunca as Forças Armadas enquanto tais tomaram posição. Deixemos estas coisas para os diletantes de frivolidades e do mexerico político. Não podemos nem queremos realmente negar que, na elaboração dos recentes actos e juízos políticos dos dirigentes soviéticos, não tenha havido entre eles pontos de divergência, debates, discussões muito vivas. Assim deve funcionar um organismo político vivo, cuja actividade interna não é sufocada pelo culto de urna única pessoa. Não existe, porém, qualquer facto e não existem sequer indícios que possam dar qualquer valor à hipótese de uma tenebrosa luta pelo poder, que se estaria a processar através das críticas a Estaline e ao culto da sua pessoa. Mais, a este respeito pode ir-se um pouco mais além. Basta ter conhecido superficialmente o lugar que Estaline tinha não só nos quadros do partido e nos seus membros, mas nas grandes massas populares para compreender como seria difícil a situação depois do seu desaparecimento e, sobretudo, como seria grave e cheia de perigos a missão de corrigir os erros cometidos por ele, denunciá-los e caminhar por uma via, que, em muitos aspectos, era nova. Esta evidente dificuldade explica porque é que não foi possível fazer a denúncia aberta dos erros cometidos antes, imediatamente depois da morte de Estaline. Não só não teria sido compreendida como teria talvez provocado reacções negativas, perigosas, não controláveis. É evidente que a correcção na prática dos erros, em primeiro lugar no que toca ao método de direcção e depois nos outros campos, começou logo. É igualmente evidente que um grupo dirigente em que se processasse uma tenebrosa luta de pessoas ou de grupos pelo poder não teria podido fazer essa correcção. Demonstra-o até a eliminação da Béria, um dos principais responsáveis pelos resultados sangrentos dos mais graves dos erros cometidos sob a direcção de Estaline. Pôde fazer-se rapidamente, sem abalos no grupo dirigente e sem qualquer conflito entre os diversos sectores da administração pública.

É preciso, pois, em conclusão a este ponto, habituar-se a pensar que as críticas a Estaline e ao culto da sua pessoa significam para os camaradas soviéticos exactamente aquilo que até agora têm dito. Exactamente o quê? Que em consequência dos erros de Estaline e do culto da sua pessoa se tinham acumulado elementos negativos, se tinham criado situações desfavoráveis e até nitidamente más em diversos sectores da vida e da sociedade soviética, em diferentes partes da actividade do partido e do Estado. Mas não é simples reduzir todos estes momentos negativos a um único conceito geral, porque neste caso se corre também o risco da generalização arbitrária e falsa, isto é, o risco de considerar má, de rejeitar-se, de criticar-se toda a realidade económica, social e cultural soviética, o que é voltar às costumadas idiotices reaccionárias. A menos arbitrária das generalizações é aquela que vê nos erros de Estaline a progressiva sobreposição de um poder pessoal às instâncias colectivas de origem e de natureza democrática e, como consequência disto, o acumular-se de fenómenos de burocratização, de violação da legalidade, de estagnação e, até, parcialmente, de degenerescência em diversos pontos do organismo social. Deve-se porém acrescentar imediatamente que esta sobreposição foi parcial e teve provavelmente as suas mais graves manifestações nas cúpulas dos órgãos directivos do Estado e do partido. Daí partiu uma tendência para restringir a vida democrática, a iniciativa e vivacidade do pensamento e da acção em numerosos campos (desenvolvimento técnico e económico, actividade cultural, literatura, arte, etc.), mas não se pode dizer que, a partir daqui, se tenha dado a destruição das traves mestras da sociedade soviética, de que deriva o seu carácter democrático e socialista e que fazem dela uma sociedade superior, pela sua qualidade, às modernas sociedades capitalistas. A sociedade soviética não podia acomodar-se em semelhantes erros, como pôde, pelo contrário, acomodar-se em erros e situações bastante mais graves o regime burguês capitalista. Esses erros não podiam transformar-se em elemento estável e geral da vida civil, económica e política. Se tivessem durado bastante mais tempo talvez se tivesse chegado a uma ruptura, embora esta hipótese seja de acolher-se com cautela porque uma ruptura teria certamente trazido às massas populares e a todo o movimento socialista mais prejuízos do que vantagens e disto estavam conscientes não só os homens que poderiam ser os autores da ruptura mas também estratos mais vastos da sociedade.

Com isto não quero dizer que as consequências dos erros de Estaline não tenham sido muito graves. Foram muito graves, estenderam-se a muitos campos e não será simples superá-los nem poderá fazer-se rapidamente. Em resumo, pode dizer-se que grande parte dos quadros dirigentes da sociedade soviética (partido, Estado, economia, cultura, etc.), com o culto de Estaline, se tenha entorpecido, perdendo ou temido reduzido a própria capacidade criadora e crítica, no pensamento e na acção. Por isso era absolutamente necessário fazer a denúncia dos erros de Estaline e de tal maneira que despertasse os espíritos e reactivasse toda a vida dos organismos em que assenta o complexo sistema da sociedade socialista. Assim haverá novo progresso democrático dessa sociedade e isso será um poderoso contributo para a melhor compreensão entre todos os povos, para o desanuviamento internacional, para o avanço do socialismo e para a paz.

2) Crê que as críticas feitas ao culto da personalidade na URSS vão conduzir a transformações institucionais?

3) A legitimidade do poder é o grande problema do Direito Público e o pensamento político moderno tende para procurar a fonte da legitimidade na vontade popular. As democracias parlamentares de tipo ocidental defendem que a vontade popular tem necessidade, para exprimir-se, da pluralidade dos partidos. Crê que o poder em regime de partido único com eleições sem escolha entre governo e oposição é legítimo?

Posso enganar-me, mas a minha opinião é que não são de prever hoje, na União Soviética, transformações institucionais nem que semelhantes transformações devam resultar das críticas abertas formuladas pelo XX Congresso. Isto não quer dizer que não devam dar-se modificações bastante profundas, algumas das quais, de resto, já estão a processar-se.

Antes de mais, que é que se entende por transformações institucionais? Creio que os que assim falam se referem a transformações da estrutura política que conduzam a sociedade soviética a algumas, pelo menos, das formas de organização política próprias dos regimes ditos ocidentais ou dêem novo relevo a algumas das instituições que são próprias destes regimes. Posta assim a questão, a minha resposta é negativa.

E partamos também, se assim o querem, do exame da legitimidade do poder e da sua fonte, mas tentemos libertar-nos do formalismo hipócrita com os que os apologetas da «civilização ocidental» tratam esta questão. Lemos O Estado e a Revolução e felizmente não nos esquecemos do essencial dessa doutrina. Não é a crítica dos erros de Estaline que no-la fará esquecer. Na realidade das ditas civilizações ocidentais a fonte da legitimidade do poder não é, de facto, a vontade popular. A vontade popular é, no melhor dos casos, um dos factores que contribuem, exprimindo-se periodicamente através das eleições, para determinar parte das orientações governativas. Nas eleições, porém (e veja-se o exemplo italiano que é típico, em alguns aspectos), entra em acção um sistema múltiplo de pressões, intimidações, limitações, falsificações, artifícios legais e ilegais que falsificam e limitam bastante a expressão da vontade popular. E o sistema funciona nas mãos e a favor não só de quem está nesse momento no governo mas também de quem detém na sociedade o poder real que é dado pela riqueza, pela propriedade dos meios de produção e de troca e de tudo o que deles deriva, a começar pela direcção efectiva da vida política até à infalível protecção das autoridades religiosas e de todos os outros gânglios de poder que existem numa sociedade capitalista. Nós defendemos que hoje, dado o desenvolvimento e a força actual do movimento democrática e socialista, se podem abrir vastas clareiras neste sistema que impede a livre expressão da vontade popular e que se pode abrir uma passagem cada vez maior à manifestação dessa vontade. Por isso é que nos movemos em terreno democrático e sem sair desse terreno julgamos sempre possíveis novos progressos. Isto não quer dizer que não vejamos as coisas como elas são e que façamos do modo como decorre a vida democrática no mundo ocidental (e não é de ir muito além, neste mundo, porque se encontra a Espanha ou a Turquia, a América do Sul, Portugal, o sistema eleitoral discriminatório dos Estados Unidos, etc., etc.) um tabu, o modelo universal e absoluto da democracia. Pelo contrário, continuamos a pensar que a democracia de tipo ocidental é uma democracia limitada, imperfeita, falsa «em muitos aspectos, que tem de ser desenvolvida e aperfeiçoada através de uma série de reformas económicas e políticas. Ainda que se chegue à conclusão de que o XX Congresso abre um novo processo de desenvolvimento democrático na União Soviética, estamos longe de pensar, e consideramos que é errado pensar, que esse desenvolvimento possa e deva realizar-se com um regresso a instituições de tipo «ocidental».

A legitimidade do poder na União Soviética tem a sua fonte primeira na Revolução. A Revolução deu o poder à classe operária, que era uma minoria, mas conseguiu, resolvendo os grandes problemas nacionais e sociais que se punham, reunir progressivamente à sua volta todas as massas populares, transformar a estrutura económica do país, criar, fazer funcionar e progredir uma sociedade nova, construída segundo os princípios socialistas. Esquecer a Revolução, não ter em conta a nova estrutura social, esquecer tudo o que é próprio da União Soviética e depois estabelecer um confronto puramente exterior com as formas da vida política nos países capitalistas é um logro e nada mais.

Mas este apelo à realidade não basta. A sociedade soviética teve, desde o início, uma estrutura política democrática, assente precisamente sobre a existência e sobre o funcionamento dos Sovietes (conselhos de operários, de trabalhadores rurais, de soldados). O sistema dos Sovietes é, como tal, muito mais democrático e avançado do que qualquer sistema democrático tradicional, e por dois motivos. O primeiro é que faz penetrar a vida democrática em todas as partes constitutivas da sociedade, partindo das unidades de trabalho de base para subir, gradualmente, até às grandes assembleias concelhias, regionais e nacionais. O segundo é que aproxima as células elementares da vida democrática das unidades de produção e, por Conseguinte, supera o aspecto negativo das tradicionais organizações democráticas que consiste na separação entre o mundo da produção e o mundo da política e, consequentemente, no carácter exterior, formal, da liberdade. Será possível que, no funcionamento do sistema soviético, tenha havido uma paragem, uma dificuldade que tenha originado uma limitação da democracia soviética? Não é só possível, mas foi reconhecida abertamente no XX Congresso. A vida democrática soviética foi limitada, parcialmente sufocada pelo predomínio de métodos de direcção burocrática, autoritária e pelas violações da legalidade do regime. Teoricamente isto é possível porque um regime socialista não está de per si garantido contra erros e perigos. Quem assim pensasse cairia num infantilismo ingénuo. A sociedade socialista não é apenas uma sociedade constituída por homens, mas uma sociedade em desenvolvimento, na qual continuam a existir contradições objectivas e subjectivas e está sujeita às vicissitudes da história. Na linha dos factos trata-se de ver como foi possível acontecer, e porquê, uma limitação da vida democrática soviética, mas qualquer que seja a resposta que venha a dar-se a esta questão, para nós está fora de dúvida que nunca poderá concluir-se pela necessidade de um regresso às formas de organização das sociedades capitalistas.

