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Esta atitude filosófica, no sentido menos especulativo da palavra, encontra em Marx a sua expressão exaustiva no vocabulário da alienação - muito mais diversificado em alemão do que em francês - cujo centro é o conceito de Entfremdung, processo do tornar-se-estranho. Mas mal se pronuncia a palavra, logo se espera despertar as mais ferozes objecções: termo típico de quem "ainda acredita na filosofia", de quem volta a cair nas ilusões feuerbachianas do jovem Marx e escamoteia qualquer análise em termos de classes. Assim, disse-o Althusser, em O Capital "a alienação desaparece"... O facto é que Althusser o disse (em Pour Marx), e que esse é um dos seus erros mais patentes, como ele próprio teve de o admitir mais tarde (em Réponse à John Lewis), mas sem realmente daí tirar as devidas consequências. Porque a ideia e o vocabulário da alienação-desalienação se encontram presentes na totalidade da obra adulta de Marx e Engels, do Manifesto aos Grundisse e ao Anti-Duhring. Em O Capital o termo figura, por exemplo, no próprio coração das apresentações quer da lei geral da acumulação capitalista (Livro I, p. 724), quer de baixa tendencial da taxa de lucro (Livro III, tomo I, p. 276): se mais não chegasse!... Só que o leitor francês não vê nada disso, pela simples e boa razão que, o mais das vezes, também os tradutores o captaram mal, já que, como qualquer um de nós, estavam cegos relativamente ao que a análise teórica não tornou visível. E por que não o terá ela feito? Porque não se deu conta de que existem em Marx dois conceitos sucessivos e muito diferentes de alienação. Nas suas obras de juventude existe um conceito especulativo: o que os homens são num dado contexto social, por não ser compreendido como produção histórica, é metamorfoseado, como em Feuerbach, numa abstracta natureza ou "essência do homem" inerente aos indivíduos e da qual estes se desapossam em favor da alienação religiosa, política, económica, sem que se saiba lá muito bem porquê, nem como poderão reapropriar-se dela. É este conceito imaturo de alienação que com efeito desaparece, para não mais voltar, em Marx e Engels a partir de 1845-46 - a "essência humana", compreendem-no eles então, nada mais é do que o evolutivo "conjunto das relações sociais". Mas desaparece para se transmutar num outro, fundamentalmente repensado nos termos claríssimos do materialismo histórico. Neste, a alienação é o conjunto dos processos pelos quais os poderes sociais dos homens - as suas capacidades colectivas de produzir, trocar, organizar, conhecer... - deles se destacam para se tornarem estranhamente, senão mesmo monstruosamente, forças autónomas que os subjugam e esmagam - como, por exemplo, o capital e as leis do mercado, o Estado e as lógicas do poder, a arena internacional e a "fatalidade da guerra", as ideias dominantes e a evidência ilusória... Mas por que será que estes poderes se alienam? Isto tem a ver não com uma qualquer fatalidade natural, mas sim com uma situação histórica. As actividades especificamente humanas baseiam-se no ciclo incessantemente reiniciado e alargado da sua objectivação social em produções de complexidade cumulativa - dos primeiros instrumentos e signos às tecnologias e teorização de hoje em dia - e da sua constante apropriação subjectiva pelos indivíduos que, por isso mesmo, se desenvolvem. Mas esta complexificação teve como corolário, ao longo dos séculos, um triplo processo de clivagem social: a divisão do trabalho que, como o diz Engels, "também divide o homem" (Anti-Duhring, Éditions Sociales 1971, p. 329), parcelarizando ao mesmo tempo a sua capacidade de reapropriação; a divisão de classe, que coloca a maioria das riquezas materiais e culturais fora do alcance da grande massa dos indivíduos; e, no presente estádio da história, aquilo que poderíamos designar por divisão de fase: objectivadas em forças gigantescas, as capacidades humanas começam a entrar numa era em que deixam, em absoluto, de ser controláveis no arcaico quadro social que persiste, já que nele se não podem desenvolver nem a cooperação universal nem a individualidade integral. Vivemos assim o paroxismo da alienação, esta forma antagónica que a época da humanidade retalhada imprime inevitavelmente à objectivação das forças humanas. A alienação não é pois um conceito sectorial de ciência social, como a exploração; é uma categoria global de antropologia histórica, menos explicativa do que interpretativa mas, por isso mesmo, largamente crítica e prospectiva, filosófica sem um mínimo de divagação e rigorosamente indispensável para conceber, na sua lógica geral, a trajectória da humanidade. "Exploração" permite pensar o socialismo; "alienação" - termo que, sem a dissolver, engloba a exploração económica .como uma das suas dimensões maiores, entre outras não menos essenciais (retalhamento biográfico, coisificação social, sujeição política, ilusão ideológica) - constitui a categoria por excelência do comunismo, de que até fornece uma definição de base: o comunismo é, ao mesmo tempo, o processo e o resultado da superação de todas as grandes alienações históricas através das quais se desenvolveu contraditoriamente até agora o género humano.
