Testemunha da História
[Entrevista à Teoria e Debate]

Jacob Gorender

1 de Outubro de 1991


Observação: O historiador brasileiro Jacob Gorender estava em Moscou no dia do golpe frustrado. Nesta entrevista, ele registra suas impressões sobre o futuro de um país que já se chamou União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
Fonte: Entrevista concedida a Paulo de Tarso Venceslau - Teoria e Debate.
Transcrição: Alexandre Linares
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Fernando A. S. Araújo.

Em meados de 89, você fez um artigo para esta revista em que dizia que a crise da União Soviética e dos países do Leste Europeu era uma crise do modelo stalinista. Voltando há pouco de uma viagem de dois meses e meio pelos países do Leste e Cuba, você acha que a crise é de modelo ou do socialismo de uma maneira mais profunda?

Em meu artigo, coloquei a questão já no título: se era uma crise mortal ou seria uma reconstrução do socialismo. Minha resposta foi de que se tratava de uma reconstrução. Eu manifestava a convicção de que a perestroika podia ter êxito como renovação do socialismo na União Soviética, a começar do aspecto de tornar eficiente a sua economia, fazendo com que o estatismo totalitário cedesse lugar a relações de mercado, sem afetar o caráter socialista das relações de produção. E, ao mesmo tempo, introduzindo a democratização em todos os setores da vida política e social. Hoje, depois dos acontecimentos que todos conhecem e também de um contato direto com a realidade de cinco países do antigo e já inexistente campo socialista, eu não posso deixar de reconhecer que a pergunta feita naquele artigo deve ser respondida, para a quase totalidade dos países que compunham o campo socialista, como uma crise mortal de fato.

Que tipo de crise seria essa?

É uma crise mortal para o que pudesse haver de socialismo nessas sociedades. Ou seja, uma certa socialização ainda que sob forma de propriedade estatal, mas que procurava, de alguma maneira, beneficiar os trabalhadores, estabelecendo o pleno emprego e introduzindo uma série de conquistas que eles jamais tiveram nesses países.

Como você vê, hoje, a Glasnost e a Perestroika?

A glasnost, a democratização dessas sociedades, realmente aconteceu. Hoje existe democracia no Leste Europeu: pluralismo partidário, jornais que são editados livremente, idéias circulando, fim da censura nas artes, nas editoras etc. Mas o projeto de reconstrução socialista na economia e em tudo que diz respeito às relações de trabalho, de propriedade, realmente não se consumou. Nos países onde o socialismo foi imposto pelas tropas do exército soviético, é evidente que o regime não poderia funcionar bem desde seu ponto de partida porque ele truncava o desenvolvimento nacional próprio de cada país, e era obrigado a supermilitarizar a sociedade, a impor-se pela força. Nesses países houve conquistas também, mas em certo momento o funcionamento da economia se tornou ineficaz e a opressão política, insustentável. Houve múltiplas reações. Na União Soviética, entretanto, a economia, apesar de ter tido êxitos notáveis, não conseguiu assimilar a nova revolução científico-tecnológica, por ser dirigida de forma centralizada e burocrática e, com isso, se atrasou em relação aos países capitalistas de alto desenvolvimento. Não conseguiu sustentar a Guerra Fria, a corrida armamentista, perdeu o fôlego e se atolou em uma situação tão difícil que o projeto da perestroika não foi capaz de corrigir. Uma influência muito negativa adveio das dissensões de caráter nacional, sufocadas durante muito tempo, e que irromperam com uma violência tremenda, complicando o quadro de dificuldades que já eram enormes. Nessa situação, tornou-se impraticável levar a bom termo o projeto de reconstrução do socialismo. Gorbatchev acreditava nesse projeto até alguns dias depois de ser libertado de seu seqüestro na Criméia. Só por alguns dias. Diante da realidade que pôde observar na volta, ele também se rendeu.

Que nova realidade Gorbatchev encontrou depois de seu sequestro?