A pluralidade ou unicidade dos partidos nunca pode ser considerada, de per si, como elemento distintivo entre as sociedades burguesas e as sociedades socialistas como de per si não assinala a linha de distinção entre uma sociedade democrática e uma sociedade não democrática. Na União Soviética houve dois partidos que dividiram o poder, durante certo período de tempo depois da Revolução, em regime soviético e de ditadura do proletariado. Na China de hoje há uma pluralidade de partidos no poder e o regime define-se também como ditadura democrática. Nas democracias populares existem também partidos diferentes do Partido Comunista, embora não em todos os países. Nos países que ainda são capitalistas, onde o movimento popular e operário é muito forte e desenvolvido não é de excluir completamente a hipótese de profundas transformações socialistas a realizar em presença de uma pluralidade de partidos e por iniciativa de alguns deles. Pensar, porém, na União Soviética de hoje numa pluralidade de partidos parece-nos impossível. Por quem seriam criados? Por decisão autoritária? Seria um belo processo democrático. É necessário reconhecer que não só existe uma homogeneidade social devida ao desaparecimento das classes capitalistas, não só existe uma homogeneidade política que se exprime na aliança entre trabalhadores rurais e operários, mas existe também urna forma de unidade da vida civil e da direcção política que é desconhecida e talvez até nem sequer compreendida aqui, no mundo «ocidental». A própria noção de partido é, na União Soviética, algo de diferente daquilo que nós entendemos por este termo. O partido trabalha e combate para realizar e desenvolver o socialismo, mias a sua obra é essencialmente de natureza positiva e construtiva, não de natureza polémica contra um hipotético opositor interno. O «opositor» contra o qual se bate é a dificuldade objectiva a superar, a contradição a resolver trabalhando, a realidade a dominar, a sobrevivência do velho a destruir para fazer caminhar o novo, etc. A dialéctica das contradições, que é essencial para o desenvolvimento da sociedade, deixou de se exprimir pela luta entre partidos, de governo ou de oposição, porque não existe nem uma base objectiva (nas coisas), nem subjectiva (no espírito das pessoas) para tal luta. Exprime-se dentro do sistema unitário que inclui toda uma série de organizações coordenadas umas às outras (partido, soviete, sindicato, etc., etc.). A crítica que se faz a Estaline é ter impedido esta manifestação dentro do sistema. A correcção consiste em restaurar a normalidade, não em negar o sistema nem em fazê-lo extrapolar.

Mas se considero absurdo fazer saltar o sistema para o obrigar a andar para trás creio que dentro dele é possível e devem-se introduzir modificações, mesmo profundas, a partir da experiência feita, a partir dos sucessos alcançados em todos os campos e com base na necessidade de conseguir garantias mais eficazes contra erros como os de Estaline. É de prestar atenção a este ponto e por isso devem-se acompanhar e estudar as novas medidas que se estão a tomar na União Soviética quer pelo partido quer pelo governo. Até agora, as mais interessantes e de maior alcance são as que estabelecem uma descentralização cada vez mais ampla da direcção económica. A centralização, mesmo em formas extremas, foi uma necessidade dos períodos em que era necessário operar rapidamente transformações profundíssimas, destruir as bases do capitalismo, lançar as bases da economia socialista, fazer frente a necessidades económicas, políticas e militares. Mas a centralização não é por si uma forma obrigatória da direcção económica socialista, sobretudo nas suas formas extremas. Um grau maior de centralização e, por conseguinte, de direcção autoritária é exigido pelo conjunto das condições objectivas, mas determina um grau maior ou menor, respectivamente, de vida democrática periférica, de actividade e iniciativa das massas e, para nós, a actividade das massas, a sua participação efectiva na crítica, no controle e na direcção de todo o organismo social e económico são os autênticos sinais da democracia. Entre nós, em regime de pluralidade de partidos, de dialéctica entre governo e oposição, etc., etc., esta actividade das massas não existe sob qualquer forma ou em qualquer medida, ou então existe sob formas e numa medida muito restrita e indirecta. Por isso dizemos que esta não é ainda uma verdadeira democracia e não compreendemos por que razão, para corrigir as más coisas feitas por Estaline, os povos soviéticos deveriam reincidir nas nossas posições.

Gostaria de acrescentar ainda algumas coisas a propósito de garantias eficazes contra a repetição de erros como os de Estaline. Aqui sei que emerge a ideia da «independência da magistratura» (isto é da divisão dos poderes) como remédio seguro contra qualquer violação da legalidade. Eu, sinceramente, não acredito nesse remédio. O juiz deve ter uma posição de independência e a Constituição soviética garante-lha, como muitas outras constituições. Mas a violação desta norma acontece sempre na linha de facto, não na de direito. Além disso, o juiz não é nem pode ser um cidadão que viva fora da sociedade, das suas contradições, das correntes que a atravessam e a dominam. Nenhum juiz teria sonhado sequer, aqui há uns dez anos, condenar a prisão perpétua — a prisão perpétua— um heróico chefe da resistência a quem se acusou de ter depurado, em situação de guerra, alguém que lhe fora indicado como espia. Isto deu-se agora. Foi obra de juízes «independentes»? Formalmente, quase com certeza, independentes de interferências ministeriais directas, mas não independentes da campanha que durante dez anos De Gasperi e tantos outros conduziram para difamar o movimento de resistência, acusá-lo e condenar os seus expoentes. Os juízes fazem parte da classe dominante e não se subtraem às correntes de opinião, justas ou não justas que a determinam. Dizem-mos agora que na União Soviética houve, no tempo de Estaline, processos concluídos por condenações ilegais e injustas. Os juízes que pronunciaram essas condenações não eram muito provavelmente cidadãos que traíram a sua consciência, eram cidadãos convencidos de que as erradas doutrinas de Estaline, então generalizadas em todo o povo, acerca da omnipresença de «inimigos do povo» a destruir, eram justas. Por isso, apesar de formalmente «independentes», julgaram dessa maneira. A garantia autêntica só pode estar na correcção das orientações políticas do partido e do Governo e esta só é possível com uma autêntica vida democrática quer no partido quer no Estado e com um permanente e íntimo contacto com as massas populares, em todos os escalões da vida pública. O juiz será também tanto mais justo quanto mais unido ao povo estiver.

4) Já se disse que entre o Leste e o Ocidente não há linguagem política comum. No Ocidente o culto da personalidade tem o nome de tirania e os erros que levam às depurações, aos processos, às condenações, delitos. Por outro lado, o Leste chama à oposição, traição, à discussão, desvio, e assim por diante. Uma linguagem diferente é sempre indicio de diferenças substanciais. A que atribui esta diversidade de linguagem?

Se mo permitem, direi que esta afirmação da diversidade de linguagem política entre o Leste e o Ocidente é simplesmente uma parvoíce reaccionária. Foi um dos temas do «sanfedismo»(2) e continua a sê-lo. Remeto mais uma vez para um texto curioso, o Nuovo vocabolario filosofico democrático indispensábile por ognuno che brama intendere la nuova lingua rivoluzionaria, publicado em Veneza, em 1799. Liberdade, patriotismo, igualdade, direitos, etc., etc., toda a terminologia política do tempo, que exprimia as grandes ideias que se tinham recentemente afirmado e tinham triunfado graças às revoluções burguesas, é analisada por este vulgar manual «sanfedista», ao longo de duzentas páginas, para demonstrar precisamente que essas grandes palavras exprimiam coisas grandes do passado, no tempo dos Governos absolutos e ainda as exprimem agora para quem conserva fé na ordem do passado, enquanto que na boca dos revolucionários, nessa França odiada onde triunfou a revolução, exprimem coisas completamente diferentes e opostas. Liberdade significa para o revolucionário «poder absoluto para os criminosos, os velhacos e maltrapilhos de cada nação despojarem e massacrarem a parte honesta, laboriosa e que possui algo de seu, dos seus concidadãos». Igualdade é palavra sem sentido «a maior parvoíce, sem ideia real». Democrático significa «ateu, assassino, velhaco em governo». E assim por diante. Esta referência à polémica «sanfedista» dos séculos passados que, como se vê, aplicava a doutrina da diversidade das linguagens políticas, pode servir para clarificar o fundo da questão. Não é que numa e noutra parte do mundo se falem duas línguas diferentes, mas os grupos sociais, incapazes não só de aprovar mas até de compreender as profundas transformações sociais e políticas que se estão a realizar e a que são hostis, gostariam de criar entre as diferentes partes do mundo e em prejuízo da parte que progride, abismos de incompreensão. Mas não conseguem.

A linguagem política é absolutamente comum entre o Leste e o Ocidente. Tirania quer dizer a mesma coisa cá e lá. No regime instaurado por Estaline, em determinados momentos, houve elementos de tirania e o poder cometeu actos criminosos e moralmente repugnantes. Ninguém o nega. A palavra «democracia» tem cá e lá o mesmo significado, isto é, governo do povo em favor do povo, igualdade dos cidadãos, etc. Quando os comunistas russos, nas suas primeiras Constituições, estabeleceram uma notável diversidade entre o peso dos votos dos operários e o dos trabalhadores rurais sabiam muito bem que não era uma norma formalmente democrática. Mas adoptaram-na porque queriam que fosse também legalmente garantida à classe operária a função dirigente que tinha conquistado com a Revolução, salvando a nação da invasão estrangeira e da catástrofe e criando as primeiras condições necessárias à implantação do socialismo. Alcançados os primeiros grandes resultados nesta direcção, essa norma foi suprimida. E tudo foi sempre dito claramente. Disse-se abertamente que, ao suprimir a disparidade de voto, se restaurava a democracia. Aqui, no famoso Ocidente, espero que me esclareçam sobre a relação que pode ter com a democracia a discriminação política entre os cidadãos, que um Governo de democratas-cristãos e de sociais-democratas tentou, na Itália, pôr na base de toda a actividade governativa e que ainda é regra geral de conduta da maior parte das autoridades do Estado, dos patrões, das instituições de assistência, dos Tribunais de Trabalho, etc., etc.

