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O que é o “universal”? O que é preciso entender por esta palavra se se quer evitar a imprecisão e o mal-entendido, pelo menos enquanto lendo os próximos parágrafos? No sentido literal da palavra, “universal” significa “comum a todos”. “Todos” está para os sujeitos cuja multiplicidade infinita cria a primeira impressão do mundo em que vivemos ou de que falamos. Mas talvez isto é tudo que é indisputável e similarmente entendido por alguém, e tudo sobre o “universal”.
Deixando de lado agora as controvérsias propriamente filosóficas sobre o “universal”, nota-se que o próprio termo “universal” é aplicado bastante ao acaso na linguagem viva, porque possui dentre suas “denotações” não somente diferente ou não-coincidente, mas objetos e designações diretamente contrários e mutuamente exclusivos. O Dicionário da Língua Russa Moderna relata doze significados, sendo dois dificilmente compatíveis, encontrados nos extremos do espectro. “Comum”, apesar de que para cerca de dois, para não mencionar “todos”, é aquilo que pertence à composição de ambos, assim como é a qualidade de ser bípede e mortal para Sócrates e Caius, ou velocidade para o elétron e trem, e não pode existir separadamente destes dois sujeitos. Também entendido como “comum” é aquilo que existe à parte destes dois sujeitos, precisamente como uma coisa ou ainda como outro sujeito, como um ancestral comum, campo comum – um para dois (para todos), automóvel ou cozinha comum, amigo ou conhecido comum, e assim por diante.
Obviamente, a mesma palavra, o mesmo “signo”, não serve nestes casos para designar a mesma coisa.
Se isto deveria ser considerado como uma das “imperfeições” da linguagem natural, ou, pelo contrário, a vantagem da flexibilidade que a linguagem natural possui sobre as definições rígidas das linguagens artificiais, isto permanece um fato e um bem típico, e, assim, tem necessidade de uma explicação.
No caso da não-ambiguidade absoluta de um termo, a definição (e aplicação) é assumida pelo ideal da “linguagem da ciência”. A ciência que busca uma definição precisa das categorias lógicas universais tem o dever de chegar a um acordo com esta “ambiguidade” do termo “comum” na linguagem viva – pelo menos, em ordem de não ser mal-entendida sempre que o “comum” e “universal” entrarem na discussão.
É claro, o fato da ambiguidade pode ser rebatido meramente por assumir um dos significados contrários ao inicial e declarando o outro como ilegítimo, e, subsequentemente, descartando-o em conta de uma “característica não-científica” da linguagem natural. Mas então alguém precisa cunhar outro termo, outro “signo” para designar este significado “ilegítimo” e em consequência disso tentar clarificar a relação do signo recém-concebido ao termo “comum”, isto é, reviver, apesar de em uma forma verbal diferente, o primeiro problema.
Vamos fazer uma suposição e conceber que alguém pode usar “comum” com conotação somente da unidade abstrata, o idêntico, ou o invariante que pode ser revelado na composição de dois (ou mais) “fatos” singulares percebidos sensorialmente (“fatos extras linguais”). Vamos ainda fazer uma suposição de que foi acordado não usar (nem implicar) o significado que a palavra tem nas combinações de palavras “campo comum”, “ancestral comum”, “amigo (inimigo) comum”, e assim por diante. Então, a palavra é usada basicamente para definir um objeto solitário (singular) que existe e é concebido à parte, e independentemente, dos sujeitos para quem ele se apresenta como algo “comum”.
Supondo ainda que nós também descartamos da “linguagem científica” expressões como “Besouro é um cão”, “lógica é uma ciência”, onde o comum (no sentido que nós fizemos legítimo) aparece também como a definição direta de uma coisa ou objeto singular (particular) apresentado na contemplação (na “sensação”, na “imaginação”, de fato, em qualquer lugar e não somente na linguagem) e nós passaremos a utilizar as incômodas construções verbais inventadas para este propósito pela “lógica relacional”. Então aparecerá como se as dificuldades preocupadas com a relação do “comum” ao sujeito poderia desaparecer de nossa linguagem, e não poderia mais ser expressa nela. E apenas isso. Todos eles irão permanecer e reaparecer sobre uma capa de alguma forma diferente, como dificuldades relativas à relação da “linguagem em geral” aos “fatos extralinguísticos”. E essa admissão não os tornaria mais fáceis de lidar ou resolver. Mais uma vez eles surgiriam na “linguagem” se esforçando para expressar os “fatos extralinguísticos”.
Nós não vamos analisar em mais detalhes aquelas intermináveis e infrutíferas tentativas de resolver o problema da definição lógica do “comum”, através de sua substituição por outra preocupada com as técnicas da expressão em uma “linguagem” de “fatos extralinguísticos”: as técnicas capazes, alegadamente, de poupar o intelecto das dificuldades preocupadas com a inter-relação do “comum” e do “singular”, e das “ambiguidades” e “dubiedades” da linguagem natural. Todo o longo, e de bastante má-reputação, caso histórico do neopositivismo se resume a um tipo de refutação e difamação recíprocas. Essa tentativa tardia de renovar o nominalismo com toda sua metafísica (e a interpretação do objeto do pensamento como um mar desvinculado de “fatos atomizados”), rejeitando (em bases totalmente desconhecidas) a realidade objetiva do comum e do universal, têm provado com clareza suficiente que a solução procurada não pode ser encontrada ao longo destas linhas.
A “linguagem natural”, em qualquer caso, não exclui a realidade do “comum” fora da linguagem; como resultado, a metafísica de Platão ou Hegel é expressa nesta linguagem em termos não menos corretos do que da metafísica do neopositivismo. A linguagem natural pelo menos nos permite expressar em palavras o problema que a “linguagem da ciência” está tentando em vão descartar declarando-a “inexpressiva”. Contudo, a “linguagem da ciência” volta a ela continuamente em rodeios por formulá-la inadequadamente ou transportando-a a um plano de pura psicofisiologia ou linguística – como um problema da relação do signo verbal com seu “significado”. Por exemplo, os proponentes da linguagem da ciência tentam expressar a síntese do sujeito, as “experiências” únicas e dadas uma só vez, isto é, o “estado” passageiro da psicofisiologia do sujeito humano.
Se formulado assim, a questão da essência do “comum” (universal) se torna irrelevante, mas isto seria meramente se render ao problema, não resolvê-lo. Na vida real (incluindo a vida do teórico) e, assim, na linguagem viva chamada a expressar essa vida, o problema do universal e sua relação com o singular de forma alguma desaparece.
Mas então é pertinente perguntar: é possível encontrar qualquer coisa sobre os dois extremos – e mutualmente exclusivos – significados da palavra “comum”, igualmente válidos pela virtude de suas presenças na linguagem viva, e descobrir o que eles têm em comum, isto é, encontrar a fonte desta diferença de significados?
A forma que a interpretação das palavras tem sido proclamada como “singularmente correta” na tradição da lógica formal torna isso impossível; em outras palavras, não existe para ser descoberto tal “característica comum” na definição do significado do termo “comum”. Toda via está claro, e até mesmo para os neopositivistas, os mais ferrenhos defensores da tradição acima, que no último caso, assim como em muitos outros, nós estamos lidando com palavras relativas, caso muito parecido com parentes humanos, que podem não ter qualquer coisa em comum, e ainda assim possuir – com direitos iguais – o mesmo nome de família.
Tal relação entre termos da “linguagem natural” foi registrado por L. Wittgenstein como bastante típico: Churchill-A tem como Churchill-B as semelhanças familiares a, b, c; Churchill-B compartilha com Churchill-C as características b, c, d; Churchill-D tem uma única característica em “comum” com Churchill-A enquanto Churchill-E e Churchill-A não possuem nem ao menos uma característica, absolutamente nada em comum, exceto seus nomes. E para além de um ancestral comum, devemos acrescentar.
Neste caso é cristalino que o caráter do ancestral comum e do fundador da família Churchill dificilmente será reconstruido por abstrair aquelas – e somente aquelas – “características comuns” que foram conservadas geneticamente por todos os seus descendentes. Estas características comuns são simplesmente não-existentes. Enquanto isso, o nome comum, a prova da origem comum, está lá. O mesmo é verdade para o próprio termo “comum”.
