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O jovem Hegel pretende fazer da religião subjetiva ou pública o fundamento e o apoio do movimento de libertação da Alemanha. Já vimos que esse esforço deu no período de Berna uma curiosa e característica mistura de objetividade histórica e subjetivismo filosófico radical. O problema histórico do jovem Hegel consiste em descobrir concretamente na Antiguidade o subjetivismo democrático da sociedade em sua forma superior e desenvolvida, depois da fundação daquele mundo, o nascimento do período morto, não humano e despótico da religião positiva, descrevê-lo em todas suas cores sinistras e obter desse contraste a perspectiva da futura libertação. A oposição entre Antiguidade e Cristianismo, entre religião subjetiva e religião positiva é, pois no período de Berna, o fundamento da filosofia política do jovem Hegel.
Como é natural, também seus interpretes reacionários tem que ver esse caráter prático de sua filosofia. Haering põe precisamente este problema no centro de sua interpretação, ao conceber as tendências “populares pedagógicas” do jovem Hegel como traços essenciais de seu desenvolvimento filosófico. E assim dito, a ideia seria admissível. Entretanto, Haering e outros apologistas reacionários partem na interpretação das concepções do jovem Hegel dos traços reacionários das tomadas de posição política dos últimos anos do filósofo, consideram esses traços como a “essência” sempre presente na filosofia hegeliana e pretendem os numerosos e inevitáveis pontos confusos do jovem Hegel – especialmente no terreno das questões religiosas – para por desde o primeiro momento tendências reacionárias no centro do pensamento de Hegel.
Certamente que não é possível negar ou silenciar totalmente as tendências republicanas do jovem Hegel. desfocam-nas ou até silenciam apesar disso na medida do possível, entretanto não pode chegar a ser completa pelos dados abundantes nesse aspecto. Os apologistas imperialistas saem então do equilíbrio declarando que o republicanismo do jovem Hegel é uma “doença infantil”. Franz Rosenweig vê, por exemplo, em Hegel um percursor da política de Bismarck. E silencia de um modo plenamente anti-histórico que chega a deformação dos fatos, sobretudo, por nem o Hegel maduro tenha sido o precursor de Bismarck, pois, inclusive, suas concepções mais reacionárias se movem numa direção diferente, e, em segundo lugar, passa completamente por cima do significado das grandes crises históricas (Termidor, a saída de Napoleão) que determinaram o caráter político do desenvolvimento de Hegel e produziram no filósofo maduro aquele estado íntimo profundamente resignado que é tão característico das importantes figuras alemães que esperavam do período napoleônico uma renovação da Alemanha. (Pense-se no velho Goethe.) Entretanto, logo se descobriu “pré-formada” na alma do jovem Hegel uma analogia com Bismarck, é muito fácil expor como assunto superficial todo o republicanismo do jovem pensador, em inteira relação com a Revolução Francesa, e apaga-lo com a crescente “maturidade” de Hegel.
Em tudo isto nenhuma importância tem para estes apologistas que a compreensão da necessidade histórica da Revolução Francesa, a ideia de que a Revolução Francesa constitui o fundamento da cultura presente, expõe-se, entretanto inequivocamente em outros escritos do Hegel maduro. Limitaremos a dar um exemplo desse estranho método de mistura a citação com o silêncio para falsificar a imagem: Rosenweig fala em certa ocasião de um escrito político do jovem Hegel e destaca tudo aquilo do que poderia depreender-se insinuações de antirrepublicaníssimo e de oposição ao Iluminismo; logo se refere – com aparente objetividade que é no fundo o melhor meio de falsificar as coisas -, e com certo desprezo: “Mas certamente Hegel não havia chegado, entretanto, a esses resultados pelo que fazem reconhecimento da monarquia”(1).
Sabemos já quanto intimamente está ligado no jovem Hegel o caráter prático de sua filosofia com seus sonhos políticos. Mostraremos com ajuda de uma citação claramente que concebeu a situação da Alemanha da época como produto daquele processo que, em sua opinião, no desenvolvimento da positividade da religião. Pois, para isso poderemos compreender claramente em que medida a defesa da antiga liberdade e da antiga democracia constitui para o jovem Hegel, um contraste revolucionário com a situação da Alemanha da época.
