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Primeira Edição: Revista Inprecor numero 146, março 1983
Fonte: Ernest Mandel Archives Internet
Tradução e Transcrição: Eduardo
Velhinho.
HTML de: Fernando A. S. Araújo,
janeiro 2006.
Direitos de Reprodução: A cópia ou distribuição deste documento é livre e indefinidamente garantida nos termos da GNU Free Documentation License.
A situação do marxismo no mundo contemporâneo é marcado por um estranho paradoxo. A influência do pensamento de Karl Marx sobre a realidade social atual parece mais forte do que nunca. Nunca se consagrou tantos colóquios, congressos acadêmicos, livros, artigos de revistas e jornais por ocasião do centenário da sua morte (nascido em Treves em 1818, Karl Marx faleceu em Grã-Bretanha no dia 14 de março de 1983). Nunca tantos chefes de Estado e de governo, de partidos de massas por esse mundo fora, pretenderam se inspirar na sua obra. Mas, ao mesmo tempo, nunca se discursou sobre a "crise do marxismo", seja sobre o seu "declínio irreversível" e sobre a sua "morte".
O marxismo sendo a unidade de dois movimento, um teórico, outro prático, é portanto em relação a esses dois aspectos que é necessário se esforçar em precisar sua atualidade. Por um lado, possui um aspecto rigorosamente científico, respeitando todas as leis inerentes a esse tipo de pesquisa. Marx sempre foi um sábio que desprezou aqueles que escondiam ou falsificavam os fatos ou resultados de investigação, sob qualquer pretexto, incluindo o de "não desesperar Billancourt", quer dizer, de não desencorajar a classe operária. Ele perseguiu esta atividade científica, nomeadamente por que ele estava convencido que só a verdade era revolucionária, que nenhuma luta proletária não atingiria seu objetivo – a construção de uma sociedade sem classes à escala mundial – se ela não fosse constantemente esclarecida pelos resultados de uma análise rigorosa da realidade e da sua evolução.
Por um lado, o marxismo tem uma dimensão emancipadora não menos rigorosa e exigente. Até Karl Marx, a filosofia se contentou de interpretar o mundo. Para Marx, se tratava de o transformar, e isso num objetivo preciso: suprimir, pela actividade revolucionária, todas as condições sociais que fazem do ser humano um ser escravo, miserável, mutilado, oprimido, explorado, alienado; criar uma sociedade na qual o livre desenvolvimento de cada indivíduo se torna a condição do desenvolvimento livre de todos. Até ao seu último sopro de vida, Marx sempre foi fiel a esse objetivo.
Esses dois objetivos do marxismo, a explicação científica do futuro social em sua totalidade e a realização do projeto emancipador mais radical que alguma vez foi concebido, são de uma audácia tal que a principal admoestação que foi dirigida a Marx, e que lhe é dirigida ainda nos dias de hoje, é de ter sido o último dos utopistas: um desígnio de tal forma vasto não poderia se realizar. Os que acreditam no céu acrescentam que ele teria cometido o pecado, que ele teria fundado uma "religião do homem" – o que é totalmente falso, visto que o caráter fundamentalmente crítico e em permanência autocrítico da sua doutrina – sem o apoio de uma providência divina, e querendo fazer bem, ele teria finalmente provocado demasiado mal.
Apostemos que a humanidade laboriosa, que sofre e que combate para se libertar das suas correntes, não partilha esse julgamento séptico, resignado e cínico. Aceitar suas correntes sob o pretexto que não se sabe se alguma vez se poderá se desembaraçar completamente, afirmar que vale mais dar um pouco de pomada sob os ferros em vez de limar e de os jogar fora, isso não satisfaz aqueles e aquelas acorrentados que preferem se levantar contra a escravidão. Enquanto houver humanidade, esta categoria de revolucionários nunca desaparecerá. Cem anos após a morte de Marx, qual é o balanço que se pode tirar dos dois aspectos do marxismo?
O primeiro aspecto – o da capacidade de análise e de previsão científico – é particularmente positivo. Se comparar-mos o mundo de 1883, ao de 1983, se nos questionarmos se as transformações principais que se produziram são aquelas previstas por Marx e se elas resultam da natureza da sociedade burguesa e das contradições que a rasgam, tais que ele nos ensinou a conhecer, a resposta só pode ser "sim", sem nenhum "mas" importante.