Não é de modo nenhum verdade que no «Leste» à oposição se dê o nome de traição, à discussão, desvio, etc. Numa discussão podem exprimir-se posições não conciliáveis com a linha política que está a ser seguida, em oposição a ela, e também pode ser considerada um desvio, porque realmente o é. Entre nós, exprimir opiniões políticas diferentes das dos partidos dominantes tem o nome de «terrorismo ideológico». Quanto à oposição, de que já falei, não coincide nem pode coincidir com a traição. Sem dúvida que houve casos e momentos em que a oposição assumiu tais formas que eram traição ou conduziam à traição. Houve longos períodos de tempo em que a classe operária, que com a Revolução tinha tomado o poder, e o partido que a dirigia se encontraram em situações tão graves, em tais limitações, diante de tantos inimigos internos e externos a ter que derrotar, que a unidade de direcção política e de acção teve que ser mantida e foi mantida com meios excepcionais. Ai deles se não tivessem procedido assim! O grave erro cometido por Estaline foi ter ilicitamente estendido este sistema (piorando-o porque, nos primeiros tempos, Lenine tinha exigido sempre o respeito pela legalidade revolucionária, ainda que então os limites dessa legalidade fossem necessariamente reduzidos) às situações posteriores quando já não era necessário e se transformava por conseguinte nos fundamentos de um poder pessoal. E o erro dos seus colaboradores foi não se terem dado conta disso a tempo, de o terem deixado agir até ao ponto em que a correcção já não era possível sem prejuízo para todos.

5) Considera que a ditadura pessoal de Estaline se processou contra e fora das tradições (históricas e políticas russas ou foi, ao contrário, um desenvolvimento dessas tradições?

6) A ditadura pessoal de Estaline serviu-se para se afirmar, e para se manter, da ajuda de um conjunto de medidas coercitivas a que, no Ocidente, a partir da Revolução Francesa, se chama «terror». Considera que esse «terror» foi uma necessidade?

Vou responder em conjunto a estas duas perguntas porque, se se puser de parte a sua formulação concreta, que limitaria a investigação a temas de ordem particular, permitem, se se superar essa limitação, abordar a questão que agora logicamente se põe e que é como, na sociedade soviética, os erros denunciados pelo XX Congresso puderam acontecer e como foi possível criar-se e ter durado tão longo período de tempo uma situação em que a vida democrática e a legalidade socialista sofreram contínuas, graves e generalizadas violações. Intimamente ligada está esta outra questão, como se compreende, que é a da co-responsabilidade nestes erros de todo o grupo político dirigente, inclusive os camaradas que hoje tiveram a iniciativa quer da denúncia quer da correcção do mal feito e das suas consequências.

Apareceram duas explicações para esta co-responsabilidade. Uma, a mais evidente, foi apresentada por nós próprios nas discussões que se processaram no nosso partido. Foi também formulada pelo camarada Courtade numa série de artigos de L’Humanité(3), e, agora, a crer no que é referido pelos jornalistas, também pelo camarada Kruschev em reposta a uma pergunta que lhe foi posta numa recepção. O afastamento de Estaline do poder, quando se manifestou a gravidade dos erros que ele estava a cometer, era «juridicamente possível» mas impossível na prática porque se a questão fosse posta teria provocado um conflito e esse conflito teria provavelmente comprometido os destinos da revolução e do Estado, contra o qual estavam apontadas armas de todos os cantos do mundo. Basta ter tido um contacto, ainda que superficial, com a opinião pública soviética nos anos em que Estaline estava à frente do país e ter seguido a situação internacional desses anos para estar em posição de reconhecer que a constatação é certíssima. Hoje, por exemplo, os dirigentes soviéticos denunciam determinados erros e um momento de desencorajamento de Estaline no início da guerra. Mas quem é que nesses dias, na União Soviética, teria compreendido e aceite, não digo um afastamento de Estaline, mas apenas uma uma simples limitação do seu poder? Teria havido uma convulsão se se visse ou, pelo menos, se se intuísse coisa semelhante, nesse como noutros momentos, A constatação feita por Kruschev explica, por conseguinte, o estado de necessidade em que se encontraram aqueles que teriam pretendido corrigir a situação que se criara mas é ao mesmo tempo uma constatação que complica o quadro e o agrava substancialmente. É-se obrigado a admitir que os erros que Estaline cometia ou eram ignorados pela grande massa dos quadros dirigentes do país e, por conseguinte, do povo, e não parece verosímil, ou não eram considerados como erros por esta massa de quadros e, por conseguinte, pela opinião pública, por eles orientada e dirigida. Como se vê, eu excluo a explicação da impossibilidade de uma transformação provocada só pela presença de um aparato militar, policiesco, terrorista que controlasse a situação com os seus meios.

Esse mesmo aparato era composto e dirigido por homens que num momento grave como o do ataque de Hitler, por exemplo, teriam sido dominados também eles por reações elementares se se abrisse uma crise profunda. Parece-me muito mais justo reconhecer que, apesar dos erros que cometia, Estaline tinha o consenso de uma grande parte do país e, antes de mais, dos seus quadros dirigentes e também das massas. Esta era a consequência do facto de Estaline não cometer só erros mas lazer também muitas coisas boas, «fez muitíssimo pela US», «era o mais convicto dos marxistas e firme na sua confiança no povo». O próprio camarada Kruschev o reconheceu nas declarações atrás referidas, corrigindo assim o estranho mas compreensível erro cometido, na minha opinião, no XX Congresso, ao silenciar estes méritos de Estaline. Mas isto não explica tudo e não explica tudo exactamente pela gravidade dos erros que hoje são denunciados. A explicação não se pode encontrar a não ser numa atenta investigação do modo como se chegou no sistema caracterizado pelos erros de Estaline. Só assim se poderá compreender como estes erros não foram apenas algo de puramente pessoal, atacaram profundamente a realidade da vida soviética.

Uma outra explicação das razões por que não se pôde chegar antes às necessárias correcções foi dada, se não erro, pelo próprio Kruschev ao afirmar que se essas correcções se não puderam fazer foi porque a posição dos dirigentes do partido e do Estado para com os erros de Estaline não foi sempre a mesma em todos os períodos. Houve momentos em que existiu uma ampla solidariedade dos outros à volta de Estaline e essa solidariedade era exactamente a expressão desse consenso de que falávamos.

E aqui importa reconhecer, abertamente e sem hesitação que, enquanto o XX Congresso deu urna contribuirão enorme para equacionar e resolver muitos, sérios e novos problemas do movimento democrático e socialista, enquanto assinala uma etapa importantíssima no desenvolvimento da sociedade soviética, não pode pelo contrário considerar-se satisfatória a posição que o Congresso assumiu e que hoje é amplamente desenvolvida pela imprensa soviética no que se refere aos erros de Estaline e às causas e condições que os tomaram possíveis. A causa de tudo estaria no «culto da personalidade» e no culto de uma pessoa que tinha determinados e graves defeitos, não tinha modéstia, tendia para o poder pessoal e por vezes errava por incompetência, não era leal nas relações com os outros dirigentes, tinha uma mania da grandeza e excessivo amor-próprio, era extremamente desconfiado e no fim, através do exercício do poder pessoal, chegou a distanciar-se do povo, a desleixar o seu trabalho e a ser vítima até de uma forma evidente de mania da perseguição. Os actuais dirigentes soviéticos conheceram Estaline bem melhor do que nós (terei talvez ocasião de falar acerca de alguns contactos que tive com ele) e nós devemos acreditar neles quando no-lo descrevem hoje deste modo. Podemos entretanto pensar, para nós, que, porque era assim, à parte a impossibilidade de fazer uma transformação a tempo, de que já se falou, poderiam ter sido pelo menos mais prudentes na exaltação pública e solene das qualidades desse homem, a que nos habituaram. É verdade que hoje fazem a sua autocrítica e é o seu grande mérito, mas nesta crítica perdem certamente um pouco do seu prestígio. Mas enquanto se limita essencialmente a denunciar como causa de tudo os defeitos de Estaline, permanece no âmbito do «culto da personalidade». Antes, todo o bem era devido às sobre-humanas qualidades positivas de um homem; agora, todo o mal é atribuído aos seus igualmente excepcionais e atordoantes defeitos. Tanto num caso como noutro estamos fora do critério de apreciação que é próprio do marxismo. Passam desapercebidos os verdadeiros problemas, que são os problemas do modo e da razão por que a sociedade soviética pôde chegar e chegou a certas formas de afastamento da vida democrática e da legalidade que tinha traçado e até de degenerescência. Deverá fazer-se o estudo seguindo as diversas etapas de desenvolvimento desta sociedade e são os camaradas soviéticos que devem fazê-lo primeiro, porque conhecem as coisas melhor do que nós, que podemos errar por conhecimento parcial ou errado dos factos.

Vem-nos ao espírito sobretudo o que Lenine, nos últimos escritos e discursos, tinha posto em relevo: o perigo de burocratização que ameaçava a nova sociedade. Parece-nos fora de dúvida que os erros de Estaline estiveram ligados a um excessivo aumento do peso dos aparelhos burocráticos na vida económica e política soviética e talvez, antes de tudo o mais, na vida do partido. E neste caso é difícil dizer qual foi a causa e qual a consequência. Uma coisa transformou-se pouco a pouco na expressão da outra. Será de atribuir este peso excessivo da burocracia a uma tradição proveniente das formas de organização política e dos costumes da velha Rússia? Talvez não seja de excluir essa hipótese, e parece-me que há referências de Lenine neste sentido; tenha-se, porém, presente que depois da Revolução o pessoal dirigente mudou totalmente ou quase e a nós não nos interessa tanto avaliar O resíduo do velho quanto o facto de que começou a aparecer no seio da nova classe dirigente um novo tipo de direcção burocrática, no momento em que executava missões completamente novas.