Depois do que vimos não surpreenderá a ninguém que o ponto de partida das considerações de Hegel seja também aqui as concepções religiosas, as tradições religiosas. Por isso diz sobre a Alemanha: “Nossa tradição. Os cantos populares e todo o resto. Entretanto, nenhum Herodes, nenhum Aristogon coroado de gloria por haver morto ao tirano e haver dado a seus concidadãos os mesmos direitos e as mesmas leis; nenhum Harmodio, nenhum Aristogon vive na boca de nosso povo, em seus cantos. Que conhecimentos históricos tem nosso povo? Carece de uma tradição pátria própria, e sua memória, sua fantasia, está cheia da pré-história de um povo estrangeiro, dos hebreus e as maldades de seus reis, de coisas que não nos afetam absolutamente”(2)). Neste contexto Hegel compara a arquitetura alemã com a grega; porém, no jovem Hegel a comparação não é principalmente estática. Além disso, lhe interessa comparar os diferentes costumes vitais, a livre e formosa vida dos gregos com a vida dos alemães, estreita, miserável, pequeno-burguesa, somente interrompida pelos meios e ruidosos excessos da bebida. A diversidade das arquiteturas não é para o jovem Hegel, senão expressão da diferença entre os conteúdos sociais da vida dos povos diferentes. (também aqui se manifesta já de um modo de consideração que se manterá na sua estética posterior, mesmo sem dúvida em outro nível muito diferente da dialética e da análise histórica concreta.).
Porém as considerações mais importantes sobre a Alemanha de seu presente se encontravam também na obra capital do período de Berna do jovem Hegel, o escrito sobre Positividade da religião cristã. Neste trata-se de que a conquista romana e depois o cristianismo aniquilaram as religiões nacionais originárias, incluindo a dos alemães. A evolução da Alemanha foi de tal natureza que não pode oferecer alimento a uma fantasia religiosa nacional. “Fora Lutero par os protestantes, quais poderiam ser nossos heróis, se nunca fomos uma nação? Qual poderia ser nosso Teseu fundador de uma cidade e legislador dela; quais nosso Hermodio e nosso Aristogon, aos que pudéssemos cantar como libertadores de nossa terra? As guerras que devoraram milhões de alemães foram guerras de ambição ou independência dos príncipes, e a nação foi senão apenas um instrumento que mesmo lutando com fúria e raiva, ao final não podia saber porque e nem se havia ganho algo”. A seguir Hegel oferece uma descrição muito cética da subsistência das tradições históricas protestantes, acrescentando penetrantemente que os governantes alemães não tem o menor interesse em que se mantenha vivo no povo o aspecto libertador dos movimentos protestantes.(3)
Dessas análises da situação alemã segue-se para Hegel que o povo alemão, que não tem uma fantasia religiosa arraigada em solo próprio e enlaçada com a própria história, é um povo que “carece plenamente de toda fantasia política”.(4) E esta carência de vida anímica nacional se expressa em toda a cultura alemã. O que interessa aqui, sobretudo ao jovem Hegel é de outro modo outra vez muito característico, não a altura absoluta dos produtos culturais alemãs – embora tenhamos visto que possui um íntimo conhecimento deles -, senão a carência de popularidade da cultura alemã, seu escasso enraizamento no povo ou nação. Esta deficiência constitui sua principal reprovação à cultura alemã de seu presente: “As amáveis peças de Hölty, Burger, museus desta especialidade, se perdem provavelmente do todo para nosso povo, pois, este, para poder aceder a seu desfrute, teria que estar menos atrasado no resto de sua cultura; do mesmo modo a fantasia das partes cultas da nação se move num terreno completamente diferente das classes vulgares, e os escritores e poetas que trabalham para aquelas são completamente incompreendidos por estas, inclusive em seus traços simplesmente exteriores da cena e dos personagens”. Também neste contexto se reproduz a contraposição entre a Alemanha e a Antiguidade sublinhando que precisamente a arte superior da Antiguidade clássica, a arte de Sófocles e Fídias, foi uma arte popular, que moveu a nação inteira.(5)
