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Voltemos ainda à vasta e crucial questão das direcções. Os estatutos aprovados no XXVIII Congresso do PCF gratificam-nas, já o lembrámos, com um papel "fundamental", "indispensável", "decisivo", consistindo nomeadamente em "mobilizar ... a combatividade", "encorajar a intervenção" dos comunistas e, em geral, "impulsionar" o trabalho. Através desta representação motriz das direcções revela-se, quer se queira quer não, a ideia de uma certa passividade espontânea dos aderentes, que seria constantemente necessário estimular, levar à iniciativa, motivar para intervirem. Estranha ideia, que me leva irresistivelmente a pensar nessa tão tenaz visão da relação pedagógica segundo a qual o professor tentaria penosamente dinamizar um aluno por essência demasiado inerte. Ora, de quem é a culpa se o ensinado não é suficientemente animado pela alegria de aprender e fazer? Sou daqueles que desde sempre consideraram, para o dizer de um modo algo simplificador mas violentamente verdadeiro no essencial, que o fracasso escolar é não do aluno mas da escola. E se a necessidade de direcções "que impulsionem" o trabalho comunista traduzisse um certo fracasso não do militante mas do partido? Não conheço decisão existencial mais dinâmica por natureza do que a da mulher ou do homem que, contra tudo e contra todos, se toma comunista para participar em nada menos que a transformação de um mundo. E esta comunista e este comunista, uma vez no partido, precisariam que a sua combatividade aí fosse mobilizada, a sua intervenção encorajada, o seu trabalho político impulsionado por direcções especialmente encarregadas disso? Quem poderá não ver a profunda enormidade disto? Não há aqui uma inversão onde se revela toda a essência do centralismo autocrático, que à aspiração recalcada da base opõe demasiadas vezes a directiva compulsiva do topo, não sem deparar em mais de um caso, claro está, com uma certa surda resistência? Olhando melhor, quem é activo, quem é passivo? Assim, quando se acabou por sentir toda a necessidade de subverter e erradicar o centralismo autocrático, quer dizer, o estalinismo vulgar incessantemente revigorado pela alienação política dominante - e que é simplesmente aquilo de que o PCF estava a morrer -, não vimos nós as coisas inverterem-se mais uma vez de maneira bem edificante? Toda a minha pequena experiência desde 1984, e comigo a de muitos outros comunistas, e a de quantos antes de mim (?), é a de que foi necessário travar uma terrível batalha para mobilizar a fraca aptidão autocrítica da direcção, para encorajar a sua difícil tomada de consciência sobre o que já não podia continuar assim, para impulsionar cada uma das mudanças que ela sempre acabou por só consentir mesmo no fim. Esta história real deverá ser contada sem cosmética: a sua rudeza é muito pouco conhecida. Na sua Crítica do Programa de Gotha, Marx tem esta magnífica frase que destrói com um só golpe a ideia de Lassalle de uma "educação do povo pelo Estado": "É, bem pelo contrário, o Estado que precisa de ser educado de maneira rude pelo povo". Sendo aliás as coisas pouco comparáveis, eu não estaria longe de considerar que o avanço para uma força comunista digna desse nome se medirá pelo grau de definhamento das direcções. Porque, em resumo, de que necessita para se organizar eficazmente a multiplicidade de iniciativas que, em todos os estaleiros da transformação social, uma força comunista revivescente tem por vocação libertar? Para isso são necessárias não decisões verticais de direcções que digam o que deve ser feito mas sim intervenções horizontais de coordenações que ajudem a fazê-lo. Reunir a informação sobre a actividade comunista, centralizar as experiências e as questões que delas decorrem, proceder ao aprofundamento crítico que estas reclamam, transmitir a todos os resultados provisórios deste último, tomar as iniciativas de segundo grau e as medidas de organização específicas que essas próprias tarefas exigem: este é o papel que, a todos os níveis, do local ao nacional, legitima a existência daquilo a que no PCF hoje se chama comités, papel que podemos com razão afirmar como "fumdamenta1". Mas será ainda necessário fazer prevalecer em todas essas instâncias, contra certas tenazes atitudes de poder, as exigências de uma completa transparência de funcionamento, de uma rotação razoável dos indivíduos, de um lugar de grande importância dado à juventude de ambos os sexos - pensar-se-á quanto baste no facto, por exemplo, de Marx mal ter trinta anos e Engels vinte e oito quando escrevem o Manifesto? Que Maurice Thorez tem também trinta anos quando se torna primeiro responsável do PCF? Que Lenine, amigavelmente chamado "O Velho" no seu partido, tem quarenta e sete anos em 1917, e Trotsky trinta e oito, e Boukharine vinte e nove? O comunismo só será feito pela juventude do mundo.
