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A esta amplificação, que já tantas coisas muda, vem acrescentar-se uma transmutação que vai mudar ainda mais. Se ao fim e ao cabo o capitalismo se resume à exploração do homem pelo homem, o seu papel histórico é só negativo e só se trata pela abolição: isto define uma maneira de o combater. Colocar-se do ponto de vista da alienação abre uma perspectiva inteiramente diferente. Não porque a espoliação dos trabalhadores se revele menos inaceitável: acabar com ela continua a ser o único desígnio válido. Mas a alienação não é só desapossessão impiedosa dos indivíduos, é também e ao mesmo tempo desenvolvimento sem precedente de capacidades humanas, embora sob uma forma que as afecta no seu próprio fundo: isto é o que Marx não hesitava em chamar a " missão histórica" do capitalismo, e recusar-se a vê-lo impede totalmente de compreender a sua formidável vitalidade e também a sua tenaz audiência. "O capitalismo não é só destruição", como em meados dos anos 80 Philippe Hergoy o repetia, quase no meio do deserto, perante o Comité Central do PCF. O que não significa que haja que se lhe render: há alienação em tudo o que ele produz - por exemplo no carácter cataclísmico que imprime à mundialização - do mesmo modo que pode haver hoje ainda algo de positivo na sua constante propensão para destruir as barreiras vetustas. Pensar em termos de alienação repõe finalmente uma visão dialéctica das coisas, por oposição a um discurso de pura denúncia sem real alternativa e, por conseguinte, sem uma vasta audiência. Isto conduz a rejeitar a ideia, sem dúvida justa para a Rússia quando Lenine a formula em 1918 (Oeuvres, tomo 27, p. 87) mas absurdamente erigida em lei geral por Staline, segundo a qual "o socialismo" não encontra na sociedade burguesa "relações já prontas", com a possível excepção do "capitalismo de Estado": ideia terrível de uma sociedade nova que deveria, de certo modo, ser imposta de fora a uma realidade recalcitrante, nos antípodas da concepção marxiana em que o próprio movimento do capitalismo e das reacções que suscita produz de dentro muitos pressupostos do comunismo. Leiam-se os sugestivos ensaios de Jean-louis Sagot-Duvauroux (Pour La grautité, Desclée de Brouwer, 1995 [Pela Gratuitidade]; Les Héritiers de Cain, La Dispute, 1997 [Os Herdeiros de Caim]) para descobrir a insuspeita extensão desse "comunismo já presente", comunismo de que se trata de fazer advir o imenso "ainda não". Temos aqui em jogo uma mutação do pensamento e prática comunistas que é capital e no entanto ainda só incipiente: de uma cultura de negativismo e exterioridade, pela qual uma força política infalivelmente se marginaliza, para uma outra de pertença contestatária e de ambiciosa reapropriação pela qual, seja qual for o seu grau de influência num dado momento, essa força política põe o futuro do seu lado.
Impõe-se aqui um esclarecimento de vocabulário. Quando se lê Marx nas traduções francesas existentes, encontra-se nele com frequência a palavra abolição - exemplo tipo: o Manifesto evoca várias vezes "a abolição das relações sociais" existentes - tendo-se esta palavra tornado desde há muito um importante identificador do discurso comunista: é necessário abolir a propriedade dos meios de produção, abolir o capitalismo... Ora, na maior parte dos casos, a palavra de que Marx se serve é a famosa Aufhebung que, em alemão corrente, quer com efeito dizer abolição, supressão, revogação mas que, na linguagem teórica de Hegel, e de Marx na sua esteira, tem expressamente tal como a sua etimologia o exige - e sobre isto Hegel é muito claro - um sentido muito mais dialéctico: ao mesmo tempo supressão, conservação e elevação, por outras palavras passagem a uma forma superior, o que as actuais traduções francesas de Hegel dão por meio do neologismo sobressumpção (em francês: sursomption) de que o francês corrente dá uma ideia bastante correcta utilizando dépassement (onde o português utiliza superação). A tradução clássica de Marx, e que continua a praticar-se, em que Aufhebung é restritivamente dada por abolição constitui pois uma clara deformação do seu pensamento, cujas consequências são dificilmente avaliadas. Aliás, quando Marx fala por exemplo do Aufhebung "do próprio modo de produção numa forma superior" (Grundrisse, tomo 2, p. 200; o sublinhado é do autor), somos mesmo obrigados a traduzir por superação... Prova pelo contrário: quando Marx quer dizer