Neste terreno, o jovem Hegel luta para que a futura cultura alemã tenha bases clássicas. O jovem Hegel vê na recepção destas o único progresso verdadeiro, e por isso combate especialmente as concepções de Klopstock, o qual apela para a poesia em parte à pré-história do povo teutônico (batalha de Teotoburgo), em parte às tradições judaico-cristãs (esta última, um eco atrasado, insosso à moda teutônica, às tradições ideológicas da revolução inglesa, recebido por mediação da influência de Milton). À exclamação anticlássica de Klopstock –“ É Acaia a pátria dos teutônicos?” – responde, sobretudo Hegel com uma detalhada discussão que culmina na tese de que a renovação artificial das tradições alemães arcaicas é uma empresa tão inviável como em seu tempo a tentativa do imperado romano Juliano de ressuscitar a religião antiga. “Aquela antiga fantasia teutônica não encontra em nossa época nada que se pudesse aderir ou com que pudesse entrelaçar-se, está tão isolada no círculo de nossas representações, opiniões e crenças e nos é tão alheia como a ossiânica ou a hindu...”. E, pelo que faz à renovação da tradição judaico-cristã propõe a seguinte réplica: “E pelo que faz ao que esse poeta exclama a propósito da mitologia grega, com o mesmo direito poderia gritar a ele e a seu povo, a propósito da mitologia hebreia: É por acaso hebreia a pátria dos teutônicos?”(6).
Também neste ponto vemos, especialmente pelo que faz as tendências paleo-teutonizantes, uma atitude de Hegel que se manterá durante toda a sua vida. Não só está – como veremos – numa atitude de hostilidade politica face as guerras antinapoleônicas da Independência, senão também em face de todos os esforços paleo-teutonizantes do romantismo. Também isto tem que ser, naturalmente silenciado ou “reinterpretado”, pelos falsificadores de Hegel no período imperialista, antes de poder fazer dele um romântico.
Essa imagem da liberdade e da mediocridade do presente alemão, de sua falta de uma verdadeira cultura popular, está entrelaçada do modo mais íntimo com toda atitude democrática do jovem Hegel. Durante sua estadia em Berna, então governada por uma oligarquia da nobreza, Hegel enuncia sobre a cidade suíça juízo tão depreciativos como os que sentia sobre a Alemanha. E seu juízo é politicamente ainda mais claro, pois está expresso em uma carta, e livre portanto das preocupações com a censura que se apresentariam em qualquer obra destina à publicação. Em 16 de abril de 1795 escreve Hegel a Schelling: “A cada dez anos se renova o conseil souverain em parte correspondente aos membros falecidos durante o período. Não é possível descrever o modo humano como se desenvolve esta renovação, pois as combinações que se fazem aqui apequenam todas as intrigas próprias das cortes principescas. O pai consegue a nomeação do filho, ou do pretendente da sua filha que traga ao matrimônio maiores bens, etc. Para se der do que é uma constituição aristocrática há que passar aqui todo o inverno de um ano que caia na Páscoa da renovação do Conselho”.(7) Certamente esta carta não necessita de comentário. Porém, para apreciar o desenvolvimento futuro de Hegel é necessário observar além disso que suas experiências de Berna arraigaram nele um desprezo inextinguível pelo regime aristocrático-oligárquico. Esta recusa desse regime não desapareceu sequer quando já havia revisado radicalmente suas demais convicções políticas do período de Berna.
Hegel contempla esta situação política e cultural como produto de um processo cuja força motora central é para ele o domínio da religião cristã positiva. E se todavia em seus últimos anos Hegel chamou a Revolução Francesa uma “grandiosa aurora” não será difícil imaginar-se a impaciência com a qual espera dela nos anos juvenis de Berna a renovação do mundo. Esta renovação tem, segundo ele, seu pressuposto necessário na polêmica crítica do cristianismo, e o conteúdo positivo da renovação se apresenta a ele como renovação, precisamente, da Antiguidade. A análise e o elogio da democracia antiga têm, pois, para Hegel neste contexto uma grande relevância política atual.