Mas, se é patente a enorme utilidade de comités assim concebidos, a legitimidade das comissões e dos secretariados, com o tão pesado sentido que Estaline deu a este último termo, não porá um seríssimo problema? Mas não será uma pesada forma de alienação política, obviamente inaceitável numa perspectiva autenticamente comunista, que órgãos de autoridade se elevem, de facto, acima dos comités que devem em principio servir e acabem por estar tão acima que se tornam em todos os aspectos os seus senhores, sob a designação oficialmente negada, mas irrecusável na prática, de direcção? - ainda no início dos anos noventa, um membro da Comissão Política, de que não interessa agora o nome, descuidadamente se desculpava, numa sessão do Comité Central, de comunicar uma informação importante "antes de a dar a conhecer à direcção".
Que por exemplo o Comité Nacional, para desenvolver num espírito inteiramente novo tarefas de coordenação de grande amplitude, deva dispor de órgãos executivos eficazes, é inteiramente compreensível; mas isto é o exacto contrário do seu desapossamento por uma "direcção" omnipotente e incontrolável. Da renúncia ou não a esses instrumentos de poder que são por essência, no seu sentido forte, as Comissões e Secretariados, depende de modo directo, a meu ver, a superação ou não da forma-partido cuja crise actual ameaça a própria sobrevivência do comunismo enquanto corrente política de futuro em França.
Reconheçamo-lo contudo: basta encarar um só instante a ideia de um partido sem Comissão nem Secretariado Nacional, ou mesmo Federal, para que se sinta uma vertigem - principalmente tendo-se alguma experiência daquilo a que se chama "os problemas de Direcção". Reacção cuja análise é das mais instrutivas... de onde vem esta angústia que suscita a simples eventualidade desta supressão? Não será contudo muito claro que isso não seria nenhum obstáculo para o desenvolvimento responsável e coordenado de iniciativas visando a superação do capitalismo em todos os terrenos do movimento social politizado, quer dizer, para aquilo que deve constituir a função primordial de uma força comunista? Sem dúvida, mas acontece que em compensação este desaparecimento surge à primeira vista como impeditivo radical para o cumprimento da função secundária que consiste em intervir nos locais clássicos da política dominante - e nada poderia ser mais revelador em relação ao que, no cerne da forma-partido, impõe com tanta força a existência das Comissões e dos Secretariados, do mesmo modo que a dos Dirigentes, a começar pelo primeiro dentre eles. Tomar rapidamente posição sobre uma grande questão de actualidade, decidir a estratégia de uma grande batalha eleitoral, realizar uma negociação cimeira a nível nacional ou internacional... Sendo as coisas o que são, assumir tarefas deste tipo não nos confronta com categóricos imperativos organizacionais em que se exprime a própria essência da política profissionalizada? É que há necessidade de poder decidir só ou com um pequeno colectivo, de ter os meios de comprometer o partido, de estar seguro de uma certa permanência no cargo e assim sucessivamente, em resumo, ser dos que detêm o poder. Aqui está o fundo da questão: as direcções não são de modo algum necessárias na actividade que tem como finalidade directa a superação de uma qualquer alienação, incluindo a alienação política, mas sim naquela que visa conquistar poder, e mesmo o poder, onde têm precisamente a sua fonte esta alienação política e a forma-partido que lhe corresponde. Salta à vista a ligação fundamental entre formas da organização e conteúdo da política. Assim, quando um partido comunista limita de facto o essencial da sua actividade a intervir no campo político institucional - porque crê dever fazer depender qualquer transformação social realmente séria de uma prévia conquista do poder ou porque, tendo-o conquistado, começa a geri-lo como um capital em vez de se esforçar por fazê-lo definhar - vemos operar-se nele a irresistível ascensão do centralismo autocrático, que o mesmo é dizer-se vemos o seu modo de vida render-se às exigências de uma política de essência burguesa. Não será necessário ter a coragem intelectual de reconhecer que, por entre tantas lutas anticapitalistas meritórias, foi efectivamente o que, sem grandes alardes, aconteceu ao PCF? E que só isto permite compreender que a sua imagem se tenha desastrosamente transformado na de "um partido como os outros"? Desde há anos, quantas células têm ainda, fora das campanhas eleitorais, verdadeiras actividades públicas? Quando assim é, ocorre o inevitável domínio da política delegatária e da organização vertical.