abolição pura e simples - por exemplo no Manifesto "abolição da herança" - emprega palavras muito diferentes, como Abschaffung ou Beseitigung. Por não ter explicado estas coisas, que embora técnicas são acessíveis para quem quer que seja, chegou-se a este resultado extravagante: milhares de comunistas imaginaram, e ainda pensam, que a passagem terminológica de abolição a superação do capitalismo, nos textos dos refundadores comunistas e depois nos documentos recentes do Partido, escondia um recuo reformista. Quando se trata, pelo contrário, de restabelecer a exacta compreensão do que Marx tinha em mente, e do que aliás reclama o simples bom senso: sendo o capitalismo uma forma antagónica e transitória do desenvolvimento das forças humanas, a tarefa revolucionária é inseparavelmente a de suprimir esta forma para manter e promover sob novas formas os conteúdos anteriormente alcançados - ir-se-ia por exemplo abolir o capital fixo, quer dizer, o trabalho passado acumulado, que é uma parte essencial da riqueza nacional? - e, assim, essa tarefa é efectivamente a de superar o capitalismo. A falsa ideia, não marxiana, de abolição é aqui e ali defendida na crença de assim salvaguardar "a identidade comunista": terrível preço a pagar por uma enfezada prática da política em que "a teoria" passou por só interessar alguns intelectuais. Isto quando se torna ainda mais verdadeira do que na sua época a expressão de Gramsci: "Todo o homem é filósofo".
Um campo muito alargado, um conteúdo muito dialectizado - não se esgotou ainda o que de mais essencial nos traz o objectivo de desalienação se não se acrescentar uma atitude estratégica de uma espécie muito nova.
Querer mudar de um só golpe o modo de propriedade dos meios de produção visa com efeito um acto político-jurídico de grande amplitude e que pressupõe a conquista do poder de Estado à burguesia, numa clássica perspectiva de recurso à violência. Concepção de feição muito revolucionária cuja característica foi o mais das vezes, paradoxalmente, em países como o nosso e à espera da hora que nunca mais chegava, o conduzir a urna política muito pouco revolucionária, fechada em lutas defensivas que tinham de ser animadas por estímulos de ordem verbal e reivindicações de tipo sindical. É todo este conjunto que uma óptica reapropriativa vem radicalmente transformar. O desígnio revolucionário estaria pois caduco? Nada disso: superar o capitalismo continua a ser, no mais lídimo e forte sentido da palavra, uma revolução. Quer dizer, uma radical mudança da ordem vigente. Mas a ideia de revolução não tem no seu conteúdo nenhuma ligação necessária com a de conquista violenta do poder de Estado nem com a de brusca transformação social imposta de cima, coisa que não passa de uma forma histórica entre outras. Revolucionária, a reapropriação efectiva pela massa dos indivíduos dos seus poderes sociais de toda a espécie rejeita mesmo duplamente, por essência, esta forma: ela não poderia ser instantânea, já que constitui um processo longo que nada tem a ver com violência, embora exija em permanência uma relação de forças favorável; ela não tem em compensação nenhuma necessidade de esperar um hipotético momento enfim favorável mas, pelo contrário, aspira a atacar sem tardança as coisas realmente sérias. O que aqui aparece é nada menos do que um novo conceito de revolução: um revolucionar sem revolução, uma evolução revolucionária, como dizia Jaures, ou, se se preferir, revolução evolucionária. Conceito que representa uma inegável mudança de era em relação ao marxismo e ao leninismo tradicionais, e que contudo mais não faz do que levar até ao fim a lógica dessa possível "revolução pacífica" já encarada por Marx e depois por Engels (cf Jacques Texier, Révolution et démocratie chez Marx et Engels, Actuel Marx, PUF, 1998) [Revolução e Democracia em Marx e Engels] e mesmo por Lenine (cf meu Anexo I). "O grande erro dos Alemães, escrevia Engels a Bernstein, em Agosto de 1883, é imaginarem que a revolução é algo que se pode fazer da noite para o dia", quando ela implica um "processo de desenvolvimento das massas que, mesmo em circunstâncias que o acelerem, leva anos" (Marx-Engels Werke, tomo 36, Dietz, 1967, p. 54; tradução do autor). Esta intuição ganha hoje um enorme relevo.
[pgs 096_100. Começar pelos Fins - a nova questão Comunista; Lucien Séve; Campo das Letras Editores, S.A, 2001. www.campo-letras.pt. campo.letras@mail.telepac.pt]
Inclusão | 02/08/2002 |