O significado original da palavra não pode ser reconstruído através da junção puramente formal de “características” em uma família, ou colocando dentro de um “parentesco” todos os termos descendentes, para, por meio de expansão da analogia, Churchill-Alpha seria retratado como um sujeito ao mesmo tempo loiro e de cabelo negro (= não loiro); alto e anão; nariz arrebitado e adunco, e assim por diante.
Mas é aí que a analogia acaba em toda sua possibilidade; pois nas fontes da família-parentesco sempre existem duas linhas genéticas, tanto que Churchill-Alpha não pode ser culpado por mais de 50% da semelhança familiar de seus descendentes diretos. Quais deles em particular? Esta é a questão que os meios puramente formais provavelmente irão falhar em responder.
A situação com termos relativos é de algum modo diferente. Pois o ancestral, como uma regra, dificilmente morre, continuando sua vida lado a lado com seus descendentes, assim como um sujeito com outros sujeitos; a questão aqui se resume a encontrar, dentre os sujeitos particulares disponíveis, aquele que precedeu no nascimento todos os outros e foi capaz, assim, de dar à luz ao resto.
Isso acontece sem qualquer contribuição por parte da segunda linha genética, estranha, e aquela que pode ser considerada responsável pelo surgimento das “características comuns” incompatíveis em qualquer pessoa; e assim sua relação um com o outro será de uma negação puramente lógica.
Dentre as “características” do ancestral comum que continua vivo entre seus descendentes, alguém é obrigado a sugerir uma habilidade de gerar algo contrário a si mesmo – a habilidade de gerar um homem grande (relativo a si mesmo) e, ao contrário, um homem pequeno (novamente relativo a si mesmo). Logicamente, isto leva a inferir que o “ancestral comum” pode muito bem ser visualizado como um sujeito de altura média, com um nariz reto e cabelo cinza claro, isto é, alguém que “combina”, mesmo que potencialmente, definições contrastantes; ou que contém dentro de si mesmo como se em um estado de solução ou mistura – este traço e aquele, seu contrário direto.
Assim, a cor cinza pode ser facilmente pensada como uma mistura de preto e branco, isto é, como preto e branco simultaneamente, na mesma pessoa, e ao mesmo tempo para iniciar. Não existe virtualmente qualquer coisa aqui incompatível com o “senso comum” que os neopositivistas gostam de recorrer como seus aliados nos ataques contra a lógica dialética.
Não obstante, este é um ponto sobre onde parecem existir dois pontos de vistas distintamente incompatíveis na lógica, especialmente ao tentar entender o “comum” (universal). Um é o da dialética, e, o outro aquele que estipula a concepção em última análise formal do problema do “comum” e é relutante para admitir na lógica a ideia da evolução como ser organicamente vinculado ao conceito de substância, tanto na essência, quanto em sua origem. Eu enfatizo uma evolução vinculada ao conceito da substância, isto é, o princípio da similaridade genética dos fenômenos que, à primeira vista, coloca como basicamente heterogêneo, por causa da falha em encontrar quaisquer “características” comuns abstratas entre eles. Este fato conta para a atitude inimiga, para não dizer maldosamente irritante, dos líderes neopositivistas desta respeitável categoria. Precisamente esta proposição foi vista por Hegel, como o ponto de divergência, a separação dos caminhos entre o pensamento dialético (ou “especulativo” em sua terminologia) e o puramente formal. Foi este tipo de entendimento que ele identificou como a vantagem ampla e profunda da mente de Aristóteles sobre a mente daqueles seus seguidores no campo da Lógica que haviam presumido e estão presumindo eles mesmos serem os herdeiros singularmente legítimos de Aristóteles no campo da Lógica, enquanto declaram inválida a linha de desenvolvimento de Espinoza, Hegel e Marx:
No que se refere mais de perto a relação entre estas três almas [alma nutriente, alma sensitiva e alma inteligente, isto é, vida vegetal, vida animal e vida humana], assim eles podem ser chamados (embora estejam incorretamente distinguidos assim), Aristóteles faz uma observação, totalmente correta sobre isto, que é necessário olhar não para a alma em que todos estes se encontram, e na qual em uma forma simples e definida está conformada com todos eles. Esta é uma observação profunda, pela qual o pensamento especulativo verdadeiro se demarca do pensamento que é meramente lógico e formal [grifos nossos – Ilienkov]. Da mesma forma, entre as figuras, somente o triângulo e as outras figuras definidas, como o quadrado, o paralelogramo etc., são realmente alguma coisa; pois o que é comum a eles, a figura universal, é uma coisa vazia do pensamento, uma mera abstração. Por outro lado, o triângulo é o primeiro, a verdadeira figura universal, que aparece também no quadrado etc., como a figura que pode levar de volta à determinação mais simples. Portanto, por um lado, o triângulo está ao lado do quadrado, pentágono etc, como uma figura particular, mas – e esta é a principal alegação de Aristóteles – é a verdadeira figura universal [mais precisamente, "a figura em geral" – Ilienkov]. [...] Aristóteles, portanto, quer dizer o seguinte: um universal vazio é que não existe, que não tem por si só um ponto de vista. Na verdade, todo universal é realmente tão especial, singular, como um ser para outro. Mas, acima de tudo, é tão real que é, em si, sem qualquer outra alteração, a sua primeira aparição. Em seu desenvolvimento, ele não pertence a este nível e sim a um mais alto.(2)
Se nós vemos desta perspectiva o problema de definição “do comum em geral” como uma categoria universal (lógica) que parece não ter qualquer coisa a ver com o problema da reconstrução teórica do “ancestral comum” de uma família de significados relacionados, então nós só podemos esperar vagamente resolver isso.
A diretriz lógico-formal que direciona alguém a procurar pelo abstrato, isto é, algo em comum a todas as amostras singulares do mesmo “parentesco” (e tendo o mesmo nome), não funciona neste caso. O “universal” não é para ser encontrado desta forma, pelo único motivo de que ele está realmente faltando aqui. Também não é para ser encontrado como a “característica” ou definição verdadeiramente comum a todos os sujeitos, nem como uma semelhança ou identidade típica de cada um deles, se eles são tomados independentemente um do outro.
Desnecessário dizer, certa destreza linguística pode ajudar a encontrar a “identidade” em toda a parte, mas então dificilmente teria algum significado, exceto um nominal.
O que o leitor tem em “comum” com um livro? Que ambos pertencem ao espaço Euclidiano tridimensional? Ou que ambos incluem carbono, oxigênio, hidrogênio etc.?
O que é “comum” entre o empregador e o empregado? Ou consumo e produção?
Claramente, a essência aparente, concreta-empírica da relação que une vários fenômenos (singulares) em “um”, em um conjunto “comum”, não é de forma alguma delimitada e expressa pela sua característica comum abstrata, nem na definição igualmente característica de ambos. A unidade (“ou vulgaridade”) é fornecida muito antes pela “característica” que um sujeito possui e outro não. A própria ausência da característica conhecida laça um sujeito a outro muito mais forte do que sua presença igual em ambos.
Dois sujeitos absolutamente idênticos, cada um possuindo o mesmo conjunto de conhecimentos, hábitos, inclinações etc., se encontrariam absolutamente desinteressados por, e desnecessários para, uns aos outros. Seria simplesmente solidão multiplicada por dois. Alguém, ao explicar para seu amigo mais jovem o ABC da lógica dialética, o aconselhou a perguntar a si mesmo a questão: o que tem sua noiva que atrai o jovem; onde se encontram os laços de seu “caráter comum”?
A discussão aqui não é sobre singularidades, mas em geral sobre objetos particulares (e, assim, típicos em sua especialidade) que se encontram essencialmente, ao invés de nominalmente, sobre o mesmo gênero, por exemplo, em referência à produção e consumo.
Esta é a ideia por traz da concepção mais comum, mais abstrata (e por esta razão ainda pobremente definida) do universal na dialética. Não é a “semelhança” numericamente recorrente em cada objeto singular tomado separadamente que é representado na forma da “característica comum” e perpetuado com um “signo”.
