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Os socialistas sempre condenaram as guerras entre os povos como coisa bárbara e brutal. Mas a nossa atitude em relação à guerra é fundamentalmente diferente da dos pacifistas (partidários e pregadores da paz) burgueses e dos anarquistas. Distinguimo-nos dos primeiros pelo facto de compreendermos a ligação inevitável das guerras com a luta de classes no interior do país, de compreendermos a impossibilidade de suprimir as guerras sem a supressão das classes e a edificação do socialismo, e também pelo facto de reconhecermos inteiramente o carácter legítimo, progressista e necessário das guerras civis, isto é, das guerras da classe oprimida contra a classe opressora, dos escravos contra os escravistas, dos camponeses servos contra os senhores feudais, dos operários assalariados contra a burguesia. Nós, marxistas, distinguimo-nos tanto dos pacifistas como dos anarquistas pelo facto de reconhecermos a necessidade de estudar historicamente (do ponto de vista do materialismo dialéctico de Marx) cada guerra em particular. Na história houve repetidamente guerras que, apesar de todos os horrores, atrocidades, calamidades e sofrimentos inevitavelmente ligados a qualquer guerra, foram progressistas, isto é, foram úteis ao desenvolvimento da humanidade, ajudando a destruir instituições particularmente nocivas e reaccionárias (por exemplo a autocracia ou a servidão), os despotismos mais bárbaros da Europa (o turco e o russo). Por isso é necessário analisar as particularidades históricas da guerra actual.
A grande revolução francesa abriu uma nova época na história da humanidade. Desde então e até à Comuna de Paris, de 1789 a 1871, um dos tipos de guerras foram as guerras de carácter progressista burguês, nacional-libertador. Por outras palavras, o conteúdo principal e o significado histórico dessas guerras consistiam em derrubar o absolutismo e o feudalismo, em miná-los, em derrubar o jugo estrangeiro. Eram por isso guerras progressistas, e todos os democratas honestos, revolucionários, bem como todos os socialistas, em semelhantes guerras, sempre desejaram o êxito do país (isto é, da burguesia) que contribuía para derrubar ou minar os mais perigosos pilares do feudalismo, do absolutismo, e da opressão de outros povos. Por exemplo, nas guerras revolucionárias da França havia o elemento de pilhagem e de conquista de terras alheias pelos franceses, mas isso em nada altera o significado histórico fundamental dessas guerras, que destruíam e abalavam o feudalismo e o absolutismo de toda a velha Europa, a Europa da servidão. Na guerra franco-prussiana, a Alemanha pilhou a França, mas isso não modifica o significado histórico fundamental dessa guerra, que libertou dezenas de milhões de alemães do fraccionamento feudal e da opressão de dois déspotas, o tsar russo(1*) e Napoleão III.
A época de 1789 a 1871 deixou marcas profundas e recordações revolucionárias. Antes do derrubamento do feudalismo, do absolutismo e do jugo estrangeiro nem sequer se podia falar de desenvolvimento da luta proletária pelo socialismo. Falando da legitimidade da guerra «defensiva» a propósito das guerras dessa época, os socialistas sempre tiveram em vista precisamente esses objectivos, que se reduzem à revolução contra o regime medieval e a servidão. Os socialistas sempre entenderam por guerra «defensiva» uma guerra «justa» neste sentido (assim se exprimiu uma vez W. Liebknecht(N165)). Só neste sentido os socialistas reconheciam e reconhecem hoje o carácter legítimo progressista e justo da «defesa da pátria» ou da guerra «defensiva». Por exemplo, se amanhã Marrocos declarasse guerra à França, a Índia à Inglaterra, a Pérsia ou a China à Rússia, etc., essas seriam guerras «justas», «defensivas», independentemente de quem primeiro atacasse, e qualquer socialista desejaria a vitória dos Estados oprimidos, dependentes, sem plenos direitos, contra as «grandes» potências opressoras, escravistas, espoliadoras. Mas imaginemos que um escravista que possui 100 escravos faz guerra a um escravista que possui 200 escravos por uma partilha mais «justa» dos escravos. É evidente que a aplicação a semelhante caso do conceito de guerra «defensiva» ou de «defesa da pátria» seria historicamente falsa e na prática uma simples mistificação do povo simples, da pequena burguesia, das pessoas ignorantes pelos escravistas. É precisamente assim que a actual burguesia, imperialista, mistifica os povos por meio da ideologia «nacional» e do conceito de defesa da pátria na presente guerra entre os escravistas para consolidar e reforçar a escravidão.