Também neste ponto tem a concepção hegeliana muitos precursores. Nas grandes lutas que houveram pela liquidação da sociedade feudal desempenhou desde o Renascença um papel decisivo nos escritos da vanguarda ideológica o modelo da democracia antiga. Entre as maiores deficiências da historiografia dos problemas ideológicos é preciso incluir exatamente o fato de que não se tenha estudado suficientemente esta relação entre a Renascença e a Antiguidade e a luta da classe burguesa por sua liberdade. A historiografia burguesa esforçou-se inclusive por apagar essas ondas, cada vez com mais resolução, para expor a renovação da Antiguidade como assunto interno, plenamente imanente a arte, a filosofia, etc. A verdadeira história dessas lutas ideológicas – desde as artes plásticas até a ciência do Estado e da historiografia – mostraria quanto foram estreitas aquelas relações e de que modo – isto seja dito para ilustrá-las também com um exemplo oposto que indique a complexidade da problemática – a veneração da Antiguidade perdeu em seguida sua significação positiva e degenerou em um vazio academicismo enquanto que seu conteúdo político-social se perdeu definitivamente no curso do século XIX. Aqui não poderemos, como é natural, sequer estabelecer a linha desse desenvolvimento desde Maquiavel, por Montesquieu, Gibbon, etc., até Rousseau, cujo desenvolvimento, como demonstrou Engels, se apresentam desde os primeiros esboços de uma dialética da evolução social.
Do dito se depreende claramente que Hegel conheceu bem a maior parte desta literatura de apologia à democracia antiga. (Somente pelo que faz a Maquiavel, parece que o conheceu mais tarde, provavelmente, ao final do período de Frankfurt.) Entretanto, inclusive prescindindo dessas influências literárias, é indubitável a conexão essencial da veneração da Antiguidade com estes motivos revolucionários no jovem Hegel. Pois a filosofia política da Revolução Francesa, a sistematização de suas ilusões heroicas, repousa precisamente nesse desenvolvimento ideológico. Os principais jacobinos são discípulos diretos de Rousseau.
Por muito que a ideologia jacobina da renovação da democracia antiga haja sido uma ilusão heroica dos revolucionários plebeus, de modo algum era uma concepção sem enraizamento ou fundamento. Os ideólogos desta renovação social partem de pressupostos econômico-sociais muito determinados e reais. Sua diferença em relação aos representantes menos decididos da revolução democrática é precisamente de ordem econômica: os jacobinos radicais opinam que a igualdade relativa das fortunas é o fundamento econômico de uma democracia real, e que a crescente desigualdade da situação econômica dos cidadãos de um Estado leva necessariamente à aniquilação da democracia e ao nascimento de um novo despotismo. Esta doutrina está contida na parte mais radical da citada literatura acerca da renovação da Antiguidade e tendência a contemplar na igualdade relativa das fortunas o fundamento da democracia culmina precisamente no Contrat social, de Rousseau.
Basta uma história externa conscienciosa da época para comprovar a importância das discussões sobre esses problemas na Revolução Francesa. Nos limitaremos a adicionar alguns exemplos característicos. Um artigo muito citado de Rabaut-St.Etienne, publicado na Chronique de Paris do ano de 1793, contém as seguintes exigências: “1º Distribuir as fortunas do modo mais uniforme possível; 2º Ditar leis sobre sua conservação e para evitar futura desigualdade”(8). Naquele mesmo ano escrevia a Revolution de Paris: “Para impedir a grande desigualdade entre as fortunas dos republicanos, que são todos iguais. É preciso estabelecer um limite superior das mesmas, acima do qual não se permitirá lucro algum nem sequer com impostos que correspondam a ela.”(9) Medo análogo é o de uma decisão da assembleia popular de Castres: “Não afastar-se nunca dos verdadeiros princípios e não admitir jamais a um homem de grandes riquezas enquanto não saiba que é um patriota puro e ardoroso e enquanto não haja destruído essa desigualdade por todos os meios a seu alcance”(10). Analogamente se expressa Cambon no debate sobre o imposto progressivo e o empréstimo compulsório (1793): “Este sistema é o mais racional e o que melhor corresponde a nossos princípios, pois por meio dessas disposições produzireis a igualdade que algumas pessoas queriam no reino da fábula”(11). Os exemplos poderiam multiplicar-se.
