Trotskismos

Daniel Bensaïd


Capítulo II - O Último Combate de Trotsky


Os anos 1930 foram férteis em acontecimentos maiores: a chegada ao poder de Hitler em 1933, o esmagamento da insurreição de Viena em 1934, a guerra civil na Espanha e a Frente Popular em França, a longa marcha de Mao Tse Tung e o estabelecer da república de Yenan, os processos e o grande terror na União Soviética, Munique e o Pacto Germano-Soviético, o Anschluss(1) e o despedaçar da Polónia. Este encadeamento parecia a crónica de uma guerra anunciada. Era, portanto, urgente assegurar a transmissão da herança e forjar o instrumento que faltou ao punhado de internacionalistas opostos à União Sagrada de 1914.

Em 1929, Trotsky abstém-se ainda de criar uma nova Internacional:

"É uma ideia inteiramente falsa."

Esta denegação exprime uma convicção profunda segundo a qual a contra-revolução na URSS não estava ainda consumada. Ele toma como exemplo a experiência da II Internacional que não caiu de um dia para outro, com o voto dos créditos de guerra, na colaboração de classe. Bem antes de 1914, os sinais da sua degenerescência não faltavam, nem no plano teórico (com a controvérsia sobre o revisionismo entre Bernstein, Kautsky e Rosa Luxemburgo, desde o início do século), nem no plano político (com a adopção de posições chauvinistas sobre a questão colonial, com as derivas parlamentares do socialismo francês sob Millerand), ou com os sinais de burocratização denunciados por Georges Sorel, Roberto Michels, Antonio Labriola. Mas, para registar o seu falhanço, estes sinais continuavam insuficientes. Faltava, para conduzir à necessidade de uma nova Internacional, o teste crucial do 4 de Agosto de 1914 e a adesão dos socialistas à União Sagrada.

Durante o tempo em que se manteve agarrado à ideia de um termidor inacabado na União Soviética, Trotsky preconizou a linha da "rectificação" na Internacional, como dentro do Partido Comunista da União Soviética. Em 1932, ele definia ainda a Oposição de Esquerda como "uma fracção do comunismo internacional". Ele antevia já, porém, as hipóteses que o poderiam conduzir a mudar a sua posição:

"Uma catástrofe como a queda do Estado soviético implicaria, sem dúvida, a da III Internacional. Igualmente, a vitória do fascismo na Alemanha e o esmagamento do proletariado alemão permitiriam dificilmente ao Komintern sobreviver às consequências da sua política desastrosa."

Um ano mais tarde, a segunda hipótese encontrava-se realizada com a ascensão de Hitler e dos nazis ao poder. A conclusão foi imediata:

"O proletariado alemão levantar-se-á, o Partido Comunista alemão jamais!"

O destino da Internacional Comunista não estava assim tão selado. Os jovens partidos comunistas não se tornaram todos simultaneamente em simples apêndices da burocracia soviética. O processo de estalinização da Internacional é desigual. Em certos países, como na Espanha, ele matou ainda no ovo o comunismo nascente. Noutros, como na Suécia, mas também na Alemanha ou na Catalunha, provocou rupturas e cisões. Noutros, enfim, a subordinação dos partidos comunistas aos interesses da burocracia do Kremlin foi pretexto de furiosas batalhas ao longo de todos os anos 1930. Como sublinhou o historiador Isaac Deutscher, a degenerescência da III Internacional foi, portanto, diferente e mais difícil de entender do que a da II, pouco a pouco corrompida pela sua integração progressiva nas instituições, pela obtenção de lugares parlamentares, pela promoção social das burocracias sindicais. Tornar-se comunista no início dos anos 30, era, pelo contrário, mais do que esperar gratificações, arriscar a repressão profissional e policial. A reacção estalinista apareceu muitas vezes aos olhos dos militantes como um "heroísmo burocratizado", muito diferente do conforto institucional prometido aos bonzos da social-democracia.

Após 4 meses de reflexão, Trotsky regista a ausência de sobressalto da Internacional, e pronuncia-se por uma nova Internacional. Esta decisão não se baseava num prognóstico, mas numa experiência crucial; não em impressões subjectivas, mas em mudanças radicais efectivas; não em previsões, mas nos factos. Em 1930, ele tinha escrito:

"É evidente que todas as possibilidades e probabilidades de evolução em direcção ao bonapartismo, reduzem a verosimilhança de sucesso da via das reformas [na União Soviética], mas os efeitos não podem ser medidos por antecipação: continuamos na via da reforma."

