MIA > Biblioteca > Temática > Novidades
Primeira Edição: ABC do Marxismo-Leninismo Série B, N° 2, Editorial Avante!, Lisboa, 1976
Fonte: Partido Comunista Português — Organização Regional de Lisboa
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
Quando olhamos a história(1), o que vemos é uma variedade desconcertante de povos, Estados e personalidades enredados numa sequência ininterrupta de acontecimentos. Movimento, mudança, extinção de Estados ou classes, florescimento de outros — eis a história.
Discute-se há muito se, na história, toda esta mudança e movimento acontecem segundo leis, ou se nela impera o acaso cego.
Mas porque se há-de discutir isto? Qual a importância de sabermos se há leis da história e, caso as haja, se as podemos conhecer? Bem, se não houvesse leis históricas, ou se as não pudéssemos conhecer, também não haveria uma ciência da sociedade humana, pois a ciência não é, no fundo, senão a investigação das conexões e processos regulares num domínio qualquer da natureza, da sociedade ou da consciência. O conhecimento destas leis permite-nos predizer o que, em determinadas circunstâncias, e se as leis forem observadas, vai acontecer. Só havendo leis sociais conhecíveis é que podemos, no que concerne à sociedade, pôr a nós próprios objectivos atingíveis, só assim é possível traçar um plano e agir em conformidade com ele, só assim os homens podem, em concordância com a acção de tais leis, realizar aquilo que se propuseram.
Mas o que parece acontecer na história é ela ser dominada por um acaso imprevisível. O destino de Estados e povos inteiros parece depender do facto de uma dada batalha ter sido ganha, «por acaso», por um dos contendores, de o «acaso do nascimento» ou «acasos» de outro tipo, terem colocado à frente do Estado pessoas hábeis ou incapazes, de essas pessoas terem sido, «por acaso», ambiciosas, belicosas ou pacíficas, sábias e justas, de as mulheres ou as amadas os terem incitado a feitos bons ou maus, etc.
A opinião de que na história não há, nem pode haver, quaisquer leis é também alimentada pelo facto de existir uma grande diferença entre a natureza e a sociedade humana. Nenhum homem sensato contesta que na natureza as coisas acontecem segundo leis. Assim, se eu semear trigo, é trigo e não nabos que depois vou comer. Mas, na natureza, só actuam umas sobre as outras forças cegas e inconscientes. A água que se precipita da montanha e cava o seu leito não tem «vontade», limita-se a «seguir» a lei da gravidade. Mas na sociedade o caso é completamente diferente. Os homens fazem eles próprios a sua história, e naturalmente que não a fazem sem pensar, sem desejar, querer ou ambicionar alguma coisa. Toda e qualquer acção humana tem por base impulsos espirituais, que não existem na natureza. A consciência humana influencia, portanto, a formação da sociedade humana. E quem irá contestar que os homens, neste processo, agem pelos mais diferentes interesses, pelos motivos espirituais e morais mais variados?
Os operários querem uma fatia maior do «bolo» social, menos horas de trabalho, mais direitos de intervirem na tomada de decisões. Precisamente o que os empresários lhes querem vedar. Como é que nesta confusão de forças antagónicas em acção se estabelecem a ordem e a regularidade próprias das leis?
Perante estes factos indiscutíveis dizem os adversários do marxismo: se na história as coisas acontecem de facto segundo leis, se o socialismo vem também segundo leis — como vocês, os marxistas, dizem —, então para que vos organizais e fazeis a luta política? Ninguém se lembraria de criar um partido para conseguir um eclipse da Lua, que, esse sim, acontece segundo leis, e para lutar por ele. O eclipse acontece, quer nós queiramos quer não. Se o socialismo resultasse de leis históricas, ele viria, independentemente de vocês o quererem e nós não, ou vice-versa. Tudo seria, portanto, indiferente!
O marxismo nunca ignorou que há uma diferença essencial no modo como se concretizam as leis na natureza, por um lado, e na história da sociedade humana, por outro. Os processos naturais ocorrem de um modo cego, sem intervenção humana. Mas a sociedade é o reino específico do homem. Ela surge precisamente pela sua acção. Só por esta acção as leis da sociedade se afirmam. Os homens fazem eles próprios a sua história. Mas não têm inteira liberdade de escolher as condições em que a fazem. Os homens nascem, são postos em determinadas condições naturais e sociais, às quais estão ligados na sua acção. O papel que os motivos que os levam a agir desempenham em tudo isto é essencial. Uma consciência errada das realidades leva a uma actuação errada, contrária aos próprios interesses de quem actua.
Ao elegerem Hitler, em 1932 e 1933, milhões de alemães agiram erradamente, porque tinham uma consciência errada. Mas essa decisão contrária ao progresso histórico teve uma punição bem amarga. E o mesmo se passa hoje: as bárbaras manifestações de vida do capitalismo acabarão por obrigar a humanidade a escolher entre passar para o socialismo à escala mundial ou ser aniquilada na barbárie de uma guerra atómica. Precisamente por isso é que, na concretização das leis sociais, cabe uma importância decisiva à luta do homem pela consciência, pela organização dos homens para a luta política.
Na realidade, não é muito difícil provar que há leis em acção também na sociedade humana e na sua história. É um facto indiscutível que a distância que separa o homem dos seus antepassados simiescos do reino animal tem vindo a tornar-se cada vez maior com o decorrer da história. Cresce o poder do homem sobre a natureza, a sua técnica é cada vez mais eficiente. Quando lemos as descrições sobre a vida em tempos passados, quando os homens ainda não eram capazes de se defenderem eficazmente contra o frio, epidemias e outras pragas, e as comparamos com a vida dos nossos dias, salta-nos à vista um desenvolvimento ascensional dos homens, sem dúvida penoso, conquistado em lutas permanentes, mas inegável.