Marx mostrou sem compaixão o caráter ilusório da renovação da Antiguidade a que aspiravam os revolucionários jacobinos, ao submeter a uma análise rigorosa a diversidade econômica dos dois desenvolvimentos. Escreve a respeito em A Sagrada Família: “ Robespierre, Saint Just e seu partido sucumbiram porque confundiram a antiga comunidade social realístico-democrática, baseada na real escravidão, com o moderno Estado representativo, espiritualista-democrático, o qual se baseia na escravidão emancipada, que é a sociedade burguesa. Que fabulosa ilusão foi o ter de reconhecer e sancionar os direitos do homem a moderna sociedade burguesa,a sociedade da indústria, da concorrência geral, dos interesses privados na livre perseguição de seus fins, da anarquia, da individualidade natural e espiritual alienada de si mesma, e querer anular ao mesmo tempo as manifestações vitais dessa sociedade nos diversos indivíduos e pretender conformar ao modo antigo a cabeça política dessa sociedade! ”(12).
Entretanto, em França essas ilusões eram herdeiras de políticos revolucionários plebeus, quer dizer, separados de seu caráter ilusório, estavam intimamente relacionados com momentos concretos da ação política real do partido plebeu nas circunstancias concretas dos anos 1793-94. Por isso em França podiam se realizar com esses fundamentos ilusórios medidas políticas que foram imprescindíveis do ponto de vista do desenvolvimento real. Limitar-nos-emos aqui a destacar duas delas. Em primeiro lugar, a guerra contra a coalizão da Europa inteira exigiu uma serie de medidas coercitivas tanto no terreno político, para a destruição das correntes contrarrevolucionárias – inclusive dentro da própria burguesia - como no terreno militar e administrativo, para assegurar o fornecimento de víveres ao exercito, uma atenção mínima às camadas urbanas mais miseráveis, que eram a base social do jacobinismo radical. Em segundo lugar, a realização radical da revolução democrática teve como consequência o confisco e a distribuição de uma grande parte das propriedades feudais, ou seja – por sua intenção e inclusive por seus efeitos durante algum tempo e parcialmente pelo menos - um nivelamento da propriedade da terra sobre a base de parcela camponesa.
O elemento ilusório que existe nas ações dos jacobinos consiste, pois, como indica a citada crítica de Marx, na qual os jacobinos não compreenderam os verdadeiros fundamentos político-sociais de suas medidas revolucionárias e alimentaram noções basicamente falsas pelo que faz à perspectiva que aquelas medidas revolucionárias deveriam abrir. Este caráter ilusório não destrói, portanto a essência democrática, o caráter revolucionário de seus atos. Antes, pelo contrário, precisamente essa indissolúvel mistura de política plebeia, realista, democrática e revolucionária, com ilusões fantásticas sobre as perspectivas do desenvolvimento das forças da sociedade burguesa desencadeadas pela revolução democrática é precisamente a viva contradição dialética que caracteriza este período da revolução.