O putsch - iniciado na madrugada de 19 de agosto, segunda-feira - teve a virtude, assim se pode dizer, de desvelar uma realidade. Eu já estava em Moscou há cerca de três semanas quando o golpe irrompeu e, durante essas semanas, conversei com pessoas de instituições acadêmicas, do meio jornalístico e do povo, uma vez que conheço a língua russa e lia diariamente tudo que podia. O que me diziam muitas pessoas é que, apesar de todas as mudanças, o grande poder que ainda dominava a União Soviética era o KGB - Comitê de Segurança do Estado. Junto com ele estavam o Alto Comando das Forças Armadas e o Ministério do Interior com sua milícia, a Omon - uma brigada para tarefas ditas especiais, responsável por massacres e assassinatos terroristas nos países bálticos e em outros pontos do país. Esse conjunto de instituições repressivas, que supostamente continuava a ter a mesma força de antes, propendia, em consonância com o Ministério e, sobretudo, com o primeiro ministro Valentin Pavlov, a combater e reduzir tudo o que a perestroika e a própria glasnost tinham conseguido. Também me diziam que a situação política era de distensão, depois que Gorbatchev se entendeu com Ieltsin, em abril deste ano. O que apressou a iniciativa golpista foi a data de 20 de agosto, quando o Tratado da União receberia as primeiras assinaturas. Neste Tratado, Gorbatchev propunha um novo relacionamento entre o governo central e as repúblicas, num molde inaceitável para essas velhas instituições do comando administrativo central, que perderiam muitas das suas prerrogativas, em especial porque o tratado consagraria a descentralização do poder econômico, que passaria em grande parte para as repúblicas.

Quem se opunha ao Tratado da União?

Eram essas instituições do comando central e o núcleo do Partido Comunista da União Soviética, já muito desprestigiado, porém que ainda funcionava, dotado de um aparelho ramificado com células dentro do exército, do KGB, das instituições da União. Os oito membros do chamado Comitê do Estado de Emergência, que assumiu o poder em conseqüência do golpe, eram membros do PCUS e vários também membros do Comitê Central. A iniciativa golpista mostrou que essas instituições já eram mera aparência. Elas tinham uma força fictícia. Quando Ieltsin tomou a iniciativa de resistir junto a seus adeptos, no Palácio do Parlamento Russo, a chamada "Casa Branca", e se entricheirou ali, não teve que enfrentar nenhum assalto. Os golpistas foram incapazes de promover um único combate armado. Embora vários generais tenham aderido ao golpe, eles não conseguiram convencer a oficialidade a arremeter contra a "Casa Branca". Mesmo cercada por tanques, quem quisesse entrava e saía à vontade. Os manifestantes fizeram barricadas com vigas de construção de prédios, blocos de cimento e veículos sucateados. Munições, armas e alimentos foram armazenados dentro do edifício do Parlamento.

Você chegou a ver tudo isso?

Claro, estive lá, como também circulei por várias partes da cidade. Observei que, com helicópteros, tanques e tropas treinadas, essas barricadas não seriam obstáculo eficiente e o pessoal que estava dentro da "Casa Branca" não teria condições de resistir. Os oficiais comandantes dos tanques, porém, não quiseram atacar. E a tropa de choque do KGB, ao receber ordem de assalto, também se recusou. Há dez anos, isso seria impensável. Mas tinha havido uma mudança na sociedade, que fazia com que essas mesmas instituições não obedecessem ao comando dos golpistas. Revelou-se, assim, que os golpistas não tinham força real, o que foram obrigados a reconhecer. O golpe se extinguiu sem lutas, rapidamente, a televisão mudou de tom, começou a transmitir a sessão do Parlamento russo, com ataques verbais violentíssimos ao Comitê de Emergência, Gorbatchev foi logo contatado na Criméia e, no dia seguinte, quinta-feira, já estava em Moscou.

O que se revelou foi a fragilidade de instituições que tinham a aparência de poder mas, na verdade, já tinham sido profundamente minadas pela atuação democratizante da glasnost...