É, acima de tudo, aquela relação objetiva de dois (ou mais) sujeitos particulares que os transforma nos momentos da mesma unidade concreta, real – e não meramente nominal – que seria um grande negócio, mais razoável para representar na forma de alguma totalidade de vários momentos especiais, do que um “conjunto” incerto de “unidades” (“fatos atomizados” etc.), completamente indiferentes uns aos outros. O “universal” age aqui como uma lei ou princípio governando as inter-relações destes detalhes dentro de um todo, uma “totalidade”, como Marx escolheu colocar seguindo Hegel. O que é preciso aqui não é uma abstração e sim análise.
Este é um problema que alguém, é claro, não espera resolver ao procurar pelas “semelhanças”, isto é, as características abstratas – o comum a “todos” os detalhes. Uma tentativa em direção a este objetivo seria talvez tão impossível quanto uma tentativa de aprender o arranjo geral e princípios de operação de um receptor de rádio tentando encontrar aquele elemento “comum” que um transformador tem com um resistor, um condensador com um alto-falante, e todas essas coisas com um seletor de frequência de onda.
Se voltarmos ao problema da similaridade genética dos vários (e contrários) significados cujo termo “universal” tem adquirido através da evolução da linguagem viva e a mente que expressa a si mesma na linguagem, então o problema é reduzido à tarefa de identificação entre eles, o significado que pode ser considerado com segurança como o criador do significado. Então é preciso tentar descobrir porque e como este significado, o primeiro no tempo, e diretamente simples em essência, se expandiu tanto a ponto de incluir até mesmo seu contrário, ou algo que não estava pressuposto no próprio início.
Desde que nossos ancestrais distantes dificilmente podem ser suspeitos de terem tido uma inclinação para inventar “objetos abstratos” e “construções”, parece ser mais lógico assumir como original o significado que o termo “comum” tem retido nas combinações de palavras, tais como “ancestral comum” ou “campo comum”. Isso também é apoiado pela evidência filológica existente.
Karl Marx afirmou positivamente:
Mas o que o velho Hegel diria, se ele soubesse no outro mundo que o geral [Allgemeine] em alemão e escandinavo significa somente a terra comunal, e que a particular, a especial [Sundre, Besondre] significa somente propriedade privada dividida da terra comunal [Sondereigen]?(3)
Agora é auto evidente que, dado este sentido originalmente simples, ou, como Hegel colocaria, sentido genuinamente geral das palavras, de que a representação que estabelece o “comum” (o “universal”), tanto em tempo quando em essência, antes do “singular”, o separado, o particular ou o específico, não dará ao menos uma dica quanto ao misticismo refinado que colore o conceito do universal como ele aparece nos neoplatônicos e cristãos medievais escolásticos. Eles fizeram do “universal” sinônimo de “pensamento”, visto desde o início como a palavra, o “logos”, como algo incorpóreo, espiritualizado e exclusivamente imaterial. Por contraste, o “universal” em seu sentido universal original destaca-se claramente na mente e, assim, na linguagem expressando ela, como um sinônimo de uma substância totalmente corpórea, seja água, ou fogo ou partículas homogêneas minúsculas (“indivisíveis”), e assim por diante. Tal representação pode parecer ingênua (apesar de, de fato, estar longe disso), cruamente sensorial e “excessivamente materialista”, mas não existe misticismo aqui, nem ao menos a menor tendência nessa direção.
Neste contexto parece bastante incongruente acusar o materialismo, como alguns de seus oponentes fazem continuamente, de um “Platonismo bem camuflado” que, alegadamente, é necessariamente conectado com a tese sobre a realidade objetiva do universal. Naturalmente, se alguém aceitar desde o início (ninguém sabe por que) o ponto de vista de que o universal é um pensamento e nada além de um pensamento, então não somente Marx e Espinoza, mas até mesmo Thales e Demócrito passariam por “cripto-platônicos”. A identificação do “universal” com o “pensamento” é o ponto de partida para qualquer sistema do idealismo filosófico, seja ele pertencente à ala “empírica” ou patentemente racionalista do último, e é para ser considerado como um axioma aceito sem qualquer evidencia, ou como um prejuízo enorme herdado da Idade Média. Sua força contínua está longe de acidental. Ele deriva daquele papel verdadeiramente grande que tem sido atribuído à “Palavra” e à “externalização” verbal do “pensamento” no desenvolvimento da cultura espiritual. Na verdade, este papel é o que cria a desilusão de que o “universal” possui seu ser existente (sua realidade) somente e exclusivamente na forma de “logos”, na forma do significado da palavra, termo ou signo linguístico. Desde que o pensamento filosófico refletindo sobre o “universal” tem lidado, desde seu início, com o “universal” em sua expressão verbal e ser verbal, esta tradição começa muito cedo a considerar o dogma sobre a identidade do “universal” e o “sentido (significado) da palavra”, não surpreendentemente, como uma premissa natural e a base na qual ela repousa, o ar que respira, em uma palavra, como algo “auto evidente”.
Entretanto, o mero fato de que a reflexão filosófica particular, desde o início, tem lidado com o “universal” no ser verbal do último, não é o bastante para colocar um sinal de igualdade aqui.
Nós gostaríamos de observar, de passagem, que o preconceito que os neopositivistas modernos tomam como a verdade absoluta nunca foi considerada desta maneira por Hegel, não muito caro para os neopositivistas. Hegel, também, acreditou sinceramente que o materialismo é impossível em princípio como um sistema filosófico, na teoria de que a filosofia é uma ciência sobre o universal, enquanto o universal é o pensamento – somente o pensamento, e precisamente o pensamento, e não pode ser qualquer coisa além do pensamento. Todavia, as percepções profundas de Hegel em comparação com os proponentes mais recentes deste preconceito consistem nisso, de que o “pensamento” é expresso (realizado, objetivado, explicado) não somente na palavra ou cadeias de “declarações”, mas também nas ações e atos do homem e, assim, nos resultados desses atos, não menos do que é encontrado nos produtos do trabalho do homem, sua atividade proposital – isto é, racional. Por isso, as “formas do pensamento” podem ser, de acordo com Hegel, descobertas e investigadas dentro dos empreendimentos racionais do homem executados de qualquer forma, em qualquer forma “explicado”. Por isso, o “logos”, também, é entendido por Hegel como a forma, esquema e sentido do “discurso” e “essência” (Sage und Sache) – ambos “ato” e “realidade” – e não somente como um padrão de discurso ou de um padrão construído de cadeias de palavras, declarações e as transformações formais da última – como os neopositivistas têm afirmado até hoje.
Tendo minado dramaticamente o prestígio do preconceito por meios do qual o pensamento (= o universal) foi identificado com o discurso (interno ou externo), Hegel, não obstante, retorna de forma rotatória sob seu cativeiro, pois embora ele detenha a “palavra” para ser talvez não a única forma da “Existência do pensamento”, ele ainda reserva para ela a significância da primeira forma de sua “Existência” – tanto em tempo quanto em essência. A mente pensante desperta, sob o conceito Hegeliano, primeiro como a força “nomeadora” e somente depois de a mente ter realizado a si própria na “palavra” e através da “palavra”, ela passa a “auto-personificação” dela nos instrumentos de trabalho, assuntos políticos, na montagem de igrejas e fábricas, na elaboração de Constituições e outras ações “externas”.
Aqui, também, a “palavra” aparece, eventualmente, como a primeira personificação do “universal” e como sua última auto-apresentação, consumando todos os ciclos de sua “personificação”. A Mente Absoluta finalmente apreende a si mesma no tratado da Lógica.
Para a vida prática e representativa da humanidade, isso constitui o termo “médio” do esquema, Medius Terminus, um vínculo mediado do ciclo que possui a “Palavra” para seu começo e seu fim. Aqui, também, ocorre uma identificação do “universal” com a “palavra”, embora de uma forma não tão direta e não refinada como no Apóstolo João ou Carnap. Hegel, em sua maneira característica, começa quebrando o velho preconceito e então o restaura com todos os seus direitos anteriores, usando como ele faz, um sofisticado mecanismo dialético.