Deste ponto de vista é preciso considerar a relação dos precursores ideológicos da revolução democrática e dos jacobinos com a Antiguidade. Marx chamou a atenção sobre o fato de que estas concepções ilusórias passam totalmente por alto o fundamento real da economia antiga, a escravidão, do mesmo modo que são incapazes de incluir a imagem que fazem da sociedade burguesa no lugar e papel do proletariado. Porém, esta falsidade da concepção básica não suprime este sentimento correto – correto no marco de concretos limites históricos - de que existiu uma determinada relação entre a propriedade de parcelas relativamente iguais e a democracia antiga. Marx precisamente formulou com grande precisão esta conexão: “Esta forma da livre propriedade do campesinato cultivador artesanal, considerada como forma dominante e normal, constitui por um lado a base econômica da sociedade nos melhores momentos da Antiguidade clássica, e, por outro lado, voltamos a encontrar nos povos modernos como uma das formas que se desprendem da dissolução da propriedade feudal da terra. Tal é o caso da yeomanry na Inglaterra, da classe camponesa na Suécia, em França e na Alemanha ocidental (...) A propriedade da terra é tão necessária para o pleno desenvolvimento deste modo de exploração como a propriedade da ferramenta é para o livre desenvolvimento da exploração artesão. E constitui a base do desenvolvimento da independência pessoal”(13). Estas observações de Marx são de importância extraordinária. Sobretudo, Marx indica com poucas palavras a relação econômica entre o florescimento das democracias antigas e a relativa igualdade da propriedade camponesa. Além disso, a alusão a yeomanry nos é muito significativa. Pois do mesmo modo que nas guerras da República Francesa e nas napoleônicas os camponeses libertos pela revolução e novos proprietários de suas terras constituem o núcleo dos exércitos, assim também na revolução inglesa a yeomanry constituiu o núcleo das tropas que libertaram o povo do jugo dos Eduardo.
Nesta medida tem as ilusões jacobinas uma base econômica real. O elemento ilusório das concepções jacobinas se descobre no fato de que os jacobinos viram nesta estádio econômico de passagem para o pleno capitalismo um estado duradouro da humanidade liberta, e tentaram fixa-lo como definitivo. Os trabalhos históricos de Marx e Engels, contêm abundante material da prova do caráter infundado e errôneo dessas ilusões. Assim, por exemplo, assinala Engels que essa mesma yeomanry que combateu nas batalhas de Crownwell desapareceu quase sem deixar rastro cem anos mais tarde nas tormentas da acumulação originária ou primitiva. E Marx por seu lado mostra em suas obras históricas de 1848 sobre a Revolução Francesa que o camponês francês liberto do jugo feudal e proprietário de sua terra caiu logo sobre o jugo ainda mais pesado dos usura capitalista. A ilusão dos revolucionários jacobinos consiste, pois, “somente” em não haver visto que suas medidas revolucionárias eram objetivamente medidas que desencadeavam o desenvolvimento capitalista.
Esta realidade e esta ideia exercem uma influência extraordinariamente grande e praticamente decisiva no desenvolvimento da filosofia alemã da época. Ao prepararmos para contemplar com mais detalhes essas influências devemos recordar mais uma vez que a filosofia alemã de sua época, mesmo seja em muitos aspectos um eco dos acontecimentos da Revolução Francesa se produz contudo nas condições do atraso econômico e político do país. Já indicamos que esse atraso causa o caráter idealista da referida filosofia. E este idealismo tem lugar como consequência que o reflexo mental e a elaboração filosófica dos acontecimentos da Revolução Francesa parta precisamente dos motivos nos quais a ideologia dos homens realmente ativos seja ilusória. A filosofia alemã do nona década do século XVIII se relaciona, pois, exatamente com essas ilusões, e reforça seu caráter ilusório ao sistematiza-las e aprofundá-las filosoficamente. E se, já em si essas ilusões são reflexos idealisticamente deformados da realidade objetiva, esse caráter é mais penetrante nas elaborações alemãs. Na filosofia alemã aparecem como ilusões de segundo grau, como ilusões ao quadrado.