É por de mais evidente que há, na história, apesar de todos os altos e baixos nas suas mudanças, uma lei do progresso. Se assim não fosse, os muitos movimentos e acções de sinal contrário ter-se-iam eliminado mutuamente, e a história seria um imagem da imobilidade. Mas não é isto que se verifica, pelo que tem de haver leis cujo efeito é o progresso histórico. A própria diferença entre a natureza e a sociedade, o facto de os processos naturais levarem a resultados que nunca são objectivos conscientemente alcançados e de na sociedade haver seres conscientes, os homens, que pelo seu agir desencadeiam o movimento, «em nada pode modificar o facto de o curso da história ser regido por leis gerais internas»(2).
Ora, segundo certos teóricos burgueses — por exemplo, Lamprecht, Alfred Weber e outros — seria a vida espiritual do homem que determinaria o desenvolvimento histórico.
Porém, facilmente se verifica que na história há repetições, identidade de situações, e, assim, a regularidade própria das leis: os sistemas sociais fundamentais da sociedade primitiva, do escravismo, do feudalismo, do capitalismo e do socialismo têm, onde quer que tenham surgido, certas características fundamentais comuns: tanto hoje como há 150 anos, no Japão, na Inglaterra ou na América, em zonas tórridas ou temperadas, em povos de diferentes raças — em parte alguma houve, nem há, escravismo sem escravos e escravistas, capitalismo sem assalariados e capitalistas.
Em toda a parte, a um certo tipo fundamental de vida económica corresponde um tipo fundamental de vida cultural e política, de vida espiritual. Onde há a livre concorrência de capitalistas privados surge uma corrente democrático-burguesa, ou mesmo uma ordem estatal democrática burguesa.
Isto é independente da raça, da nação e da tradição cultural. E onde são determinantes as empresas gigantescas que dominam a produção e o poder — os monopólios —, surgem movimentos e ordens estatais reaccionários, inimigos da paz e, por fim, fascistas. Também aqui o problema não é nacional, nem rácico, nem cultural. Essas ideias e as suas contracorrentes — independentemente da raça, da nação, do clima etc. — tornam-se «populares» porque correspondem a situações onde preponderam certos interesses. E qual a origem dessas situações? Qual o factor comum, o único factor de identidade que se repete na variedade dos fenómenos rácicos, nacionais, de tradição cultural, climáticos, geográficos e outros? Qual é, portanto, o fenómeno que determina, de forma regular, a vida social e também o movimento cultural? Há apenas um factor assim: o mesmo modo de produção — nos nossos exemplos, o modo de produção capitalista. Mas disso falaremos depois com mais precisão.
A prova de que Weber e Lamprecht, e todos aqueles que afirmam ser a história determinada pela nossa vida espiritual, não têm razão transparece também da seguinte reflexão: os homens agem enquanto lutam por objectivos que antes se formaram no seu pensamento, no seu sentir e no seu querer. Mas só raramente acontece aquilo que se quer. Na maior parte dos casos, os muitos objectivos pretendidos entrecruzam-se e chocam-se, quer por serem de antemão irrealizáveis, quer pela insuficiência dos meios. Assim, os choques das inúmeras vontades e acções individuais no domínio da história provocam uma situação em que os objectivos das acções são, de facto, desejados, «mas os resultados que realmente decorrem das acções não são desejados ou, embora a princípio pareçam corresponder ao objectivo desejado, acabam por ter consequências totalmente diferentes das desejadas».(3)
Não se trata aqui apenas de «insucessos» na concretização de objectivos como o do monge Berthold Schwarz, que queria produzir ouro e inventou a pólvora; ou como o de Bottcher, que, perseguindo o mesmo objectivo, chegou à produção da porcelana. Trata-se também, e sobretudo, das grandes acções de Estado: Robespierre, Marat, Saint Just e outros, levando por diante a Grande Revolução Francesa após 1789, desejaram, de coração puro, a liberdade, igualdade e fraternidade para todos os homens, mas não fizeram mais do que afastar — sem disso se aperceberem, claro — os obstáculos que ainda tolhiam o desenvolvimento do capitalismo em França. E não é no capitalismo que se pode falar de liberdade, igualdade e fraternidade para todos os homens.
Sobre o assunto escreve Engels com toda a razão:
«Os homens fazem a sua história, tome esta o curso que tomar, na medida em que cada um persegue os seus objectivos próprios e conscientemente desejados, e a resultante destas muitas vontades, que agem em direcções diversas, e dos seus múltiplos efeitos sobre o mundo exterior, é, precisamente, a história. Tem, portanto, também influência o que os muitos indivíduos querem. A vontade é determinada pela paixão ou pela reflexão. Mas as alavancas que, por seu turno, determinam directamente a paixão ou a reflexão são de tipos muito diferentes. Podem ser, em parte, os objectos externos, em parte motivos ideais, ambição, entusiasmo pela verdade e pela justiça, ódio pessoal ou caprichos puramente individuais de todos os tipos. Mas, por um lado, vimos que as muitas vontades individuais activas na história produzem, na maior parte dos casos, resultados bem diferentes — muitas vezes, completamente opostos — dos desejados, e que os seus motivos são, portanto, de importância igualmente secundária para o resultado global. Por outro lado, há ainda que perguntar que forças impulsionadoras estão, por seu turno, por detrás desses motivos, e quais as causas históricas que, na cabeça dos que agem, se transformam em tais motivos.»(4)
É perfeitamente certo que tudo o que faz mover os homens tem de lhes passar primeiro pela cabeça. Por isso, não há acontecimentos históricos que não estejam ligados a ideias. Mas a verdade é que os grandes resultados históricos da acção dos homens só raramente corresponderam aos objectivos ou motivos ideais. Mas quando isto acontece, acontece apenas porque as ideias se adequam ao processo histórico concreto. O que significa, porém, que, na história, além dos motivos espirituais, agem e se afirmam outras forças mais poderosas: de «acordo» com as ideias, quando estas correspondem ao curso real da história — contra as ideias, sempre que estas não correspondem à realidade. Estas forças motrizes por detrás das ideias são, portanto, mais poderosas que as ideias, e têm, por conseguinte, de ser investigadas se se quiser compreender a história.