Marx compreendeu, melhor que qualquer sábio ou moralista do seu tempo, a dinâmica grandiosa e aterradora das revoluções tecnológicas inerentes ao modo de produção capitalista, em função mesmo da propriedade privada, da economia de mercado, da concorrência e da sede insaciável que resulta da extorsão crescente da mais-valia do trabalho vivo afim de poder acumular sempre mais capital. Dinâmica grandiosa, porque ela contém a promessa de libertar o Trabalho de todo o esforço produtivo cansativo, não criador e alienante, graças à automatização. Dinâmica aterradora, por que ela conduz à transformação periódica das forças produtivas em forças destrutivas que sapam o progresso da humanidade, destroem o ambiente e arriscam a destruição de todo o planeta.
Ele compreendeu que da concorrência brotaria o monopólio, por sua vez submetido a uma concorrência cada vez mais feroz. Os pequenos capitais seriam absorvidos sem piedade ou esmagados pelos grandes. A sociedade burguesa evoluiria em direção de uma estrutura de forma piramidal, fundada sobre uma imensa maioria de salariados, mas se concentrando em cada país em algumas dezenas de firmas e grupos financeiros gigantescos e, à escala internacional, em algumas centenas de multinacionais que ditariam suas leis a todos os Estados burgueses e esmagariam trabalhadores e povos numa máquina infernal que subordina tudo ao imperativo do lucro.
Ele compreendeu que esta mesma máquina iria se avariar periodicamente, que o regime capitalista produziria, em intervalos regulares, crises econômicas e guerras, cujo custo humanitário aumentaria a longo termo ao ponto de se tornar insuportável e mesmo mortal. Hoje, esses apóstolos que pretenderam, durante os anos 50 e 60, que o Capital tinha finalmente exorcizado seus demônios, que ele garantiria o pleno emprego, o crescimento, o aumento do nível de vida e a paz eterna. A grande depressão que atingiu o capitalismo internacional é uma clara confirmação da justeza da análise científica de Karl Marx.
Ele compreendeu que contra esta máquina infernal – quaisquer que sejam as vantagens parciais e temporárias que a humanidade possa aliás retirar – os salariados e semi-salariados iriam se erguer em massa. É dessa luta de classe do Trabalho salariado contra o Capital que devia surgir o potencial necessário para transformar o mundo no sentido da emancipação de todos e todas.
Ele compreendeu que esta luta tomaria primeiro a forma de uma revolta espontânea, sem consciência nítida dos objetivos visados e dos meios para aí chegar. Ela passaria em seguida por um gigantesco esforço de organização, de cooperação e de aprendizagem da solidariedade de classe a todos os níveis. Ela terminaria em revoluções conscientes, inspiradas pela experiência vivida, pelas necessidades objetivas e subjetivas ressentidas como tais, e pelo próprio programa marxista. Constatando as imensas tarefas, essas revoluções passariam inevitavelmente por derrotas parciais ou mesmo completas. O proletariado submeteria suas próprias vitórias e derrotas à crítica impiedosa. Ele voltaria continuamente sobre o que parecia já adquirido, até que o vasto movimento histórico do assenso, do declínio e da ascensão da consciência de classe e da revolução proletária tendo por saída a construção de uma sociedade socialista à escala mundial.
De todas as análises e projeções de Marx, é sem dúvida esta última que é a mais impressionante. Lembremo-nos que no momento da publicação do Manifesto Comunista, em 1948, não havia no mundo inteiro mais que 100 mil sindicalizados e 10 mil socialistas com, no máximo, algumas centenas de comunistas, e isso, apenas em meia dúzia de países. Hoje, não há um país no mundo, nem a mais pequena ilha do Pacífico nem canto mais recuado da floresta equatoriana onde o capitalismo, propulsado pela sua tendência expansionista irresistível, não pudesse estabelecer uma usina, um porto, um botequim, empregando salariados, sem que não tenha surgido sindicatos que reagrupem, à escala mundial, centenas de milhões de aderentes, e cujo desenvolvimento é acompanhado da formação de partidos que se reclamam do socialismo, que contem dezenas de milhões de simpatizantes e de eleitores. Os comunistas se contam por centenas de milhares, de milhões, que se reivindicam da doutrina de Marx.
