O Partido Bolchevique
Pierre Broué

De Julho a Outubro


As jornadas de julho marcaram uma mudança decisiva. Os operários de Petrogrado, contra a vontade dos dirigentes bolcheviques, iniciaram uma série de manifestações armadas que o partido considera prematuras. Não obstante, a influência dos militantes evitou a derrota ao permitir uma retirada ordenada: as manifestações não se converteram numa insurreição que teria condenado ao isolamento uma possível “Comuna” petrogradense. Sem dúvida, o governo não deixa de explorar a situação e golpeia duramente os bolcheviques: por todas partes, os locais do partido são atacados, sua imprensa é proibida, as detenções prosseguem. Os bolcheviques não correm o risco de serem surpreendidos, contam com locais, material e com o hábito do funcionamento na clandestinidade. O Pravda desaparece mas é substituída por uma grande quantidade de folhas clandestinas e, em seguida, por um jornal “legal”, de nome diferente. Trotsky, Kamenev e outros são detidos, mas numerosos militantes, providos de documentação falsa, passam à clandestinidade, safando-se da detenção com a utilização de redes clandestinas que foram preservadas desde fevereiro e das novas possibilidades de ação ilegal abertas pelas responsabilidades que muitos dos militantes ostentam nos sovietes. O Comitê Central decide preservar Lênin da repressão: passará à Finlândia, onde se esconderá sob uma identidade falsa, até o mês de outubro. Enquanto isso, a imprensa burguesa tenta cobrir os bolcheviques de calúnias; com documentos falsos os acusam de terem recebido ouro dos alemães, insiste na lenda do “vagão blindado”, pedindo a cabeça dos traidores. O partido sofre uma série de golpes graves mas a organização sobrevive e continua sua atividade como deslumbrante confirmação das teses de Lênin sobre a necessidade em todas as circunstâncias, de estar preparados para as tarefas do trabalho ilegal.

Os ministros burgueses suscitaram uma crise ministerial. No dia 23 de julho, o trabalhista Kerensky ‑ Companheiro de viajem burguês dos SR ‑ forma um novo governo provisório em que os ministros “socialistas” se encontram em maioria. Em sua opinião, o objetivo é consolidar o novo regime em primeiro lugar se mantendo na guerra. Ao mesmo tempo é preciso reforçar o estado; se restabelece a pena de morte como prerrogativa dos tribunais militares, volta a funcionar a censura, o ministro do interior têm de novo autoridade de proibir jornais, e efetuar detenções sem ordem judicial.

Sem dúvida, a propaganda dos conciliadores não seduz os operários, que foram testemunhas da repressão aos bolcheviques, nem aos burgueses que desejariam uma ação mais séria. A crise econômica piora: os industriais levam a cabo uma verdadeira sabotagem, tanto para preservar suas propriedades como para mostrar as conseqüências da “anarquia revolucionaria” que desejam jogar a responsabilidade da miséria reinante. A queda do rublo continua e se acelera: em outubro seu valor se reduz à 10% do de 1914. As empresas fecham, produzem lock‑outs que deixam sem trabalho centenas de milhares de operário famintos que, inevitavelmente, adotam as consignas de “controle operário” e nacionalização, difundidas a partir de julho pelos bolcheviques.

O fundamental, não obstante, é o movimento que, com alguns meses de atraso, começa a comover o campo. Desde o mês de fevereiro, os governos provisórios em que se encontravam os ministros SR, tradicionais defensores dos interesses dos camponeses, haviam multiplicado as promessas de reforma agrária, sendo incapazes totalmente de leva-las à prática. Os bolcheviques que, graças ao exército, multiplicaram seus contatos com os camponeses, chamam à ação direta, à ocupação das terras: a partir da colheita se inicia uma autêntica revolução agrária, o povo queima as mansões, se apoderam das colheitas e ocupam as terras, primeiro sob a direção dos comitês agrários e, mais adiante, sob os sovietes camponeses. O governo primeiro exorta à paciência, o respeito da ordem e da propriedade, mais adiante recorre aos odiados cossacos para reprimir os camponeses rebeldes; a partir de então, os bolcheviques carecem de verdadeiros impedimentos para demonstrar aos camponeses que eles são seus únicos amigos.