«A inconsequência não reside no facto de se reconhecerem as forças motrizes ideais, mas sim no facto de não se ir além destas até às causas que as põem em movimento.»(5)
Temos, pois, de estudar o problema seguinte:
Donde vêm os pensamentos, na base dos quais os homens agem? Que circunstâncias fazem que as forças em acção por detrás das nossas forças motrizes espirituais assumam numa cabeça uma forma e noutra uma forma completamente diferente? O idealista filosófico defende que estas forças motrizes espirituais do agir humano são o Ideal, o Primordial, e que dispensam qualquer outra explicação que não a da sua origem em outras ideias e pensamentos que as precederam. O materialista filosófico considera esta explicação insuficiente e diz que o ideal é o material, que se reflecte na cabeça humana(6).
Estudemos melhor este ponto.
Durante a Idade Média, a ideia dominante era a religião católica. O mundo era entendido como criação de um Deus extraterreno que se tinha revelado aos homens através da Bíblia. Se o homem queria saber algo sobre o mundo, só tinha de estudar a Bíblia. O estudo da natureza, criação de Deus, proporciona, segundo esta concepção, muito menos conhecimentos do que o estudo do original, da palavra de Deus. E se nesta se dizia que Josué mandou parar o Sol, estava provado pela «palavra de Deus» que o Sol gira a volta da Terra. O contrário seria, portanto, impossível. Estariam, por conseguinte, errados aqueles que, pelo estudo da natureza, chegassem a concepções opostas, pois de modo nenhum a natureza, criação de Deus, poderia contradizer a palavra de Deus.
Assim argumentava ainda Lutero contra Copérnico.
No século XVII, diversos pensadores dos países economicamente mais desenvolvidos começaram a defender a ideia de que havia que libertar a ciência destes grilhões religiosos. Só teria validade aquilo que conseguisse resistir ao tribunal da Razão e que tivesse por base provas naturais da experimentação, de observações da natureza e da experiência. Mas a que se deve que precisamente nessa altura, e precisamente nesses países, tenham surgido novas opiniões? Será que os grandes pensadores da Idade Média eram mais fracos intelectualmente? Decerto não era este o caso. É impossível explicar estas mudanças se só acompanharmos o desenvolvimento das ideias. Acontece, isso sim, que se processavam então profundas transformações sociais. Surgiu o sistema económico capitalista. O capitalismo significa a busca do maior lucro possível, o aproveitamento, com este fim em vista, de todas as potencialidades produtivas «deste mundo», e, portanto, a investigação profunda «deste mundo» — das leis da natureza — para se poder construir máquinas e descobrir novos processos de produção; das vias marítimas e terrestres, da Terra com os tesouros do seu solo e demais riquezas, para se poder desenvolver o mais rapidamente possível a produção e o comércio. Para isso, as forças impulsionadoras do capitalismo precisavam de novas ideias, de ideias apontadas para «este mundo», para a investigação do mundo, e romperam com os dogmas religiosos medievais. Estes ideólogos da burguesia em ascensão foram perseguidos a ferro e fogo pela Igreja, a qual estava do lado do feudalismo. Giordano Bruno morreu na fogueira, e Galileu só não teve sorte igual porque renegou publicamente os resultados da sua investigação. Os escritos de Copérnico estiveram no Index (uma lista da literatura proibida oficialmente pela Igreja) até meados do século XIX!
Não admira que os ideólogos burgueses se voltassem contra os teólogos e procurassem os seus modelos espirituais entre os grandes pensadores e poetas da antiguidade greco-latina. Era o mundo destes que queriam reconquistar, e acreditavam que o conseguiriam pelo novo despertar (Renascimento) da vida espiritual grega. Ora, se de facto o espírito fosse a força determinante do desenvolvimento histórico, resultaria necessariamente do renascimento do pensamento antigo um renascimento da realidade antiga. Não foi isto, porém, o que aconteceu: nasceu, sim, o capitalismo moderno, pois na história são determinantes, não os processos espirituais, mas outros.
Nos primeiros tempos da sociedade humana, quando o trabalho do homem rendia tão pouco que este mal produzia o que consumia, não tinha sentido obrigar homens a trabalhar como escravos. Na melhor das hipóteses teriam produzido aquilo de que eles próprios precisavam para viver: o seu trabalho não teria servido a ninguém como fonte de «enriquecimento». Nesse tempo, onde a alimentação escasseava os prisioneiros eram devorados.
Quando a rendibilidade do trabalho humano se elevou, e os prisioneiros passaram a ser úteis, a ideia de que o canibalismo era desumano tornou-se mais evidente. Com o desenvolvimento posterior do trabalho, a ideia do que é humano foi-se alargando, até chegar ás nossas representações actuais do humanismo, das relações humanas e de uma ordem humana livre de fenómenos como o extermínio, a exploração e a opressão do homem pelo homem. O desenvolvimento da ideia do humanismo dependeu, portanto, do desenvolvimento da vida social dos homens.
A concepção idealista da história é também refutada por outros factos: muitas ideias tinham tido larga difusão, dezenas ou mesmo centenas de milhões de homens reconheceram que elas eram «racionais», «justas», etc., e, contudo, não conseguiram concretizar-se, não conseguiram alcançar efeitos práticos profundos. Peguemos na ideia cristã do amor fraterno entre os homens. O governo americano gosta de se gabar dos seus princípios cristãos. Mas basta que pensemos no Vietname para vermos que esses princípios são pouco eficazes quando o que está em jogo são interesses materiais. Dois mil anos de pregação cristã do amor dos homens não conseguiram evitar, no Ocidente cristão tão louvado, a opressão e a exploração, os antagonismos mais gritantes de miséria e abundância, e mesmo os assassínios em massa praticados por ambas as partes (e cristãmente abençoados!) em luta nas guerras sangrentas.