A 23 de Julho de 1933, ele persistia:

"Mesmo se alguns de entre nós tinham desde há algum tempo a convicção de que a Internacional Comunista estava destinada ao fracasso, era impossível proclamarmo-nos nós mesmos como uma nova Internacional. Sempre colocámos essa questão em função dos grandes eventos históricos que deveriam submeter o Komintern soviético a um exame histórico."

Evidentemente, determinar a data de uma bifurcação histórica é problemático. A própria escolha do acontecimento decisivo implica já uma parte irredutível de subjectividade. Ainda assim, podemos perguntar-nos se o destino da Internacional Comunista não estava selado desde 1927, com a tragédia da segunda revolução chinesa evocada por Malraux em A Condição Humana, ou desde 1930, com as brutalidades da colectivização forçada e as primeiras purgas na União Soviética. Trotsky recomenda que se deixe a questão aos historiadores. A chegada dos nazis ao poder, determina o futuro da Europa e constitui uma reviravolta crucial entre as duas guerras.

Mas a hesitação quanto à necessidade de uma nova orientação traduz uma dificuldade suplementar. Não se trata apenas, como em 1914, de dizer a derradeira missa de uma Internacional defunta, mas de responder ao problema inédito colocado pelas transformações da União Soviética: o apelo à formação de um novo partido revolucionário internacional, incluindo na União Soviética, não implicaria um apelo a uma nova revolução na própria União Soviética? Segundo Jan Van Heijenoort, que foi seu secretário durante os anos 1930, Trotsky começou a esboçar essa perspectiva entre Março e Julho de 1933, mas não se decidiu senão em 1936. Vistas as consequências de uma tal decisão, a demora na reflexão não parece exorbitante, mas simplesmente responsável.

A decisão de construir uma nova organização internacional assenta, além disso, sobre um julgamento programático: sobre que bases? Se as referências ao Manifesto Comunista e aos quatro primeiros congressos da Internacional Comunista forneciam uma base necessária, esta já não era suficiente. Em dez anos, a luta de classes internacional tinha acumulado eventos que obrigavam a estabelecer novas delimitações: a contra-revolução burocrática na União Soviética, a vitória do fascismo na Itália e na Alemanha, as lições da segunda revolução chinesa. Longe de constituir uma Tábua intangível de Lei, o programa alimenta-se em permanência de novas experiências fundadoras. Os ensinamentos assimilados após Outubro resumem-se num breve documento de 1933, conhecido como Os Onze Pontos da Oposição de Esquerda. Em poucas palavras, o essencial é dito:

  1. A defesa intransigente da independência dos partidos proletários: é a grande lição retirada da subordinação fatal do Partido Comunista chinês ao Kuomintang nacionalista de Tchang Kai-Check.
  2. A oposição da teoria da revolução permanente à do "socialismo num só país" e a reafirmação do carácter internacional da revolução proletária face ao capitalismo mundializado.
  3. A caracterização da União Soviética como "Estado operário burocraticamente degenerado", tendo por consequência a sua defesa contra o imperialismo e contra qualquer tentativa de restauração capitalista.
  4. A condenação da política económica de Estaline e da aventura trágica da "colectivização forçada".
  5. A necessidade de militar nos sindicatos de massas, contra a política sectária de cisão sindical desenvolvida pelo Komintern durante o "terceiro período".
  6. A rejeição do conceito de "ditadura democrática do proletariado e do campesinato", entendido pelos dirigentes do Komintern como uma etapa histórica distinta da ditadura do proletariado.
  7. A necessidade de mobilizar as massas com base em reivindicações transitórias, nomeadamente palavras de ordem democráticas nos países coloniais ou sob regimes ditatoriais: este ponto divide o debate sobre o programa tido no V e no VI congressos da IC.
  8. A necessidade de uma política de frente única operária, oposta tanto à colaboração com os partidos burgueses, como ao sectarismo desastroso do "terceiro período de erros" da Internacional Comunista.
  9. A condenação categórica da teoria dita do "social-fascismo" que assimila os partidos sociais-democratas aos partidos fascistas e já não distingue entre democracia parlamentar e ditadura fascista.
  10. A necessidade, finalmente, de um regime democrático no seio do partido, para se opor à degenerescência burocrática do Partido Comunista da União Soviética e da Internacional Comunista.