Exatamente, por toda aquela massa enorme de denúncias sobre o antigo regime e também pela evolução da própria vida da sociedade, que não aceitava mais o passado da União Soviética. Gorbatchev não conseguiu se esquivar de reconhecer ter sido o responsável pela nomeação de todos os golpistas. Ele foi preso pelo chefe de seu gabinete e pelos generais que comandavam a sua guarda pessoal. E todos os ministros acompanharam o golpe. O chefe do KGB, o ministro da Defesa e o ministro do Interior foram nomeados por Gorbatchev. Ele os nomeou porque era o secretário-geral do Partido Comunista e considerava serem válidas as pressões do partido. Contudo, em meados deste ano, Gorbatchev tomou mais uma iniciativa de renovação do Partido Comunista e, para isso, já tinha proposto um novo programa, que seria discutido num Congresso em outubro, obviamente impossibilitado de se realizar. Quando voltou da Criméia, Gorbatchev ainda pensava que o partido pudesse ser salvo. Mas assim que chegou, nas primeiras entrevistas, viu-se atacado exatamente por esse lado: por ter nomeado os golpistas e por ser secretário-geral do PCUS. E Ieltsin não perdeu tempo, mandou fechar e lacrar a sede do Comitê Central do PCUS. Embora sem energia, Gorbatchev protestou contra isso no momento, mas não pôde fazer nada, porque o Comitê Central do PC soviético ficou, durante o período do golpe, em silêncio. Não se manifestou a favor do Comitê de Emergência, mas também não o condenou, como seria de se esperar, tratando-se do seqüestro do próprio secretário-geral. Quando chegou sexta-feira - o golpe tinha começado na madrugada de segunda -, o próprio Gorbatchev se convenceu da inviabilidade de continuar como secretário-geral do PC. Dissolveu o Comitê Central e depois, na condição de presidente da República, decretou a dissolução do próprio partido e a transferência de seus bens para o Estado. Essa foi era uma mudança tremenda: o partido que não tinha mais grande prestígio, porém que possuía uma estrutura gigantesca e tinha sido a espinha dorsal da sociedade soviética durante todo esse tempo; o partido que fez a Revolução de 17, o partido de Lenin era sumariamente dissolvido e declarado fora da lei pelo próprio secretário-geral. Em algumas repúblicas, foi colocado na ilegalidade. Por que isso aconteceu? É que a evolução da sociedade soviética, nesse ambiente de democracia que se foi instaurando depois de 85, se deu num sentido ideológico pró-capitalista. A falência do modelo stalinista conduziu intelectuais e operários, após toda uma trajetória ideológica que ainda está por ser bem analisada, no sentido da oposição não só a Stalin, mas a Lenin e a Marx. O socialismo e o marxismo se tornaram alvos da aversão e da hostilidade da grande maioria da sociedade.

Essa relação estava latente desde o início do processo de construção do socialismo?

Penso o contrário. O chamado "socialismo real" não somente se desviou do marxismo, como se opôs frontalmente a ele. Não teria sido possível mostrar que se tratava de um determinado modelo de socialismo que falia o modelo stalinista - e não do próprio socialismo? Que era possível um socialismo intrinsecamente democrático? Isso não podia ter-se tornado claro para a grande massa dos soviéticos e, em particular, para a sua intelectualidade? Sim, poderia, mas estava longe de ser fácil. Porque, para começar, onde está esse outro modelo democrático de socialismo? O outro modelo apontado era o da social-democracia. E a social-democracia é um regime pensável somente num país capitalista. A prosperidade da Suécia, por exemplo, impressiona os soviéticos. Ao mesmo tempo, a crise na União Soviética coincidia com um período de avanço dos países capitalistas desenvolvidos em conseqüência da revolução científica e tecnológica. Os soviéticos comparavam o atraso do seu padrão de vida, os seus bens de consumo de má qualidade, a sua habitação deficiente etc., com o que havia na Europa Ocidental, nos Estados Unidos e no Japão.O brasileiro Jacob Gorender estava em Moscou no fatídico agosto. Para ele, os acontecimentos na URSS são conseqüência de um desvio do marxismo autêntico, perpetrado pelos stalinistas. Mas os soviéticos não conseguem ver isso, depois de tantos anos sob a ditadura do partido único.