A história mostra-nos um número incontável de acontecimentos e esforços em que os homens definem os objectivos a atingir e lutam por eles com grande energia, sem conseguirem, contudo, alcançá-los. Quando apareceram as máquinas, e os capitalistas as puseram ao seu serviço, os operários viram apenas as pesadas desvantagens resultantes da utilização capitalista do trabalho das máquinas: prolongamento do tempo de trabalho até ao limiar do esgotamento físico, a introdução de formas monstruosas do trabalho infantil, a perda de postos de trabalho, os trabalhos mecânicos que embruteciam o espírito e embotavam os sentidos.
Despertou então nos operários a «ideia» de que a culpa de tudo isto era da máquina, e de que era preciso destruí-la. Começa o primeiro período das lutas operárias, o período da destruição das máquinas. Os operários «destroçam as máquinas, deitam fogo às fábricas, procuram recuperar a posição desaparecida do trabalhador medieval»(7). Mas esta ideia era irrealizável, pois a máquina é o resultado do desenvolvimento da sociedade que se processa segundo leis. As leis sociais são mais fortes que as ideias que contrariam esse desenvolvimento.
É evidente que as ideias, por muito «tentadoras» que sejam, não bastam para dar à sociedade uma forma que corresponda aos objectivos, pretensos ou reais, que se procura atingir, mas também encobrir, com tais ideias. Assim, não se pode explicar a marcha da história se se procurar a chave desta explicação nas ideias. Desta posição idealista não se pode sequer explicar por que motivo em tempos determinados predominam ideias bem determinadas e noutros tempos predominaram outras ideias, por que motivo é possível realizar na vida muitas dessas ideias, mas impossível outras. A consideração idealista da sociedade não vê que nos pensamentos é a própria realidade que se reflecte, e que, por isso mesmo, não é a partir dos pensamentos que se pode compreender a realidade de uma época, mas que é a partir da realidade que se pode compreender os pensamentos dessa época.
«Não é a consciência dos homens que lhes determina a existência; é, ao invés, a sua existência social que lhes determina a consciência», dissera Marx sobre o assunto(8).
É claro que nem todas as ideias nascem da realidade do seu tempo, há ideias que podem ser transmitidas de geração para geração. Também há, por isso, ideias antiquadas: hoje, por exemplo, ainda persistem ideias de ódio racial e de arrogância nacional. Mas até estas ideias devem a sua origem, e não raro também a sua sobrevivência ou a sua reactivação, aos interesses bem sólidos de grupos socialmente poderosos.
Há também ideias fantásticas. Pareceria que não derivam, de modo nenhum, da realidade. Mas quando examinamos com rigor as ideias de duendes, as concepções supersticiosas, os fenómenos fantásticos de lendas e de contos de fadas, logo vemos quais as aspirações, os medos e os cuidados secretos dos homens e quais as condições sociais e os períodos históricos que neles se reflectem.
A concepção de que as forças motoras ideais seriam a causa última do desenvolvimento histórico aparece-nos, frequentemente, na afirmação de que seriam o pensamento e a acção dos homens suposta ou realmente grandes que fariam a história. Sendo indubitavelmente importante o estudo do pensamento e do carácter de grandes personalidades, sendo muito compensadora a leitura atenta das memórias, da correspondência, etc., desses homens, nem um nem outra são, contudo, suficientes para compreendermos realmente o curso da história. Sobre o assunto notava Engels no escrito sobre Ludwig Feuerbach que já várias vezes citámos:
«Quando o que importa é, pois, investigar os poderes impulsionadores que — consciente ou inconscientemente, e muitas vezes, de facto, inconscientemente -estão por detrás dos motivos dos homens que são os agentes históricos, poderes esses que constituem as forças motoras últimas e autênticas da história, não pode tratar-se tanto dos motivos de homens individuais, por proeminentes que sejam, como dos que põem em movimento grandes massas, povos inteiros e, em cada povo, por seu lado, classes populares inteiras; e também não o que, momentaneamente, leva a labareda transitória de um fogo na palha que cedo se consome, mas a acção duradoura que acaba por provocar uma grande modificação histórica. Penetrar as causas impulsionadoras que aqui se reflectem na cabeça das massas agentes e dos seus chefes — os chamados grandes homens — como motivos conscientes, clara ou obscuramente, directamente ou sob forma ideológica, divinizada, até — eis a única via que nos pode conduzir às leis que regem a história no seu todo e em cada um dos períodos e países.»(9)
Vimos que os motivos espirituais da nossa acção não podem ser as forças motoras últimas da história, que por detrás destes motivos espirituais actuam, isso sim, forças ainda mais poderosas, e que os motivos espirituais só podem ser correctamente entendidos quando compreendemos que têm origem nessas forças e condições ainda mais poderosas do desenvolvimento social. Estas forças motoras ainda mais poderosas existem fora do nosso pensamento, dos nossos sentimentos, da nossa vontade, em suma, fora da nossa consciência e independentemente dela. Aos fenómenos da natureza e da sociedade que existem fora e independentemente da nossa consciência a filosofia chama fenómenos materiais. E a concepção que vê em causas materiais as forças motoras últimas da história é a concepção materialista da história, a que se dá também o nome de materialismo histórico. Foi criada por Karl Marx e Friedrich Engels, e algumas questões da concepção materialista da história já foram aqui discutidas por nós.
O cerne da concepção materialista da história aponta para o esclarecimento do problema de saber quais são, de entre as numerosas condições materiais da vida social — condições geográficas e climáticas, densidade populacional, factores biológicos, produção dos meios de existência em sentido mais amplo —, aquelas que determinam, de facto, o desenvolvimento histórico. É um problema a que só poderemos responder se estudarmos cientificamente a própria história.
