MIA > Biblioteca > Malina > Novidades
P — Atualmente, na discussão acerca do socialismo, há os que apontam o seu fim e há os que advogam o fim do modelo chamado de “socialismo real”. Como o sr. encara essa questão?
R — Acho que não se pode ter a visão de que o socialismo é algo que se implanta de uma vez e para todo o sempre. Na URSS houve uma revolução, sim, e essa revolução teve avanços, criou uma determinado modelo na sociedade soviética e abriu espaços para a tomada de consciência dos trabalhadores. Evidentemente que esse modelo se esgotou e criou uma série de elementos negativos e incompatíveis com o próprio socialismo. Os debates que hoje se verificam estão muito influenciados pela situação a que se chegou, mas não se trata efetivamente do fim do socialismo, senão do modelo que se chamou de “socialismo real”.
P — Há que pensar em algo diferente, um novo socialismo?
R — Não podemos caminhar pela ótica do socialismo voltado para o próprio umbigo. Nós temos que ver e entender que o mundo em que estamos vivendo é muito diferente e que há mudanças qualitativas que se espelham em todas as áreas, inclusive nas concepções que temos em nossa teoria. Uma das características desse novo mundo é exatamente a existência de uma crise de civilização. Crise essa que, se por uma lado o socialismo não deu respostas satisfatórias, o capitalismo também não está dando: os grandes problemas como a acumulação de riqueza e de miséria, a alienação, a falta de perspectivas de grande parte da sociedade — inclusive nos países mais ricos —, a incapacidade do capitalismo de resolver os problemas estruturais etc. Desta forma, as tarefas que o socialismo se propôs a resolver face à crise capitalista, a grosso modo continuam presentes. A luta na perspectiva socialista é algo ainda vivo. Sua renovação exige que sejamos capazes de enfrentar essas tarefas que se apresentam e que possamos dar respostas aos problemas que o mundo atual coloca. O mundo precisa de um modelo de sociedade que supere o egoísmo implícito no capitalismo, o materialismo vulgar, a alienação do ser humano, a inversão de valores; um modelo que liberte o homem dessa maldição que é o trabalho alienante tal como existe. Hoje em dia existem condições técnicas e científicas que possibilitam a superação disso tudo e, por seu caráter intrínseco, o socialismo pode enfrentar essas questões com muito mais facilidade. Quer dizer, ele está mais habilitado a lutar por soluções mais adequadas, mais justas. Por isso continuamos socialistas. Não para defender o modelo que se esgotou, mas para criar um novo modelo de socialismo.
P — Há os que negam a validade da Revolução de Outubro e há os que dizem que o fracasso do modelo se deveu à ausência de democracia. Como o sr. vê isso?
R — A revolução russa foi uma revolução socialista na medida em que o partido que a dirigiu se propunha construir uma sociedade socialista. As massas que apoiaram a revolução lutavam por paz, pão, terra e liberdade. Apoiar aquele partido era a única alternativa que se apresentava. Na medida em que o partido cumpriu suas promessas ele teve o apoio popular e criou uma camada de pessoas que tinha uma visão de uma sociedade diferente. O que aconteceu posteriormente foi terrível. Se começou a achar que todo mundo que não estava de acordo com o regime era inimigo, e se abriu caminho para um regime de repressão tirânica. A questão do socialismo não pode ser vista apenas ou exclusivamente no terreno econômico. Tem o lado subjetivo, o lado da consciência que deve ser criada, mas não pela força. Qualquer via que seja seguida pura e simplesmente em direção à tomada do poder político, impondo de cima para baixo, não serve. A experiência está aí para provar. A democracia é a única via possível do socialismo. Não há outro caminho, compreendido o socialismo como algo aberto, como algo que vai ser modificado. As mudanças só podem existir com democracia — que é um valor universal — e num Estado de Direito, compreendendo que a sociedade é plural.
P — A proposta de uma nova ordem internacional leva, obviamente, a um novo internacionalismo, que deve abarcar um campo maior de forças políticas. Qual a sua visão disso?
R — Uma das características do mundo novo que estamos vivendo é a existência do que se chama “mundo íntegro”, a partir do momento em que há uma grande quantidade de tarefas que são objeto de soluções que transcendem as fronteiras nacionais e ideológicas. Quando se toma uma medida, por mais local que pareça, freqüentemente tem conseqüências muito mais amplas. Se não formos capazes de compreender isso, nos arriscamos a ter problemas sérios. Tudo isso leva a um novo intemacionalismo e nos faz ver que devemos ser solidários com as lutas progressistas no mundo inteiro, em particular com a luta dos trabalhadores.
P — A guerra fria acabou. Sua lógica estava baseada naquilo que se convencionou chamar de “o equilíbrio do terror”, “império da bipolaridade”. Com a guerra do Golfo Pérsico houve uma discussão sobre o que seria essa nova ordem em termos de correlação de forças. Ou seja, se imperaria a unipolaridade, capitaneada pelos EUA, ou se haveria a possibilidade de uma multipolaridade política, a democratização das relações internacionais. Como o sr. encara essas tendências?