Eles tinham informação a respeito disso?

Com a glasnost, as informações se tornaram abundantes. Já não era possível esconder. Criou-se a idéia de que a União Soviética se retardara porque tinha aderido ao socialismo. E o grande responsável por isso seria Lenin. Essa era a idéia que encontrei lá, expressa em jornais, conversas, entrevistas, de múltiplas maneiras. Uma opinião em circulação afirmava que, se tivesse continuado capitalista em 17, se só tivesse havido a Revolução de fevereiro, a Rússia seria hoje um país tão rico quanto os Estados Unidos ou o Japão. Essa idéia se enraizou e Lenin passou a ser apontado como o grande responsável pela pobreza dos russos e dos demais povos soviéticos. Na Ucrânia, já derrubaram todas as estátuas de Lenin e fariam isso em Moscou, se não houvesse vigilância. O marxismo também foi declarado uma doutrina antinacional: uma doutrina falida e responsável por toda essa infelicidade dos povos da União Soviética. Já não era o modelo stalinista, era o próprio socialismo que devia ser repudiado.

Esse sentimento é generalizado?

É muito amplo. Continua a haver gente que se considera marxista, que procura respostas marxistas para essas questões. Mas são minoria. No movimento operário, há tendências anarco-sindicalistas, com certa força em alguns setores e se fundou mesmo um Partido do Trabalho, com influência anarco-sindicalista.

Qual é a base social desse partido?

São sindicalistas sem partido e anarco-sindicalistas. É um pessoal anti-estatista, que não quer saber de subordinação nação ao Estado, porque o Estado é visto como um patrão. Não existiam capitalistas privados, mas existia o Estado e ele não era melhor que um capitalista privado. Pagava mal, exigia muito trabalho e, no foral das contas os trabalhadores não tinham um padrão de vida como poderiam ter, assim pensavam, se fossem um país capitalista desenvolvido.

Você concluiria que estamos vendo o ressurgimento acelerado do capitalismo na União Soviética?

Eu ainda não quero avançar conclusões, porque esse é um problema muito difícil do ponto de vista teórico. O próprio golpe mostrou que há duas formações sociais diferentes. Antes, quem mandava era uma camada burocrática privilegiada, que se expressou nos golpistas e os apoiou, tácita ou abertamente. Era a camada dos aparelhos centrais do Estado, na União, nas repúblicas e nas empresas, com um padrão de vida muito superior ao do povo, porém que não podia se apropriar dos meios de produção e transmití-los por herança. O privilégio dessa camada derivava de relações de poder. Se essas relações mudassem, eles perderiam os privilégios. Agora sim, está se formando e se desenvolvendo na União Soviética uma burguesia no sentido estrito da palavra: são pessoas que têm a propriedade privada dos meios de produção, de maneira plena e juridicamente formalizada.

Como é que se deu o processo de aquisição desses meios de produção?

Através de uma corrupção tremenda, que está lavrando tanto na União Soviética como nos outros países do Leste Europeu. Uma parte da antiga burocracia tinha dinheiro porque acumulava, mas não podia gastar a não ser em consumo pessoal ou clandestinamente, pois fábricas clandestinas já existiam. Esta burocracia empregou esses recursos e os reproduziu com rapidez, porque os negócios que estão fazendo hoje na URSS são para obter lucros de 1000% ou mais. Nesses poucos anos, já surgiram alguns milhares de pessoas que acumularam milhões de dólares. Os golpistas, como representantes da velha "nomenklatura", não iam refrear esse processo. Iam gravar sobre ele o suborno no velho estilo. Como foram derrotados, nem é mais necessário pagar um tributo a tais burocratas. Os novos capitalistas progridem livremente e de maneira legal.