Um ponto acrescentado em Julho proclama ainda a

"necessidade de criar uma Internacional Comunista autêntica, capaz de aplicar os princípios acima".

Cinco anos mais tarde, o Programa da Transição precisa de outra forma o apelo a uma nova revolução política (um "levantamento insurreccional") na União Soviética, ao "derrube da burocracia termidoriana", ao "renascimento e desenvolvimento da democracia soviética", à "legalização dos partidos soviéticos", ao restabelecimento do controle dos comités de fábrica sobre a produção, à supressão da diplomacia secreta, à revisão pública dos processos.

O ano de 1934 foi marcado por novos desenvolvimentos políticos maiores. Fevereiro assiste ao esmagar da insurreição operária de Viena e às manifestações fascistas em Paris. Consciente da ameaça que esse crescimento do fascismo faz pesar sobre a própria existência da social-democracia, Trotsky deduz que o aparecimento de correntes de esquerda no seio desses partidos se torna inevitável. Alguns meses mais tarde, a participação dos socialistas espanhóis na insurreição das Astúrias confirma esse prognóstico. Trotsky retira daí conclusões práticas para a Espanha, a Bélgica e a França: as pequenas forças da Oposição de Esquerda devem tomar o seu lugar na frente única contra o fascismo, entrando nos partidos sociais-de-mocratas. Conhecida como "a viragem francesa", esta orientação foi também objecto de debates e de divisões. Ela constitui a primeira experiência do que se irá tornar o "entrismo", frequentemente considerado como característica de práticas manipuladoras da parte de organizações trotskistas.

Após a assinatura do pacto EstalineLaval, em Agosto de 1935, o VII Congresso da IC generaliza a nova linha das Frentes Populares. A situação muda de novo. Esta viragem dos partidos estalinistas colocava na ordem do dia a unidade burocrática dos aparelhos que ia pesar sobre as costas das correntes revolucionárias. Esta previsão foi rapidamente confirmada pela expulsão da corrente "bolchevique-leninista" do Partido Socialista francês. Impunha-se uma nova mudança de rumo, reatribuindo a prioridade à construção de organizações independentes.

Trotsky propõe igualmente adiantar a construção e a proclamação da IV Internacional, recusando esperar mais na expectativa de hipotéticos reforços. No final do ano 1935, a luta pela nova Internacional tropeçava em novas dificuldades. A secção francesa e a secção americana dividiam-se sobre a questão do entrismo. Em Moscovo, abria-se o ciclo dos processos. "O vento sopra a partir de agora contra nós", constatava Trotsky. Prevendo que a dialéctica das derrotas conduzia directamente à guerra, ele considerava que não havia mais tempo a perder. Em Julho de 1936, a Conferência do "Movimento pela IV Internacional" reunia organizações de 9 países. Uma vintena de outros não tinham podido enviar delegados. Por razões obscuras, a conferência não proclama ainda a IV Internacional.

É apenas em Setembro de 1938, após as grandes purgas estalinistas na URSS, com a derrota consumada na Espanha e na França, que tem lugar na região parisiense a Conferência constitutiva. Ela adopta o documento conhecido como o Programa de Transição, bem como os estatutos que definiam a nova Internacional como "partido mundial da revolução socialista". Apenas três vozes, entre os delegados, se levantam contra esta decisão. O polaco Hersch Mendel-Stockfish é o seu principal porta-voz. Ele lembra que Marx, Engels e Lenine evitaram fundar a I, a II ou a III internacionais em períodos de refluxo; esperaram, para o fazer, por um recrudescimento impetuoso das lutas; ora, não existe em 1938 nenhum partido de massas ao qual encostar a nova Internacional; proclamá-la a contra-corrente arriscaria condená-la a uma vida grupuscular vegetativa e comprometer a ideia por muito tempo.

Trotsky está bem consciente de que as condições de criação da IV Internacional são absolutamente inéditas e particularmente difíceis: trata-se de uma Internacional minoritária, sem nenhuma secção de massas, que ele qualifica como uma "Internacional de quadros", encarregue, antes de mais, de transmitir uma herança e de preparar o futuro; ela nascia de uma série de derrotas do proletariado mundial, das quais a contra-revolução burocrática na URSS não era a menor; constituía-se num contexto em que o movimento operário não desenvolve as suas primeiras experiências, mas se encontra solidamente enquadrado, em numerosos países-chave, pelos aparelhos sociais-democratas e estalinistas, que se alimentam mutuamente; a corrente estalinista internacional dispõe ainda, com a existência de uma "pátria do socialismo", ainda que "burocraticamente degenerada", de uma base material específica.