Para escapar a esta lógica implacável, será necessário abjurar toda e qualquer pretensão a aceder a qualquer poder? Será mesmo necessário recusar-se a participar em quaisquer eleições e, como Alceste, refugiar-se no deserto? O comunismo não é uma escola de deserção. Há pois que ousar fazer frente ao antagonismo, inultrapassável no actual estado da coisa política, entre essas duas lógicas organizacionais: a verticalidade de poder e a horizontalidade de auto-organização, solidárias de dois modos profundamente diferentes de fazer política. Aqui reside toda a dificuldade em superar a actual forma-partido, não no simples discurso mas na realidade. Poderá talvez o facto de "ainda aceitar a filosofia" ser de molde a ajudar? A sorte de qualquer contradição antagónica é uma questão de dominação: qual dos contrários imporá a sua lógica ao outro? No estalinismo vulgar é a verticalidade do poder que domina sem partilha; ao ponto de tratar qualquer horizontalidade como delinquência fraccionista. Pelo contrário, avançar para uma forma-partido feita essencialmente, na sua própria auto-superação, para produzir emancipação radical, sem tardar e sem reservas, isso exige que se consiga uma total inversão da dominação: a auto-organização responsável deve ir fazendo desaparecer o poder discricionário. Coisa que passa sem dúvida por uma atenta separação das funções que o centralismo autocrático tem por regra confundir: responsabilidade interna na actividade do partido, responsabilidade externa no campo da política institucional, devendo a segunda ser garantida por responsáveis com delegação, por comissões especializadas que trabalhem com toda a representatividade e autonomia desejáveis, sob a autoridade do Comité Nacional. O objectivo é acabar com a deletéria "acumulação de poderes" que se concretiza na existência de comissões, secretariados e "altos dirigentes", mas sem contudo prejudicar a eficácia do trabalho e até talvez incitando a inventar um novo estilo comunista de intervenção na própria política institucional. Assim, porta-vozes nacionais podem, como convém, fazer ouvir a voz dos comunistas; e isto com toda a necessária latitude de improvisação e sem que a sua audiência mediática vá de par com um poder estatutário sobre o partido. É num espírito análogo que seria necessário resolver o mais crucial e mais emblemático dos problemas de direcção: o do "Primeiro-Secretário". Função cuja pesada conotação histórica certamente não ajuda nem a deixar definitivamente o passado para trás nem a apreender de modo congruente o presente. Já que a função deixaria de condensar, numa personalização extrema, todos os poderes de um aparelho e seria, de modo bem diferente, a de primeiro - ou primeira - inter pares a presidir, com outros e por um prazo razoável, ao trabalho do Comité Nacional, na sua função de coordenação geral das actividades do partido, não resumiria esta metamorfose o advento de uma força comunista da qual se pudesse realmente dizer que é "de nova geração"?
Modificar completamente a dinâmica das actividades comunistas, de maneira a que nelas esteja sempre em primeiro plano a iniciativa de superação directa de todas as grandes alienações históricas; em directa conexão com esta decisiva mutação de conteúdo, fazer da célula, ousadamente redesenhada, o actor responsável, competente e inventivo dessa política, primeiro elo de grandes redes de revolucionamento social; reconverter, sem tibieza, todos os poderes de direcção em meios de coordenação ao serviço quer da intervenção no terreno quer do seu desenvolvimento meditado; inaugurar assim uma nova aliança entre uma renovada exigência de aprofundamento teórico e a inventividade juvenil na iniciativa prática: eis, em poucas palavras, como se me afigura, à luz da análise aqui feita, a configuração geral de uma superação da actual forma-partído do PCF, susceptível de abrir um novo futuro para o comunismo em França, e talvez noutros lugares.
[pgs 199_206. Começar pelos Fins - a nova questão Comunista; Lucien Séve; Campo das Letras Editores, S.A, 2001. www.campo-letras.pt. campo.letras@mail.telepac.pt]