Grande parte desses novos milionários são ex-integrantes da burocracia estatal?

Uma parte, sem dúvida, é. Sob este aspecto, destacam-se os diretores de empresas. Contudo, muita gente que não fazia parte da burocracia, mas que tem "espírito empresarial" entrou nessa jogada, por dispor de informações privilegiadas, relações pessoais, formação universitária, habilidade para negócios etc. E aí está se dando um roubo escandaloso dos bens do Estado. Os bens de consumo - dos quais o Estado ainda é o grande comprador e distribuidor são desviados da rede comercial estatal para a rede comercial privada e vendidos até dez vezes mais caros. E, no meio do caminho, ganha-se uma fortuna. Hoje, Moscou é o melhor lugar para se fazer grandes negociatas. E não só Moscou.

Varsóvia virou um imenso bazar, com centenas e centenas de barracas, cheias de roupas, sapatos e eletro-eletrônicos, objetos de todo tipo que vêm da Coréia, de Taiwan, do Japão etc. Ali barganham poloneses, russos e até gente que vem da Mongólia. Varsóvia parece um Paraguai do Leste Europeu, onde se pratica uma especulação desenfreada. Do ponto de vista social, há uma degradação tremenda.

Você escreveu que a questão do mercado era uma questão vital e que o socialismo vai ser obrigado a conviver com ele durante longo período nessa transição. Você alterou esta posição.

Não alterei. O socialismo não pode, nem deve eliminar o mercado de imediato. Precisará conviver com o mercado e tirar proveito dele durante um tempo certamente longo. Só que, para ser compatível com o socialismo, precisará ser um mercado regulado, direcionado pelo planejamento do Estado e refreado no que se refere aos aspectos socialmente negativos. Mas o que se dá é que a idéia generalizada na União Soviética é de um mercado livre e harmonioso, do tipo teorizado por Adam Smith. É isso que está na cabeça dos economistas soviéticos liberais. Mas a União Soviética e os outros países do Leste Europeu têm um grande problema para instaurar o mercado, que não sabemos como vai ser resolvido porque é inédito. Trata-se da privatização de milhares de grandes empresas. Note bem: milhares. Não há, ainda, dentro desses países, capital privado, nacional, que possa adquiri-las. Em alguns casos, empresas multinacionais têm se associado às empresas do Leste. Têm comprado até 100% delas. É o caso da Volkswagen, que vai se tornar a principal acionista da fábrica Skoda, da Tcheco-Eslováquia. A Suzuki e a General Motors estão montando fábricas de automóveis na Hungria. Há casos desse tipo, mas são isolados. E não se pode pensar que o capital estrangeiro se apressará em investir em países onde não há legislação adequada, nem o brasileiro Jacob Gorender estava em Moscou no fatídico agosto. Para ele, os acontecimentos na URSS são conseqüência de um desvio do marxismo autêntico, perpetrado pelos stalinistas. Mas os soviéticos não conseguem ver isso, depois de tantos anos sob a ditadura do partido único. Por enquanto, o Leste Europeu constitui um território de reserva para futura expansão do capital transnacional.

Como é que vão ser privatizadas essas empresas?

Esta é a grande questão que deverá ser resolvida nos próximos anos. Aí sim, vai haver uma contradição de classe entre a nova burguesia - que pretende açambarcar tudo e recapitalizar o país - e os trabalhadores. Em vários desses países, há setores significativos dos operários que se consideram com direito à gestão dessas fábricas seja como acionistas ou sob a forma de arrendamento, pelo sistema de leasing. Existe, na União Soviética, na Polônia, na Tcheco-Eslováquia e na Hungria, uma tendência autogestionária significativa entre os trabalhadores.

Isso se manifesta através do movimento sindical?