Fichte é na Alemanha o filósofo que mais resolutamente toma partido dos ideais da Revolução Francesa. Seus primeiros livros – que apareceram anonimamente – são uma tomada de posição aberta e panfletária a favor, da Revolução Francesa e contra seus inimigos, as monarquias feudais-absolutistas da Europa. E ainda no ano de 1796, quando Fichte empreende a tarefa de sistematizar estritamente suas ideias sobre a filosofia prática – em seus Fundamentos do direito natural - obtém consequências muito radicais partindo das ilusórias concepções jacobinas da Revolução Francesa. O direito natural fichteano, como as obras jurídicas-filosóficas dos séculos XVII e XVIII se baseiam na teoria do “contrato social”, porém numa forma determinada também pelo subjetivismo da filosofia kantista e pelas concepções sociais jacobinas. Para Fichte, o contrato social inclui a obrigação da sociedade de velar pela existência de seus membros no marco da igualdade das fortunas: “ Todo direito de propriedade baseia-se no contrato de todos com todos, o qual diz: nós manteremos em nosso poder a condição de que deixemos a ti o teu. Portanto, enquanto alguém não possa viver de seu trabalho, isto significa que não o está deixando o que é seu, que o contrato social foi rompido pelo que faz a esta pessoa, e que esta pessoa deixa de estar desde este momento obrigada juridicamente a não respeitar a propriedade de ninguém”(14).
Estas concepções de Fichte se relacionam inclusive com as da extrema esquerda jacobina. E é interessante observar que Fichte é o filósofo alemão – ao menos entre os mais importantes – que se mantem fiel por mais tempo a essas concepções. Benjamin Constant recolhe zombeteiramente o fato de que mesmo no ano de 1800 Fichte escreveu uma utopia ( O estado comercial fechado) cujos princípios coincidem em muitos pontos com a política social e econômica do último período do governo de Robespierre. É necessário acrescentar, naturalmente, que também neste caso a sistematização filosófica das referidas ilusões por Fichte se produz por uma direção que forçosamente tem de exacerbar idealisticamente o elemento ilusório. ( O desenvolvimento posterior de Fichte, os conflitos íntimos que se produzem em consequência de sua adesão ao movimento de independência caem fora do âmbito de nossa investigação. Entretanto, forçosamente tínhamos de fazer algumas alusões a Fichte, pois também pelo que fez a este filósofo a historiografia burguesa silencia ou falsifica os problemas e conflitos internos que aquela situação histórica determinou no pensador).
O jovem Hegel nunca chegou tão longe quanto Fichte, nem sequer no período de Berna. Por uma de suas cartas a Schelling vimos já antes que ele era hostil a ala radical e plebeia jacobina. Apesar disso é preciso afirmar que a ideia rousseauniana e jacobina da igualdade relativa das fortunas constitui o fundamento econômico de sua filosofia da revolução. Entretanto, esta filosofia tem uma curiosa característica que devemos registrar, mesmo que não possamos considerar todo seu alcance senão ao expor detalhadamente as concepções de Hegel sobre a Antiguidade e o cristianismo. A característica em questão consiste em que a Antiguidade é para o jovem Hegel um período quase “aeconômico”. O jovem Hegel parte para a concepção dogmaticamente admitida da igualdade relativa das fortunas nas antigas cidades-estados, e analisa somente os fenômenos culturais e religiosos nos quais se manifestam as peculiaridades daqueles estados. Por outro lado, suas considerações sobre o cristianismo estão semeadas de concepções econômicas, por ingênuas que sejam no momento. Pois para o jovem Hegel o cristianismo é o período do homem privado, que se interessa por sua propriedade e somente por ela. A agonia da vida pública da Antiguidade, no período do despotismo antigo e depois no despotismo da idade cristã é para o jovem Hegel o período da vida econômica tal como ele a entende. Somente quando suas ilusões jacobinas entram em conflito com a realidade surge no pensador a necessidade de conseguir concepções econômicas mais profundamente fundadas. Por isso é muito característico que o descobrimento do papel da escravidão na Antiguidade se produza senão relativamente tarde, no período de Iena.
Entretanto tudo isto não significa de modo algum que o jovem Hegel haja sido cego par o problema social. Ao contrário. O problema da divisão do trabalho desempenha um grandioso papel em sua concepção de diferença entre a Antiguidade e o cristianismo. O ilusório de sua filosofia da história se manifesta também no fato de que o jovem Hegel idealiza a deficiência da divisão do trabalho na Antiguidade e espera da revolução democrática, o restabelecimento daquela situação antiga.