Onde está a prática marxista?
Qual é, aliás, o balanço do segundo aspecto do marxismo, o da prática? Não é menos impressionante. Mas é também nitidamente mais contraditório. Graças ao estimulo que Karl Marx, Friedrich Engels e seus discípulos trouxera, a luta e a organização operárias contra a burguesia adquiriram uma lucidez que lhes permitiu transformar parcialmente o mundo em um sentido emancipador. Mencionemos entre as principais conquistas: a luta pelo limite do dia de trabalho, que conduziu a semana de 72 horas e mais ao combate pelas 35 horas, que será ganho se o combate não menos escarnido para estender a solidariedade coletiva aos mais explorados e oprimidos: as mulheres, os jovens, os desempregados, os imigrantes, as minorias nacionais, os doentes, os inválidos, os idosos. O esforço para estender esta solidariedade à escala mundial é difícil mas não irrealista, como testemunham os movimentos de solidariedade com as revoluções cubanas, indo-chinesa, centro-americana, que sucederam aos movimentos que apoiaram as revoluções russa e espanhola.
Disso testemunham também os primeiros triunfos de revoluções socialistas, sobretudo inspiradas por Lênin, desde da revolução de Outubro na Rússia até às revoluções iugoslavas, chinesas, cubana e indo-chinesa. Tudo isso faz parte da realidade mundial, mesmo se não se trata de conquistas definitivamente garantidas enquanto subsistir o capitalismo internacional. Podemos afirmar que sem Marx e Engels, o mundo hoje teria sido bem diferente e muito mais desumano do que ele é.
Mas o projeto emancipador no seu conjunto ainda não se realizou em parte alguma. As duas correntes de massas nas quais o movimento operário real se dividiu, a corrente social democrata reformista e a corrente estalinista (a sub-corrente eurocomunista de massa passando gradualmente do segundo ao primeiro) levaram a uma derrota pungente. A social democracia não avançou um milímetro na via da abolição do capitalismo pelas reformas. A crise capitalista atual, com o seu cortejo de desempregados e de misérias, a fome no "terceiro-mundo", a ameaça de extermínio nuclear suspendida sobre o gênero humano, testemunham suficientemente.
Quanto à burocracia estalinista, se ela usurpou na URSS os frutos do esforço revolucionário gigantesco alguma vez realizado por um povo, ela a conduziu a um impasse total. As sociedades saídas de revoluções vitoriosas não chegaram ao socialismo, mas gelaram a meio caminho entre o capitalismo e o socialismo. Além disso, em todo o lado, salvo em Cuba, se exerce a férula de uma ditadura despótica que bloqueia qualquer novo avanço para o socialismo, que submete os trabalhadores à opressão incontestável e que descredita – esses países à escala mundial – o socialismo, o comunismo e o marxismo mais que qualquer propaganda burguesa não conseguiria alguma vez fazer.
Aí, mais que em qualquer outra parte, se encontra a fonte da "crise do marxismo" sobre a qual se perora nos últimos tempos. Não é de uma crise do marxismo que se trata, mas de uma crise da prática do movimento operário burocratizado, da crise das sociedades pós-capitalistas burocratizadas. Essas crises são aliás acompanhadas de um abandono cada vez mais aberto da doutrina marxista pelos dirigentes desses movimentos, o que confirma à sua maneira que Marx não tem nada a ver com isso. Aplicando à análise dessas crises o método e os critérios marxistas, chegamos a quatro conclusões.
Primeiro, seria completamente desapropriado procurar as fontes últimas dessas crises nas idéias de Marx. A maior contribuição de Marx para a compreensão da história das sociedades consiste nisto: em última análise, é a existência social que determina a consciência, e não o inverso. Crer que a capitulação da social democracia diante da primeira guerra imperialista (1914-1918), depois sua ajuda à contra-revolução capitalista; que os crimes de Estaline; que as capitulações paralelas da social democracia e do estalinismo diante Hitler (1933) e a ascensão do fascismo, foram causadas por imperfeições nos textos de Marx, isso frisa o ridículo.
As grandes tragédias do século XX foram a proeza do Capital, e não de Marx. Elas não se podem explicar como resultantes de afrontamentos entre centenas de milhões de seres, de conflitos de interesses materiais das grandes classes sociais ou de frações de classe. As idéias – "boas" ou "más" – jogam certamente um papel nesse contexto, mas não um papel principal.