Quase todos reconhecem que a actual guerra é uma guerra imperialista, mas na maior parte dos casos deturpam este conceito ou aplicam-no unilateralmente, ou insinuam em todo o caso a possibilidade de que esta guerra tenha um significado progressista burguês, nacional-libertador. O imperialismo é o grau superior de desenvolvimento do capitalismo, atingido apenas no século XX. O capitalismo passou a sentir-se, apertado nos velhos Estados nacionais, sem cuja formação ele não teria podido derrubar o feudalismo. O capitalismo desenvolveu de tal modo a concentração que ramos inteiros da indústria foram açambarcados pelos consórcios, trusts e associações de capitalistas milionários, e quase todo o globo terrestre está dividido entre esses «senhores do capital», sob a forma de colónias ou enredando países estrangeiros com os milhares de fios da exploração financeira. O comércio livre e a concorrência foram substituídos pela tendência para o monopólio, para a conquista de terras para o investimento do capital, para a extracção de matérias-primas, etc. De libertador de nações que o capitalismo foi na luta contra o feudalismo, o capitalismo imperialista tornou-se o maior opressor das nações. De progressista o capitalismo tornou-se reaccionário, desenvolveu as forças produtivas a tal ponto que a humanidade terá ou de passar ao socialismo ou de sofrer durante anos ou mesmo decénios a luta armada das «grandes» potências pela manutenção artificial do capitalismo por meio das colónias, dos monopólios, dos privilégios e de opressões nacionais de toda a espécie.
A fim de tornar claro o significado do imperialismo, apresentaremos dados precisos sobre a partilha do mundo pelas chamadas «grandes» potências (isto é, as que têm êxito na grande pilhagem):
Partilha do mundo pela «grandes» potências escravistas (Em milhões) |
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Colónias | Metrópoles | Total | ||||||
1876 | 1914 | 1914 | ||||||
Km2 | Hab | Km2 | Hab | Km2 | Hab | Km2 | Hab | |
Inglaterra | 22,5 | 251,9 | 33,5 | 393,5 | 0,3 | 46,5 | 33,8 | 440,0 |
Rússia | 17,0 | 15,9 | 17,4 | 33,2 | 5,4 | 136,2 | 22,8 | 169,4 |
França | 0,9 | 6,0 | 10,6 | 55,5 | 0,5 | 39,6 | 11,1 | 95,1 |
Alemanha | 2,9 | 12,3 | 0,5 | 64,9 | 3,4 | 77,2 | ||
Japão | 0,3 | 19,2 | 0,4 | 53 | 0,7 | 72,2 | ||
EUA | 0,3 | 9,7 | 9,4 | 97 | 9,7 | 106,7 | ||
Total das 6 grandes potências | 40,4 | 273,8 | 65,0 | 523,4 | 16,5 | 437,2 | 81,5 | 960,6 |
Colónias não pertencentes às grandes potências (mas à Bélgica, Holanda e outros Estados) |
9,9 | 45,3 | 9,9 | 45,3 | ||||
Três países semi-colónias (Turquia, China e Pérsia) |
14,5 | 361,2 | ||||||
Total | 105,9 | 1367,1 | ||||||
Restantes Estados e países | 28,0 | 289,9 | ||||||
Todo o globo terrestre (excepto a região polar) | 133,9 | 1957 |
Por aqui se vê como os povos que em 1789-1871 lutavam na sua maior parte à frente dos outros povos pela liberdade se tornaram agora, depois de 1876, na base de um capitalismo altamente desenvolvido e «ultramaduro», os opressores e escravizadores da maioria das populações e nações do globo. De 1876 a 1914, seis «grandes» potências apoderaram-se de 25 milhões de quilómetros quadrados, ou seja, uma superfície 2,5 vezes maior que toda a Europa! Seis potências escravizam mais de quinhentos milhões (523 milhões) de habitantes das colónias. Para cada 4 habitantes das «grandes» potências há 5 habitantes nas «suas» colónias. E toda a gente sabe que as colónias foram conquistadas a ferro e fogo, que nas colónias tratam cruelmente a população, que a exploram de mil maneiras (através da exportação de capitais, das concessões, etc.; enganando-as na venda de produtos, submetendo-as às autoridades da nação «dominante», etc. e assim por diante). A burguesia anglo-francesa engana o povo ao dizer que faz a guerra pela liberdade dos povos e da Bélgica: na realidade ela faz a guerra para conservar as colónias que rouba desmesuradamente. Os imperialistas alemães libertariam imediatamente a Bélgica, etc., se os ingleses e franceses partilhassem «amigavelmente» com eles as suas colónias. A singularidade da situação consiste em que nesta guerra a sorte das colónias se decide pela guerra no continente. Do ponto de vista da justiça burguesa e da liberdade nacional (ou do direito das nações à existência), a Alemanha teria incontestavelmente razão contra a Inglaterra e a França, pois ela foi «privada» de colónias, os seus inimigos oprimem incomparavelmente mais nações do que ela, e na sua aliada, a Áustria, os eslavos oprimidos gozam sem dúvida de maior liberdade do que na Rússia tsarista, essa verdadeira «prisão dos povos». Mas a própria Alemanha não faz