Os primeiros anos depois da Revolução foram anos duros, terríveis, de sobre-humanas dificuldades objectivas, de intervenção estrangeira, de guerra e de guerra civil. Foram absolutamente necessários, nessa situação, tanto um máximo de centralização de poder quanto a adopção de medidas repressivas radicais para expulsar a contra-revolução. Era inevitável que neste período se passasse o que se passa na guerra: se uma missão não for cumprida o responsável é submetido a juízo sumário. O próprio Estaline, como se pode ver numa carta dirigida a Dzerzinski e agora publicada previa uma viragem depois da derrota completa da intervenção estrangeira e da contra-revolução, o que aconteceu poucos anos antes da sua morte. Deverá ver-se se essa viragem se deu ou se, por força da inércia, não se terá consolidado parte daquele que deveria ter sido modificado ou abandonado. Depois, nesse momento, desencadeou-se a luta dos grupos que contestavam a possibilidade de uma construção económica socialista e este facto não deixou de ter uma vasta influência sobre toda a vida soviética. Esta luta teve as características de um verdadeiro combate, de cujo êxito dependia a sorte do poder e que era preciso vencer a todo o custo. Foi neste período que Estaline leve uma acção positiva e à volta dele se reuniram as forças sãs do partido. Ora, pode verificar-se que, de tal modo se uniram à sua volta e, guiadas por ele, aceitaram tais modificações no funcionamento do partido e dos seus órgãos dirigentes e novas funções dos aparelhos directivos autoritários, de tal ordem que, ou não puderam opor-se quando começaram a vir à luz alguns erros, ou então nem sequer compreenderam bem, de início, que se tratasse de erros. Talvez não se erre se se disser que foi no partido que tiveram origem as prejudiciais limitações do regime democrático e o predomínio gradual de formas de organização burocrática.

Mas parece-me mais importante examinar atentamente o que aconteceu depois, quando se realizou o primeiro plano quinquenal e quando se fez a colectivização da agricultura. Neste caso, estão em jogo verdadeiras questões de princípio. Os sucessos alcançados foram algo de minto grande, de grandioso. Criou-se uma grande indústria socialista e sem ajudas ou créditos do exterior, através de um empenhamento e de um desenvolvimento das forças internas da nova sociedade. Transformou-se, embora de forma menos segura, através de dificuldades sem conta, pressa excessiva e erros, a estrutura social dos campos. Os resultados conseguidos foram qualquer coisa que nunca tinha sido vista no mundo, que fora da União Soviética poucos tinham julgado possível. Foram uma confirmação clamorosa da vitória revolucionária de Outubro e da justa linha política defendida contra opositores e inimigos de toda a espécie. Foram igualmente, porém, o começo de algumas orientações erradas que haveriam de ter, depois, graves consequências. Na exaltação dos sucessos alcançados, prevaleceu, sobretudo na propaganda corrente, mas também nos modos generalizados de equacionar os problemas, uma tendência para exagerar, para considerar definitivamente resolvidos todos os problemas, superadas as contradições objectivas, as dificuldades, as contradições que são sempre inerentes à construção de uma sociedade socialista. Essas contradições objectivas, essas dificuldades, essas oposições são frequentemente, ao longo da construção de uma sociedade socialista, muito graves e não podem ser superadas se não forem abertamente reconhecidas, chamando as massas trabalhadoras e operárias a enfrenta-las e a resolvê-las com o seu trabalho, com a sua acção criadora. Nesse período, na União Soviética, parece que os dirigentes, embora conhecessem, bem a realidade das coisas, não a apresentavam correctamente ao partido e no povo, talvez com medo de diminuírem de qualquer modo a grandiosidade das vitórias alcançadas. Numa escola do partido onde estavam estudantes enviados por nós, houve um duro debate que durou meses e meses contra quem tinha exaltado os «sacrifícios» feitos pelos próprios operários russos pelo sucesso do plano quinquenal. Diziam que se não devia falar de sacrifícios porque, se se falasse assim, que pensariam disso os operários do Ocidente? Mas houve sacrifícios porque as condições de vida nos anos do primeiro plano quinquenal foram muito duras e a classe operária não se atemorizasse se lhe explica que esforço e sacrifício são necessários para construir o socialismo, mais, estimula e exalta o espírito de classe da sua vanguarda. É um episódio insignificante mas demonstra, como dizíamos, uma orientação errada porque é um erro de princípio crer que, conseguidos os primeiros grandes sucessos, a construção Socialista caminhe por si e não através do jogo de contradições de outro género, que devem ser resolvidas no quadro da nova sociedade pela acção das massas e do partido que as dirige.

Daqui derivaram duas consequências principais, segundo creio. A primeira foi uma esterilização da actividade das massas, nos locais e nos organismos: (de partido, sindicais, de fábrica, soviéticos) em que deveriam ter sido enfrentadas as reais e novas dificuldades da situação mas onde, ao contrário, começaram a prevalecer escritos e discursos cheios de declarações pomposas, de frases feitas, etc., mas, na realidade, frios e ineficazes, porque sem contacto com a vida, o verdadeiro debate criador foi desaparecendo pouco a pouco e, por conseguinte, a actividade das massas foi-se também reduzindo, movimentando-se mais por directivas de cima do que por impulso próprio. Mas a segunda consequência foi ainda mais grave. Quando a realidade retomava os seus direitos e as dificuldades apareciam, em consequência dos desequilíbrios e das contradições que ainda existiam nas coisas, foi-se manifestando pouco a pouco, e acabou por prevalecer, a tendência para considerar que sempre e em todos os casos o mal, o atraso na aplicação do plano, a dificuldade do aprovisionamento, do afluxo das matérias-primas, do desenvolvimento dos vários sectores da indústria ou da agricultura eram fruto da sabotagem, obra do inimigo de classe, de grupos contra-revolucionários a actuar clandestinamente, etc. Não é que isto não existisse. Também houve disto. A União Soviética estava rodeada de inimigos impiedosos, prontos a recorrer a toldos os meios para a prejudicar e para travar a sua ascensão; mas essa errada orientação nos juízos sobre a situação objectiva fez perder o sentido do limite, fez desaparecer a noção da fronteira que separa o bom do mau, o amigo do inimigo, a incapacidade e a debilidade da hostilidade consciente e da traição, a oposição e as dificuldades que surgem das coisas, do acto hostil de quem conspira para destruir. Estaline apresentou uma formulação pseudocientífica desta temível confusão com a sua tese errada do aumento necessário de inimigos e com o endurecimento da luta de classes à medida que avança a construção socialista! Tudo isto esteve na origem das inauditas violações da legalidade socialista que foram publicamente denunciadas. É necessário fazer uma investigação mais profunda para compreender como estas posições puderam ser aceites e tomar-se populares, e uma das direcções da investigação deverá ser a que nós indicámos, se se quiser compreender tudo. Estaline foi ao mesmo tempo expressão e autor de uma situação e foi-o quer por ter sido o mais hábil organizador e dirigente num aparelho de tipo burocrático no momento em que ele adquiriu o predomínio sobre as formas de vida democrática, quer por ter dado uma justificação doutrinal daquilo que na realidade era uma orientação errada e de acordo com a qual se regeu, até assumir formas degeneradas, o seu poder pessoal. Tudo isto explica o consenso que se criou à sua volta e que durou até à sua morte e ainda conserva alguma força.

Não se esqueça também que quando se estabeleceu este seu poder não faltaram êxitos na sociedade soviética. Houve-os no campo económico, no político, no cultural, no militar e nas relações internacionais. Ninguém poderá negar que a União Soviética de 1953 era incomparavelmente mais forte, mais desenvolvida em todos os sentidos, mais sólida internamente e com mais autoridade internacional do que na época do primeiro plano quinquenal. Como é que tantos erros não impediram tantos êxitos? Neste caso também devem ser os dirigentes soviéticos a dar a resposta, compreendendo que este é um dos problemas que assaltam os militantes sinceros do movimento operário internacional. Até que ponto, decide quando e dentro de que limites os erros de Estaline comprometeram a linha política do partido, criaram dificuldades subsidiárias e que peso tiveram estas dificuldades e como se conseguiu, não obstante os erros, progredir? A partir do que conhecemos podemos fazer apenas algumas afirmações gerais, dispostos a revê-las, se necessário. Parece-nos que tem de se reconhecer que a linha seguida na construção do socialismo continuou a ser correcta, embora os erros denunciados sejam tais que não podem ter limitado seriamente os sucessos na sua aplicação. Este é, porém, um dos pontos que exige maiores explicações porque a restrição, e em certos casos até o desaparecimento da vida democrática, é algo de prejudicial para a validade de uma linha política. De qualquer modo, parece-nos incontroverso que a burocratização do partido, dos órgãos do Estado, dos sindicatos e sobretudo dos órgãos periféricos, que são os mais importantes, deve ter refreado, limitado, comprimido, o pensamento criador do partido, a actividade das massas, o funcionamento democrático do Estado e o dinamismo construtivo de toda a sociedade, com evidentes e reais prejuízos. Por outro lado, os êxitos alcançados, na paz, na guerra e no pós-guerra, são prova de uma impressionante capacidade de trabalho, de entusiasmo e de sacrifício das massas populares em qualquer situação, da sua adesão contínua aos objectivos que a política do partido apresentava a todo o país e que através da sua acção foram realizados. É difícil dizer, por exemplo, que outro povo teria sido capaz de resistir, reanimar-se e depois vencer, com Hitler nos arrabaldes de Moscovo e depois no Volga e com as limitações terríveis do período de guerra. Deve pois concluir-se que não se perdeu a essência do regime socialista, porque não se perdeu nenhuma das conquistas precedentes, nem, sobretudo, a adesão ao regime das massas de operários, de trabalhadores rurais, de intelectuais que constituem a sociedade soviética. Esta mesma adesão prova que, apesar de tudo, essa sociedade mantinha o seu fundamental carácter democrático.

Dissemos algumas vezes que compete aos camaradas soviéticos enfrentar algumas das questões que apresentámos e fornecer os elementos para uma resposta estruturada. Até agora desenvolveram as críticas ao «culto da personalidade» sobretudo corrigindo juízos históricos e políticos errados sobre factos e pessoas, destruindo mitos e lendas, criadas para exaltar uma pessoa. Está certo, mas não é tudo aquilo que temos a esperar deles.

O que é mais importante hoje é responder justamente, com um critério marxista, à pergunta sobre como é que os erros actualmente denunciados se entrelaçaram como desenvolvimento da sociedade socialista e, por conseguinte, se no desenvolvimento desta sociedade não se terão introduzido, em certo momento, elementos de perturbação, erros de ordem geral, contra os quais todo o campo socialista deve estar prevenido — refiro-me a todos aqueles que já estão a construir o socialismo segundo o seu próprio caminho e àqueles que ainda estão à procura do seu caminho. Pode-se efectivamente estar de acordo em que o problema central é o da salvaguarda das características democráticas da sociedade socialista! Mas como se relacionam, as questões da democracia política e da democracia económica, da democracia interna e da função dirigente do partido com o funcionamento democrático do Estado e como é que um erro num destes campos se pode repercutir em todo o sistema, isso é que é necessário estudar e esclarecer.

7) A que se deve atribuir o facto de os comunistas de todo o mundo terem acreditado na versão estaliniana oficial sobre os processos e as conspirações?