É evidente que a vida não é possível sem condições geográficas e climáticas adequadas. Na Lua, tal como existe, sem qualquer intervenção do homem a vida terrestre não é possível. Mas, apesar disso, os homens já lá chegaram. Viveram e trabalharam lá. O que é certo é que tiveram de criar com antecedência determinadas condições, tais como fatos de protecção com o seu próprio «clima» e outros equipamentos técnicos, para lá poderem permanecer e agir.
Mas o que se conclui deste exemplo? Depois de a vida ter surgido na Terra, e de o homem ter surgido no processo de desenvolvimento da vida, e depois de o desenvolvimento social ter atingido um determinado nível, as condições geográficas e climáticas são tão pouco determinantes para o desenvolvimento histórico que o próprio homem pode intervir nelas e até, em parte, criá-las artificialmente. Antigamente, porém, era muito maior a influência, hostil ou favorável, que o clima e a situação geográfica exerciam no modo de vida dos homens e no seu desenvolvimento. Para o desenvolvimento da Europa foi, sem dúvida, favorável que os homens — para conseguirem alimentar-se — tivessem de trabalhar mais do que em certas áreas geográficas, que tivessem de arranjar vestuário, que o trabalho no nosso clima temperado seja muito menos esgotante que em zonas tórridas, mas também que não tenhamos de travar uma dura «luta pela sobrevivência» nas condições do gelo eterno, que a Europa seja relativamente rica em matérias-primas fundamentais (carvão, ferro) e possua uma costa bastante recortada, com muitos portos naturais e mares mais pequenos ao longo da costa (mar Báltico, mar do Norte, golfo da Biscaia, Mediterrâneo, mar Negro) que fomentaram a navegação marítima.
No entanto, uma investigação objectiva mostra que esta influência, favorável no nosso caso, das condições geográficas e climáticas do desenvolvimento social não pode ter sido a força motora histórica determinante: em última análise nem sequer naqueles tempos remotos em que a humanidade estava ainda mais directamente dependente do que hoje dessas condições naturais de vida. A Itália (a Roma antiga), por exemplo, foi a primeira potência mundial, mas hoje já não o é, apesar de existirem condições climáticas e geográficas que, no essencial, continuam as mesmas. A Itália não tem carvão e também é pobre em riquezas minerais. No entanto, o capitalismo desenvolveu-se em Itália.
Considerando o problema à escala mundial, verifica-se que a sociedade se desenvolve muito mais rapidamente que o clima e a geografia. Foi nestes últimos séculos que a história recebeu a maior aceleração, embora não tenha havido, neste mesmo tempo, qualquer modificação climática ou geográfica digna de nota. E a produção e o modo de vida modernos estendem-se também a todos os ambientes climáticos e geográficos. De tudo isto conclui-se que aquilo que se desenvolve muito mais lentamente do que a sociedade não pode ser a força motora determinante da história, apesar de toda a influencia, hostil ou favorável, que incontestavelmente exerce sobre o desenvolvimento social.
No fundo, a mesma argumentação é válida também para os problemas de qual a influência que a densidade populacional e o movimento de populações tem sobre a história. É do conhecimento geral que há uma certa conexão entre pobreza e aumento da população. Camadas pobres e povos pobres multiplicam-se mais rapidamente que os prósperos. Com o desenvolvimento de um certo bem-estar inverte-se a tendência de aumento da população, embora haja agora mais meios de existência — no sentido mais amplo da palavra —, e portanto mais bocas pudessem ser alimentadas. Isto aponta para o facto de o aumento populacional depender de condições sociais, e não estas daquele.
É também um facto indiscutível que entre os povos com um mesmo sistema social se encontram alguns com grande, e outros com pequena, densidade populacional.
Não se consegue, portanto, encontrar qualquer conexão regular que demonstre que uma maior ou menor densidade populacional seja condição de nível de vida mais alto ou mais baixo, ou da vida nas condições capitalistas ou socialistas. As leis do aumento da população não são essenciais para o desenvolvimento histórico. Por isso, é também demagógica a palavra de ordem do «espaço vital» de um povo. Muitos povos com fraca densidade populacional necessitam de «ajuda para o desenvolvimento»;(11) em contrapartida, muitos países com elevada densidade populacional não carecem de tal auxilio, porque possuem, ao contrário dos primeiros, uma indústria altamente desenvolvida.
No caderno "Como o homem se tornou homem" (12) mostrou-se que o homem se distingue do animal pelo trabalho. Pelo trabalho, pelo uso e — sobretudo — pela produção de instrumentos, o homem constrói como que órgãos novos, artificiais, um ambiente «artificial», precisamente a sociedade, que com as suas leis próprias se sobrepõe ao ambiente natural, a base natural biológica da vida humana. Quais são então as leis que, em última analise, determinam o desenvolvimento histórico? Seriam os antigos conquistadores romanos do mundo de raça diferente dos italianos de hoje, que já não são conquistadores do mundo? Os Vikings nórdicos eram piratas temidos, os seus descendentes suecos e noruegueses de hoje são um povo pacífico. Em todas as raças há assalariados e empresários, intelectuais e artistas, classes e nações opressoras ou oprimidas, opressores e combatentes pela liberdade. O modo de vida moderno não conhece barreiras rácicas nem biológicas. Assim, é bem evidente que o desenvolvimento social também não é determinado por leis biológicas — as quais, aliás, ao contrário da sociedade, não se alteraram no essencial «desde Adão e Eva» —, mas segue as suas leis e forças motoras sociais próprias.
Assim, das condições materiais da vida social mencionadas a princípio só nos resta a produção material. Na verdade, a condição básica da vida humana e, por conseguinte, a lei de desenvolvimento da história humana descoberta por Marx consiste em
«que os homens precisam, antes de tudo, de comer, beber, ter uma casa e vestir-se, antes de poderem dedicar-se à política, à ciência, à arte, à religião, etc., que, portanto, a produção dos meios de vida materiais directos e, com ela, a respectiva fase de desenvolvimento económico de um povo ou de um período, constituem a base a partir da qual se desenvolveram as instituições do Estado, as concepções do direito, a arte e mesmo as representações religiosas dos homens em questão, e a partir da qual, por isso, estas têm também de ser explicadas — e não ao contrário, como tem acontecido até aqui»(13).