O redesenho radicalmente materialista das conquistas da lógica Hegeliana (dialética), como elaborado por Marx, Engels e Lenin, estava conectado com a afirmação da realidade objetiva do “universal”, em seu sentido mais direto e preciso – mas absolutamente não no sentido de Platão e Hegel que identificaram este “universal” com o “pensamento” que, eles afirmaram, existia antes, além e completamente independente do homem e da humanidade, adquirindo ser independente somente na “Palavra”. A ideia Marxista se desenvolveu, pode-se dizer, no sentido da regularidade dos fenômenos materiais, no sentido da lei governando a coesão dentro de algum – sempre bem definido – todo, e dentro de alguma “totalidade” se auto-desenvolvendo, todos os componentes que são essencialmente “relacionados” uns com os outros. Assim, a ideia deles se desenvolveu não porque “todos” os dados possuem uma “característica” em comum, mas porque a unidade da gênese e a descendência do mesmo “ancestral comum”, ou, mais precisamente, por causa do surgimento deles como modificação amplamente variada da mesma “substância”, tendo um caráter positivamente material (isto é, independente do pensamento ou palavra).
Por isso, os fenômenos do “mesmo parentesco” – fenômenos homogêneos – podem não ser necessariamente possuídos na “semelhança familiar” como a única base para atribuí-los ao “mesmo parentesco”. O “universal” neles pode expressar exteriormente si mesmo igualmente bem através das diferenças, até mesmo contrários, que fazem estes fenômenos as partes componentes mutuamente complementares do “todo”. Assim nós obtemos um conjunto genuinamente real, ou uma “totalidade orgânica”, ao invés de um conjunto amorfo de unidades que são atribuídas àquele “conjunto” pela força de uma “similaridade” ou “característica” mais ou menos acidental a cada um deles, ou com base em uma “identidade” formal totalmente irrelevante à sua natureza específica, sua particularidade ou singularidade.
Por outro lado, aquele “universal” que revela a si próprio precisamente nas características particulares ou singulares de todas as partes componentes do “todo”, sem exceção – em cada um dos muitos fenômenos homogêneos – é ele mesmo tão “real como o particular”, ao existir junto com outros sujeitos “particulares”, seus derivados. Não existem elementos de mistério sobre isso, pois um pai muito frequentemente vive por muito tempo lado a lado com seus filhos. E se não está mais presente entre os vivos, ele certamente precisa ter existido em algum momento, isto é, precisa ser concebido necessariamente na categoria do “ser existente”. Assim, o “universal” entendido geneticamente, existe, evidentemente, absolutamente não no éter da abstração, ou somente no elemento da palavra e pensamento. Sua existência também, de qualquer forma, anula ou diminui a realidade de suas modificações, seus derivados ou os sujeitos particulares, universalmente dependentes.
Na análise Marxista de O Capital, o conceito de “universal”, brevemente descrito acima, é de primordial importância metodológica:
O capital, tal como o consideramos aqui, como relação a ser distinguida do valor e do dinheiro, é o capital em geral, i.e., a síntese das determinações que diferenciam o valor como capital do valor como simples valor ou dinheiro. Valor, dinheiro, circulação etc., preços etc. são pressupostos, assim como o trabalho etc. Mas nós ainda não estamos tratando nem de uma forma particular do capital nem do capital singular como capital diferente de outros capitais singulares etc. Nós assistimos ao seu processo de formação. Esse processo de formação dialético é apenas a expressão ideal do movimento efetivo em que o capital vem-a-ser. As relações ulteriores devem ser consideradas como desenvolvimentos a partir desse embrião. Mas é necessário fixar a forma determinada na qual o capital é posto em um certo ponto. Senão resulta confusão.(4)
Esta é uma declaração nítida da mesma inter-relação “valor” versus “capital”, como é revelado por Hegel na citação acima, entre o triângulo e quadrado, pentágono etc., e em um sentido duplo para iniciar.
Primeiramente, o conceito de “valor em geral” não é de forma alguma definido aqui em termos da soma total daquelas “características” universais abstratas que podem ser identificadas à vontade dentro de “todos” os tipos especiais de valor (por exemplo, mercadoria, força de trabalho, capital, renda, juros, e assim por diante), mas é obtida através de uma análise precisa de uma relação única claramente “específica” que pode existir (e assim foi e é) entre pessoas – a relação da troca direta de uma mercadoria por outra, a equação, “1 sobrecasaca = 10 metros de tecido”.
A análise desse tipo de valor da realidade – reduzido à forma mais simples –, revela aquelas definições do “valor em geral” que são atendidos (reproduzidos) em estágios mais elevados do desenvolvimento e posterior análise, como as definições universais do dinheiro, força de trabalho e capital. É impossível, entretanto, reunir estas definições através de uma abstração direta de todas essas “formas especiais” da relação do valor (como “comum” a todos eles).
Em segundo lugar, quando o ponto em questão é a “definição específica do capital em geral”, aqui, também, como Marx muito especialmente apontou, é preciso permitir ser feita a seguinte consideração principal, “um caráter mais lógico que econômico”(5).
O capital em geral, diferentemente dos capitais reais particulares, é ele próprio uma existência real. Isso é reconhecido pela Economia tradicional, muito embora não seja compreendido; e constitui um momento muito importante de sua doutrina das equalizações etc. Por exemplo, o capital, muito embora pertencente aos capitalistas singulares em sua forma elementar como capital, nessa forma universal constitui o capital que se acumula nos bancos ou é por eles distribuído e, como afirma Ricardo, se distribui de maneira tão admirável na proporção das necessidades da produção. Por meio de empréstimos etc., ele constitui também um instrumento de nivelamento entre os diferentes países. Por isso, se, por exemplo, é uma lei do capital em geral que, para se valorizar, ele tem de se pôr duplicado e tem de se valorizar duplamente nessa dupla forma, então o capital de uma nação particular, por exemplo, que representa o capital por excelência perante outra, tem de ser emprestado a uma terceira nação, para poder se valorizar. O duplo-pôr, o relacionar-se consigo mesmo como estranho, torna-se desgraçadamente real nesse caso. [...] Assim, se o universal, por um lado, é somente differentia specifica pensada, por outro, é forma real particular ao lado da forma do particular e do singular. Assim como na álgebra. Por exemplo, a, b, c são números; números em geral; contudo, são números inteiros em relação à , , , , etc., que, todavia, os pressupõem como elementos gerais.(6)
É claro, a analogia – assim como qualquer analogia – não é prova da “universalidade” da inter-relação lógica. Neste caso é simplesmente ilustrativo da ideia discutida acima. Mas aqui, também, pode ser usado para relembrar-nos sobre um aspecto importante da concepção dialética de “universalidade”. Neste caso, o “universal” aparece novamente como um determinado positivamente, embora em uma forma geral, número a, b, c. Este é exatamente o “número em geral”, assim como um número em sua forma elementar, ou como qualquer número “convertido a sua determinidade mais simples”, mas sem a perda definitiva de determinidade, ou “especialidade”. Por contraste, o conceito formal de “número em geral”, privado da “inerência” no tipo especial de números, é meramente um nome; não um conceito, onde o “universal” é expresso em termos de sua “natureza particular”.
De fato, na matemática, por causa da natureza altamente específica de suas abstrações, o “universal abstrato” coincide com o “geral concreto”. Contudo, “número em geral” (isto é, a, b, c etc.) é também obtido quando a operação formal da abstração (extração) do “idêntico” tenha sido executada dentro todos os tipos de números; “a”, “b”, “c” etc., isto é, precisamente como “tijolos”, como “átomos” de espécies, que permanecem essencialmente a mesma, independentemente do signo formado do qual eles se tornam nada além de partes componentes. A simplicidade se foi, entretanto, uma vez que nós pisamos fora da álgebra, onde o “universal” pode não estar necessariamente presente em suas modificações (em suas próprias formas bem desenvolvidas), na mesma forma assim como no caso elementar mais simples. Incidentalmente, isso acontece até mesmo na própria matemática, como quando um triângulo como uma “figura em geral” nunca é retida enquanto tal em um quadrado ou pentágono, nem é dada em inerência ou contemplação, embora possa ser identificado analiticamente dentro de sua composição. Deveria ser por uma análise, de fato, não por uma abstração que meramente separa as “características comuns” disponíveis.