Os comunistas de todo o mundo tiveram sempre uma confiança sem limites no Partido Comunista soviético e nos seus dirigentes!. Donde jorrava esta confiança, é mais do que evidente. Nos momentos decisivos da história e sobre questões decisivas do movimento operário e da política internacional a posição dos comunistas soviéticos foi a posição justa. A Revolução de 1917, em que eles tomaram o poder, suscitou o entusiasmo. A justeza da política por eles afirmada, defendida e seguida depois da Revolução resultou dos factos. Eram conhecidas as dificuldades sobre-humanas que se levantaram e que eles conseguiram superar. Todos estavam contra eles, os atacavam, servindo-se de todos os meios, os vituperavam. Uniram-se contra eles as classes dirigentes de todos os países. Nos partidos de oposição, e até no movimento operário, eram raros os que exprimiam pelo menos compreensão, para não falar em aprovação, pela obra gigantesca que se estava a realizar na União Soviética. Hoje, todos estão de acordo, excepto os reaccionários mais fechados, em reconhecer que a criação da União Soviética é o mais grandioso acontecimento da história contemporânea; mas foram só os comunistas, ou quase, que passo a passo foram seguindo essa criação, a fizeram compreender, a defenderam e defenderam os seus autores. Era natural e justo, nessas condições, que se criasse uma relação de confiança e solidariedade profunda, completa, entre as vanguardas operárias de todo o mundo e o Partido Comunista, que realmente estava na vanguarda de todo o movimento político e social. É necessário ter em conta também que, em quase todos os casos, aqueles que tinham começado com a crítica deste ou daquele aspecto da política comunista da União Soviética, acabaram a breve trecho por unir-se aos caluniadores oficiais de todo o movimento comunista transformando-se em agentes, abertos ou mascarados, das forças políticas mais reaccionárias. Todo o partido comunista, cm maior ou menor grau, pôde fazer esta experiência no «eu próprio caso. Criou-se, por conseguinte, mais do que uma relação de confiança e de solidariedade plena com os comunistas soviéticos, a firme convicção de que essa solidariedade era o traço distintivo de um movimento proletário verdadeiramente revolucionário. E isso era fundamentalmente verdadeiro. Nenhum de nós tem que se arrepender dessa relação de confiança e de solidariedade. Foi isso que nos permitiu, cada qual trabalhando e combatendo nas condições do seu país, exprimir e dar uma forma política e de organização precisa ao novo dinamismo revolucionário que a Revolução de Outubro tinha suscitado na classe operária, que os progressos na construção de uma sociedade socialista na União Soviética alimentavam, ampliavam, tomavam progressivamente mais consciente de si. As formas, os modos, os caminhos práticos destes êxitos não foram, porém, objecto de discussão entre nós, a não ser em certo momento, que se pode situar aproximadamente mos anos de realização do primeiro plano quinquenal e da colectivização agrícola. Nos dez ou quinze anos que antecederam este momento, o debate entre os comunistas russos acerca dos caminhos de desenvolvimento da revolução, da possibilidade de uma transformação socialista e sobre as formas dessa transformação, passara para todo o movimento operário e antes de mais para o movimento comunista internacional e isso contribuiu para a derrota dos grupos de oposição (trotskistas e de direita). Não nego que esta luta e esta participação não tenha podido ter, em certos momentos, em certos países e em determinadas condições, alguma repercussão negativa no nosso movimento. Aludo a lutas partidárias artificialmente atiçadas, a juízos políticos por vezes exagerados, etc. Quem puder que reveja, por exemplo, o discurso que pronunciei no VI Congresso da Internacional, em 1928, e lá encontrará a crítica a algumas destas coisas, ou então releia o que Dimitrov disse no VII Congresso. Em geral, a educação política do nosso movimento fez-se nestes debates, que abordaram os mais importantes temas da nossa ideologia e da nossa política. Foi através deles que o nosso movimento foi amadurecendo.

Depois, falou-se sempre cada vez menos, nos nossos partidos, das questões que se punham aos camaradas soviéticos na construção de uma sociedade socialista, até porque os camaradas soviéticos deixaram de no-las apresentar de maneira problemática, como faziam antes, mas quase como etapas de um processo definitivamente encaminhado e cujo caminho não levantava temas novos e profundos. Tínhamos, de resto, chegado ao momento em que o movimento comunista fora da União Soviética se tinha reforçado de tal maneira que podia sair do campo da simples agitação e propaganda, corrigir muitos dos erros cometidos antes de Hitler ter conquistado o poder, e desenvolver uma ampla acção política positiva, na luta contra o fascismo, contra a guerra que se preparava, para tentar salvar a República espanhola, pela unidade do movimento operário e democrático, etc. Estavam a criar-se as condições que aconselharam depois, durante a guerra, a dissolver a Internacional Comunista.

Creio que os processos a que a propaganda se refere (explicarei depois o valor desta limitação) se situam neste período em que se lutava em França pela Frente Popular, em Espanha com armas e a política internacional da União Soviética se desenvolvia com grande eficácia na defesa da democracia e da paz. Os dirigentes comunistas não tinham nenhum elemento que lhes permitisse duvidar da legalidade dos juízos), sobretudo porque sabiam que, apesar de politicamente derrotados, os dirigentes dos velhos grupos de oposição (trotskistas e de direita), não eram estranhos à prossecução entre as massas da luta terrorista, e isso acontecia também fora da União Soviética. (Em Paris, em 1934, um dos nossos melhores militantes, Camillo Montanari, de Reggio Emilia, foi morto a sangue-frio por um trotskista. Aconteceram casos semelhantes noutras paragens.)

O facto de todos os acusados terem confessado provocou certamente surpresa e discussões também entre nós, mas nada mais. De resto, ainda não é claro, também para nós, se as denúncias de violação da legalidade e aplicação de métodos de instrução ilegítimos e moralmente repugnantes, que agora se fazem, se estendem a todo o período dos processos, ou apenas a um período determinado, mais recente do que aquele a que me referi. Já tinha sido feita, de resto, a denúncia de exageros na utilização de meios repressivos extraordinários e tinha sido decidido corrigi-los, numa assembleia nacional do Partido Comunista da US e o consenso tinha sido unânime. O pior é que essa decisão não foi respeitada; pelo contrário, em certos aspectos), as coisas pioraram e nisto a culpa pessoal de Estaline é imperdoável.

Repito. Para os processos iniciais, de que temos possibilidades de tratar, porque os que vieram depois na sua maior parte não foram públicos, a minha opinião, hoje, é que existiram conjuntamente ambos os elementos: as tentativas dos opositores de conspirar contra o regime e fazer acções de terrorismo e a aplicação de métodos de instrução ilegais, moralmente condenáveis. A primeira coisa não atenua naturalmente a gravidade da segunda.

8) A crítica do culto da personalidade foi formulada de cima, sem prévia consulta popular, autoritáriamente. Considera este facto uma prova de que o estalinismo não morreu, como muitos afirmam?

Os juízos que apresento, e que expus no essencial, levam-me a considerar como inevitável que a correcção e a crítica dos erros de Estaline tivesse partido de cima. A restrição democrática no partido e no Estado, conteúdo e consequência destes erros, e os consensos de que Estaline estava rodeado, faziam com que uma crítica que partisse de baixo devesse fazer-se lentamente e de maneira confusa e não isenta de rupturas perigosas. Pode parecer desagradável, mas deriva de tudo o que aconteceu antes. Era missão do grupo dirigente, convencido como estava de que se devia liquidar o que estava mal e mudar de rumo, abrir caminho à nova orientação com uma enérgica crítica de cima e com uma correcção de facto dos desvios mais graves. Reeducar para uma vida democrática normal, segundo o modelo que tinha sido estabelecido por Lenine nos primeiros anos da revolução, isto é, reeducar para a iniciativa no campo das Ideias e na prática, para a investigação, para o debate vivo, para aquele grau de tolerância dos erros que é indispensável para descobrir a verdade, para a plena independência do juízo e do carácter, etc., etc., um quadro partidário de algumas centenas de milhares de mulheres e de homens, e através deles, todo o partido e, por meio do partido, um país infindável, em que as condições da vida cívica são ainda hoje muito diferentes de região para região, é tarefa de enorme peso, que não se realiza nem com três anos de trabalho nem com um congresso. Creio também que é exagerado dizer que tudo seja questão de tempo, de elaborar uma nova orientação e depois realizá-la. Não me parece que se possam pôr de parte neste novo curso da vida soviética debates importantes e novos, que determinem rigorosamente o alcance dos erros cometidos e das indispensáveis correcções, que conduzam a uma avaliação exacta de princípio, política e prática, de uns e de outras. Creio, em suma, que os erros de Estaline devem ser corrigidos através (desse amplo desenvolvimento, com um método profundamente diferente daquele que Estaline seguiu no período da sua vida em que abandonou as normas correctas do funcionamento do partido e do Estado. Quanto mais assim for tanto melhor será o resultado.

O que nós esperamos é que as correcções sejam feitas sem hesitações, com coragem e que delas resulte, como deve resultar, um novo avanço da sociedade socialista em todas as direcções, assente sobre uma base democrática ampla, sadia, cheia de novas e ricas manifestações de vida.

9) Crê que a crítica ao culto da personalidade levará a uma transformação de relações entre a URSS e as democracias populares, entre o Partido Comunista russo e os partidos comunistas dos outros países e, em geral, entre a URSS e o movimento operário internacional?

Espero que já não exista ninguém em Itália, pelo menos, que acredite na lenda idiota de que os partidos comunistas recebem de Moscovo, periodicamente, instruções, directivas e ordens. Se ainda existir alguém, é inútil escrever para ele, porque é evidente que tem uma cabeça excessivamente dura, que é absolutamente incapaz de aproximar-se sequer da compreensão dos problemas do actual movimento operário. Escrevemos para os outros.

Nos primeiros anos depois da Primeira Guerra Mundial, quando se formou a Internacional Comunista, não há dúvida de que as principais questões de orientação política do movimento operário e, depois, do movimento comunista em cada um dos países foram amplamente debatidas no centro, em Moscovo, em congressos e outras reuniões internacionais de que saíram orientações precisas. Pode dizer-se que, neste período, existia uma direcção centralizada do movimento comunista e a responsabilidade principal dela recaía sobre os camaradas russos, assistidos por camaradas de outros países. Bem depressa, porém, o movimento começou a avançar por si, principalmente onde tinha bons dirigentes. Em 1924, por exemplo a decisão do nosso partido de sair da assembleia aventiniana das oposições e regressar ao Parlamento, tomámo-lo em nítida oposição ao conselho que nos vinha dos dirigentes da Internacional, que era o contrário. Por altura do VII Congresso (1935) os partidos, que se tinham revigorado, que estavam coesos e eram bem dirigidos, já sentiam que um centro internacional se tinha de limitar a elaborar juízos gerais sobre a situação e sobre as tarefas do nosso movimento, mas a decisão e actuação política práticas deviam ser obra de cada um dos partidos, plenamente confiadas à sua iniciativa e responsabilidade. Assim se procedeu em França e em Espanha, sobretudo no período das grandes lutas entre 1934 e 1939, durante a guerra e igualmente depois dela. Se os comunistas avançaram na grande esteira da política internacional da União Soviética foi porque estavam convencidos que essa política era justa, e assim era realmente.