Nestas condições, "a linha recta não é lá muito possível". Será então necessário encontrar os pontos de apoio para passar dessa Internacional minoritária à construção de uma nova Internacional de massas. Trotsky escreveu então ao socialista de esquerda Marceau Pivert:

"Os bolcheviques-leninistas consideram-se como uma fracção da Internacional em construção. Estão prontos para trabalhar de mãos dadas com as outras fracções realmente revolucionárias."

Esta experiência dos anos de formação da IV Internacional levanta várias questões.

  1. As recomendações de Trotsky durante os anos 30, abraçam no período seguinte as flutuações de uma situação instável. Para seguir apenas o exemplo francês, registamos entre 1932 e 1939 não menos do que cinco viragens tácticas: em 1932, ficar no Partido Comunista para aí reconstruir uma oposição de esquerda na perspectiva da rectificação da IC; em 1933, constituir uma organização independente; em 1934, entrar no Partido Socialista, antecipando o aparecimento de correntes de esquerda no seu seio; em 1935, sair para construir uma organização independente, face à unidade burocrática entre aparelhos social-democratas e estalinistas; em 1939, unir-se ao PSOP (Partido Socialista Operárioe Camponês), de Marceau Pivert, que acaba de se desligar da social-democracia. Esta flexibilidade política está nos antípodas do dogmatismo rígido que alguns imaginam. Organi-zacionalmente, ela impõe uma ginástica de viragens bruscas, inteligente mas destrutiva: cada novo curso provoca divisões e, muitas vezes, cisões, de forma que as perdas anulam os ganhos.
  2. Seguindo um raciocínio análogo ao dos delegados hostis, em 1938, à proclamação de uma nova Internacional, esta proclamação foi muitas vezes julgada prematura. Trotsky pensava provavelmente que a burocracia do Kremlin não sobreviveria às provas da guerra, e que a própria guerra desembocaria num período de turbulências revolucionárias e de recomposições políticas, comparável àquele que se seguiu à Primeira Guerra Mundial. No entanto, é falso que a IV Internacional tenha sido fundada sobre um tal prognóstico. A necessidade de lhe lançar as bases decorria, pelo contrário, das relações entre as classes à escala internacional, das tarefas impostas pela situação mundial, da crise das direcções do movimento operário na véspera da guerra. Podemos contestar esta escolha, mas ainda assim é necessário compreender a sua lógica: a necessidade de uma Internacional, mesmo minoritária, para enfrentar a degenerescência chauvinista das grandes organizações operárias não se baseava numa predição adivinhatória. Para Trotsky, esta escolha permitia preparar os diferentes desfechos possíveis da guerra.

Durante estes anos de formação da IV Internacional, os seus textos estão impregnados de impaciência e de brutalidade relativamente aos seus próximos, como Andreu Nin ou Victor Serge. Estas polémicas excessivas deram por vezes o tom para debates posteriores e alimentaram a tendência dos movimentos trotskistas para se destroçarem com base em processos de intenção. Numerosos elementos permitem compreender estes maus caminhos, sem no entanto os justificarem.

A exasperação é proporcional à gravidade dos resultados. De derrota em derrota, a marcha para a guerra torna-se inelutável. Trotsky antevê os perigos que o fascismo faz pesar sobre a Europa; ele conhece a amplitude da reacção burocrática na União Soviética; ele compreende que a guerra vindoura será ainda pior para a humanidade do que a de 1914-18. A alternativa "socialismo ou barbárie" já não é uma alternativa histórica longínqua, mas sim uma questão imediata. Apesar das proclamações confiantes no futuro da humanidade, transparecia então uma desesperança perante cada ocasião falhada e face à vertiginosa espiral das derrotas.