Manifesta-se principalmente através dos sindicatos independentes, que se criam hoje em todos esses países. E através de certo movimento anarco-sindicalista, notório na União Soviética e na Tcheco-Eslováquia. Na Polônia, manifesta-se através do Solidariedade, que pretende ser um movimento propriamente sindical. Acredito que a questão da privatização de milhares de grandes empresas é realmente o campo de batalha onde ainda vai se travar uma luta de classes nesses países.

Quais os setores que estariam se digladiando?

Os trabalhadores, com a consciência de que também são proprietários dessas empresas, os diretores de empresas e os capitalistas privados que já existem. Há um capitalismo de empresas menores, que está brotando selvagemente, com as cooperativas, pequenos empresários etc., e, do outro lado, as grandes empresas estatais, que teriam caráter verdadeiramente oligopolista. O mais provável é que a restauração capitalista comece já com o predomínio de uma estrutura oligopolista. Eu pude ver na TV russa programas de gerenciamento japonês e americano. Quer dizer, de gerenciamento capitalista. A palavra manager se incorporou à língua russa. O manager é louvado como um tipo extraordinário, que dinamiza e cria riquezas.

Como historiador estudioso, você teve contato com o mundo acadêmico? Como esse setor está sentindo essas mudanças?

Antes do golpe, eu tive vários contatos com alguns acadêmicos. E boa parte deles já não tinha mais nada a ver com o marxismo. Outros apresentavam uma versão do marxismo que, a meu ver, era completamente diluída, pobremente eclética. Na verdade, a um passo do abandono do marxismo.

Isso já vem desde o início da glasnost?

Essa virada pró-capitalista se acentuou, tanto quanto eu pude acompanhar pela imprensa, a partir de 89. O desmoronamento do Leste Europeu repercutiu na União Soviética num sentido de aceleração da descrença no marxismo. Dois homens prestigiados hoje nos meios acadêmicos da União Soviética são Frederik Hayek, economista liberal austríaco muito conhecido, e Karl Popper, autor de A sociedade aberta e seus inimigos, uma das obras básicas do liberalismo político do século XX.

Frederik Hayek é um neoliberal por excelência?

Sim. A crítica dos liberais ao planejamento centralizado tem certa razão quando afirmavam, Hayek em particular, que uma economia não podia funcionar sem as sinalizações do mercado, dirigida de cima por um órgão de comando central. Isto se comprovou de fato, inviável. Todavia, eu não aceito que o mercado liberal, o mercado irrestrito, seja algo que nós devemos ambicionar. Acho que, como Trotski também escreveu, não se pode concentrar todas as decisões econômicas em um órgão soberano, porque é impossível que uma única cabeça seja capaz de prever os mil e um incidentes e novidades que acontecem na base, nas empresas. E como é que essas empresas se orientarão para tomar o caminho mais eficiente? Através de um plano feito lá em cima por um Ministério? Não, através das sinalizações do mercado. Mas, como está sendo dito por vários marxistas, um mercado socializado, um mercado de agentes sociais. Não de agentes privados, não totalmente livre. Inexiste mercado livre, aliás, no mundo capitalista. O Estado sempre tem um volume tal de dispêndios, que nunca é inferior a um terço do Produto Interno Bruto. Inclusive no que se refere aos países capitalistas de alto desenvolvimento, a exemplo dos Estados Unidos e do Japão.

E a questão da religião? Há uma retomada do sentimento religioso?

O quadro ideológico da URSS, para quem a conheceu, como eu, há mais de trinta anos, é completamente diverso. A religião se revitalizou. Hoje, pode atuar livremente, sem constrangimentos. Principalmente a Igreja Ortodoxa, que é a mais importante, mas também os muçulmanos, na Ásia, e outras religiões que existem na União Soviética. A Igreja Católica tem um papel político muito acentuado, como se sabe, na Polônia. Sua atuação hoje é tão intervencionista na vida política que até católicos me disseram que é excessiva, que a Igreja está exorbitando. Eu ouvi de um polonês: "na Polônia, nós temos padres demais". Parece que, em matéria de padre, a Polônia supera até a Itália. Em Moscou você vê na rua cartomantes jogando tarô, lendo a mão, adeptos do Hare Krishna vestidos com túnica e de cabeça raspada dançando na rua Arbat. Além disso, há tendências populistas muito fortes. Se a situação na União Soviética se tornar crítica, porque já é muito instável, abrirá caminho para tendências populistas até de tipo fascistóide.