No começo de agosto Kerensky convoca uma Conferência de Estado, isto é, uma espécie de sucedâneo do Parlamento, que agrupa os representantes de organizações políticas, sociais, econômicas e culturais de todo o país: dela espera conseguir um novo compromisso, o “armistício entre capital e trabalho”. Os bolcheviques a boicotam e as forças contra-revolucionárias, que consideram que a missão dos conciliadores terminou, aproveitam para se agrupar. Os industriais e os generais chegam a um acordo: chegou o momento de assentar um golpe definitivo no movimento revolucionário. O encarregado de desferi-lo é Kornilov, o generalíssimo de Kerensky, “supremo salvador”: no dia 25 de agosto envia contra a capital uma divisão de cossacos com comandos de sua confiança. A impotência de Kerensky, abandonado pelos ministros burgueses enquanto fala de destituir o generalíssimo, unida à cumplicidade dos aliados, salta desta forma à vista de todos. Não obstante, o golpe de estado só demora uns dias para vir abaixo. Os ferroviários se negam a fazer circular os trens. Os próprios soldados, quando se interam da tarefa que os designam, se amotinam e os oficiais se encontram a sós, mas bastante satisfeitos de não terem sido executados por seus próprios homens. No momento decisivo, os bolcheviques saem de sua semi-clandestinidade, pronunciando um chamado à resistência dentro dos sovietes, que são os únicos organismos que conseguem domar o temporal daquela semana, em que os últimos restos do aparato estatal pareciam estar se desvanecendo. Os marinheiros de Kronstadt acodem em auxilio da capital e começam por abrir as portas das prisões para libertar os militantes bolcheviques detidos no o mês de julho, encabeçados por Trotsky. Por todo lado se constituem destacamentos de guardas vermelho, organizados pelos bolcheviques; nos regimentos proliferam sovietes de soldados, que dão caça aos kornilovistas e desferem na oficialidade uma série de golpes mortais.

Portanto, o golpe de estado serve fundamentalmente para inverter por completo a situação a favor dos bolcheviques que, a seguir, se beneficiarão da auréola de prestigio que lhes dá sua vitória sobre Kornilov. Em 31 de agosto, o soviete de Petrogrado vota uma resolução, apresentada por sua fração bolchevique, que reclama todo o poder para os sovietes. O espírito desta votação se vê solenemente confirmado no dia 9 de setembro por uma condenação terminante da política de coalizão com os representantes da burguesia no seio dos governos provisórios; os mencheviques, a partir de então, navegam contra a corrente pois, um após outro, os sovietes das grandes cidades – o de Moscou no dia 5 de setembro e mais tarde os de Kiev, Saratov e Ivanovo‑Voznessensk – alinham sua postura com a do soviete da capital que, no dia 23 de setembro, eleva Trotsky à presidência. A partir de então estava claro que o II Congresso dos sovietes, cuja inauguração estava prevista para o dia 20 de outubro, iria exigir o poder, condenando ao mesmo tempo, a aliança de mencheviques e SR com os ministros burgueses. Frente a esta perspectiva, o comitê executivo pan‑russo dos sovietes, presidido pelo menchevique Tsereteli, trata de ampliar a base da coalizão que apóia, mediante a convocação, em base ao modelo da Conferência de Estado, de uma Conferência Democrática que, por sua vez, designa um Parlamento provisório.

O Problema da Insurreição

De seu retiro na Finlândia, Lênin tardou pouco em compreender até que ponto a situação mudou radicalmente: no dia 3 de setembro, num projeto de resolução, se refere à “rapidez de furacão, tão incrível”, que se desenvolvem os acontecimentos. Todos os esforços dos bolcheviques, escreve, devem “tender a não demorar-se no curso dos acontecimentos, para poder guiar o melhor possível os operários e trabalhadores”. Assim mesmo, opina que tal “fase crítica conduz inevitavelmente a classe operária – talvez a uma velocidade perigosa – a uma situação em que, como conseqüência de uma série de acontecimentos que não dependem dela, se verá obrigada à enfrentar, num combate decisivo, a burguesia contra-revolucionária, para conquistar o poder”.[36] No dia 13 de setembro, considera que o momento decisivo chegou e dirige ao comitê central duas cartas que devem ser discutidas em sua reunião do dia 15. “Após ter conseguido a maioria nos sovietes das duas capitais, os bolcheviques podem e devem tomar o poder”. Pressiona o Comitê Central para que submeta a questão ao órgão que, de fato, constitui seu congresso, isto é, o conjunto de seus delegados na Conferência Democrática, “voz unânime daqueles que se encontram em contato com os operários e soldados, com as massas”[37]. Lênin afirma igualmente: “A História jamais nos perdoará se não tomarmos o poder agora”[38]. Os bolcheviques devem apresentar seu programa, o dos operários e camponeses russos, na Conferência Democrática e depois, “lançar toda à fração nas fábricas e quartéis”. Uma vez concentrada neles, “seremos capazes de decidir qual é o momento em que se há de desencadear a insurreição”[39].