O Gabinete de informação, criado em 1947, com tarefas bem diferentes das da Internacional, fez essencialmente duas coisas, a primeira boa, a segunda má. A primeira foi justamente orientar todo o movimento operário na resistência e na luta contra os planos de guerra do imperialismo; a segunda foi a infeliz intervenção contra os comunistas jugoslavos. Não fez mais do que publicar um boletim, muito útil pela sua informação. A nós, italianos, por exemplo, só nos aconteceu ter de discutir acerca da nossa política em reuniões internacionais, na reunião de fundação do Cominform. Todas as iniciativas que tomámos depois da guerra foram obra exclusivamente nossa, talvez nem sempre plenamente compreendidas pelos camaradas dirigentes de outros partidos comunistas, porque ditadas pelas condições em que nós trabalhávamos em Itália e que eram absolutamente especiais. Hoje, o Gabinete de informação está extinto pelos motivos que foram largamente apresentados.

Os erros cometidos por Estaline na direcção do Partido Comunista soviético contribuíram certamente, porque limitavam os debates e a vida democrática às cúpulas do partido, para tornar bastante exteriores e formais as relações entre os comunistas soviéticos e os dos outros países, para criar entre eles uma certa distância, sem porém diminuir a confiança mútua, e por isso há factos hoje denunciados de que não tínhamos nem podíamos ler qualquer conhecimento. Isto pelo menos no que nos diz respeito. Noutros partidos, sobretudo nos países de democracia popular, alguns dos erros de Estaline foram, no pós-guerra, repetidos mecanicamente assim como provavelmente houve a tendência para transferir e aplicar mecanicamente nesses países toda a experiência e toda a prática soviéticas, sem ter sempre na devida conta as condições particulares que em qualquer país impunham o impõem particulares vias de desenvolvimento, correcções e adaptações da experiência soviética.

As críticas a Estaline feitas no XX Congresso, em grande parte inesperadas, atingiram certamente o quadro do movimento comunista internacional e igualmente, embora em menor escala, as suas massas. O modo como os inimigos se lançaram sobre estas críticas e delas fizeram instrumento de luta contra nós reuniu ao redor do partido os seus militantes. Além disso, deve-se dizer que não houve apenas surpresa, houve dor, aqui e além desespero. Nasceram dúvidas acerca do passado e assim por diante. Não era possível evitar tudo isto, dada a gravidade dos factos que foram denunciados e a maneira como foram denunciados, dado que os camaradas soviéticos, tendo-se limitado essencialmente a denunciar os factos e a proceder à justa correcção, descuraram até agora a tarefa, ainda não cumprida, de enfrentar o difícil tema do juízo político e histórico global.

Não creio que de tudo isto possa resultar diminuição da confiança recíproca e solidariedade entre os diversos elementos do movimento comunista. Resulta, porém, Bem dúvida, não só a necessidade, mas o desejo de uma sempre maior autonomia de juízos, o que só redundará em proveito do nosso movimento. A estrutura política interna do movimento comunista mundial actualmente está mudada. O que o Partido Comunista da União Soviética realizou continua a ser, como disse, o primeiro grande modelo de construção de uma sociedade socialista iniciada com uma profunda e decisiva fractura revolucionária. Hoje, a frente da construção socialista nos países em que os comunistas são o partido dirigente alargou-se de tal maneira (inclui um terço da humanidade) que o modelo soviético não pode nem deve continuar a ser obrigatório. Em qualquer país, governado por comunistas, podem e devem influenciar de modo diverso as condições objectivas e subjectivas, as tradições, as formas de organização do movimento. Há países onde se pretende chegar ao socialismo sem a direcção do Partido Comunista. Noutros países ainda a marcha para o socialismo é um objectivo em que se concentram esforços que partem de movimentos diversos, que entretanto ainda não atingiram nem um acordo nem compreensão recíproca. O conjunto do sistema toma-se policêntrico e no próprio movimento comunista não se pode falar de um guia único, mas de um progresso que se realiza seguindo caminhos frequentemente diversos. Das críticas a Estaline resulta um problema geral, comum a todo o movimento, os perigos de degenerescência burocrática, de sufocamento da vida democrática, de confusão entre a força revolucionária construtiva e a destruição da legalidade revolucionária, de afastamento da direcção económica e política, da vida, da iniciativa, da crítica e da actividade criadora das massas. Nós congratular-nos-emos se entre os partidos comunistas que estão no poder se estabelecer uma emulação acerca do melhor modo de evitar para sempre este perigo. A nós competirá elaborar o nosso método e o nosso caminho para evitarmos também nós os perigos de estagnação e burocratização, para sabermos resolver em conjunto os problemas da liberdade para as massas trabalhadoras e da justiça social e, deste modo, conquistarmos entre as massas um prestígio e um eco cada vez maiores.

Togliatti: O Testamento de Ialta
(1964)


Publicado em Rinascita, n.º 33, 23-8-1968.

A carta do Partido Comunista da União Soviética com o convite para a reunião preparatória da conferência internacional chegou a Roma poucos dias antes da minha partida. Por conseguinte, não tivemos possibilidade de examiná-la em reunião colectiva de direcção, inclusive pela ausência de muitos camaradas. Pudemos unicamente proceder a uma rápida troca de ideias com alguns camaradas do Secretariado. A carta será submetida ao Comité Central do partido, que há-de reunir em meados de Setembro. No entanto, está assente que vamos tornar parte, e parte activa, na reunião preparatória. Mas continuamos a ter dúvidas e reservas acerca da oportunidade da conferência internacional, sobretudo porque é perfeitamente evidente que não participará nela um grupo não desprezível de partidos, além do chinês. Nessa mesma reunião ser-nos-á certamente dada a possibilidade de expor e demonstrar as nossas posições, até porque elas abordam uma série de problemas do movimento operário e comunista internacional. A esses problemas vou fazer breve referência no presente manuscrito, igualmente com o objectivo de facilitar um diálogo ulterior convosco, se for possível.

Sobre a melhor maneira de combater as posições chinesas

O plano que nós propúnhamos para uma luta eficaz contra as posições políticas erradas e contra a actividade divisionista dos comunistas chineses era diferente daquele que tem sido seguido. O nosso plano assentava essencialmente nestes pontos:

Seguiu-se uma linha diversa, e as consequências não me parecem boas de todo. Alguns (talvez até muitos) Partidos esperavam uma conferência a muito curto prazo com a finalidade de pronunciar urna condenação explícita e solene, válida para todo o movimento. A demora também pode tê-los desorientado.

Entretanto, o ataque dos chineses desenvolveu-se largamente bem como a sua acção para constituir pequenos grupos separatistas e conquistar um ou outro partido para as suas posições. Ao ataque deles respondeu-se em geral com uma polémica ideológica a propagandística e não com um desenvolvimento da nossa política, unido à luta contra as posições chinesas.

A União Soviética realizou algumas acções nesta última direcção (assinatura do Pacto de Moscovo contra as experiências nucleares, viagem do camarada Kruschev ao Egipto, etc.), que constituíram outras tantas vitórias autênticas e importantes contra os chineses. Mas o movimento comunista dos outros países não conseguiu fazer nada deste género. Para ser mais claro, penso, por exemplo, na importância que teria tido um encontro internacional, convocado por alguns partidos comunistas ocidentais, com uma larga esfera de representantes de países democráticos do «terceiro mundo» e dos seus movimentos progressistas, para elaborar uma linha concreta de cooperação e de ajuda a estes movimentos. Era uma maneira de combater os chineses com factos e não apenas com palavras.

Considero importante, a propósito, a nossa experiência de partido. Temos no partido e nas suas franjas pequenos grupos de camaradas e simpatizantes que se Inclinam para as posições chinesas e as defendem. Um ou outro membro do partido teve de ser expulso das nossas fileiras pela sua responsabilidade em actos de divisionismo e de indisciplina. Mas, em geral, nós promovemos sobre todos os temas da polémica com os chineses amplas discussões nas assembleias de célula e de secção e nas reuniões concelhias. E o sucesso é maior sempre que se passa do exame dos temas gerais (características do imperialismo e do Estado, forças motoras da revolução, etc.) às questões concretas da nossa política corrente (luta contra o governo, crítica do Partido Socialista, unidade sindical, greves, etc.). Nestes temas a polémica dos chineses fica completamente desarmada e impotente.

Destas observações concluo que (embora hoje se trabalhe para a conferência internacional) não se deve renunciar a iniciativas políticas que nos sirvam para derrotar as posições chinesas, e que o terreno em que é mais fácil batê-los é o do juízo sobre a situação concreta que hoje temos diante de nós e da acção para resolver os problemas que se põem, em cada um dos sectores do nosso movimento, a cada um dos partidos e ao movimento geral.

Sobre as perspectivas da situação presente

Nós encaramos com certo pessimismo as perspectivas da situação presente, internacionalmente e na nossa pátria. A situação, hoje, é pior do que a que tínhamos de enfrentar dois ou três anos atrás.

Presentemente, o perigo mais sério vem dos Estados Unidos. Este país está a atravessar uma profunda crise social. O conflito racial entre brancos e negros é apenas um dos elementos desta crise. O assassínio de Kennedy revelou até que ponto pode chegar o ataque dos grupos reaccionários. Não se pode de modo nenhum excluir que, nas eleições presidenciais, venha a triunfar o candidato republicano (Goldwater) que tem no seu programa a guerra e fala como um fascista. E o pior é que a ofensiva que ele conduz empurra sempre mais para a direita toda a frente política americana, reforça a tendência para procurar numa maior agressividade internacional, uma via de saída para as contradições internas e a base para um acordo com os grupos reaccionários do Ocidente europeu. Isso toma a situação geral bastante perigosa.