R — O fim da bipolaridade constitue um fator que abre possibilidades concretas de conquista da paz e do desarmamento, mas isto vai depender de como se forjará essa nova ordem mundial, no momento em que entramos numa nova etapa da história mundial, e que está sendo marcada por fortes tensões e contradições. Creio quê essa nova ordem a ser construída deve passar pela adoção de um sistema econômico internacional justo, capaz de solucionar a contradição entre Norte e Sul do mundo. Mas ela deve implicar também a construção de um novo sistema de segurança internacional que não poderá ser como antigamente, mas sim — e isso é fundamental —, na associação e cooperação de diversos países, grandes e pequenos, pobres e ricos, numa rede de mútuas garantias, medidas de confiança, condicionamento recíproco, no diálogo. Ou seja, todos os instrumentos de uma segurança baseada no Direito Internacional.
P — Como encarar a questão do imperialismo hoje?
R — Hoje, nesse mundo íntegro, interdependente e com uma integração econômica, cultural e política cada vez maior, nos impele a crer que não podemos explicar o capitalismo atual com base nas definições feitas por Lênin no início do nosso século. Diante desses novos fenômenos internacionais devemos nos esforçar para compreender as novas contradições, a nova dinâmica, as novas formas de dominação e exploração entre as nações. Tudo isso não quer dizer que hoje, as relações sejam iguais como as do início do século.
P — Falando em termos de Brasil, como o sr. vê uma política de amplas alianças?
R — A questão das alianças amplas decorre de uma avaliação concreta da correlação de forças. As forças unicamente de esquerda, agindo isoladamente, não têm condições de encontrar uma solução para a crise. Só uma frente democrática mais ampla será um instrumento político capaz de enfrentar de maneira mais eficiente a crise que estamos vivendo. Neste particular, nosso partido desenvolveu a idéia de construção em nosso país daquilo que chamamos de bloco democrático e progressista.
P — O que seria esse bloco democrático e progressista?
R — Um bloco político que deve incluir não só as forças de esquerda, mas também todas aquelas forças políticas de claro perfil democrático. Esse bloco não representa só uma aliança partidária que se manifeste em coligações eleitorais ou coalizões de governo, mas a incorporação de diversas entidades representantes dos mais variados movimentos sociais e setores da sociedade civil, tendo como centro de ação a luta pelo avanço da democracia e a promoção de amplas reformas exigidas pela esmagadora maioria do povo brasileiro. Nós vivemos num país de muito riqueza, onde os contrastes são muito grandes. No Brasil, são 70 a 90 milhões de pessoas que vivem inteiramente à margem do processo político e social, e essa gente só tem uma preocupação: sua sobrevivência. O homem que está nessas condições não tem como assumir nenhum elemento de cidadania e isso enfraquece qualquer via democrática. Essa gente acaba sendo freqüentemente uma massa de manobra. Então, a questão de uma política de amplas alianças decorre dessa realidade do Brasil, das tarefas que temos e da necessidade de manter o regime democrático, fundamental para instalarmos uma cultura política democrática em nossa sociedade e que reclama a solução de greves problemas sociais.
P — Pensar numa frente de esquerda apenas, é ir pro gueto?
R — Sim, é ir pro fracasso. Uma frente de esquerda não vai ter condições de resolver o problema brasileiro porque não há consciência suficientemente elaborada para que possa, isoladamente, implementar dentro da estrutura do país de hoje as reformas necessárias. Veja a experiência da Constituinte. Cada vez que a esquerda se uniu e agiu isoladamente, apresentando projetos estreitos, perdeu. Hoje os partidos de esquerda têm que se unir e «apresentar projetos democráticos para que possam ser apoiados por outros partidos fora da esquerda, isto é, pelas forças democráticas. O caráter democrático dessas propostas tem o potencial para atrair gente de fora da esquerda, senão não terá maioria. É necessário ver o que está na ordem do dia. A questão urgente hoje é um projeto democrático e de reformas que tire o país da crise. O governo federal está procurando implementar um projeto neoliberal que, em última instância significa a implantação de um “estado mínimo”, ausente da economia e do atendimento das mazelas sociais que assolam o nosso povo. É tentar recriar a Nação como reflexo da ação única do mercado. Isto é. o mercado, desprovido de política de controle público, que passaria a regular não só a economia mas todas as relações sociais. Por exemplo, a questão da Previdência privada. O projeto neoliberal pretende reduzir a função pública da previdência e facilitar a ação de organismos privados. Acontece que isso vai criar um verdadeiro apartheid social nessas áreas todas. Se vai entregar praticamente toda a assistência médica ao setor privado. E a grande massa? Como é que ela fica? Vai depender de uma previdência cada vez mais fraca, ineficiente e sem recursos para enfrentar o quadro social inó- quo. Temos que derrotar isso. Ê aí que entra a questão de uma política de amplas alianças com as forças democráticas.
P — Na construção do novo socialismo o PCB coloca a exigência de um novo operador político, uma nova forma-partido.