Até então, Lênin está separado da maioria dos dirigentes bolcheviques por uma distancia igual à que havia entre eles durante o mês de abril. No dia 30 de agosto o Pravda, dirigido por Stalin, publica um artigo de Zinoviev que leva por titulo “O que não há de se fazer”, nele fala da sorte da Comuna de Paris e põe em guarda contra toda tentativa prematuro de tomar o poder pela força. Esta é a opinião que o partido ostentava em julho, mas Lênin considerava que a situação havia se modificado consideravelmente. Sem dúvida, suas cartas não conseguiram convencer o comitê central. Kamenev se pronuncia contra as propostas de Lênin e exige que o partido tome medidas contra qualquer tentativa de insurreição. Trotsky é partidário da insurreição, mas pensa que esta deve ser decidida pelo congresso pan‑russo dos sovietes. Por ultimo, a maioria comitê central se inclina pela postura de Kamenev que propõe que sejam queimadas as cartas de Lênin, as deixando sem resposta.

A partir de então Lênin inicia a batalha. Sabe que convenceu plenamente Smilga, presidente do soviete regional do exército, da armada e dos operários da Finlândia: começa a conspirar com ele contra a maioria do comitê central, o utiliza para “fazer propaganda dentro do partido” em Petrogrado e em Moscou, examina com ele os mais diversos planos para por em marcha a insurreição e bombardeia o Comitê Central com uma série de cartas veementes que denunciam os “titubeios” e “vacilações” dos dirigentes. O Comitê Central decide, entretanto, pela maioria mínima de 9 votos contra 8, seguir Trotsky e Stalin que propuseram boicotar o Parlamento provisório que há de surgir da Conferência Democrática, mas a fração bolchevique nesta aceita a postura de Rikov e Kamenev que se opõem à insurreição e são partidários da participação no Parlamento provisório. No dia 23, Lênin escreve ao Comitê Central: “Trotsky era partidário do boicote. Bravo, camarada Trotsky! A moção de boicote foi rechaçada pela fração bolchevique da Conferência Democrática. Viva o boicote!”. Exige a convocação de um congresso extraordinário do partido que discuta a questão do boicote e afirma que em nenhum caso o partido pode aceitar a participação. “Há que conseguir que as massas discutam a questão. É necessário que os operários conscientes se encarreguem do assunto, provoquem o debate e pressionem os “meios dirigentes”.[40] No dia 29 de setembro, numa carta dirigida ao Comitê Central, afirma que considera inadmissível que não se tenha respondido suas cartas e mais ainda, que o Pravda censure seus artigos, pois isto reveste toda a aparência de “uma delicada alusão ao amordaçamento e um convite a retirar-se”. Também escreve:

“Devo apresentar minha demissão do Comitê Central e assim o faço, reservando-me o direito de fazer propaganda nas fileiras do partido e no congresso, pois minha mais profunda convicção é que, se esperarmos o congresso dos sovietes e deixamos escapar a ocasião agora, provocaremos a derrota da revolução”.[41]

Volta à carga em 1 de outubro: “esperar é um crime”.[42]

A maioria do Comitê Central duvida, comovida pela discussão e, por fim, decide pedir a Lênin que faça uma viajem clandestina a Petrogrado para discutir com ele o problema da insurreição. De outro lado, durante os dias seguintes, a situação se modifica dentro do próprio partido: Trotsky logra convencer os delegados bolcheviques do Parlamento provisório de que devem boicota-lo após uma aberta declaração de beligerância na sessão inaugural: abandonarão a sala uma vez que ele, em nome de todos, tenha exclamado “A revolução está em perigo! Todo o poder aos sovietes!”. Os bolcheviques de Moscou, representados por Lómov, exigem que se decida a insurreição. No dia 9, Trotsky consegue que o soviete de Petrogrado decida a formação do comitê militar revolucionário, chamado a constituir-se no estado maior da insurreição. Em 10 de outubro, Lênin, disfarçado e barbeado, chega a Petrogrado, discute apaixonadamente e consegue por fim que, por 10 votos contra 2, se aceite uma resolução a favor da insurreição, que já está “completamente madura”, convidando “todas as organizações do partido a estudar e discutir todas as questões de caráter prático em função de tal diretriz”.

Os dois adversários desta resolução são Zinoviev e Kamenev que, desde o dia seguinte apelam contra a decisão do comitê central em sua “Carta sobre o momento atual”, dirigida às principais organizações do partido.