Vamos tomar essa situação – aquela da inter-relação dialética entre o universal e particular e o singular. Aqui o “universal” não pode ser identificado em princípio dentro da composição dos sujeitos particulares de forma a que uma abstração formal revele o comum, o idêntico neles. Isso pode ser mostrado mais demonstrativamente no caso das dificuldades teóricas associadas com o conceito de “homem”, a definição da “essência do homem” e a busca por sua “definição genérica específica”.
Tais dificuldades foram descritas com uma soberba sagacidade no romance satírico bem conhecido Les Animaux Dénaturés (Os Animais Desnaturados), de Vercors (Jean Bruller). Foi descoberta nos bosques de uma floresta tropical uma comunidade de criaturas estranhas. Com base em um critério atual da antropologia física moderna, eles são macacos ou outras pessoas primitivas. Aparentemente, essa é uma forma transiente, peculiar, até então não observada, que se desenvolveu do animal, ou mundo puramente biológico, para o mundo humano, social. A questão é se os Tropi (o nome que o autor dá para sua tribo inventada) cruzaram a dificilmente discernível, mas muito importante fronteira entre homem e animal.
À primeira vista, a questão é de significância puramente acadêmica e pode ser de interesse, parece, somente a um biólogo ou antropólogo particular. Entretanto, em pouco tempo transparece que ela é entrelaça com os problemas fundamentais de nossa era nos aspectos legais, éticos e políticos, assim como com problemas filosóficos. O herói do romance deliberadamente, com uma intenção premeditada, assassina uma das criaturas. Este ato o marca como um assassino, entendido que os Tropi são seres humanos. Se eles são animais, o corpus delicti não existe. O velho padre se atormenta com a mesma questão. Se os Tropi são seres humanos, ele é obrigado a salvar suas almas e sujeita-los ao rito do batismo. Se os Tropi são animais, ele corre o risco de repetir o ato pecaminoso de São Mahel, que cometeu o erro de batizar pinguins e causar muitos problemas ao paraíso. Existe ainda outro fator, devido ao interesse manufatureiro egoísta daqueles que de primeira identificaram os Tropi como força de trabalho ideal. De fato, um animal fácil de domesticar e incapaz de tomar consciência dos sindicatos ou luta de classes, ou quaisquer necessidades exceto as fisiológicas – não é esse o sonho de um negociante?
O argumento sobre a natureza dos Tropi envolve centenas de pessoas, dezenas de doutrinas e teorias; ele se amplia, se torna confuso e cresce em um debate sobre coisas e valores inteiramente diferentes. As personagens tem que ponderar sobre o critério pelo qual uma resposta categórica e inequívoca pode ser dada. Isso acaba ficando longe de ser simples.
Com uma ênfase em uma “característica humana”, os Tropi entram na categoria de humanos; em outra, eles não entram. Um apelo à soma total de tais características é de pouca ajuda, pois então a questão que se coloca é sobre o número delas. Ao estender o número de “características” que tem definido “ser humano” até então e introduzindo entre eles uma característica que descarta os Tropi das pessoas conhecidas até então, os Tropi são automaticamente deixados fora dos limites da raça humana. Ao diminuir esse número, limitando-as aquelas que são possuídas pelos previamente conhecidos dos Tropi e humanos, chega-se a uma definição na qual os Tropi são incluídos na família humana com todos os seus direitos decorrentes. O pensamento é pego dentro de um círculo vicioso: de fato, para definir a natureza dos Tropi, é preciso que primeiramente se defina claramente a natureza do homem. Isso, entretanto, não pode ser feito a não ser que se tenha decidido de antemão se os Tropi devem ou não ser abordados como uma variedade do Homo sapiens.
Além disso, um novo argumento inflama de primeira sobre cada uma daquelas “características comuns” que até então descreveram o homem. O que se entende por “pensamento”? O que se entende por “linguagem” e “discurso”? Em um sentido os animais também possuem pensamento e discurso, enquanto em outro somente o homem possui. Assim, cada característica humana se torna debatida da mesma forma que a definição de “homem”. Não existe fim para estes debates, enquanto as diferenças de opinião e calúnias chegam ao plano dos conceitos filosóficos, éticos e gnosiológicos mais gerais e mais importantes, somente para ser reacendido com vigor e violência renovados.
De fato, as coisas estão longe de serem simples com as pessoas estabelecidas legalmente, também. Todas as pessoas vivem e agem “de forma humana”? Ou frequentemente eles não agem mais horrivelmente que animais? O argumento, desse modo, evolui em uma discussão sobre o tipo de vida de que deve ou não ser considerada como “genuinamente humana”.
Todas as tentativas de encontrar esta “característica essencial e comum” pelo qual alguém pode sem erros diferenciar um homem de um animal, de um “não-humano”, tropeça cada vez mais e mais em um problema lógico antigo. A “característica comum” poderia ser abstraída de “todos” os sujeitos da raça dada quando e se o conjunto que constitui o gênero foi bem definido. Mas isso é impossível, a não ser que exista um critério geral disponível de antemão para identificar tal “conjunto”, isto é, a própria “característica comum” procurada. De fato, água quente é fácil de distinguir da água fria. Mas e a água morna? Uma rocha não faz um monte, e nem dois. Quantas pedras vão ser necessárias para um “monte”? Onde está a fronteira além da qual um homem careca se torna careca? E existe realmente alguma fronteira bem definida? Ou, ao contrário, qualquer fronteira, qualquer certeza é meramente uma linha imaginária para ser traçada somente com o propósito de uma classificação artificial? Onde então ela será traçada? “Ela correrá onde os mais poderosos escolherem traça-la”, observa a personagem do romance pesarosamente. De fato, as teorias idealistas subjetivistas do pensamento delegaram este tipo de tomada de decisão aos poderosos. Então, a voz “do poderoso” se torna o critério da verdade, e sua vontade a “vontade universal” por trás da qual um título pode discernir claramente a arbitrariedade desmascarada e até mesmo um interesse singular egoísta.
Como agora estamos conscientes da experiência de que a “característica essencial e comum”, a distinção determinada e específica da raça humana, nomeadamente, a definição concreta universal de “homem” e de “humano” não é tão fácil de encontrar como eles pensaram que seria no início, as personagens do romance de Vercors se viram para a solução de conceitos filosóficos e sociológicos. Mas onde está o critério da verdade do último? Cada critério reivindicou para si importância universal, uma possessão monopolista do conceito universal, de modo que não há realmente qualquer coisa “comum”, qualquer acordo entre eles.
O romance termina com um grande ponto de interrogação, enquanto seu herói vê a si mesmo na posição não muito invejável de Asno de Buridan, isto é, com o conceito Marxista do “universal” na esquerda e o Cristão na direita; dois conceitos mutuamente exclusivos do “universal”. Despreparado para aceitar ambos, o herói de Vercors, junto com o autor, vão optar prontamente por uma terceira alternativa, uma que reconciliaria ambos os ensinamentos, o “comum” entre eles, isto é, o entendimento “genuíno” do “universal”.
“Cada homem é, primeiro de tudo humano, um ser humano, e somente depois disso um seguidor de Platão, Cristo ou Marx”, argumenta Vercors no posfácio da edição russa do romance. “Eu acho isso mais importante no presente momento para mostrar como, com base naquele critério, nós podemos encontrar pontos comuns entre o Marxismo e o Cristianismo, do que tencionar suas diferenças.” Bem, do ponto de vista puramente político isto pode ser verdade, mas isso responde o problema teórico? Não poderia ser mais verdade que a “natureza humana”, o universal no homem, não reside absolutamente na adesão a uma doutrina particular, seja ela a do autor de “O Capital”, ou do Sermão da Montanha. Mas então onde ela reside – na proposição de que um ser humano é primeiro de tudo um ser humano? Essa é a única resposta que Vercors poderia dar para contrariar a “visão assimétrica” dos Marxistas, que procedem de um “relacionamento humano real no processo da produção material.” Mas qualquer resposta, como a de Vercors, nos levaria de volta ao começo do romance, ao ponto de partida de todos os debates sobre a essência do homem, à simples nomeação do objeto de disputa. Para se afastar de tal paralisação, tal tautologia, nós teríamos que começar tudo de novo.