No Ocidente europeu a situação é muito diversificada, mas prevalece como elemento comum um processo de ulterior concentração monopolística, de que o Mercado Comum é o lugar e o instrumento. A concorrência económica americana, que se torna mais intensa e agressiva, contribui para acelerar o processo de concentração. Deste modo, tomam-se mais fortes as bases objectivas de uma política reaccionária, que tende a liquidar ou limitar as liberdades democráticas, a manter em vida os regimes fascistas, a criar regimes autoritários, a impedir qualquer avanço da classe operária e a reduzir sensivelmente o seu nível de vida. Na política internacional as rivalidades e as oposições são profundas. A velha organização da NATO atravessa uma evidente e séria crise, devido especialmente às posições de De Gaulle. Mas é preciso não ter ilusões. Existem certamente contradições que nós podemos explorar a fundo. Até agora, porém, não apareceu, nos grupos dirigentes dos Estados do continente, uma tendência para desenvolver autonomamente e de maneira consequente uma acção em favor do desanuviamento das relações internacionais. E todos estes grupos se movem de um modo ou de outro e em maior ou menor grau sobre o terreno do neocolonialismo, para impedir o progresso económico e político dos novos Estados livres africanos.

Os acontecimentos do Vietname, os acontecimentos do Chipre, mostram como, a continuar a viragem para a direita de toda a situação, poderíamos vir a encontrar-nos subitamente diante de crises e de perigos muito agudos em que se deveriam empenhar a fundo todo o movimento comunista e todas as f orças operárias e socialistas da Europa e do mundo inteiro.

Pensamos que se deve ter em conta esta situação no nosso comportamento para com os comunistas chineses. A unidade de todas as forças socialistas numa acção comum, acima das divergências ideológicas, contra os grupos mais reaccionários do imperialismo é uma necessidade imprescindível. E não se pode pensar em excluir desta unidade os comunistas chineses e a China. Devemos, por conseguinte, a partir de hoje, agir de modo a não criar obstáculos à consecução deste objectivo, mas, de modo a facilitá-lo. Importa pois não interromper nunca a polémica, mas ter sempre como ponto de partida a demonstração, apoiada em factos presentes, de que a unidade de todo o mundo socialista e de todo o movimento operário e comunista é necessária e pode vir a realizar-se.

Em relação à reunião da comissão preparatória de 15 de Dezembro poderia já pensar-se em qualquer iniciativa especial. Por exemplo, poderia pensar-se em enviar uma delegação composta pelos representantes de alguns partidos para expor aos camaradas chineses a nossa intenção de nos mantermos unidos e de colaborar na luta contra o inimigo comum e para lhes pôr o problema de encontrar o caminho e a forma concreta desta colaboração. Deve-se, além disso, pensar que se, como nós pensamos que é necessário, toda a nossa luta contrai as posições chinesas deve ser conduzida como uma luta pela unidade, as resoluções a que se poderá vir a chegar devem ter em conta este facto, devem pôr de lado qualificações genéricas e negativas e ter um forte e preponderante conteúdo político positivo e unitário.

Sobre o desenvolvimento do nosso movimento

Sempre pensámos que não era justo ter uma imagem predominantemente optimista do movimento operário e comunista dos países ocidentais. Nesta parte do mundo, ainda que aqui e ali tenha havido progressos, o nosso desenvolvimento e as nossas forças são ainda hoje inadequadas às tarefas com que deparamos. Se exceptuarmos alguns partidos (França, Itália, Espanha, etc.) ainda não saímos da situação em que os comunistas não conseguem desenvolver uma acção política autêntica e eficaz, que os ligue às grandes massas de trabalhadores, se limitam a um trabalho de propaganda e não têm uma influência efectiva sobre a vida política dos seus países. É necessário conseguir superar por todas as maneiras esta fase, arrastando os comunistas a vencer o seu relativo isolamento, a inserir-se de modo activo e contínuo na realidade política e social, a ter iniciativa política, a transformar-se num movimento efectivo de massas.

Foi exactamente por esta razão, e apesar de sempre termos considerado erradas e perniciosas as posições chinesas, que tivemos sempre, e ainda conservamos, fortes reservas sobre a utilidade de uma conferência internacional dedicada apenas ou predominantemente à denúncia à luta contra essas posições, exactamente porque temíamos e tememos que, desta maneira, os partidos comunistas dos países capitalistas sejam empurrados na direcção oposta à que é necessária, isto é, a fechar-se em polémicas internas, de natureza puramente ideológica, afastadas da realidade. O perigo tornar-se-ia particularmente grave se se chegasse a uma ruptura do movimento, com a formação de um centro internacional chinês com «secções» em todos os países. Todos os partidos, e especialmente os mais débeis, seriam levados a dedicar grande parte da sua actividade à polémica e à luta contra essas ditas «secções» de uma nova «Internacional». Isso criaria desencorajamento entre as massas e o desenvolvimento do nosso movimento seria fortemente bloqueado. É verdade que já há hoje tentativas divisionistas chinesas a desenvolver-se amplamente e em quase todos os países. É necessário evitar que a quantidade destas tentativas divisionistas se transforme em qualidade, isto é, em cisão autêntica, geral e consolidada.

Objectivamente, existem condições muito favoráveis no nosso avanço, quer na classe operária, quer entre as massas trabalhadoras e na vida social em geral. Mas é necessário saber colher e explorar essas condições. Por penso devem os comunistas ter muita coragem política, superar qualquer forma de dogmatismo, enfrentar e resolver problemas novos de modo novo, usar métodos de trabalho adaptados a um ambiente político e social no qual se realizam transformações contínuas e rápidas.

Muito rapidamente apresento alguns exemplos.

A crise do mundo económico burguês é muito profunda. No sistema do capitalismo monopolista de Estado aparecem problemas completamente novos, que as classes dirigentes não conseguem resolver com os métodos tradicionais. Especialmente nos países maiores surge, hoje em dia, a questão de uma centralização da direcção económica, que procura realizar-se com uma programação de cima, para servir os interesses dos grandes monopólios, e através da intervenção do Estado. Esta questão está na ordem do dia em todo o Ocidente e já se fala de uma programação internacional, em cuja preparação trabalham já os órgãos dirigentes do Mercado Comum; É evidente que o movimento operário e democrático não pode desinteressar-se desta questão. Temos de lutar também neste terreno. Isso exige um desenvolvimento e uma coordenação das reivindicações imediatas operárias e das propostas de reforma da estrutura economia (nacionalizações, reforma agrária, etc.) num plano gerai de desenvolvimento económico a contrapor à programação capitalista. Não será certamente ainda um plano socialista, porque faltam as condições para ele, mas é uma nova forma e um novo meio de luta para avançar para o socialismo. A possibilidade de um caminho pacífico para o avanço em direcção ao socialismo está hoje intimamente ligada ao modo de equacionar e de resolvei este problema. Uma iniciativa política nesta direcção pode facilitar-nos a conquista de uma nova e grande influência sobre todos os estratos da população que ainda não estão conquistados para o socialismo mas procuram um caminho novo.

A luta pela democracia acaba por assumir, neste quadro, um conteúdo diferente daquele que teve até agora, mais concreto, mais ligado à realidade da vida económica e social. A programação capitalista está realmente sempre vinculada a tendências antidemocráticas e autoritárias, às quais é necessário opor a adopção de um método democrático mesmo na direcção da vida económica.

Com o amadurecimento das tentativas de programação capitalista torna-se mais difícil a posição dos sindicatos. Parte substancial da programação é efectivamente a denominada «política de rendimentos», que compreende uma série de medidas destinadas a impedir o livre desenvolvimento da luta salarial, com um sistema de controlo autoritário do nível salarial e a proibição do seu aumento; para lá de certo limite. É uma política destinada a fala (interessante é o exemplo da Holanda); mas só poderá vir a falir se os sindicatos souberem movimentar-se com decisão e inteligência, ligando eles também as suas reivindicações imediatas à exigência de reformas económicas e de um plano de desenvolvimento económico, que corresponda aos interesses dos trabalhadores e da classe média.

A luta dos sindicatos, porém, deixou de poder, nas condições hodiernas do Ocidente, ser conduzida isoladamente, país por país. Deve desenvolver-se à escala internacional, com reivindicações e acções comuns. Esta é uma das mais graves lacunas do nosso movimento. A nossa organização sindical internacional (F. S. M.) limita-se a uma propaganda genérica. Até agora ainda não tomou qualquer iniciativa eficaz de acção unitária contra a política dos grandes monopólios. Também não houve qualquer iniciativa nossa dirigida às outras organizações sindicais internacionais. E é um grave erro porque nessas organizações já há quem critique e tente opor-se às propostas e à política dos grandes monopólios.

Mas há muitos outros campos, além destes, onde podemos e devemos mover-nos com maior coragem, liquidando velhas fórmulas que já não correspondem à realidade actual.

No mundo católico organizado e nas massas católicas houve uma viragem evidente à esquerda a partir do tempo do Papa João XXIII. Agora nota-se, no centro, uma viragem à direita, mas permanecem na base as condições e o impulso para uma viragem à esquerda que nós devemos compreender e ajudar. A velha propaganda ateia não nos serve para nada se pretendermos atingir este objectivo. O problema da consciência religiosa, do seu conteúdo, das suas raízes entre as massas e da maneira de a superar deve ser posto de modo diverso daquele que foi utilizado no passado, se quisermos ter acesso às massas católicas e ser compreendidos por elas, se não quisermos que a nossa «mão estendida» aos católicos seja compreendida como um puro expediente e quase como uma hipocrisia.

Igualmente o mundo da cultura (literatura, arte, investigação científica, etc.), tem actualmente as suas portas abertas à penetração comunista. De facto, no mundo capitalista estão a criar-se condições que tendem para a destruição da liberdade da vida intelectual. Devemos ser nós os campeões da liberdade da vida intelectual, da livre criação artística e do progresso científico. Isso exige que nós não apresentemos de modo abstracto as nossas concepções em oposição às diferentes tendências e correntes, mas que abramos o diálogo com essas correntes e através dele procuremos aprofundar os temas da cultura tal como eles (hoje se apresentam. Nem todos aqueles que, nos diversos campos da cultura, ma filosofia, nas ciências históricas e sociais estão actualmente longe de nós, são nossos inimigos ou agentes do nosso inimigo. É a compreensão recíproca, conquistada num debate permanente, que nos dá autoridade e prestígio e, ao mesmo tempo, nos permite desmascarar os verdadeiros inimigos, os falsos pensadores, os charlatães da expressão artística e assim por diante. Neste campo poderíamos receber; grande ajuda, que nem sempre veio, dos países onde já dirigimos toda a vida social.

E deixo de lado, para ser breve, muitos outros temas que poderia referir.