Em segundo lugar, é desapropriado procurar as razões últimas do aparecimento de Estaline e do desvio das revoluções socialistas vitoriosas na alma eslava, a conquista mongol ou no vicioso sádico sedento de poder adormecido em cada um de nós e que só espera pelas circunstâncias propicias para acordar brutalmente. O segredo do triunfo, como o da degenerescência da revolução russa se encontra, em última análise, na contradição entre a maturidade das condições objetivas da revolução mundial – a crise mundial do capitalismo desde 1914 – por um lado, e a imaturidade das condições objetivas para o socialismo na Rússia e em China, assim que a imaturidade das condições subjetivas para a vitória revolucionária à escala mundial por outro lado. Isso deu, durante um longo período, um curso desigual ao processo da revolução mundial, cujas conseqüências negativas estão longe de estarem eliminadas.
Em seguida, o marxismo confirma sua validade de maneira brilhante pelo fato que ele pôde forjar os instrumentos analíticos refinados para explicar o que se passou com a social democracia e o estalinismo. Mais precisamente, é a crítica marxista da burocracia operária, da ditadura burocrática e da sociedade de transição burocrática que é ao mesmo tempo científica, a mais completa e a mais orientada para as saídas históricas reais. A grande surpresa e o não menos grande furor de toda a reação mundial – do Kremlin a Washington, passando pelo Vaticano e os "dissidentes" reacionários –, uma parte crescente desta crítica marxista da sociedade nos chega aliás dos próprios países do Este. Esse acordar histórico cheio de promessas apenas começa.
Finalmente, um movimento de massa real se desencadeou há trinta anos para ultrapassar nos fatos a crise do "marxismo" estalinista (que não tem nada em comum com o marxismo) ou do "socialismo real" (que não tem nada a ver com o socialismo). Esse movimento, que nós chamamos de revolução política anti-burocrática – e cuja ascensão revolucionária na Polônia em 1980-1981 é até aqui o ponto culminante – Leon Trotski e a IVa Internacional guardarão para sempre o mérito histórico de o ter previsto e preparado. Sua vitória não implica de modo nenhum uma restauração do capitalismo. Ela significará, depois das inevitáveis hesitações, o triunfo da autogestão planificada e democraticamente centralizada, da economia, quer dizer o regime dos "produtores associados", para retomar a formula do próprio Marx. Ela significará, no domínio do Estado, a auto-administração dos trabalhadores na base de uma larga democracia socialista pluralista, quer dizer, o poder dos conselhos dos trabalhadores, o poder dos sovietes, com um principio imediato do definhamento do Estado. Serão os conselhos que governarão, o partido revolucionário indispensável ao seu triunfo se contentando de procurar lhes guiar politicamente, sem nunca se substituir a eles.
O movimento real da emancipação dos proletários dos países capitalistas se compromete periodicamente na mesma via, com inevitáveis altos e baixos, desde da Rússia de 1917, a Alemanha de 1918, a Hungria de 1919, e a Itália de 1920, até à Espanha de 1936, a Itália ainda, de 1948 e de 1968 e 1969, a França de Maio 1968 e Portugal de 1974-1975. A luta de emancipação dos povos dominados retoma pouco a pouco a mesma orientação, sob o peso de uma industrialização parcial e da emergência do proletariado como classe majoritária nesses países.
É portanto nesses três setores da revolução mundial que através de um doloroso nascimento, a história faz seu caminho em direção à única solução positiva à crise da humanidade: o poder dos conselhos de trabalhadores, a Federação socialista mundial, na qual homens e mulheres do nosso planeta tomarão definitivamente a sua própria sorte em mãos, expulsarão para sempre a guerra e meterão fim à exploração do Trabalho e à opressão política.
É nesse sentido que trabalha a IVa Internacional. É com esse objetivo que Karl Marx produziu sua obra titânica. Quando esse movimento histórico conhecerá a sua primeira vitória em país industrialmente avançado, a fofoca sobre a "crise do marxismo" terminará uma vez por todas.
Bruxelas, 14 de março de 1983.
Fonte |
Inclusão | 19/01/2006 |