Quando estudamos a história, logo vemos que a única condição material da vida social que se altera tanto quanto a própria sociedade é a produção material, a maneira, o modo de produzir os bens necessários à vida. Vemos também que há na história da sociedade períodos claramente separados uns dos outros e que cada um destes períodos é sempre caracterizado por uma maneira, um modo de produzir iguais em toda a parte, independentemente das condições climáticas, geográficas, biológicas, rácicas, e das condições relativas ao movimento da população. Logo, o modo de produção da vida material da sociedade é a base determinante, decisiva e última do desenvolvimento histórico.
Para conquistar aquilo de que necessitam para viver, os homens utilizam ferramentas, máquinas, em suma: instrumentos de produção. Na produção — cuja base geral é, evidentemente, a natureza — entram, assim, os homens e os instrumentos de produção. Os homens precisam de saber lidar com estes instrumentos de produção e de possuir determinadas experiências de trabalho. Aos homens, com as suas experiências de produção, e aos instrumentos de produção chamamos forças produtivas.
É claro que os instrumentos de produção começaram por ser primitivos e tiveram um desenvolvimento. Com este desenvolvimento modificou-se o trabalho e cresceram as experiências humanas de trabalho e os conhecimentos dos homens acerca do seu mundo ambiente. Mas não se modificaram só os instrumentos de produção, modificaram-se também os homens produtores, e, portanto, as forças produtivas no seu conjunto. Mas não são só as forças produtivas que formam o modo de produção.
«Na produção — diz Marx — os homens agem não só sobre a natureza, mas ainda uns sobre os outros. Não podem produzir sem colaborarem de maneira determinada e sem estabelecerem um intercâmbio de actividades. Para produzir, os homens contraem determinadas ligações e relações uns com os outros, e é através dessas ligações e relações sociais que se estabelece a sua acção sobre a natureza, que se efectua a produção.»(14)
Consoante o nível de desenvolvimento das forças produtivas, assim os homens estabelecem entre si determinadas relações na produção. Estas podem ser relações de cooperação, de troca de bens, de comércio, mas também — sobre a base da propriedade privada dos principais instrumentos de produção, ou do solo ou das riquezas minerais — relações em que são explorados os que nada possuem.
O alargamento da produção tornou possível, numa determinada fase de desenvolvimento, produzir mais do que era absolutamente necessário para viver. Estava criada a condição para alguns homens obrigarem outros homens a trabalhar para eles.
Todas estas relações sociais têm o nome de relações de produção, e entre elas as mais importantes são as relações de propriedade e de posse. A relação entre escravos e escravistas na antiguidade clássica caracteriza-se, por exemplo, pelo facto de uma classe de homens, os escravos, ser considerada como propriedade da outra classe, os escravistas, e poder ser vendida. O senhor feudal da Idade Média, o nobre, era proprietário da terra e, por força de o ser, era também senhor de todos os camponeses que nela moravam, os servos da gleba. A relação entre os assalariados modernos e os capitalistas tem por base o facto de os capitalistas possuírem os principais meios de produção e de os operários (e os empregados) serem obrigados, para poderem comprar os produtos necessários à vida, a vender ao capitalista a sua força de trabalho em troca de um salário (ou ordenado).
Todo este conjunto: os homens com as suas experiências de trabalho e os instrumentos de produção, ou seja, as forças produtivas, mais as relações que os homens estabelecem entre si no processo de produção, ou seja, as relações de produção, formam o modo de produção da vida material.
O estudo da história mostra que a modificação das relações de produção é precedida pela modificação dos instrumentos de produção e também dos homens, pela modificação das forças produtivas, à qual as relações de produção mais tarde ou mais cedo se vêm a adaptar. Com os modernos instrumentos de produção tem de se trabalhar de modo diferente daquele que se trabalhava com o biface primitivo. A adaptação das relações de produção às novas forças produtivas constitui, porém, um problema particular.
Na Idade Média, o principal meio de produção, a terra, pertencia à classe da nobreza. Os camponeses viviam numa terra que não lhes pertencia. Eram servos dos nobres. Era-lhes «permitido» cultivar a terra em que viviam, mas em compensação tinham de trabalhar os terrenos do senhor e, além disso, de pagar tributos ao senhor — uma percentagem daquilo que a terra dava. Quando o capitalismo, com as suas novas «máquinas», se desenvolveu em algumas regiões, passou a precisar, naturalmente, de mão-de-obra. Mas esta vivia presa à terra, serva da gleba. As forças produtivas dos alvores do capitalismo, ao surgirem, colidiram logo com as velhas relações de produção e, no fim de contas, de propriedade do feudalismo. Resultou daqui um conflito que se estendeu a toda a sociedade, uma luta da classe burguesa contra a classe dos nobres senhores da terra. Por fim, esta luta de classes levou a grandes revoluções em Inglaterra, França, Alemanha e noutros países.
O modo de produção desenvolve-se, portanto, porque os homens, no processo de produção, aperfeiçoam constantemente os instrumentos de produção, adquirem novos conhecimentos, em suma: formam-se novas forças produtivas, que tornam necessárias novas relações de produção. Estas novas relações de produção, porém, não se formam automaticamente, formam-se na luta social dos homens nas condições de divisão da sociedade em classes, na luta dessas classes, a qual conduz a revoluções sociais. É este o conteúdo essencial da história.