Entre esses populistas você incluiria Ieltsin?

Ieltsin era populista, na oposição. Hoje ele é governo na Rússia, já está numa situação em que não pode fazer promessas descabidas, precisa ser contido e tem a obrigação de tomar medidas que melhorem a situação imediata do povo, pois este vai cobrá-lo. Ieltsin ainda goza de uma grande popularidade por causa de sua luta contra os golpistas e porque ele explora um sentimento muito poderoso hoje em todos os países do Leste: o sentimento do nacionalismo, tremendamente revigorado. Com elementos de racismo, particularmente de anti-semitismo, em muitos casos. Na. Rússia e na Ucrânia, bem como em outras repúblicas da desagregada União Soviética, têm influência organizações declaradamente fascistas.

O que está por trás de toda essa crise?

Na essência desse modelo de socialismo de Estado está o partido único, que se fundiu com o Estado. Obviamente, a sua base mais adequada como partido único só poderia ser a estatização total da economia. As duas coisas se casam: a estatização total da economia fornece apoio ao partido único fundido ao Estado e vice-versa. Um regime socialista pluripartidário não pode funcionar com uma economia totalmente estatizada. Socialismo não é a mesma coisa que estatismo, nem a propriedade estatal é a única forma de propriedade social socialista. Em suma, enquanto marxistas, devemos repudiar o extinto socialismo real porque foi um socialismo de caserna, conforme a expressão cunhada por Marx.

E Cuba?

Gostaria de fazer uma ressalva com relação a Cuba. O regime ideal para Cuba não é o do partido único, como não o é para nenhum país socialista. Talvez, há dez anos, quando a situação era estável, Cuba pudesse ter iniciado um processo que avançasse no sentido de um regime democrático pluripartidário. Mas isso não se deu porque não havia impulso interno e não era a "onda" em nenhum país do campo socialista. A situação de Cuba não é a de qualquer um dos países do Leste Europeu. Cuba está sob bloqueio econômico dos Estados Unidos e, com o desmoronamento dos regimes burocráticos do Leste e a queda drástica dos fornecimentos soviéticos, é evidente que a situação econômica se tornou muito difícil, como reconhecem os dirigentes cubanos. A mais difícil que eles já enfrentaram, com necessidade de um racionamento rigorosíssimo. Não há fome, mas há carências alimentares, às vezes agudas. Muitos bens como manteiga, óleo de cozinha, carne, artigos de higiene doméstica não existem ou são escassos. Nessas condições, seria descabido exigir que Cuba mudasse de rumo nas questões internas. Aqui, vale o ditado de que "não se troca de cavalo no meio da correnteza de um rio". A manutenção do regime político como ele existe é algo imposto pela própria necessidade imperiosa de sobreviver. Os dirigentes cubanos estão procurando saídas para as carências econômicas e penso que devemos apoiá-los para que as encontrem e para que elas se tornem efetivas. Seja através da biotecnologia, que é muito desenvolvida em Cuba; do turismo, que eles estão incentivando; ou de outras medidas como o incremento da produção de alimentos, a economia de combustível e assim por diante.

É visível essa crise em Cuba?

É visível no vazio das prateleiras das lojas, nas filas incontáveis, nos pedidos dos cubanos aos turistas para que sejam intermediários de compras nas lojas especiais. Sabe-se que existe um câmbio negro ativo.

Você teve contato com o povo?