“Estamos firmemente convencidos, escrevem nela, que na atualidade convocar uma insurreição armada supõe jogar numa só carta não apenas a sorte de nosso partido mas também da revolução russa e internacional. Não há dúvida alguma de que existem situações históricas em que uma classe oprimida deve reconhecer que vale mais se dirigir até a derrota que render-se sem luta. Acaso se encontra a classe operária russa hoje numa situação similar? Não, cem mil vezes não. (...) No que depende de nós a eleição, podemos e devemos nos limitar na atualidade a uma postura defensiva. As massas não desejam lutar (...) As massas de soldados nos apóiam (...) por nossa consigna de paz (...) Se nos vermos obrigados a iniciar uma guerra revolucionária (...) nos abandonariam de imediato”[43].

A seu ver o maior perigo constitui a superestimação das forças proletárias, já que o proletariado internacional não está disposto para apoiar a revolução russa.

Sem dúvida os preparativos continuam: no dia 11 os delegados bolcheviques que acodem ao congresso da zona norte são convocados em Petrogrado: a partir do dia 13, os navios da armada, controlados por Smilgá, põem seu rádio à disposição da propaganda bolchevique, fazendo um chamado aos delegados para que se reúnam antes da data prevista. No dia 16 de outubro, se reúne um comitê central ampliado que ratifica por 19 votos contra 2 e 4 abstenções, a decisão do dia 10, rechaçando, depois, uma moção de Zinoviev que propõe a suspensão dos preparativos da insurreição até que se celebre a reunião do Congresso dos Sovietes. Nesta mesma tarde Kamenev apresenta sua demissão como membro do Comitê Central.

No dia 17 de outubro, o jornal menchevique Nóvaya Zhizn, dirigido por Máximo Gorki, publica uma informação referente à “Carta sobre o momento atual”. No dia seguinte, quando no quartel general do soviete de Petrogrado, o Instituto Smolny, se celebra uma conferência ilegal de delegados de regimentos, destinada a conhecer exatamente o estado das forças militares com que conta a insurreição, Zinoviev e Kamenev respondem ao jornal de Gorki, aproveitando para desenvolver, publicamente nesta ocasião, seus argumentos contra a insurreição, deixando não obstante entrever, com uma frase de duplo sentido, que o partido não se pronunciou ainda de forma definitiva. Trata-se de uma grave indisciplina: Trotsky acaba de ser nomeado delegado ante a guarnição da fortaleza de Pedro e Paulo, cuja atitude é vacilante, com o fim de convence-la para que se una ao bando dos insurretos; seu intento se vê coroado pelo êxito. Lênin, em duas cartas, uma dirigida a todos os membros do partido e outra ao comitê central, reage muito violentamente;  nelas chama Zinoviev e Kamenev “fura-greves”, e exige sua expulsão do partido. Mais adiante, envia à Rabotchii Put – o novo Pravda ‑ um artigo vivamente polêmico contra os adversário da insurreição, sem nomear Zinoviev e Kamenev. Ao ter Trotsky se visto obrigado a desmentir que se tivesse decidido a insurreição, Zinoviev e Kamenev utilizam tal declaração para encobrir seu comportamento.

No dia 20 de outubro, Rabotchii Put publica simultâneamente a continuação do artigo de Lênin, a declaração de Zinoviev em que se refere ao desmentido de Trotsky e uma nota da redação, escrita por Stalin em termos conciliadores, que parece implicar um certo rechaço da atitude de Lênin: “A aspereza de tom do camarada Lênin não altera o fato de que permanecemos todos de acordo quanto aos pontos fundamentais”. Nesta mesma tarde, na sessão do comitê central em que Sverdlov lê a carta de Lênin, Trotsky ataca violentamente Stalin por sua nota conciliadora. Stalin oferece então sua demissão e, mais adiante, advoga peça conciliação, pedindo ao comitê central que se negue a aceitar a demissão apresentada por Kamenev. Em definitivo a demissão de Kamenev é aceita por 5 votos contra 4: Zinoviev e ele são ameaçados, por resolução do comitê, a não voltar a tomar posição publicamente contra as decisões do partido.