Entretanto, existe uma conclusão importante para ser feita da história dos Tropi, que Vercors recusa fazer por várias razões, nomeadamente, que nada além de tautologia pode resultar da lógica com a qual as personagens do romance procuram resolver a questão, isto é, procurar a definição universal de “homem” pelo caminho da abstração do “comum”, uma característica possuída por todos os representantes singulares da raça humana, cada sujeito enquanto tal. Obviamente, uma lógica baseada nesta concepção de “universal” não seria suficiente para tirar o pensamento desse impasse, então como um resultado a representação de “homem em geral” permanece de alguma forma esquiva. A história do pensamento filosófico e sociológico prova o ponto com não menos clareza do que os infortúnios das personagens de Vercors, descritos acima.
Claramente, qualquer tentativa de descobrir a característica comum abstrata igualmente descritiva de Cristo e Nero e Mozart e Goebbels e do caçador Cro-Magnon e Sócrates e Xântipe e Aristóteles, e assim por diante, esconde o valor cognitivo dentro de si mesmo, e não leva a lugar algum, exceto a uma abstração extremamente fraca de forma alguma expressiva do coração da questão. A única saída para este impasse, tanto quanto sabemos, é se voltar a Marx com sua suficiência e uma lógica melhor, em uma concepção mais específica e séria do problema do “universal”:
“Mas a essência humana não é uma abstração intrínseca ao sujeito isolado. Em sua realidade, ela é o conjunto das relações sociais.”(7)
Distintamente pertinente aqui não é somente o princípio sociológico, mas também o lógico fundamentando a linha de raciocínio de Marx. Se traduzido na linguagem lógica, significaria o seguinte: definições universais expressando a essência de um gênero, seja humano ou qualquer outro, não podem ser eficientemente procuradas entre as “características” comuns, abstratas, tais como aquelas que todo espécime particular do gênero possui.
A “essência” da natureza humana em geral – e da natureza humana de cada ser humano particular – não pode ser revelada, exceto através de uma análise crítica, baseada na ciência, da “inteira totalidade”, o “conjunto inteiro” das relações sócio-históricas do homem com o homem, através de uma abordagem de estudo de caso e apreensão das regularidades que tem e estão verdadeiramente governando o processo de origem e evolução da sociedade humana como um todo, e de um sujeito particular.
O sujeito particular representa o “homem” no sentido estrito e preciso da palavra de tal modo que ele perceba – precisamente através de sua singularidade – certa soma total das capacidades desenvolvidas historicamente (especialmente as formas humanas de atividade vital), um fragmento particular da cultura que se desenvolveu previamente e independentemente de si mesmo, e que ele absorve através do processo de educação (auto realização do homem). Neste sentido, a pessoa humana pode ser justamente considerada como a personificação singular da cultura, isto é, o “universal” no homem. Além disso, a “essência do homem” universal só é real como uma cultura, como um agregado estabelecido e em evolução de todas as formas especialmente humanas de atividade vital, como o todo de seu conjunto. A “universalidade” então entendida representa, de fato, não a “similaridade” genérica muda dos sujeitos, mas uma realidade desmembrada dentro de si muitas vezes e de várias formas em esferas “especiais” (“particulares”) complementares com, e essencialmente dependentes, uma da outra, e que estão, portanto, mantidas juntas com os laços da origem comum tão fortemente e tão flexivelmente como são os órgãos do corpo de uma espécie biológica desenvolvida do mesmo óvulo.
Em outras palavras, a definição teórica lógica do “o universal no homem” – uma generalidade concreta da existência humana – pode e consiste, de acordo com o exposto acima, somente em revelar a extensão a qual é necessário para muitas e variadas formas da atividade especificamente humana, para as capacidades humanas sociais e suas necessidades associadas para evoluir de, e interagir com, uma com a outra.
Portanto, na busca da definição “mais comum” do elemento humano no homem, a tarefa ainda não pode ser abstrair as semelhanças formais, ou a característica “abstrata” de cada sujeito particular, mas estabelecer a forma real, e desse modo, especial de atividade vital humana que é historicamente e essencialmente a fundação universal e condição do surgimento de todo o resto.
Totalmente consistente com os dados da antropologia e arqueologia cultural e física, a concepção materialista de “a essência do homem” prevê esta forma “universal” da existência humana no trabalho, na reconstrução direta da natureza (tanto a externa quanto a própria) como realizada pelo homem social com ferramentas de sua própria criação.
Não é de admirar que Karl Marx considerasse com fraterna simpatia a definição bem conhecida de Franklin, do homem como um ser que produz instrumentos de trabalho. Produzir instrumentos de trabalho – e por esta única razão um ser que pensa, fala, compõem música, segue normas morais etc. Não existe um exemplo melhor para ilustrar a concepção Marxista do universal como o universal-concreto, bem como a atitude deste último para com o “particular” e o “singular” pode ser dada de que a definição do “homem em geral” como o “ser produzindo instrumentos de trabalho”.
A partir da perspectiva dos cânones da velha e tradicional lógica formal, a definição acima é muito “concreta” para ser “universal”. Ela não pode ser esticada para cobrir diretamente, por meio de uma abstração formal simples, tais representantes incontestáveis da raça humana, como Mozart ou Tolstói ou Rafael ou Kant. Formalmente, a definição incide sobre um círculo constrito de sujeitos, por exemplo, empregados de uma planta manufatureira ou oficinas. Até mesmo os trabalhadores que não são produtores, mas usuários das máquinas não vão se qualificar formalmente por ela. Como resultado, a velha lógica com sua concepção do “universal” estará certa em seu julgamento da definição como estritamente particular, ao invés de “universal”, como uma definição da ocupação humana particular, ao invés de “homem em geral”.
Não obstante, Franklin prova estar essencialmente certo em seu conflito com esta lógica desde que ele é liderado pela intuição e a maior parte dos fatos e contenções incidindo sobre o problema do “humano no homem” para assumir o ponto de vista de uma lógica muito mais séria e profunda; a própria Lógica que tem amadurecido por séculos no colo da filosofia e, em particular, nos discursos lógicos de Descartes e Espinoza, Leibnitz e Kant, Fichte e Hegel. Na verdade ela tem encontrado sua aplicação científica concreta em “O Capital” e na teoria do mais-valor de Marx e a concepção materialista da história dos tempos modernos.
Esta concepção do “universal” não é de forma alguma sinônimo com o “conceito” ou “pensamento” como aparece mais ou menos explícito em Platão, Hegel, Tomás de Aquino e Carnap, que estavam preocupados com o “universal” na medida em que o último já havia encontrado seu caminho na mente, mais precisamente, na “palavra” chamada a expressar a mente.
O universal (“universal-concreto”) se opõe à variedade sensorial de sujeitos particulares, em primeiro lugar como a própria substância do último e a forma concreta de sua interação, ao invés de uma abstração intelectual. Per se, o universal personifica em si próprio, em sua certeza concreta “a riqueza total do particular e do singular”, e não somente como uma possibilidade, mas como a necessidade por expansão, isso quer dizer, como a “explicação real” de uma forma simples em uma realidade diversamente desmembrada.
Precisamente por esta razão, “o universal” não é, e não pode ser, entendido aqui como uma identidade (similaridade) abstrata de uma variedade ampla de fenômenos que provêm a base para a operação de coloca-los sob o mesmo nome ou nome próprio ou termo. A necessidade para a “auto extensão” do universal, o dínamo de seu auto movimento é incluído nele na forma da “tensão da contradição”, isto é, a contradição intrínseca da forma; consequentemente, alguém é levado a entender o universal como algo distinguível também dentro de si mesmo em seus próprios momentos particulares. A relação entre eles sendo aquela da identidade dos contrários, isto é, sua unidade concreta viva, ou de sua transição uma na outra.