Tive contato com gente do povo, mas não posso avaliar com precisão pela conversa o seu sentimento íntimo. Nos regimes em que há partido único, em que só uma opinião é expressa pelos meios de comunicação, torna-se muito difícil você ouvir uma crítica ao regime, ainda mais se manifestada para um estrangeiro. Eu, entretanto, ouvi críticas ao fato de não haver liberdade política e cultural, à falta de iniciativas dos governantes para democratizar o país, para evitar que tudo isso acabe numa explosão em que o povo perderia o que ganhou com o regime socialista, particularmente a educação universal e a excelente saúde pública.

Caiu o padrão de vida do povo cubano com a crise?

O padrão de vida, no que diz respeito à alimentação, roupa e outros aspectos, embora modesto, é melhor do que na América Latina em geral. Eu não vi em Cuba pessoas depauperadas: o aspecto físico da população é saudável, nunca vi uma população com dentes tão bons como em Havana, apesar de já estar havendo carências alimentares. Mas por quanto tempo essa situação pode durar? Porque a falta de matérias-primas, de equipamentos, de peças de reposição e de combustível está levando ao fechamento de fábricas de tecidos, de papel, de níquel etc. A educação está se ressentindo porque se reduziu a edição de livros. Hoje, você quase não encontra o que comprar nas livrarias, não se editam coisas novas, a não ser muito parcimoniosamente, exceto discursos de Fidel Castro e de líderes do governo. No mundo acadêmico, a atividade editorial caiu muito. E o cinema está parado. Se não se encontrar uma saída viável, isso não poderá durar um tempo indefinido.

Na sua opinião, Fidel Castro tem alguma semelhança com os líderes derrubados no Leste Europeu?

Eu jamais diria que ele é igual a um Honecker ou a um Ceaucescu. Ele dirigiu uma revolução autêntica e não se deixou corromper. Mas há um culto a ele. Não como houve a Stalin. Não há estátuas, o nome dele não é dado a cidades etc. Mas o culto à personalidade se manifesta na imprensa, na maneira como o trabalho ideológico é conduzido. Isso é indiscutível e, a meu ver, não é benéfico à formação espiritual dos trabalhadores no regime socialista.

E na União Soviética, você viu alguma manifestação de solidariedade ou preocupação com o que está acontecendo em Cuba?

Eu pude ler, quando já estava fora da União Soviética, que ia ser aberto em Moscou um escritório representativo da liderança cubana de Miami. O próprio Jorge Mas Canosa esteve em Moscou junto com o poeta Armando Valladares e foi recebido com um tapete vermelho à saída do avião, segundo eu li num jornal espanhol. Ele se dizia encantado pela amabilidade que havia encontrado e estava em Moscou para abrir um escritório representativo da sua organização sediada em Miami. Cuba não pode mais contar com a União Soviética.

Depois dessa viagem, você reafirma suas convicções socialistas e marxistas?

Eu estou convencido de que tudo isso não é a morte do marxismo. O marxismo não é um capítulo encerrado na História das idéias. E também não estamos assistindo ao término da luta pelo socialismo. Eu não acredito que o capitalismo seja, como já foi apregoado, o fim da história: o último regime que a humanidade deve atingir. Eu penso que o socialismo continua válido como perspectiva viável e concreta para todos os povos. E a única teoria que oferece uma perspectiva fundamentada, com vistas ao socialismo, é o marxismo: não existe outra. O anarco-sindicalismo é insuficiente, se bem que o elemento autogestionário deva ser enfatizado dentro da visão marxista, o que não ocorreu até agora. Porém, o próprio marxismo deve ser revisto e enriquecido nas questões do partido. Um partido que faz luta armada, por exemplo, se organiza de maneira militarizada. Quando, porém, toma o poder, deve continuar militarizado? E militarizar a sociedade? Absolutamente, não. Esse é um erro gravíssimo. E o Estado, deve ser o órgão que submete a sociedade civil? Absolutamente, não. Tais questões precisam ser abordadas no âmbito do marxismo para que ele se revigore como teoria.


Fonte
dhnet
Inclusão 26/05/2014