A Insurreição

A decisão sobre a insurreição se desenvolve portanto praticamente à vista de todos, num ambiente ultrademocrático, que desmente eficazmente a lenda pertinaz de um partido bolchevique de robôs. Apesar da designação por parte do Comitê Central de um burô político que há de encarregar-se de supervisionar os preparativos, estes se levam a cabo sob a direção do comitê militar revolucionário. Em 22 de outubro, a tripulação bolchevique do cruzeiro Aurora recebe a ordem de permanecer no mesmo lugar, quando o governo provisório, de seu lado, ordenou que levante âncoras. No dia 23, o comitê envia seus delegados a todas as unidades militares, cujos representantes acabam de publicar um comunicado em que afirmam não reconhecer a autoridade do governo provisório. Durante a noite, o governo se decide a atuar, proíbe a imprensa bolchevique, fecha suas tipografias e chama a Petrogrado todos os cadetes da academia. O comitê militar revolucionário envia então um destacamento que abre de novo a imprensa do Pravda. Durante a jornada de 24, nos quartéis, se distribuem armas a todos os destacamentos operários; durante a tarde, os marinheiros de Kronstadt acodem a Petrogrado; do Smolny, sede do comitê, partem os destacamentos que vão ocupar todos os pontos estratégicos da capital. Vinte e quatro horas mais tarde cairá o Palácio de Inverno, após algumas salvas, disparadas pelo Aurora. A insurreição triunfara.

No seio do partido bolchevique, a polêmica parece ter-se extinguido com o começo da ação: Kamenev que se demitiu no dia 20 do comitê central, participa não obstante em sua reunião de 24; passa a noite de 24 a 25 no Smolny, ao lado de Trotsky, encarregado de dirigir a insurreição: Lênin há de unir-se em seguida a eles.Quando, na tarde de 25 de outubro se inaugura o congresso dos sovietes, Kamenev é proposto para ocupar a presidência em representação do partido bolchevique.

Na realidade, antes mesmo de que o congresso passe a efetuar a votação que há de dar à insurreição o referendo revolucionário esperado pelos dirigentes bolcheviques, o desenvolvimento do movimento de massas, é, mais uma vez, o encarregado de eliminar as divergências. Em todo o país, discute-se nas assembléias de operários, de camponeses e de soldados, nelas se argumenta, se ataca ou se defende a decisão da insurreição. John Reed descreveu um destes debates, celebrado no regimento motorizado de metralhadoras. Nele, o bolchevique Kirilenko acaba de dar fim a um violento duelo oratório, em que enfrentou os adversários mencheviques e SR da insurreição. Os soldados presentes votam: uns cinqüenta se situam à direita da tribuna, o que equivale a condenar a insurreição, mas várias centenas deles se aglomeram à esquerda, aprovando-a. O jornalista americano conclui:

“Imaginem esta luta repetida em cada um dos quartéis da cidade, de toda a região, em todo o front, em toda a Rússia. Imaginem todos os Krilenko com falta de sono, que vigiam cada regimento, que saltam de um lugar a outro, discutindo,  ameaçando, suplicando. Imaginem esta mesma cena repetida em todos os locais sindicais, nas fábricas, nas aldeias, a bordo dos navios; pensem nas centenas de milhares de russos, operários, camponeses, soldados, marinheiros que contemplam os oradores, esforçando-se intensamente para compreender, e tomar logo uma decisão reflexionando com agudeza e decidindo por fim com tão assombrosa unanimidade. Assim era a Revolução Russa”[44].

O II Congresso e o Problema da Coalizão.

Dos 650 deputados do congresso pan‑russo dos sovietes, 390 são bolcheviques, 150 SR aproximadamente votarão com eles. O presidium do novo comitê executivo compreende 14 bolcheviques de um total de 25 membros. Ao lado dos dirigentes do partido, os membros do comitê central Lênin, Trotsky, Zinoviev, Kamenev, Rikov, Noguin e Kolontai, figuram veteranos militantes como Riazanov, Lunacharsky, Murálov, que Trotsky chama Muránov, o letão Stutchka, e os dirigentes da insurreição como Antónov‑Ovseienko, do comitê militar revolucionário, Krilenko e o jovem Skliansky. Durante a discussão chegam noticias exultantes: a queda do Palácio de Inverno, a passagem para o lado revolucionário das tropas enviadas por Kerensky precisamente para destruí-lo. A minoria, composta de mencheviques da ala direita e SR, abandona a sala. O congresso aprova a insurreição, vota os célebres decretos que iniciam o regime soviético e ratifica por aclamação o novo governo de “comissários do povo” – apelo que foi proposta na última hora por Trotsky e que foi adotada entusiasticamente por Lênin – apresentado pelo Comitê Central bolchevique: está composto por 15 membros, todos eles bolcheviques, dos quais 4 são operários. Posteriormente designa um comitê executivo que compreende 71 bolcheviques e 29 SR dissidentes, partidários de colaborar no poder com os bolcheviques e pertencentes à ala esquerda de seu partido. A sessão se levanta depois de 15 horas de debate em dois dias. A página parece virada de vez.