a guerra pela libertação mas pela opressão das nações. Não cabe aos socialistas ajudar o bandoleiro mais jovem e forte (a Alemanha) a roubar os bandoleiros mais velhos e saciados. Os socialistas devem utilizar a luta entre os bandoleiros para os derrubar a todos. Para isso os socialistas devem antes de mais dizer a verdade ao povo, a saber, que esta guerra é, num triplo sentido, uma guerra de escravistas pelo reforço da escravidão. É uma guerra, em primeiro lugar, pelo reforço da escravidão das colónias através de uma partilha mais «justa» e da sua ulterior exploração mais «harmoniosa»; em segundo lugar, pelo reforço da opressão sobre as nações estrangeiras nas próprias «grandes» potências, pois tanto a Áustria como a Rússia (a Rússia muito mais e muito pior que a Áustria) só se mantêm por meio dessa opressão, intensificando-a com a guerra; em terceiro lugar, pelo reforço e o prolongamento da escravidão assalariada, pois o proletariado está dividido e esmagado, enquanto os capitalistas estão a ganhar, lucrando com a guerra, exacerbando os preconceitos nacionais e intensificando a reacção, que ergueu a cabeça em todos os países, mesmo nos mais livres e republicanos.
Esta célebre sentença pertence a Clausewitz um dos autores mais profundos sobre as questões militares. Os marxistas sempre consideraram justamente esta tese como base teórica das concepções sobre o significado de cada guerra determinada. Marx e Engels sempre encararam as diferentes guerras precisamente deste ponto de vista.
Apliquemos esta concepção à presente guerra. Veremos que durante decénios, durante quase meio século, os governos e as classes dominantes da Inglaterra, da França, da Alemanha, da Itália, da Áustria e da Rússia praticaram uma política de pilhagem das colónias, de opressão de nações estrangeiras, de repressão do movimento operário. É precisamente essa política, e apenas essa, que é continuada na actual guerra. Em particular, na Áustria e na Rússia a política tanto do tempo de paz como do tempo de guerra consiste na escravização das nações e não na sua libertação. Pelo contrário, na China, na Pérsia, na Índia e noutros países dependentes vemos ao longo dos últimos decénios uma política de despertar para a vida nacional de dezenas e centenas de milhões de pessoas, da sua libertação da opressão das «grandes» potências reaccionárias. A guerra nesse terreno histórico pode ser ainda hoje uma guerra progressista burguesa, uma guerra de libertação nacional.
Basta considerar a presente guerra do ponto de vista da continuação nela da política das «grandes» potências e das classes fundamentais no seio delas para ver imediatamente o carácter clamorosamente anti-histórico, mentiroso e hipócrita da opinião segundo a qual seria possível justificar a ideia de «defesa da pátria» na actual guerra.
Os sociais-chauvinistas da Tripla (actualmente Quádrupla) Entente(N166) (na Rússia Plekhánov e Cª) gostam acima de tudo de invocar o exemplo da Bélgica. Mas esse exemplo fala contra eles. Os imperialistas alemães violaram sem vergonha a neutralidade da Bélgica, como fizeram sempre e em toda a parte os Estados beligerantes, que, em caso de necessidade, espezinharam todos os tratados e compromissos. Admitamos que todos os Estados interessados na observância dos tratados internacionais declarassem guerra à Alemanha exigindo a libertação e uma indemnização à Bélgica. Em tal caso a simpatia dos socialistas estaria, claro, do lado dos inimigos da Alemanha. Contudo, a questão está precisamente em que não é pela Bélgica que a «Tripla (e Quádrupla) Aliança» faz a guerra: isso é perfeitamente conhecido e só os hipócritas o dissimulam. A Inglaterra rouba as colónias da Alemanha e a Turquia, a Rússia rouba a Galícia e a Turquia, a França obtém a Alsácia-Lorena e mesmo a margem esquerda do Reno; com a Itália foi concluído um tratado sobre a partilha do saque (a Albânia e a Ásia Menor); com a Bulgária e a Roménia está em curso um regateio também quanto à partilha do saque. No terreno da guerra actual dos governos actuais é impossível ajudar a Bélgica a não ser ajudando a estrangular a Áustria ou a Turquia, etc.! Que vem aqui fazer a «defesa da pátria»?? É nisso precisamente que consiste a especificidade da guerra imperialista, da guerra entre governos burgueses reaccionários, historicamente caducos, conduzida para a opressão de outras nações. Quem justifique a participação nesta guerra perpetua a opressão imperialista das nações. Quem advogue a utilização das actuais dificuldades dos governos para lutar pela revolução socialista defende a liberdade real realmente de todas as nações, que só é realizável no socialismo.