Muito bem, dir-se-á talvez o leitor, mas, ao seguir estas tão teóricas considerações, que ganhamos nós, na prática, para melhor fazer frente aos terríveis desafios de hoje? É o que poderemos julgar se admitirmos começar por avaliar a extraordinária alteração que constituiu a redução histórica da cultura comunista, no pleno sentido do termo, à sua versão socialista em que a tarefa se pode resumir, por muito essencial que isto seja, em acabar com a exploração dos trabalhadores - digamo-lo pela forma inversa: se avaliarmos como nas actuais condições pode ser enriquecedora a original reprodução da concepção marxiana. A cultura tradicional do socialismo focaliza-se sobre a produção dos bens materiais, os seus meios e a forma de propriedade destes, sobre os seus actores e, por conseguinte, sobre a classe operária: estes são os termos-chave de mais de um século de história revolucionária. Passar daqui para uma cultura comunista da desalienação geral em nada leva a perder de vista tudo isto e, muito pelo contrário, a exploração do trabalho operário é ela própria, tipicamente, uma "grande alienação histórica", já que se baseia, e Marx sublinha-o incessantemente, na separação dos produtores directos dos seus meios de produção. Ela continua pois a ser uma preocupação maior de qualquer adversário do capital.
Mas, para começar, um pensamento em termos de desalienação suscita um enorme alargar do campo das contradições a ter em conta numa verdadeira óptica comunista, enquanto que a cultura do PCF permaneceu muito tempo demasiado pouco sensível, por vezes dramaticamente cega, para com muitas delas. No próprio O Capital, com todos os seus limites do ponto de vista em que aqui me coloco, são breve mas nitidamente indicadas de passagem tendências devastadoras do capitalismo, tais como o esgotamento da natureza ou a falsificação dos produtos (o escândalo do pão adulterado em Londres, em 1860, nada ficava já a dever, no seu princípio, aos das vacas loucas ou dos frangos com dioxinas); tal como são indicadas poderosas exigências emergentes, como a de uma radical modificação de conteúdo na formação da jovem geração ou a de uma relação entre os sexos que abre o caminho para uma família de novo tipo, tudo importantes possibilidades de desmistificação das consciências relativamente ao universo, hoje descontrolado, da mercadoria e do seu fetichismo ou ao trabalho confusionisticamente designado de improdutivo: outras tantas bases possíveis para iniciativas transformadoras que tantas vezes foram deixadas a outros, quando não tratadas como manobras de diversão. Depois, ponto ainda mais subestimado, a alienação, compreendida sem ambiguidades como processo sócio-histórico, nem por isso deixa de ser simultaneamente a mais profunda das lógicas biográficas, qualquer forma de sociedade implicando também as suas formas de individualidade: esta dupla categoria permite-nos assim, como sublinha Yvon Quiniou nas suas Figures de la déraison politique (Quiné, 1995, capítulo 6) [Figuras da Irracionalidade Política], pensar antagonismo social e infelicidade social conjuntamente, fazer a conjugação prática das motivações para a transformação do mundo e para o retomar do domínio de si, voltar a dar assim à política a sua plena dimensão antropológica e ética - alargamento decisivo. No fim de contas, ao implicar o homem na sua totalidade, a cultura da desalienação diz, no limite, respeito a todos os homens - não naquele sentido ridículo que Engels assinala no seu prefácio de 1892 à Situação da Classe Laboriosa em Inglaterra e em que se deveria pois esperar dos membros da classe possidente que, para se desalienarem humanamente, cooperassem de mão no peito para seu próprio desapossar, mas sim naquele outro sentido, de cada vez mais crescente actualidade, em que as forças susceptíveis de contribuir para a superação do capitalismo podem encontrar-se, muito para além das fileiras operárias, em todos os sectores do campo social. "Se há um período que acabou mesmo, escreve Alain Bertho (cf Le travail à l'épreuve du saliarat, dir. P. Bouffartique e H. Sckert, L' Harmattan 1997, p. 230) [O Trabalho Posto à Prova pelo Trabalho Assalariado ], é aquele em que a libertação de todos os homens podia encarnar-se num grupo social específico. O que hoje é necessário não é procurar uma nova classe operária mas sim a cultura polémica capaz de unir, em torno de apostas comuns, a multidão de experiências de confronto com a ordem social".
[pgs 091_095. Começar pelos Fins - a nova questão Comunista; Lucien Séve; Campo das Letras Editores, S.A, 2001. www.campo-letras.pt. campo.letras@mail.telepac.pt]