Não obstante, a polêmica que se desenvolveu no partido antes da insurreição volta a suscitar-se imediatamente depois da vitória. Os delegados presentes no II Congresso votaram a favor de uma resolução, apresentada pelo menchevique internacionalista Martov e apoiada pelo bolchevique Lunacharsky, que solicita que o conselho de comissários do povo compreenda representantes de outros partidos socialistas. Na opinião de muitos militantes, incluídos os bolcheviques, o conselho de comissários puramente bolchevique não pode ser senão uma solução provisória, a única solução é um governo de coalizão dos partidos socialistas. O comitê executivo do Vikhjel, sindicato dos ferroviários, retoma, alguns dias mais tarde, a consigna de coalizão e, para dar mais base à sua reivindicação, ameaça cortar as comunicações do governo se este não empreender de imediato a formação de um governo socialista de coalizão.

No dia 29 de outubro, o Comitê Central, de que estão ausentes Lênin, Trotsky e Stalin e, mais tarde, o comitê executivo do congresso dos sovietes, aceita negociar. Uma delegação encabeçada por Kamenev aceita o convite dos ferroviários tomando contato com os representantes dos mencheviques e dos SR. Estes últimos, alentados nos bastidores pelos diplomatas aliados, ao se acreditar no testemunho de Jacques Sadoul, exigem que os guardas vermelhos sejam desarmados, que se constitua um governo de coalizão que não inclua nem Lênin nem Trotsky e que, em principio responderia não ante os sovietes mas ante “as amplas massas da democracia revolucionaria”, fórmula esta que certamente é demasiado extensa para não cair na ambigüidade. Os parlamentares do executivo dos sovietes, inclusive os bolcheviques Riazánov e Kamenev aceitam que a discussão se inicie nestas bases, firmando com seus interlocutores um chamado em prol do cessar-fogo, quando os cossacos do general Krasnov, em seu avanço até Petrogrado, já estão se enfrentando com os guardas vermelhos de Trotsky. Na sua volta, Trotsky os acusa ante o comitê central de terem considerado e inclusive preparado uma condenação da insurreição assim como de terem sido enganados por seus adversários. Lênin chega ainda mais longe e propõe a imediata ruptura das negociações. Riazanov e Lunacharsky declaram estar de acordo com a eliminação de Lênin e Trotsky do governo se tal condição é indispensável para a constituição de uma coalizão de todos os socialistas. O Comitê Central rechaça esta postura e vota a favor de Trotsky que propõe prosseguir as negociações na base da busca de condições que garantirão ao partido bolchevique uma certa preponderância no seio da coalizão com os partidos socialistas que se opuseram ao poder ostentado pelos sovietes com a condição de que aceitem reconhecer este como um fato consumado, assumindo suas responsabilidades a respeito.

Não obstante a minoria bolchevique não se resigna, pois crê que a resolução do comitê central impedirá de fato qualquer tipo de coalizão. Kamenev, que segue presidindo o comitê executivo dos sovietes, propõe a demissão do conselho de comissários do povo exclusivamente bolchevique presidido por Lênin e a oportuna constituição, em seu lugar, de um governo de coalizão. Volodarsky opõe a esta moção a que foi adotada pelo comitê central. Durante a votação, numerosos Comissários do Povo como Rikov, Noguín, Lunacharsky, Miliutin, Teodorovich, assim como alguns responsáveis do partido como Zinoviev, Lozovsky y Riazánov votam contra a resolução apresentada por seu próprio partido. No dia seguinte, outro bolchevique, Larin, apresenta ao executivo uma moção sobre a liberdade de imprensa, censurando a repressão governamental contra a imprensa direitista e a proibição dos jornais que chamam a insurreição armada contra o governo bolchevique. A moção é rechaçada com uma maioria de apenas dois votos. Lozovsky e Riazánov votaram uma vez mais contra o governo. Ameaçados para que se submetam à disciplina, parte dos membros da oposição se demitem aparatosamente de suas responsabilidades para protestar contra a “catastrófica política do Comitê Central” e contra “a manutenção de um governo puramente bolchevique por meio do terror político”[45]. Lênin numa proclamação que se difunde por todo o país, lhes dá o nome de desertores. Em sua opinião não pode haver nenhum tipo de vacilação: se a oposição não aceita as decisões da maioria deve abandonar o partido. Afirma:

“a cisão será um fato enormemente lamentável. Não obstante, uma cisão honrada e franca é, na atualidade, preferível à sabotagem interior e ao não cumprimento de nossas próprias resoluções”[46].