R — Como todo partido, nosso partido é um instrumento de ação política, estruturado com uma filosofia interna correspondente ao projeto político que pretende executar e, como todos os partidos que foram criados na III Internacional o nosso tem uma estrutura criada a partir da experiência da Revolução russa; um partido de quadros, com condições de elaborar uma política cujo processo é dirigido a uma acumulação de forças que lhe permita a tomada do poder político. Acontece que no mundo de hoje há necessidades diferentes, mesmo porque a consciência das massas é também diferente. Não mais se pode ver a questão política apenas do ponto de vista do poder. Visto desse modo não se pode compreender o mundo atual. Vejamos o exemplo do Partido Verde. Ele não pensa em tomar o poder político, mas criar a consciência do verde, desenvolver seu projeto ecológico. Quando falamos numa nova formação partidária não estamos desligados dos processos de renovação porque passa o mundo. E essa mudança não quer dizer que vamos jogar fora a nossa história. Pelo contrário, vamos ter que nos apoiar naquilo que o partido construiu de mais avançado, de mais positivo, naquilo que elaborou em sua experiência. E aqui a questão da democracia e a política de amplas alianças ocupa um papel importantíssimo. O que mata o partido é ele ficar engessado em idéias superadas pela vida. Hoje há que ter uma visão de partido de massa, um partido que tem que enfrentar as novas tarefas da sociedade. Nós não podemos mais pensar em termos de partido único, porque a experiência nos tem mostrado que não é uma boa. Assim, por que havemos de querer um partido único como perspectiva?
P — Há no partido visões diferentes de todo esse processo de mudanças porque ele mesmo passa. Como equacionar isso?
R — Há duas visões que para mim são equivocadas. A primeira diz que o partido deve ficar rigorosamente tal como está. A outra diz que o partido que está aí é absolutamente incapaz de promover sua renovação, continuando a ser o que era. Acho que não é bem assim. A própria vida vai decidir essas coisas.
P — Quer dizer que nessa nova cultura política o marxismo-leninismo será abandonado?
R — Será abandonado como cultura oficial. Isso não significa que será abandonada a herança de Marx, Engels, Lênin e outros teóricos marxistas. A doutrina marxista é um método de análise da realidade, de avaliação dos fatos, é a procura da compreensão do mundo para se poder intervir nele. O marxismo não surge do nada, mas de contribuições que lhe chegam de todas as partes. É algo que se enriquece com a vida, com cada fato novo que surge.
P — Pode-se dizer que na era da informática o conhecimento envelhece rapidamente. A debilidade teórica do PCB se deve ao fato de a cultura comunista ter bebido unicamente da fonte do que se chamou de “marxismo-leninismo”. Essa debilidade do PCB se deve ao fato de não ter procurado incorporar outras contribuições teóricas que se propunham como alternativa a esse arsenal teórico terceiro- internacionalista ?
R — Não só isso. Outros partidos foram formados nessa mesma visão e avançaram em certos elementos da teoria e em muitas coisas.
P — E nós não avançamos?
R — Claro que superamos algumas coisas. Por sermos um partido de Terceiro Mundo não somos dos mais atrasados. Poderíamos ter avançado mais, mas há algo nisso tudo que não pode ser esquecido: somos parte de uma sociedade culturalmente atrasada e o fato de não termos procurado avançar ainda mais foi um fator de atraso. Concordo com a formulação feita anteriormente. Aquilo nos fechou o pensamento.
P — Durante a década de 80 o PCB sofreu uma forte perda de quadros que já naqueles anos diagnosticavam a crise do socialismo real, propunham a democracia como valor universal, bem como a necessidade de o PCB tornar-se um partido laico. Agora o PCB incorpora essa teses. O partido assume esse erro?
R — É preciso ver que ao longo da história do partido sempre existiu um pensamento mais avançado e outro mais atrasado. O partido, durante um período longo sofreu uma perseguição muito grande e o intercâmbio de idéias era muto restrito e não houve possibilidade de se propagar para outras áreas. O nível médio que existia talvez não estivesse em condição de aceitar aquelas idéias. . . . Isto tem muito a ver com o que aconteceu nos anos 80...
P — Reconhecer aquelas idéias é uma forma de autocrítica?
R — O esforço do partido é crescer, incorporar todas as idéias que se revelam ou se revelaram corretas. Essas idéias que num primeiro momento não foram entendidas, frutificaram. Esperamos que aqueles companheiros se juntem à nova luta.
P — É um chamamento?
R — Deve ser compreendido como tal. Todos os espaços estão abertos.
P — O 9.° Congresso fecha ou abre a discussão de todo esse processo?
R — Abre. Uma das características desse novo partido é que ele seja um partido permanentemente aberto à discussão, um partido aberto à luta, de tendências claras e democraticamente envolvido em cada momento. O partido tem que recuperar o atraso teórico, tem que ser capaz de formular políticas sobre uma série de questões que o mundo coloca, questões essas que não temos estudado suficientemente. O 9° Congresso tem que ser o momento de abertura. É esse processo que determinará o caráter do nosso partido.
Inclusão | 02/09/2014 |