Em si tomada, a consideração crítica da divisão capitalista do trabalho é sem dúvida um momento muito progressista da filosofia humanista do período. E é mérito sobretudo de Schiller o haver assinalado este problema no centro do interesse dessa filosofia. Sabemos já que o jovem pensador leu com entusiasmo a obra de Schiller que é decisiva neste terreno, as Cartas sobre a educação estética. Em um estudo especialmente dedicado à crítica de Schiller mostrei com detalhes que esta crítica da divisão capitalista do trabalho não é produto de um anticapitalismo romântico, mas continuação das melhores tradições do Iluminismo, especialmente da tradição de Ferguson(15). É difícil precisar em que medida as concepções do jovem filósofo estão influenciadas pelas de Schiller e em que medida enraízam-se em Ferguson, ao que Hegel conheceu sem dúvida alguma. A importância metodológica que encontramos em Schiller e em Hegel diante de Fergunson: nos dois primeiros aparece muito pálido o fundamento econômico da divisão capitalista do trabalho, e os dois se preocupam sobretudo por todas as consequências ideológicas e culturais da referida divisão do trabalho. Hegel, certamente, com especial matiz de que para ele o ideal humanista do homem não desgarrado pela divisão do trabalho não se consegue pela via da arte, senão pela ação política. A grandeza da arte antiga é para Schiller um problema central: a forma de manifestação de um homem com todas as faces, de um homem ainda não atomizado. Este mesmo ideal se encarna em Hegel, no modo de ação política plenamente humano, com todos os rostos da antiga democracia; a arte da Antiguidade aparece em Hegel marginalmente, apenas como ilustração de um fato central que lhe interessa.
Entretanto, ainda mais importante é a diferença entre Schiller e Hegel pelo que faz à concepção histórico-filosófica. O primeiro escreveu sua obra no momento de sua evolução intelectual em que se havia separado já do modo de ação política da Revolução Francesa. Por isso se trata de um livro atravessado por um profundo pessimismo diante do presente, e, consequentemente, a Antiguidade é para ele um grandioso e eterno modelo que pertence plena e definitivamente ao passado. O jovem Hegel do período bernense se encontra nisto no ponto de vista oposto. Para ele, a Antiguidade é um modelo vivo e atual; certamente que é o passado, entretanto, se trata de renovar sua grandeza, e esta renovação constitui precisamente a tarefa política central, cultural e religiosa do presente.
Notas de rodapé:
(1) Rosenweig, Hegel und der Staat, Munique-Berlim, 1920, vol. I, p. 51. (retornar ao texto)
(2) Nohl, p. 359. (retornar ao texto)
(3) Ibidem, p. 215. (retornar ao texto)
(4) Ibidem. (retornar ao texto)
(5) Nohl, p.216. (retornar ao texto)
(6) Nohl, p. 212. (retornar ao texto)
(7) Rosenkranz, p. 69. (retornar ao texto)
(8) Apud [apoiado], Aulard, Politische Geschichte der Franzinsichen Revolution, Munique-Leipzig, 1924, vol. I. p. 304. Rabaut estava geralmente ao lado dos girondinos, entretanto, estes, naturalmente, não receberam bem sua proposta. Cf. ibidem, p. 365. (retornar ao texto)
(9) Ibidem, p. 366. (retornar ao texto)
(10) Aulard, op. cit., vol. II, p. 723. (retornar ao texto)
(11) Ibidem, vol. I, p. 367 e ss. (retornar ao texto)
(12) Marx-Engels, Die Heiligie Familie, Berlim, 1953, p. 250-1 (A Sagrada Familia). (retornar ao texto)
(13) Marx, Das Kapital, vol III, Berlim, 1953, p. 858. (retornar ao texto)
(14) Fichte, Werke, Leipzig, 1908, vol. II, pag. 217. (retornar ao texto)
(15) Cf. o artigo “Scillers Theorie der modern Literatur” ( A teoria schilleriana da literatura moderna), em meu livro Goethe und seine Zeit (Goethe e sua época), Aufbau –Verlag, Berlim, 1950. (retornar ao texto)
Inclusão | 01/02/2019 |