Na Rússia, o imperialismo capitalista de tipo moderno revelou-se plenamente na política do tsarismo em relação à Pérsia, à Manchúria, à Mongólia, mas na Rússia, de modo geral, predomina o imperialismo militar e feudal. Em nenhuma outra parte do mundo existe uma tal opressão da maioria da população do país como na Rússia: os grãos-russos constituem apenas 43% da população, isto é, menos de metade, e todos os restantes estão privados de direitos, como alógenos. Dos 170 milhões de habitantes da Rússia cerca de 100 milhões são oprimidos e privados de direitos. O tsarismo faz a guerra para conquistar a Galícia e estrangular definitivamente a liberdade dos ucranianos, para conquistar a Arménia, e Constantinopla, etc. O tsarismo vê na guerra um meio para desviar a atenção do crescimento do descontentamento no interior do país e esmagar o crescente movimento revolucionário. Presentemente, para cada dois grão-russos há na Rússia dois ou três «alógenos» privados de direitos: por meio da guerra o tsarismo procura aumentar o número de nações oprimidas pela Rússia, consolidar a sua opressão e fazer desse modo fracassar a luta pela liberdade dos próprios grão-russos. A possibilidade de oprimir e de roubar outros povos reforça a estagnação económica, pois em vez do desenvolvimento das forças produtivas, a fonte de rendimentos é frequentemente constituída pela exploração semifeudal dos «alógenos». Deste modo, por parte da Rússia a guerra distingue-se por um extremo reaccionarismo e por um carácter antilibertador.
O social-chauvinismo é a defesa da ideia de «defesa da pátria» na presente guerra. Dessa ideia decorrem, seguidamente, a renúncia à luta de classes durante a guerra, a votação dos créditos de guerra, etc. De facto os sociais-chauvinistas praticam uma política antiproletária, burguesa, pois de facto preconizam não a «defesa da pátria» no sentido de luta contra a opressão estrangeira, mas o «direito» de tais ou tais «grandes» potências de pilhar as colónias e de oprimir outros povos. Os sociais-chauvinistas repetem a mistificação burguesa do povo segundo a qual a guerra é travada pela defesa da liberdade e da existência das nações, e passam assim para o lado da burguesia contra o proletariado. São sociais-chauvinistas tanto aqueles que justificam e embelezam os governos e a burguesia de um dos grupos de potências beligerantes como aqueles que, a exemplo de Kautsky, reconhecem aos socialistas de todas as potências beligerantes igual direito a «defender a pátria». O social-chauvinismo, que é de facto a defesa dos privilégios, das vantagens, das pilhagens e das violências da «sua» burguesia (ou de qualquer burguesia em geral) imperialista, constitui uma completa traição a todas as convicções socialistas e à resolução do congresso socialista internacional de Basileia.
O manifesto sobre a guerra adoptado por unanimidade em 1912 em Basileia tem em vista precisamente a guerra entre a Inglaterra e a Alemanha com os seus actuais aliados, que eclodiu em 1914. O manifesto declara expressamente que nenhum interesse popular pode justificar semelhante guerra, conduzida «pelo lucro dos capitalistas e pelas vantagens das dinastias» com base na política imperialista e espoliadora das grandes potências. O manifesto declara expressamente que a guerra é perigosa «para os governos» (todos sem excepção), assinala o seu medo da «revolução proletária», aponta da maneira mais definida o exemplo da Comuna de 1871 e o de Outubro-Dezembro de 1905, isto é, o exemplo da revolução e da guerra civil. Deste modo, o manifesto de Basileia estabelece precisamente para a presente guerra a táctica da luta revolucionária dos operários à escala internacional contra os seus governos, a táctica da revolução proletária. O manifesto de Basileia repete as palavras da resolução de Estugarda, dizendo que, em caso de eclosão da guerra, os socialistas deviam aproveitar a «crise económica e política» por ela criada para «acelerar a queda do capitalismo», isto é, utilizar as dificuldades criadas pela guerra aos governos e a indignação das massas para a revolução socialista.
A política dos sociais-chauvinistas, a justificação por eles da guerra de pontos de vista libertadores burgueses, a admissão por eles da «defesa da pátria», a votação a favor dos créditos, a entrada nos ministérios, etc., etc., são uma traição directa ao socialismo, só explicável, como veremos adiante, pela vitória do oportunismo e da política operária nacional-liberal no seio da maioria dos partidos europeus.