Mas este é outro assunto passando muito além dos limites da definição de “o universal enquanto tal” em sua concepção materialista-dialética. Contudo, mantendo-se dentro dos limites deste artigo, deveria ser acrescentado que esta concepção do “universal” e das formas em que é apreendido cientificamente, não constituem uma posse monopolista da dialética filosófica. Ciência – de fato, ciência real, ao invés de sua representação nas construções epistemológicas e “lógicas” dos neopositivistas – tem sempre procedido mais ou menos consistentemente de uma concepção similar do “universal”. Não raro, fê-lo contrário às proposições lógicas deliberadas professadas por seus porta-vozes. A tendência pode ser traçada facilmente ao longo de toda a história do conceito de “valor”, uma categoria geral da economia política.
A abstração do “valor enquanto tal”, assim como a palavra usada para descrever esta abstração, vai tão longe na antiguidade como as próprias relações mercantis. A “axia” grega, a “Weyt” alemã, e assim por diante, não foram cunhadas por Petty, Smith ou Ricardo. Ou um comerciante ou fazendeiro poderia a todo tempo aplicar o nome “valor” ou “custo” a tudo que pudesse ser comprado ou vendido, tudo que “custa” algo. Se os teóricos da economia política tivessem tentado desenvolver o conceito de “valor enquanto tal” das diretrizes de uma lógica formal puramente nominalista oferecida à ciência hoje em dia, certamente eles nunca teriam desenvolvido o conceito. Na verdade, o termo “valor” nunca foi, desde o início, resultado da aplicação de um elemento comum, abstrato, cujo uso vulgar da palavra levou alguns a achar que pertence a cada um dos sujeitos chamados “objetos de valor”. Se fosse esse o caso, viria a pôr em ordem a ideia de que qualquer lojista tem em consideração ao significado de “valor”: isto é, uma simples enumeração prosaica das “características” daqueles fenômenos ao qual a palavra “valor” é aplicável, e este seria o fim da questão. Todo o empreendimento teria sido, então, meramente clarificar a aplicabilidade do termo. O cerne da questão, entretanto, é que os clássicos da economia política trataram a questão sob um aspecto inteiramente diferente, e de tal maneira que a resposta a isto foi encontrar o conceito, isto é, uma apreensão da universalidade real. Karl Marx revelou a essência de sua formulação deste problema.
William Petty, o primeiro economista inglês, chegou ao conceito de valor pelo seguinte caminho:
Se alguém consegue trazer para Londres 1 onça de prata do fundo da terra do Peru no mesmo tempo necessário para a produção de 1 alqueire de cereal, então um é o preço natural do outro.(8)
Poderíamos notar de passagem a ausência do termo “valor” nesta proposição, embora seja feita menção ao “preço natural”. Mas estamos testemunhando aqui precisamente o nascimento do conceito de valor fundamental a toda ciência subsequente da produção, distribuição e acumulação da “riqueza”.
O conceito, na medida em que é um conceito real, ao invés de uma ideia geral personificada no termo, expressa (reflete) aqui, assim como no exemplo de Hegel do triângulo, um fenômeno real dado “na experiência” que, embora seja um “particular” dentro outros “particulares”, acaba que, ao mesmo tempo, seja universal, assim representando “valor em geral”.
Os clássicos da economia política burguesa toparam com esta forma de definir em sua forma universal. Entretanto, em uma tentativa de usar isso depois do conceito ter sido formado, eles tentaram “verificar” consistentemente com os cânones lógicos baseados nas ideias de John Locke sobre pensamento e o “universal”, e se encontraram imediatamente de frente com paradoxos e antinomias. O “universal”, sempre que uma tentativa é feita para justificar o termo através de uma análise de suas próprias modificações particulares, tal como lucro ou capital, não é de todo corroborada, mas sim é refutada por contradizê-los.
Marx foi aquele que identificou a razão que gerava os paradoxos e sugeriu uma saída precisamente porque ele foi guiado pela concepção dialética da natureza mais profunda do “universal” e sua inter-relação com o “particular” e “singular”. “A realidade do universal na natureza é uma lei” (F. Engels), mas por tudo isso, uma lei na realidade (um prova disso é a ciência natural moderna, particularmente a física microcósmica). E nunca é realizada absolutamente como uma regra na qual se espera que o movimento de cada partícula particular siga, mas somente como uma tendência manifestando a si mesma no comportamento de um conjunto mais ou menos complexo de fenômenos singulares através de uma “violação” ou “negação” do “universal” em cada uma de suas manifestações particulares (singulares). Como resultado, a mente humana tem, em qualquer caso, levado isso em conta.
As definições universais de valor (a lei de valor) em O Capital de Marx são trabalhadas ao longo da análise pela troca direta de uma mercadoria por outra, isto é, tomando somente uma e precisamente a mais antiga, historicamente, e, portanto, logicamente, a mais simples concretização do valor. Marx fez isto prescindindo de todas as outras formas particulares, (evoluídas com base no valor) como dinheiro, lucro, renda etc. A desvantagem na análise do valor de Ricardo, como apontado por Marx, reside precisamente em que ele “não pode se esquecer do lucro” ao abordar o problema do valor em sua forma universal. Isso torna a abstração de Ricardo incompleta e desse modo formal.
Para Marx, ele procura resolver o problema na forma universal porque todas as formações subsequentes, não somente lucro, mas até mesmo dinheiro, são assumidas como não existentes neste estágio da análise. O que é analisado é somente a troca direta, sem dinheiro. Isso transpira de primeira que esta elevação do singular ao universal difere em princípio de um ato de abstração formal simples. Aqui as distinções da forma mercantil simples, que o diferencia especificamente do lucro, renda, juros e outros “tipos” especiais de valor, não são atirados ao mar como sendo não-essenciais. Ao contrário, a descrição teórica dessas distinções é exatamente aquela coincidente com a definição de valor em sua forma geral. A incompletude e a “formalidade” relacionada da abstração de Ricardo residem precisamente na incapacidade do último, enquanto construindo isso, de abstrair da existência de todos os outros tipos avançados de “valor”, (particularmente e especialmente o lucro), por um lado, e por outro lado, em ser formado através de uma abstração de todas as distinções, incluindo aquelas da troca mercantil direta. As análises de Ricardo resultam em outra dificuldade, nomeadamente, de que o “comum” aparece eventualmente sendo isolado completamente do “particular”, para a qual já não é mais uma descrição teórica. Tal é a diferença entre as concepções dialética e puramente formal do “universal”.
Mas não menos importante é a distinção de Marx da concepção materialista-dialética da interpretação que recebe na dialética idealista de Hegel. O que faz ser tão importante enfatizar esta diferença é que na literatura Ocidental de filosofia, um sinal de igualdade é muito frequentemente colocado entre a concepção de Hegel do universal e a de Marx e Lenin. É aparente, todavia, que a representação Hegeliana ortodoxa desta categoria, quaisquer sejam seu méritos dialéticos, coincidem em um ponto decisivo com a própria visão “metafísica” com a qual o próprio Hegel muito frequentemente rejeita. Isso é revelado com especial clareza sempre que os princípios da lógica Hegeliana são aplicados à análise dos problemas mundanos reais.
Na verdade, quando Hegel comenta sobre seu conceito “especulativo” versus a representação puramente formal do universal, como ele faz com o uso das figuras geométricas, por exemplo, com sua consideração de um triângulo como “a figura em geral”, então a impressão resultante é que esta concepção já inclui dentro de si, em uma forma pronta, todo o esquema lógico que possibilitou Marx lidar com o problema da definição geral de “valor” ou “valor enquanto tal”. Mas, não é como se a “universalidade genuína” de Hegel como distinta da abstração puramente formal, insignificante, consistia em seu significado diretamente objetivo ou no fato de que o próprio “genuinamente universal” existia na forma do “particular”, isto é, na forma de “ser para o outro”, ou como uma realidade empiricamente existente dada no tempo e no espaço (isto é, fora da cabeça do homem), e percebida na contemplação.