Em geral nós partimos, e estamos convencidos de que se deve partir sempre, na elaboração da nossa política, das posições do XX Congresso. Mas essas posições devem ser, hoje, aprofundadas e desenvolvidas. Par exemplo, uma mais profunda reflexão sabre o tema da possibilidade de uma via pacífica para o socialismo leva-nos a determinar que coisa entendemos nós por democracia num Estado burguês, como se -podem alargar os confins da liberdade e das instituições democráticas e quais são as formas mais eficazes de participação das massas operárias e trabalhadoras na vida económica e política. Surge assim o problema da possibilidade da conquista de posições de poder por parte das classes trabalhadoras no âmbito de um Estado, que não mudou a sua natureza de Estado burguês, e se será possível a luta pela progressiva transformação, de dentro, da sua natureza. Em países onde o movimento comunista se fortaleceu, como no nosso (e em França), esta é a questão de fundo que hoje surge na luta política. Isto comporta naturalmente, uma radicalização desta luta e dela dependem as perspectivas ulteriores.

Uma conferência internacional pode sem dúvida dar um contributo para a solução destes problemas, mas a missão de os aprofundar e resolver compete essencialmente a cada um dos partidos. Pode até recear-se que a adopção de fórmulas gerais rígidas possa constituir um obstáculo. A minha opinião é que, na linha do desenvolvimento histórico actual, e das suas perspectivas gerais (avanço e vitória do socialismo em todo o mundo), as formas e condições concretas de avanço e vitória do no socialismo são muito diferentes das do passado. Ao mesmo tempo são bastante grandes as diferenças entre países. Por conseguinte, cada partido deve saber movimentar-se de maneira autónoma. A autonomia dos partidos, do que nós somos fautores decididos, não é só uma necessidade interna do nosso movimento mas uma condição é essencial do nosso desenvolvimento nas condições actuais. Seremos, por conseguinte, contra qualquer proposta para criar uma nova organização internacional centralizada. Somos tenazes promotores da unidade do nosso movimento e do movimento operário internacional, mas essa unidade deve realizar-se na diversidade de posições políticas concretas, que correspondam à situação e ao grau de desenvolvimento de cada país. Naturalmente, há o perigo do isolamento dos partidos, uns dos outros e também de uma certa confusão. É necessário lutar contra estes perigos e por isso nós cremos que deveriam adoptar-se estes meios: contactos bastante frequentes e troca de experiências entre partidos em larga escala; convocação de reuniões colectivas dedicadas ao estudo dos problemas comuns a um certo grupo de partidos; encontros internacionais de estudo sobre problemas gerais de economia, filosofia, história, etc.

Além disto, somos a favor da promoção de debates, mesmo públicos, entre cada um dos partidos e sobre lemas de interesse comum, de modo a interessar toda a opinião pública; isso exige, como é fácil de ver, que o debate seja conduzido em formas correctas e com respeito recíproco, não com a vulgaridade e a violência adoptadas pelos albaneses e pelos chineses.

Relações com o movimento dos países coloniais e ex-coloniais

Atribuímos uma importância decisiva para o desenvolvimento do nosso movimento à criação de amplas relações de conhecimento recíproco e de colaboração entre os partidos comunistas dos países capitalistas e os movimentos de libertação dos países coloniais e ex-coloniais.

Estas relações não devem, porém, ser estabelecidas só com os partidos comunistas desses países, mas com todas as forças que lutam pela independência e contra o imperialismo e também, na medida do possível, com círculos governativos de países recém-libertados e que tenham governos progressistas. O objectivo a atingir será conseguir elaborar uma plataforma concreta comum de luta contra o imperialismo e contra o colonialismo1. Paralelamente, deveremos aprofundar melhor o problema dos caminhos de desenvolvimento das ex-colónias, qual o significado que para elas poderá ter o objectivo do socialismo e assim por diante. São temas novos que até agora ainda não enfrentámos. Para isto, como já disso, teríamos saudado com prazer uma reunião internacional dedicada exclusivamente a estes problemas e a eles ternos de dedicar, de qualquer modo, uma parte cada vez maior de todo o nosso trabalho.

Problemas do mundo socialista

Creio que se pode afirmar, sem ter receio de errar, que a desenfreada e vergonhosa campanha chinesa e albanesa contra a União Soviética, o PCUS e os seus dirigentes, especialmente o camarada Kruschev, não teve entre as massas, consequências dignas de grande nota, apesar de explorada a fundo pelas propagandas burguesas e governativas. A autoridade e o prestígio da União Soviética entre as massas continuam a ser enormes. As mais grosseiras calúnias dos chineses (aburguesamento da US, etc.) não têm qualquer impacto. Nota-se contudo certa perplexidade acerca do problema do regresso dos técnicos soviéticos da China.

O que preocupa as massas e também (pelo menos entre nós) uma parte não desprezível de comunistas é o facto em si da oposição tão aguda entre dois países, que se tomaram socialistas graças à vitória de duas grandes revoluções. Este facto põe em questão os próprios princípios do socialismo e nós ternos de fazer um grande esforço para explicar quais são as condições históricas, políticas, de partido e pessoais que contribuíram para criar a oposição e o conflito actual. Acrescente-se a isto que, na Itália, há amplas zonas habitadas por rurais pobres entre os quais a revolução chinesa era bastante popular como revolução agrária. Isso obriga o partido a discutir as posições chinesas, a criticá-las e a rejeitá-las mesmo nos comícios públicos. Aos albaneses, porém, ninguém presta atenção, embora tenhamos no Sul alguns grupos étnicos de língua albanesa.

Há outros problemas, além do conflito chinês, para os quais pedimos atenção.

Não é justo falar dos países socialistas (inclusive, da União Soviética) como se neles tudo corresse sempre pelo melhor. Este é, por exemplo, o erro do capítulo da resolução de 60, que lhes é dedicado. Aparecem permanentemente, em todos os países socialistas, dificuldades, contradições, novos problemas que é necessário apresentar na sua realidade efectiva. O pior é dar a impressão de que tudo corre sempre bem, quando depois nos vamos encontrar inesperadamente perante a necessidade de falar de situações difíceis e de explicá-las. Mas não se trata só de factos isolados. É toda a problemática da construção económica e política socialista, que é conhecida de maneira excessivamente sumária e frequentemente primitiva, no Ocidente. Falta o conhecimento da diversidade das situações entre cada um dos países, dos diversos métodos de planificação e da sua progressiva transformação, do método seguido e das dificuldades que se encontram na integração económica entre os diversos países e assim por diante. Algumas situações são dificilmente compreensíveis. Em muitos casos tem-se a impressão de que há, nos grupos dirigentes, diversidade de opiniões, mas não se percebe se é realmente assim e quais as divergências. Talvez fosse útil, num ou noutro caso, que nos países socialistas também houvesse debates abertos com a participação de dirigentes sobre temas actuais. Isso contribuiria certamente para um acréscimo de autoridade e de prestígio do regime socialista.

As críticas a Estaline, é preciso não escondê-lo, deixaram marcas bastante profundas. A coisa mais grave é uma certa dose de cepticismo com que até elementos próximos de nós acolhem as notícias de novos sucessos económicos e políticos. Além do mais, considera-se como não resolvido o problema das origens do culto de Estaline e como foi possível. Não se aceita explicar tudo exclusivamente com os graves vícios pessoais de Estaline, procura-se investigar quais podem ter sido os erros políticos que contribuíram para dar origem ao culto. Este debate passa-se entre historiadores e quadros qualificados do partido. Nós não o desencorajamos porque leva a um conhecimento mais profundo da história da revolução e das suas dificuldades. Aconselhamos, porém, prudência nas conclusões e que se tenham presentes as publicações e investigações que se fazem na União Soviética.

O problema a que se presta actualmente maior atenção, porém, quer quanto à URSS quer quanto aos outros países socialistas, é o da superação do regime de limitação e supressão das liberdades democráticas e pessoais que tinha sido instaurado por Estaline. O quadro não é o mesmo em todos os países socialistas. A impressão geral é de lentidão e resistência em voltar às normas leninistas, que asseguravam, mo partido e fora dele, larga liberdade de expressão e de debate, mo campo da cultura, da arte e até mo campo político. Essa lentidão e resistência é para nós dificilmente compreensível sobretudo tendo em consideração as condições actuais em que não existe bloqueio capitalista e a construção económica alcançou sucessos grandiosos. Nós partimos sempre da ideia de que o socialismo é o regime em que há a mais ampla liberdade para os trabalhadores e eles participam de facto, de modo organizado, ma direcção de toda a vida social. Saudamos, por conseguinte, todas as posições de princípio e todos os factos que mos mostram que essa é a realidade em todos os países socialistas e mão apenas na União Soviética. Prejudicam, pelo contrário, todo o movimento os factos que nos mostram eventualmente o contrário.

Um facto, que nos preocupa e que não conseguimos explicar completamente, é o do aparecimento nos países socialistas de uma tendência centrífuga. Há nessa tendência um perigo grave e evidente, que pensamos que deve preocupar os camaradas soviéticos. Há certamente efeitos do nacionalismo renascente. Sabemos, porém, que o sentimento nacional é uma constante do movimento operário e socialista durante um período longo, mesmo depois da conquista do poder. Os progressos económicos não o extinguem, alimentam-no. Mesmo no campo socialista, talvez (sublinho este talvez porque se desconhecem muitos factos concretos) seja de evitar a forçada uniformidade exterior e talvez se deva pensar que a unidade deve existir e manter-se dentro da diversidade e plena autonomia de cada país.

Em conclusão, pensamos que, mesmo no tocante aos países socialistas, é preciso ter a coragem de enfrentar com espírito crítico muitas situações e muitos problemas, no se quiser criar a base de uma melhor compreensão e de uma mais apertada unidade de todo o nosso movimento.

Sobre a situação italiana

Muitas coisas deveria acrescentar para informar exactamente sobre a situação do nosso país, mas estes apontamentos já são demasiado longos, do que peço desculpa. É preferível reservar para explicações e informações verbais os problemas exclusivamente italianos.


Notas de rodapé:

(2) Doutrina dos partidários da Santa-Fé contra o republicanismo na Itália do Sul, como em Nápoles (1799). (N. do T.) (retornar ao texto)

(3) «Nos anos de 1934-1941, quando os imperialistas preparavam cada vez miais fortemente a sua agressão contra a URSS, uma intervenção contra Estaline teria podido provocar perturbações que os inimigos do comunismo não teriam deixado de explorar. Não teria tal intervenção aberto caminho à agressão? Era necessário correr esse risco? Nenhum comunista honesto ousaria afirmá-lo. Praticamente não era talvez possível fazer algo diferente do que foi feito. Era necessário ‘cerrar os dentes’ e trabalhar na edificação do socialismo, no reforço da URSS, no revigoramento dos partidos comunistas do mundo inteiro, e tudo isto, apesar das tragédias provocadas pelo culto da personalidade de Estaline(L’Humanité, 26 de Abril de 1956.) (retornar ao texto)

Inclusão 20/05/2015