Os sociais-chauvinistas russos (encabeçados por Plekhánov) referem a táctica de Marx na guerra de 1870; os sociais-chauvinistas alemães (do tipo de Lensch, David e Cª) referem as declarações de Engels em 1891 sobre a obrigatoriedade de os socialistas alemães defenderem a pátria em caso de guerra com a Rússia e a França juntas; finalmente, os sociais-chauvinistas do tipo de Kautsky, desejando reconciliar-se com o chauvinismo internacional e legitimá-lo, referem-se ao facto de Marx e Engels, condenando as guerras, se terem no entanto colocado constantemente, de 1854-1855 até 1870-1871 e 1876-1877, ao lado de um ou de outro Estado beligerante, uma vez que a guerra apesar de tudo se desencadeava.
Todas essas referências constituem uma revoltante deturpação das concepções de Marx e Engels para agradar à burguesia e aos oportunistas, tal como os escritos dos anarquistas Guillaume e Cª deturpam as concepções de Marx e Engels para justificar o anarquismo. A guerra de 1870-1871 foi historicamente progressista por parte da Alemanha até Napoleão III ser derrotado, pois este, juntamente com o tsar(2*), oprimiu a Alemanha durante longos anos, mantendo ali o fraccionamento feudal. E logo que a guerra se transformou em pilhagem da França (a anexação da Alsácia e da Lorena) Marx e Engels condenaram decididamente os alemães. De resto, logo no início dessa guerra Marx e Engels aprovaram a recusa de Bebel e Liebknecht de votar a favor dos créditos e aconselharam a social-democracia a não se juntar à burguesia, mas defender os interesses de classe independentes do proletariado. Transferir uma apreciação dessa guerra progressista burguesa e nacional-libertadora para a actual guerra imperialista é escarnecer da verdade. O mesmo diz também respeito, com maior força ainda, à guerra de 1854-1855 e a todas as guerras do século XIX, quando não existiam nem o imperialismo contemporâneo, nem as condições objectivas maduras do socialismo, nem partidos socialistas de massas em todos os países beligerantes, isto é, não existiam precisamente as condições das quais o manifesto de Basileia deduziu a táctica da «revolução proletária» em ligação com a guerra entre as grandes potências.
Quem refere hoje a atitude de Marx em relação às guerras da época da burguesia progressista e esquece as palavras de Marx «os operários não têm pátria» — palavras que dizem respeito precisamente à época da burguesia reaccionária, caduca, à época da revolução socialista — deturpa Marx sem vergonha e substitui o ponto de vista socialista pelo burguês.
Os socialistas de todo o mundo declararam solenemente em 1912 em Basileia que consideravam a futura guerra europeia como uma empresa «criminosa» e reaccionaríssima de todos os governos, que devia acelerar a derrocada do capitalismo, gerando inevitavelmente a revolução contra ele. Começou a guerra, começou a crise. Em vez da táctica revolucionária, a maioria dos partidos sociais-democratas aplicaram uma táctica reaccionária, colocando-se ao lado dos seus governos e da sua burguesia. Esta traição ao socialismo significa a falência da II Internacional (1889-1914), e nós devemos aperceber-nos do que causou essa falência, do que gerou o social-chauvinismo, daquilo que lhe deu força.
Durante toda a época da II Internacional decorreu por toda a parte uma luta no interior dos partidos sociais-democratas entre a ala revolucionária e a ala oportunista. Em vários países houve cisão segundo esta linha (Inglaterra, Itália, Holanda, Bulgária). Nenhum marxista duvidava de que o oportunismo expressava a política burguesa no movimento operário, expressava os interesses da pequena burguesia e da aliança de uma ínfima parte de operários aburguesados com a «sua» burguesia contra os interesses da massa dos proletários, da massa dos oprimidos.
As condições objectivas de fins do século XIX reforçavam particularmente o oportunismo, transformando a utilização da legalidade burguesa em servilismo para com ela, criando a pequena camada da burocracia e da aristocracia da classe operária, atraindo para as fileiras dos partidos sociais-democratas muitos «companheiros de jornada» pequeno-burgueses.
A guerra acelerou o desenvolvimento, transformando o oportunismo em social-chauvinismo, transformando a aliança secreta dos oportunistas com a burguesia numa aliança aberta. Além disso, as autoridades militares decretaram por toda a parte a lei marcial e a mordaça para a massa operária, cujos velhos chefes se passaram, quase sem excepção, para a burguesia.
A base económica do oportunismo e do social-chauvinismo é a mesma: os interesses de uma ínfima camada de operários privilegiados e da pequena burguesia, que defendem a sua situação privilegiada, o seu «direito» às migalhas dos lucros obtidos pela «sua» burguesia nacional com a pilhagem de outras nações, com as vantagens da sua situação de grande potência, etc.