Não haverá cisão definitiva. A oposição é condenada pelo conjunto dos militantes e pelas mesmas reuniões de operários e soldados que aprovaram a insurreição. De outro lado, a seguir fica extremamente clara a evidência de que os mencheviques e os dirigentes SR nunca pensaram senão em colocar aos bolcheviques a alternativa entre o suicídio político que suporia a eliminação de Lênin e Trotsky, e a negativa a constituir uma coalizão que justificaria então uma luta contra eles com todos os meios a seu alcance. Parte dos SR se negam a seguir a maioria de seus dirigentes pelo caminho que conduz à luta armada contra o regime soviético: o novo partido que integram os SR de esquerda, ao dar-se contra de que os mencheviques e SR se negam na realidade a tomar parte da coalizão, aceita dividir o poder com os bolcheviques delegando a alguns de seus membros no conselho de comissários do povo. Dos membros da oposição, Zinoviev é o primeiro a voltar e reconsiderar sua demissão. No dia 21 de novembro escreve: “Nosso direito e nosso dever é advertir o partido de seus próprios erros. Sem dúvida permaneceremos com o partido. Preferimos cometer erros com milhões de operários e soldados e morrer com eles a nos separarmos deles nesta hora decisiva da história. Não haverá, não pode haver, uma cisão no partido”[47]. Kamenev, Miliutín, Rikov e Noguin seguem seu exemplo em 12 de dezembro, esperando um pouco mais de tempo antes de assumir suas responsabilidades. Kamenev, substituido por Sverdlov na presidência do executivo dos sovietes, será enviado à Europa Ocidental. O único a manter sua postura será Lozovsky, que será finalmente expulso, fundando um efêmero “Partido Socialista Operário”.

Não haverá crise nas fileiras do partido bolchevique quando se coloca o problema da Assembléia Constituinte cuja maioria pertence aos SR de direita, por terem sido designados os candidatos antes da cisão. Bukharin propõe então uma desautorização dos deputados direitistas e a proclamação de uma convenção revolucionária, ante esta postura o politburô bolchevique manifesta certa vacilação. Não obstante Lenin conseguirá impor facilmente seu ponto de vista: ao ter rechaçado a Constituinte uma “declaração dos direitos do povo trabalhador e explorado” que retomava no essencial as decisões do II Congresso dos sovietes, aprovando assim seu desejo de por em questão tanto a própria revolução como o novo poder soviético, é dissolvida pelos guardas vermelhos em 19 de janeiro. Nenhum bolchevique irá protestar contra a dissolução de uma assembléia cuja eleição, em seu momento, havia sido uma das principais consignas de agitação empregadas pelo partido. As teses de abril haviam triunfado portanto de forma definitiva.

A Fisionomia do Partido Vitorioso

A seguir, o partido bolchevique irá suportar a parte mais essencial das responsabilidades do novo regime. Em todo o mundo, os especialistas se perguntam: “Acaso vão perdurar estes alucinados?” Lênin responde:

“a burguesia só reconhece que um estado é forte quando, fazendo uso de todo o poder do aparato governamental, consegue mobilizar as massas no sentido desejado pelos governos burgueses. Nossa concepção da força é diferente. Para nós o que dá força a um estado é a consciência das massas. O estado é forte quando as massas sabem tudo, podem julgar sobre qualquer coisa e atuam sempre com perfeita consciência”[48].

Os bolcheviques têm fé no futuro porque crêem ser uma mera vanguarda da revolução mundial, mas também porque sabem que sua fusão com os elementos ativos da classe operária é tão absoluta que é impossível discernir se foi o partido que os integrou ou se foram eles que se apoderaram do partido para converte-lo em sua organização. Esta é a opinião que já no mês de julho foi expressa por Volodarsky nos seguintes termos:

“Nas fábricas desfrutamos de uma influência formidável, ilimitada. O trabalho do partido é realizado principalmente pelos próprios operários. A organização surgiu da base e esta é a razão que pensamos que não se deslocará”[49].