A concepção materialista da história distingue na sociedade a infra-estrutura material, ou base (formada pelas relações de produção), e a superestrutura, que se ergue sobre ela, de instituições políticas e ideias sociais (filosofia, concepções jurídicas, arte, moral, religião, etc.). Também se lhe dá o nome de superestrutura político-ideológica. No seio do todo que é a sociedade, as modificações resultam, em última analise, do movimento das forças produtivas. A mudança nas forças produtivas começa por provocar a transformação das relações de produção, e isto leva a uma modificação de toda a vida social. Hoje, por exemplo, a forma democrático-burguesa do Estado é apresentada, de bom grado, como um valor absoluto. Esquece-se, com isso, frequentemente, que esta forma do Estado viu a luz do dia na Inglaterra, no século XVII, e na Franca, no século XVIII. Para impô-la, foram necessárias duras lutas primeiro ideológicas, por fim também políticas, nas quais foi derramado muito sangue. Não foi fácil às ideias da democracia burguesa impor-se ao espírito de toda a gente.
Na realidade, a democracia nos seus limites burgueses não é, de modo nenhum, um valor absoluto. Estão-lhe subjacentes a formação e o desenvolvimento do capitalismo, e a sua luta pela libertação do homem dos grilhões feudais. De facto, o conteúdo concreto do capitalismo tinha dois significados: liberdade de o produtor directo, que estava ainda preso à terra como servo, se mudar para a cidade e aí — como homem que está «livre» dos meios de produção — se poder sujeitar à exploração do capitalista. A liberdade como palavra de ordem era dirigida contra o mundo e as representações da Idade Média.
A esta democracia burguesa estão ainda subjacentes as relações de livre concorrência que reinam entre os capitalistas. Quem ousa entrar no «jogo livre das forças» é dono de si mesmo. Estas relações de produção reflectem-se nas ideias políticas, honestamente entendidas e defendidas, da luta pela liberdade política da pessoa, por determinados direitos fundamentais, pelo seu direito de intervir, por meio de eleições, nos destinos do próprio Estado, em suma, na ideia da democracia burguesa.
Apesar dos interesses materiais bem sólidos a que a democracia burguesa deve a sua origem, ela representa na história da humanidade um grande progresso e um valor cultural que urge defender com todas as forças contra os inimigos da democracia. Para fundamentar este ponto, basta referir as horríveis condições que se instauraram quando, em 1933, o grande capital, temendo o movimento operário, pôs fim à democracia com Hitler e o partido nazi.
Mas não são só as condições e representações políticas e jurídicas que se modificam em consequência do desenvolvimento do modo de produção, das relações económicas; são também aqueles domínios do pensamento social, da ideologia, que aparentemente pouco têm a ver com as relações de produção, como a ciência, a arte, as representações religiosas, e ainda as regras morais da vida.
Há que ter o cuidado de não entender a concepção materialista da história como um esquema simples segundo o qual estas formas ideológicas derivariam directamente dos processos económicos. Em todos estes campos tem grande importância, tal como no desenvolvimento económico e de toda a sociedade, o que foi criado em tempos já passados. Nas nossas ideias actuais ainda se repercutem ideias que surgiram há milhares de anos. O facto de determinadas ideias terem nascido num tempo determinado e de terem servido uma classe determinada não implica, por si só, que essas ideias não passam de ilusões e que, mais tarde, pura e simplesmente desaparecerão. Nas nossas ideias actuais sobrevivem restos de velhas ideias que foram correctas e de outras que eram erradas. Muitos pensamentos não são provocados directamente por relações económicas, mas por outras relações e instituições sociais.
«Segundo a concepção materialista, o factor determinante na história é, em última instância, a produção e a reprodução da vida humana. Mais do que isto — nem Marx nem eu jamais afirmámos. Se agora alguém deturpa o que dissemos, para fazer crer que afirmamos que o factor económico é o único factor determinante, está a transformar aquela frase numa expressão absurda, abstracta, e que não diz nada. A situação económica é a base, mas os diferentes factores da superestrutura — as formas políticas da luta de classes e os seus resultados, as Constituições, etc., fixados pela classe vencedora depois de ganha a batalha, as formas jurídicas e até os reflexos de todas estas lutas reais no cérebro dos que nela participaram, as teorias políticas, jurídicas e filosóficas, as concepções religiosas e o seu ulterior desenvolvimento e passagem a um sistema de dogmas — exercem também a sua acção sobre o decurso das lutas históricas e determinam, em muitos casos predominantemente a sua forma. É numa acção recíproca de todos estes factores que, afinal, através de uma imensidade de casualidades (ou seja, de coisas e acontecimentos cuja mútua conexão interna é tão remota, ou tão difícil de demonstrar, que podemos considerá-la inexistente e descurá-la), o movimento económico se afirma como necessidade. Se não fosse assim, seria muito mais fácil aplicar a teoria a um período histórico qualquer do que resolver uma simples equação de primeiro grau.»(15)
A concepção materialista da história não significa, portanto, procurar mecanicamente uma base económica para uma ideia. Seria ridículo, por exemplo, querer encontrar uma base directa, no modo de produção actual, para as concepções religiosas, algumas delas já milenares. E mesmo quando surgiram as representações religiosas, não lhes estavam subjacentes apenas relações económicas. Na sua obra sobre Feuerbach, Engels inclui entre as razões do aparecimento da religião a ignorância total dos homens sobre a estrutura do seu próprio corpo, os fenómenos dos sonhos, que desapertavam a ideia de que o pensamento e a sensibilidade não seriam uma actividade do seu corpo, mas de uma alma especial que habitava nesse corpo e o abandonava no momento da morte, a personificação dos poderes da natureza, etc. Estas não são, certamente, raízes directamente económicas.
Ou consideremos as ideias de uma obra de arte, digamos, do Fausto de Goethe. Fausto, o homem a quem a realização de nenhum desejo satisfaz, que só se sente feliz a antever o que serão mais tarde as consequências da sua actividade, é, naturalmente, até certo ponto, a personificação artística da ambição infatigável de uma expansão cada vez maior, da ambição que caracteriza o capitalismo em ascenso. Mas seria absurdo, seria a caricatura mais grosseira da concepção materialista da história, querer ver o Fausto apenas em função deste único pensamento e ignorar a plenitude da vida social de então que nele se reflecte, as repercussões de pensamentos milenares e a antevisão de conhecimentos futuros e de problemas futuros da vida humana.