O conteúdo ideológico-político do oportunismo e do social-chauvinismo é o mesmo: a colaboração de classes em vez da sua luta, a renúncia aos meios revolucionários de luta, a ajuda ao «seu» governo em situação difícil em vez da utilização das suas dificuldades para a revolução. Se considerarmos todos os países europeus no conjunto, se não tivermos em atenção personalidades isoladas (mesmo as de maior prestígio), verificaremos que foi precisamente a corrente oportunista que se tornou o principal esteio do social-chauvinismo, e no campo dos revolucionários se ouve quase por toda a parte um protesto mais ou menos consequente contra ele. E se considerarmos, por exemplo, o agrupamento das tendências no congresso socialista internacional de Estugarda de 1907, verificaremos que o marxismo internacional era contra o imperialismo, enquanto o oportunismo internacional já então era a favor dele.
Na época passada, antes da guerra, o oportunismo era frequentemente considerado um «desvio», um «extremismo», mas em todo o caso uma parte constitutiva legítima do partido social-democrata. A guerra mostrou que isso é impossível no futuro. O oportunismo «amadureceu», levou até ao fim o seu papel de emissário da burguesia no movimento operário. A unidade com os oportunistas tornou-se uma hipocrisia completa, de que vemos um exemplo no partido social-democrata alemão. Em todos os casos importantes (por exemplo na votação de 4 de Agosto) os oportunistas aparecem com o seu ultimato, pondo-o em prática com a ajuda das suas numerosas ligações com a burguesia, da sua maioria nas direcções dos sindicatos, etc. A unidade com os oportunistas significa presentemente de facto a subordinação da classe operária à «sua» burguesia nacional, a aliança com ela para oprimir outras nações e lutar pelos privilégios de grande potência, sendo uma cisão do proletariado revolucionário de todos os países.
Por mais dura que seja em certos casos a luta contra os oportunistas que dominam em muitas organizações, por mais peculiar que seja em certos países o processo de depuração dos partidos operários dos oportunistas, esse processo é inevitável e fecundo. O socialismo reformista agoniza; o socialismo que renasce «será revolucionário, intransigente, insurrecto», segundo a justa expressão do socialista francês Paul Golay(N167).
Kautsky, a maior autoridade da II Internacional, representa um exemplo extremamente típico e expressivo de como o reconhecimento verbal do marxismo conduziu na prática à sua transformação em «struvismo»(N168) ou em «brentanismo». Vemo-lo também no exemplo de Plekhánov. Por meio de sofismas evidentes extirpam do marxismo a sua alma revolucionária viva, reconhecem no marxismo tudo, menos os meios revolucionários de luta, a propaganda e a preparação destes, a educação das massas precisamente nesse sentido. Kautsky «concilia» sem princípios o pensamento fundamental do social-chauvinismo, a aceitação da defesa da pátria na presente guerra, com uma concessão diplomática e aparente à esquerda na forma de abstenção na votação dos créditos, de reconhecimento verbal da sua oposição, etc. Kautsky, que em 1909 escreveu todo um livro sobre a aproximação de uma época de revoluções e sobre a ligação da guerra com a revolução, Kautsky, que em 1912 subscreveu o manifesto de Basileia sobre a utilização revolucionária da guerra futura, justifica e embeleza hoje de todas as maneiras o social-chauvinismo e, tal como Plekhánov, junta-se à burguesia para ridicularizar quaisquer ideias de revolução, quaisquer passos no sentido da luta directamente revolucionária.
A classe operária não pode desempenhar o seu papel revolucionário mundial sem travar uma luta implacável contra essa renegação, essa irresolução, esse servilismo em relação ao oportunismo e esse incrível aviltamento teórico do marxismo. O kautskismo não é fruto do acaso, mas o produto social das contradições da II Internacional, da junção da fidelidade em palavras ao marxismo com a submissão de facto ao oportunismo.
Esta mentira fundamental do «kautskismo» manifesta-se de diferentes formas nos diferentes países. Na Holanda, Roland-Holst, rejeitando a ideia de defesa da pátria, defende a unidade com o partido dos oportunistas. Na Rússia, Trótski, rejeitando igualmente essa ideia, defende do mesmo modo a unidade com o grupo oportunista e chauvinista do Nacha Zariá. Na Roménia, Rakovski, ao mesmo tempo que declara guerra ao oportunismo como culpado da falência da Internacional, está disposto a reconhecer a legitimidade da ideia de defesa da pátria. Tudo isto são manifestações do mal a que os marxistas holandeses (Gorter, Pannekoek) chamaram «radicalismo passivo» e que se reduz à substituição do marxismo revolucionário pelo eclectismo na teoria e ao servilismo ou à impotência perante o oportunismo na prática.