  1. Este combate desenrola-se num contexto em que as tragédias pessoais se acumulam e se entrelaçam na grande tragédia histórica. Trotsky está sem notícias do seu filho Serguei e do seu genro Platon Volkov, desaparecidos nas purgas. A sua filha Zina suicidou-se na Alemanha, em 1933. O seu filho primogénito e mais próximo colaborador, Léon Sedov, morre em Paris em 1938, em circunstâncias controversas. Desaparecimentos e assassinatos multiplicam-se entre os seus partidários: Ignace Reiss na Suiça, Rudolf Klement em Paris, Nin em Alcalá de Henares, Christian Racovski na Rússia. Condenado a errar num "planeta sem visto", ele próprio está exilado, de Alma Ata a Prinkipo, passa dois anos em França e vários meses sinistros na Noruega, antes de partir para o México, onde chega em Fevereiro de 1937. Acabados de desembarcar, esperando começar de novo num novo país, Trotsky e a sua companheira Natália são apanhados pela história, com as notícias do segundo processo de Moscovo: "o aparelho totalitário envenenou os acusados de mentiras, antes de os esmagar." É uma destruição minuciosa de todas as fibras da alma, "um processo de autómatos, não de seres humanos", diz então Trotsky, um teatro de sombras onde "o acusado já não existe enquanto pessoa".
  2. O combate contra as mentiras dos processos de Moscovo e contra os crimes de Estaline não é um último combate de honra para a história. Nas suas memórias, o chefe da Orquestra Vermelha, Léopold Trepper, rendeu-lhes homenagem: "Apenas os trotskistas não confessavam." De Outubro de 1936 a Março de 1937, eles organizam uma greve de fome de 132 dias no campo de Vorkouta, pela limitação a 8 horas do horário de trabalho, pela supressão das rações em função da produtividade, pela separação dos deportados políticos dos de delito comum, pela auto-organização dos detidos.

Para resistir à máquina totalitária, era não apenas necessária a força do carácter, mas uma compreensão profunda desse movimento ilógico da história da humanidade e uma convicção política a toda a prova.

Daí a importância atribuída por Trotsky à constituição de uma comissão de inquérito, perante a qual ele se compromete a abrir os seus arquivos e a desmontar ponto por ponto a encenação judicial dos procuradores de Moscovo. Chamados a participar nessa comissão de inquérito, numerosos intelectuais recusam-se sob o pretexto casuístico de que é impossível provar o "negativo". Em contrapartida, o filósofo e lógico John Dewey, considerando tratar-se "dos princípios fundamentais de verdade e de justiça", aceita presidir à comissão: "aceitei as responsabilidades desta presidência, porque recusando-as teria perdido a obra da minha vida." Dewey está fascinado por esse banido que presidiu aos sovietes e conduziu o Exército Vermelho, agora quase sozinho à frente de uma Internacional minúscula e de partidos anões: há nele "um não sei o quê de inacabado que junta o infortúnio à virtude".

Em filigrana de um argumentário factual cerrado, os depoimentos de Trotsky perante a comissão estão enriquecidos de uma reflexão sobre a história:

"A humanidade ainda não conseguiu racionalizar a sua história. É um facto. Não conseguimos racionalizar os nossos corpos e os nossos espíritos. A psicanálise tenta ensinar-nos a harmonizá-los. Sem grande sucesso, até ao presente. A questão não é de saber se podemos esperar a perfeição absoluta da sociedade. Após cada grande passo em frente, a humanidade faz um desvio, e mesmo um grande passo atrás. Lamento-o, mas não sou responsável [risos]. Mesmo após a revolução mundial, é bem possível que a humanidade esteja muito cansada. Para uma parte dos homens e dos povos, uma nova religião pode mesmo surgir, mas um grande passo não terá ficado por dar."

Este combate solitário num jardim perdido dos subúrbios da cidade do México, é talvez o mais importante a seus olhos. Outubro podia ter tido lugar sem ele, talvez mesmo sem Lenine, já que, enquanto a história avança na boa direcção, ela encontra os homens de quem tem necessidade. É na derrota que nos tornamos insubstituíveis. Nos ventos contrários, os justos tornam-se raros.

Perante a comissão Dewey, trata-se nem mais nem menos do que de desmascarar a impostura antes que o mito cobrisse a história. Em Dezembro de 1937, a comissão entrega as suas conclusões, suportadas por um dossier de 600 páginas: "(...) Ponto 21. Concluímos que os processos de Moscovo foram uma falsificação (...) Ponto 23. Declaramos portanto Trotsky e Sedov não culpados." Ao receber este relatório, Trotsky exclamava: "Duas linhas! Mas duas linhas de peso na biblioteca da humanidade." Elas receberiam, realmente, depois, uma larga confirmação dos arquivos.


Notas:

(1) Anexação da Áustria como província do Reich. (retornar ao texto)

Este texto foi uma colaboração
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Inclusão 24/03/2010
Última alteração 14/04/2014