De fato, nenhum argumento é mais eficaz na hora de desmentir abertamente a persistente lenda do partido bolchevique monolítico e burocratizado, que o relato destas lutas políticas, destes conflitos ideológicos, destas indisciplinas públicas e reiteradas que, de fato, nunca são sancionadas. São as massas revolucionárias que sancionam as decisões que, de outro lado, haviam sugerido com suas iniciativas: Lênin, que foi o primeiro a estigmatizar Kamenev e Zinoviev, chamando-os “covardes” e “desertores” no calor da ação, uma vez superada esta etapa, é igualmente o primeiro a manifestar seu veemente desejo de conserva-los no partido, onde são necessários, pois ocupam um lugar que seria difícil sua imediata substituição. No final de 1917, o partido tolera mais que nunca os desacordos e inclusive a indisciplina, na medida que a paixão e a tensão das jornadas revolucionárias os justificam e desde que, quando o acordo sobre o objetivo da revolução socialista é fundamental, o que se refere aos meios a empregar não pode resultar mais que da discussão e da convicção.

Na realidade, a postura dos conciliadores tinha seu fundamento na antiga teoria das distintas etapas da revolução que só foi abandonada depois do triunfo das teses de abril; a ruptura com ela não podia ser levada a cabo em apenas umas poucas semanas, ao menos na mente daqueles que a haviam desenvolvido e esta é a explicação da atitude de Zinoviev e Kamenev. Certamente, baseando-se em seus escritos de novembro de 1917, é fácil sugerir, como faz Robert Daniels, que os adversários bolcheviques do monopólio bolchevique do poder haviam pressentido o perigo de degeneração implícito em um partido que se identificasse com o Estado. De fato é impossível ir mais além da afirmação de Deutscher: “A história iria justificar tal pressentimento, apesar de que, quando sobreveio, carecesse aparentemente de base”[50].

Na realidade, nem Lênin nem Trotsky nem os outros dirigentes bolcheviques previam nem desejavam naquela data um monopólio bolchevique do poder. Lênin havia efetuado um chamado para que se tentasse “a última oportunidade de garantir um desenvolvimento pacífico da revolução, a pacifica eleição dos deputados do povo, a luta pacífica dos partidos no seio dos sovietes, colocar à prova na prática o programa dos diferentes partidos e a pacífica transição do poder de um partido a outro”[51]. Imediatamente depois da revolução, o Comitê Central declarava ainda: “Na Rússia foi conquistado o Poder soviético e a passagem do governo de um partido soviético a outro fica assegurado sem nenhuma revolução pela simples renovação dos deputados nos sovietes”[52]. Não obstante, naquele momento, os mencheviques haviam abandonado a sala de sessões do II Congresso dos sovietes onde se encontravam em completa minoria; os SR e eles se negavam a aceitar a oferta bolchevique de gestão mancomunada nos sovietes: uns consideravam a luta armada ao lado dos chefes militares da oligarquia e dos Aliados, enquanto que os outros se preparavam a tomar posições por cima da confusão imperante.

Se, anos mais tarde, os sovietes hão de ver-se reduzidos a uma mera concha vazia frente ao todo poderoso aparato bolchevique, será porque, fundamentalmente, na época em que os sovietes ainda eram organismos vivos, o partido bolchevique havia sido o único a defender seu poder enquanto os mencheviques e social‑revolucionários, leais oponentes ou colaboradores da república burguesa, se haviam negado a desempenhar este papel na república soviética de conselhos de operários, camponeses e soldados.


Notas:

[36]Lenin, Oeuvres Complétes, t. XXV, pág. 243. (retornar ao texto)

[37] Ibídem, t. XXVI, págs. 10-12. (retornar ao texto)

[38] Ibídem, pág. 12. (retornar ao texto)

[39] Ibídem, pág. 18. (retornar ao texto)

[40] Ibídem, pág. 51. (retornar ao texto)

[41] Ibídem, págs. 78-79. (retornar ao texto)

[42] Ibídem, pág. 139. (retornar ao texto)

[43] Bunyan y Fisher, The bolshevik revolution, págs. 59-62. (retornar ao texto)

[44] Reed, op. cit., pág. 153. (retornar ao texto)

[45]Bunyan y Fisher. op. cit. pág. 204. (retornar ao texto)

[46]Lenin, 0euvres Complétes, t. XXVI. pág. 293. (retornar ao texto)

[47]Pravda, 21 de noviembre de 1917, citado por Serge. El año I de la revolución rusa, Ed. Siglo XXI pág. 104. (retornar ao texto)

[48]Lenin. Oeuvres Choisíes, t. II, pág. 150. (retornar ao texto)

[49]Citado por Trotsky, Histoire, t. III, pág. 364. (retornar ao texto)

[50] Deutscher, op. cit., pág. 310. (retornar ao texto)

[51]Lenin, Oeuvres Choisies., t. II, pág. 150. (retornar ao texto)

[52] Ibídem, pág. 282. (retornar ao texto)

Inclusão 19/08/2006