A guerra gerou indubitavelmente uma crise violentíssima e agudizou incrivelmente os sofrimentos das massas. O carácter reaccionário desta guerra, a desavergonhada mentira da burguesia de todos os países, que dissimula os seus objectivos de pilhagem com a ideologia «nacional», tudo isso cria inevitavelmente, na base da situação objectivamente revolucionária, um estado de espírito revolucionário nas massas. O nosso dever é ajudar a tomar consciência desse estado de espírito, a aprofundá-lo e a dar-lhe forma. Essa tarefa só é correctamente expressa pela palavra de ordem de transformação da guerra imperialista em guerra civil, e qualquer luta de classe consequente durante a guerra, qualquer táctica de «acções de massas» seriamente aplicada conduz inevitavelmente a isso. Não se pode saber se será devido à primeira ou à segunda guerra imperialista das grandes potências, durante ela ou depois dela que nascerá um forte movimento revolucionário, mas em qualquer caso é nosso dever absoluto trabalhar de modo sistemático e constante precisamente nesse sentido.
O manifesto de Basileia refere directamente o exemplo da Comuna de Paris, isto é, a transformação da guerra de governos em guerra civil. Há meio século o proletariado era demasiado fraco, as condições objectivas do socialismo ainda não tinham amadurecido, não podia haver correspondência e cooperação dos movimentos revolucionários em todos os países beligerantes, o entusiasmo de uma parte dos operários parisienses pela «ideologia nacional» (tradição de 1792) era uma sua fraqueza pequeno-burguesa, a seu tempo assinalada por Marx e que foi uma das causas do fracasso da Comuna. Meio século depois dela desapareceram as condições que enfraqueciam a revolução de então, e presentemente é imperdoável para um socialista conformar-se com a recusa de actuar precisamente no espírito dos communards parisienses.
Os jornais burgueses de todos os países beligerantes citaram exemplos de confraternização dos soldados das nações beligerantes mesmo nas trincheiras. E a promulgação de decretos draconianos pelas autoridades militares (da Alemanha, da Inglaterra) contra essa confraternização demonstrou que os governos e a burguesia lhe atribuíam uma séria importância. Se mesmo com o completo domínio do oportunismo nas cúpulas dos partidos sociais-democratas da Europa ocidental e com o apoio ao social-chauvinismo por toda a imprensa social-democrata, por todas as autoridades da II Internacional, foram possíveis casos de confraternização, isso mostra-nos até que ponto seria possível abreviar a actual guerra criminosa, reaccionária e escravista e organizar um movimento revolucionário internacional com um trabalho sistemático nesse sentido, nem que fosse só dos socialistas de esquerda de todos os países beligerantes.
Os mais destacados anarquistas de todo o mundo não se desonraram menos que os oportunistas com o social-chauvinismo (no espírito de Plekhánov e de Kautsky) nesta guerra. Um dos resultados úteis desta guerra será, sem dúvida, que ela matará tanto o oportunismo como o anarquismo.
Sem renunciar em nenhum caso e em nenhumas circunstâncias à utilização da mínima possibilidade legal para organizar as massas e fazer propaganda do socialismo, os partidos sociais-democratas devem romper com o servilismo perante a legalidade. «Disparai primeiro, senhores burgueses», escreveu Engels aludindo precisamente à guerra civil e à necessidade de nós violarmos a legalidade depois de a burguesia a ter violado. A crise mostrou que a burguesia a viola em todos os países, mesmo nos mais livres, e que é impossível conduzir as massas à revolução sem criar uma organização ilegal para propagar, discutir, apreciar e preparar os meios revolucionários de luta. Na Alemanha, por exemplo, tudo aquilo que os socialistas fazem de honesto é feito contra o vil oportunismo e o «kautskismo» hipócrita e é feito precisamente na ilegalidade. Na Inglaterra é-se condenado a trabalhos forçados devido a apelos impressos à recusa do serviço militar.
Considerar compatível com a condição de membro do partido social-democrata a negação dos métodos ilegais de propaganda e ridicularizá-los na imprensa legal é uma traição ao socialismo.
Os defensores da vitória do seu governo na presente guerra, tal como os defensores da palavra de ordem «nem vitória nem derrota», adoptam do mesmo modo o ponto de vista do social-chauvinismo. Numa guerra reaccionária, a classe revolucionária não pode deixar de desejar a derrota do seu governo, não pode deixar de ver a ligação entre os fracassos militares deste e a facilitação do seu derrubamento. Só o burguês, que acredita que uma guerra iniciada pelos governos terminará necessariamente como uma guerra entre governos, e que o deseja, acha «ridícula» ou «absurda» a ideia de que os socialistas de todos os países beligerantes afirmem que desejam a derrota de todos os «seus» governos. Pelo contrário, essa afirmação corresponderia precisamente aos pensamentos secretos de qualquer operário consciente e inscrever-se-ia na linha da nossa actividade, orientada para a transformação da guerra imperialista em guerra civil.