O que se passa é isto: todas as circunstâncias que determinam a vida social reduzem-se, em última análise, ao desenvolvimento do modo de produção material. O que contrariar este desenvolvimento não poderá durar muito. Por isso, a principal força motora da história é o modo de produção dos bens materiais, que comporta tanto as forças produtivas como as relações de produção. As relações de produção formam a base material, ou real, da sociedade, sobre a qual se ergue uma superestrutura ideológico-política. O modo de produção determina todo o modo de vida social, ao qual corresponde também o modo de pensar dos homens desse tempo — a filosofia, a concepção do direito, a moral, a arte, a religião. O desenvolvimento do modo de produção determina o desenvolvimento de toda a sociedade. Esta é a base sobre a qual se desenrola a lei geral e universal da história.
Para terminar, vamos recordar as famosas frases em que Karl Marx expôs, concisamente, esta nova concepção da história:
«[...] A minha investigação levou-me a concluir que as relações jurídicas, como as formas do Estado, não podem ser entendidas por si mesmas nem pelo chamado desenvolvimento geral do espírito humano, pois que têm as suas raízes nas condições materiais da vida, no conjunto daquilo que Hegel, a exemplo dos ingleses e franceses do século XVIII, condensa sob o nome de "sociedade civil", mas que é na Economia Política que temos de procurar a anatomia da sociedade civil. A investigação desta última, que comecei em Paris, prossegui-a em Bruxelas, para onde me deslocara na sequência de uma ordem de expulsão do Sr. Guizot. O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu de fio condutor aos meus estudos, pode ser sintetizado desta forma: na produção social da sua vida, os homens entram em determinadas relações que são necessárias e independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a uma determinada fase de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção forma a estrutura económica da sociedade, a base real sobre a qual se ergue uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas da consciência social. O modo de produção da vida material condiciona, no geral, o processo da vida social, política e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é, ao invés, o seu ser social que determina a sua consciência.
Numa determinada fase do seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, na expressão jurídica correspondente, com as relações de propriedade no seio das quais se tinham movido até então. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, essas relações transformam-se em grilhões das mesmas. Começa então uma época de revolução social. Com a modificação da base económica revoluciona-se, mais lenta ou mais rapidamente, toda a imensa superestrutura. Ao considerar estes revolucionamentos, há que distinguir sempre entre o revolucionamento material nas condições económicas de produção, o qual é verificável com a precisão das ciências naturais, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em suma, as formas ideológicas em que os homens ganham consciência deste conflito e lutam por o resolver. Do mesmo modo que não se pode julgar aquilo que um indivíduo é pelo que ele pensa de si próprio, também não se pode explicar uma destas épocas de revolucionamentos a partir da sua consciência; pelo contrário, esta consciência tem de ser explicada a partir das contradições da vida material, do conflito existente entre as forças produtivas e relações de produção sociais. Uma formação social nunca desaparece antes de estarem desenvolvidas todas as forças produtivas que ela pode comportar, e nunca aparecem novas e superiores relações de produção antes de as suas condições materiais de existência terem sido criadas no próprio seio da velha sociedade. Por isso, a humanidade põe sempre a si mesma apenas as tarefas que pode realizar, pois sempre se verificará, a uma observação mais rigorosa, que a própria tarefa só surge onde as condições materiais da sua realização já existem ou estão, pelo menos, no processo de se formarem. A traços largos, os modos de produção asiático, antigo, feudal e burguês moderno podem ser qualificados de épocas progressivas da formação económica e social. As relações de produção burguesas são a última forma antagónica do processo de produção social — antagónica não no sentido de um antagonismo individual, mas de um antagonismo que nasce das condições sociais de vida dos indivíduos —, mas as forças produtivas que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa criam, ao mesmo tempo, as condições materiais para a solução deste antagonismo. Com esta formação social se encerra, por isso, a pré-história da sociedade humana.»(16)
Notas de rodapé:
(1) Por história, em sentido geral, entende-se o processo de desenvolvimento na natureza e na sociedade; em sentido estrito, história é o processo de desenvolvimento da sociedade, na sua unidade e variedade, o qual, resultante da actividade dos homens, se realiza segundo leis próprias. Também se usa, por vezes, história no sentido de a ciência da história. (Nota das Edições «Avante!».) (retornar ao texto)
(2) F. Engels, Ludwig Feuerbach e o fim da Filosofia Alemã Clássica. (retornar ao texto)
(3) F. Engels, ob. cit., pp. 48 e segs. (retornar ao texto)
(4) F. Engels, ob. cit., pp. 49 e segs. (retornar ao texto)
(5) Ibidem, p. 50. (retornar ao texto)
(6) Ver o caderno desta colecção intitulado "O Problema Fundamental da Filosofia". (retornar ao texto)
(7) Marx—Engels, Manifesto do Partido Comunista. Edições «Avante!», Lisboa, 1975, p. 69. (retornar ao texto)
(8) Veja nota 15. (retornar ao texto)
(9) F. Engels, ob. cit., p. 51.(retornar ao texto)
(10) Estes dados referem-se, obviamente, à altura da edição original desta obra. (retornar ao texto)
(11) Coleção ABC do Marxismo-Leninismo, Série A — «A Sociedade e o Estado», n.° 1, 1976, Edições «Avante!». (Nota das Edições «Avante!») (retornar ao texto)
(12) Ver nota 11. (retornar ao texto)
(13) F. Engels, do discurso proferido junto ao túmulo de Marx. (retornar ao texto)
(14) K. Marx, Trabalho Assalariado e Capital. Edições «Avante!», Lisboa, 1975, pp. 55-56. (retornar ao texto)
(15) F. Engels, Carta a J. Bloch de 21-9-1890. (retornar ao texto)
(16) K. Marx, Prefácio à Crítica da Economia Política (retornar ao texto)
Inclusão | 19/07/2018 |