Embora pareça assim à primeira vista, o próprio Hegel insistia que a inter-relação entre o universal e particular não é para ser de forma alguma comparada com aquela entre imagens matemáticas (incluindo geometria), pois tal semelhança seria significante somente como uma analogia figurativa e é passível de distorcer e ofuscar a verdadeira imagem.
De acordo com Hegel, a imagem geométrica chamada para clarificar o conceito lógico (universal) é bastante ruim, desde que é excessivamente “sobrecarregada com a substância sensorial” e, desse modo, assim como mitos bíblicos, representa no máximo somente uma alegoria bem conhecida do Conceito. Já o “universal genuíno”, que ele aborda exclusivamente como uma categoria puramente lógica, isto é, como o Conceito com C maiúsculo, deveria ser concebido como tendo sido totalmente limpo de todos os resíduos da “substância sensorial” ou “matéria sensorial”, e ocorrendo em uma refinada esfera imaterial de atividade do “espírito”. Com isto como seu ponto de partida, Hegel censurou o materialismo precisamente por sua abordagem do universal, que, ele alegou, na realidade o aboliu “enquanto tal” por transformá-lo em um “particular dentre outros particulares”, em algo limitado no tempo e no espaço; em algo “finito”, ao passo que o universal deve ser especificamente distinto em sua forma da “completude interna” e do caráter “infinito”.
Esta é a razão porque o “universal enquanto tal”, em seu sentido estrito e preciso, existe, de acordo com Hegel, exclusivamente no éter do “pensamento puro” e de modo algum no tempo e no espaço da “realidade externa”. Na última esfera alguém pode encontrar somente as séries de “estranhamentos particulares”, “personificações” e “hipóstases” deste “universal genuíno”.
Isso o tornaria totalmente inaceitável, “logicamente incorreto”, para a lógica Hegeliana definir a essência do homem como um ser produzindo instrumentos de trabalho. Para o Hegeliano ortodoxo, assim como para qualquer proponente da lógica puramente formal criticada por Hegel (de fato, uma significância bastante unânime!), a definição de Franklin ou Marx é muito “concreta” para ser um “universal”. A produção de instrumentos de trabalho é vista por Hegel não como a base de tudo que é humano no homem, mas como uma, apesar de muito importante, manifestação do último pensando si próprio.
Em outras palavras, o idealismo da interpretação Hegeliana do universal e a forma da universalidade levam na prática ao mesmo resultado da interpretação “metafísica” desta categoria que ele detesta tanto.
Além disso, se a lógica Hegeliana em sua forma original fosse usada para avaliar a validade da linha de raciocínio lógica nos primeiros capítulos de O Capital, este inteiro desenvolvimento Marxiano apareceria como “inválido” ou “ilógico”. O lógico Hegeliano estaria certo de seu ponto de vista ao criticar a análise Marxista do valor no sentido de que falta qualquer definição desta categoria do universal. E mais, ele diria que Marx somente “descreveu” a definição, mas falhou em “deduzir” teoricamente qualquer forma particular do “valor em geral”, pois “valor em geral” assim como qualquer categoria “verdadeiramente universal” da atividade vital do homem, é uma forma imanente para o homem, ao invés de qualquer “ser externo” no qual é meramente manifestado, ou meramente objetivado.
Isso é apenas para sugerir, entretanto, que a lógica Hegeliana, não importa suas vantagens sobre a lógica formal, era e é inaceitável como uma arma para a ciência materialistamente orientada, a não ser que grandes mudanças tenham sido introduzidas e todos os traços do idealismo radicalmente eliminados, acima de tudo, no entendimento da natureza e da situação do “universal”. O idealismo de Hegel constitui algo “externo” em relação à lógica, pois somente dá direção a uma sequência lógica do pensamento. Quando comentando sobre as transições das categorias contrárias (incluindo o universal, por um lado, e o particular, por outro), Hegel também atribui um caráter unidirecional ao esquema de abordagem. Sob o esquema Hegeliano, por exemplo, não existe espaço para a transição Marxiana na definição do valor, nomeadamente, a transição (transformação) do singular no universal. Em Hegel, o universal é o único privilegiado a “estranhar” si mesmo do “particular” e singular, enquanto o singular aparece invariavelmente como meramente um produto, um “modo” da universalidade, exclusivamente particular e, desse modo, pobre em sua composição.
O caso real das relações econômicas (mercado) testemunha, entretanto, a favor de Marx, que mostra que a “forma do valor em geral” não tem sido em todos os momentos a forma universal da organização da produção. Historicamente, e por um longo tempo, ela permaneceu uma relação particular das pessoas e coisas na produção, embora ocorrendo ao acaso. Somente depois que o capitalismo e a “sociedade da livre empresa” passaram a existir, que o valor (isto é, a forma mercantil do produto) se tornou a forma geral de inter-relações entre as partes componentes da produção.
Transições similares, do “singular e acidental” ao universal, não são uma raridade, mas sim uma regra na história. Na história – ainda que não exclusivamente a história da humanidade com sua cultura – sempre acontece de um fenômeno que depois se torna universal, seja, primeiramente, emergente precisamente como uma exceção solitária “da regra”, como uma anomalia, como algo particular e parcial. Caso contrário, dificilmente qualquer coisa poderia acontecer. A história teria uma aparência bastante mística, se tudo que é novo nela surge de uma vez, como algo “comum” a todos sem exceção, como uma “ideia” abruptamente personificada.
É nesta luz que alguém poderia abordar a reconsideração de Marx e Lenin da concepção dialética Hegeliana do universal. Embora estimando altamente as tendências dialéticas no pensamento de Hegel, o Marxismo aprofunda sua concepção em profundidade e amplitude, e assim, torna a categoria do “universal” na principal categoria da lógica governando a investigação dos fenômenos concretos e evoluindo historicamente.
No âmbito da concepção materialista da dialética da história e do pensamento, as fórmulas Hegelianas possuem diferente significância do que na linguagem de seu criador, sendo despojadas do menor sinal de coloração mística. O “universal” inclui e personifica em si mesmo “toda a riqueza dos particulares”, não como uma “Ideia”, mas como um fenômeno especial, totalmente real, que tende a se tornar universal e que se desenvolve “de si próprio” pela força de suas contradições intrínsecas novas, mas não menos reais, outras formas “particulares” do movimento real. Assim, o “universal genuíno” não é qualquer forma particular encontrada em cada e todo membro de uma classe, mas o particular que é conduzido a emergir por sua própria “particularidade”, e precisamente por esta “particularidade” se torna o “universal genuíno”.
E aqui não existe traço do misticismo da geração Platônica-Hegeliana.
Notas de rodapé:
(1) Possui graduação em farmácia pela UFPR e é mestre em educação pela UFPR. Participa dos Grupos de Pesquisa: Núcleo de Pesquisa Educação e Marxismo (NUPE-Marx/UFPR), na linha Trabalho, Tecnologia e Educação; e Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva (NESC/UFPR), na linha Estudos Marxistas em Saúde. Contato: marcelojss @ gmail.com (retornar ao texto)
(2) HEGEL, George Wilhelm Friedrich. Werke. Bd. 19, Frankfurt am Main, 1971, S. 203-204. (retornar ao texto)
(3) MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. Werke. Bd. 32, Berlin, 1965, S. 52. (retornar ao texto)
(4) MARX, Karl. Grundrisse - Manuscritos Econômicos de 1857-1858: Esboços da Crítica da Economia Política. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2011, p. 243. (retornar ao texto)
(5) MARX, Karl. Grundrisse - Manuscritos Econômicos de 1857-1858: Esboços da Crítica da Economia Política. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2011, p. 369. (retornar ao texto)
(6) MARX, Karl. Grundrisse - Manuscritos Econômicos de 1857-1858: Esboços da Crítica da Economia Política. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2011, p. 369-370. (retornar ao texto)
(7) MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã: Crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirne, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846). São Paulo: Boitempo, 2007, p. 538. (retornar ao texto)
(8) MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. Livro I: O Processo de Produção do Capital. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 166, nota 48. (retornar ao texto)
Inclusão | 01/06/2013 |