Sem dúvida que a importante agitação contra a guerra de uma parte dos socialistas ingleses, alemães e russos «enfraquecia o poderio militar» dos respectivos governos, mas essa agitação foi um mérito dos socialistas. Os socialistas devem explicar às massas que para elas não há salvação a não ser no derrubamento revolucionário dos «seus» governos e que as dificuldades desses governos na guerra actual devem ser utilizadas precisamente com esse objectivo.
O estado de espírito das massas a favor da paz exprime frequentemente o início de um protesto, da revolta e da consciência do carácter reaccionário da guerra. Aproveitar esse estado de espírito é um dever de todos os sociais-democratas. Eles participam do modo mais ardente em todos os movimentos e em todas as manifestações neste terreno, mas não enganarão o povo admitindo a ideia de que, na ausência de um movimento revolucionário, é possível a paz sem anexações, sem opressão das nações, sem pilhagem, sem os germes de novas guerras entre os actuais governos e classes dominantes. Enganar assim o povo apenas faria o jogo da diplomacia secreta dos governos beligerantes e dos seus planos contra-revolucionários. Quem deseja uma paz sólida e democrática deve ser a favor da guerra civil contra os governos e a burguesia.
A mistificação mais comum do povo pela burguesia na presente guerra é o encobrimento dos seus objectivos de pilhagem com a ideologia da «libertação nacional». Os ingleses prometem a liberdade à Bélgica, os alemães à Polónia, etc. Na realidade, como vimos, esta é uma guerra entre os opressores da maioria das nações do mundo pelo reforço e o alargamento dessa opressão.
Os socialistas não podem alcançar o seu grande objectivo sem lutar contra toda a opressão das nações. Por isso eles devem obrigatoriamente exigir que os partidos sociais-democratas dos países opressores (particularmente das chamadas «grandes» potências) reconheçam e defendam o direito das nações oprimidas à autodeterminação, e precisamente no sentido político da palavra, isto é, o direito à separação política. Um socialista de uma nação que seja uma grande potência ou possua colónias que não defende esse direito é um chauvinista.
A defesa desse direito não só não estimula a criação de pequenos Estados como, pelo contrário, conduz à formação mais livre, mais ousada e por isso mais ampla e mais generalizada de grandes Estados e de uniões entre Estados, mais vantajosos para as massas e correspondendo melhor ao desenvolvimento económico.
Os socialistas das nações oprimidas, por sua vez, devem obrigatoriamente lutar pela completa unidade (incluindo organizativa) dos operários das nacionalidades oprimidas e opressoras. A ideia de separação jurídica de uma nação de outra (a chamada «autonomia nacional cultural» de Bauer e Renner) é uma ideia reaccionária.
O imperialismo é a época da progressiva opressão das nações de todo o mundo por um punhado de «grandes» potências, e por isso a luta pela revolução socialista internacional contra o imperialismo é impossível sem o reconhecimento do direito das nações à autodeterminação. «Não pode ser livre um povo que oprime outros povos» (Marx e Engels). Não pode ser socialista um proletariado que admite a mínima violência da «sua» nação sobre outras nações.
Notas de rodapé:
(1*) Alexandre III. (N. Ed.) (retornar ao texto)
(N165) Lénine refere-se à intervenção de W. Liebknecht no congresso de Erfurt da social-democracia alemã em 1891. (retornar ao texto)
(N166) Quádrupla (Entente): aliança imperialista entre a Inglaterra, a Rússia, a França e a Itália, que em 1915 saiu da Tripla Aliança para aderir à Tripla Entente. (retornar ao texto)
(2*) Alexandre II. (N. Ed.) (retornar ao texto)
(N167) Em 11 de Março de 1915, em Lausana, o socialista francês P. Golay fez uma conferência sobre o tema «O Socialismo Agonizante e o Socialismo que deve Renascer». (retornar ao texto)
(N168) Struvismo ou teoria struvista: deturpação burguesa liberal do marxismo. Que recebeu o nome de P. Struve, principal representante do «marxismo legal» na Rússia. O «marxismo legal» surgiu como corrente político-social independente nos anos 90 do século XIX entre a intelectualidade burguesa liberal da Rússia. Os «marxistas legais», encabeçados por Struve, procuravam utilizar o marxismo no interesse da burguesia. Nesse tempo, na Rússia, o marxismo tinha uma difusão bastante ampla e os intelectuais burgueses, sob a bandeira do marxismo, começaram a pregar as suas opiniões na imprensa legal. Da doutrina de Marx suprimiam aquilo que era o mais importante – a doutrina da revolução proletária e da ditadura do proletariado. (retornar ao texto)
Inclusão | 09/09/2016 |