Introdução à Política I

Fernando Luso Soares


XIII — Movimento Operário e Socialismo em Portugal


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Há quem enteada que a génese do socialismo em Portugal quase foi só uma aspiração de minorias intelectuais (Joel Serrão, rubrica «socialismo», do «Dicionário da História de Portugal», Iniciativas Editoriais). Salvo o devido respeito, parece-me que o documentário da ideologia socialista não se situa entre nós a um nível exclusivamente teórico.

A história do movimento operário em Portugal terá uma primeira fase que vai de 1838 a 1871, caracterizada dominantemente pelo associativismo mutualista, pelas medidas contra o desemprego, protecção da saúde e da velhice, e ainda pelos projectos de instrução popular e alfabetização. No plano das classes sociais, porém, este movimento assentava numa ideia de colaboração entre elas — isto é, entre o capital e o trabalho. Mas é evidente que semelhante ilusão de uma harmonia possível só pode encontrar explicação em face de ser então exíguo o desenvolvimento das forças produtivas no Portugal dessa época: — o capitalismo não existia de facto, ao tempo, com as suas contradições; a classe operária era extremamente diminuta em número e, mesmo assim, mais artesã do que fabril; e, por último, a concentração industrial situava-se a nível de manifesta incipiência.

Depois dos esforços associativos de 1839, 1843 e 1845, os primeiros meses de 1850 fizeram-se eco do 1848 de França. É quando se inicia a publicação de «O Eco dos Operários», com o engenheiro Sousa Brandão, o publicista Lopes de Mendonça e, mais tarde, ainda Vieira da Silva como outro dos seus responsáveis. Do artigo de apresentação, assinado por Lopes de Mendonça, transcrevo uma passagem que, na época, teria avultado de importância:

— «O que é o trabalho? É tudo. O que é ele hoje? Nada. O que quer ele ser? Alguma coisa. De um lado uma classe emancipada pela vitória, dotada de instrução, de talento, de capitais; de outro lado massas inertes, privadas dos meios intelectuais, desmoralizadas por uma longa tirania, tendo por única aspiração as esperanças mal definidas duma imortalidade envenenada pelos terrores do inferno, e tendo por único recurso os seus braços desfalecidos pelas fadigas e mal cicatrizados ainda das pesadas cadeias que haviam rojado em séculos de opressão. Os resultados eram decisivos, fáceis de prever. A classe armada de instrumentos de trabalho enfeudou ao seu domínio, colectivamente, as turbas laboriosas e pobres. Os progressos da indústria e o crescimento da população fizeram descer o salário até o nível das necessidades restritas e absolutas do homem. Ao feudalismo político sucedeu o feudalismo monetário...»

Em Julho desse mesmo ano de 1850, organiza-se (em Lisboa) a Associação dos Operários. Os seus fins relacionam-se com o pensamento da época e com as necessidades mais prementes. A Associação promove o espírito de solidariedade e o progresso industrial, defende a instituição do crédito e a cooperação e auxílio mútuo na doença e na velhice. E em 1 de Setembro efectua-se a primeira reunião, presentes dezasseis profissões, tendo' sido aprovado um documento que, sem dúvida, traduz, na sua espinha dorsal, o tema federativo:

— «Todos os operários presentes fazem uma lista e na parte superior se escreverá o nome do ofício que exercem, e em seguida 3, 5 ou 7 indivíduos dos que se julgarem mais aptos para serem os delegados das artes ou ofícios; estes indivíduos, para a confecção dos estatutos, formam o grande centro do trabalho; o principal fundamento desta Associação é o relacionamento das classes; os delegados das classes procederão imediatamente ao recenseamento dos indivíduos do seu ofício, quer mestres, quer oficiais ou aprendizes».

Nas mesma reunião foi igualmente comunicado que um grupo de intelectuais (professores, escritores e homens de ciência, geração definida pelas coordenadas do republicanismo, do socialismo inspirado em Blanc e Fourier, e do federalismo ibérico de linha proudhoniana), de que faziam parte José Estevão, Andrade Corvo, Latino Coelho, Sousa Brandão, Lopes de Mendonça e outros, se oferecia para criar cursos gratuitos destinados à classe operária. Manifestava-se o desejo de ser concreto na situação concreta de Portugal. Henriques Nogueira, pelo menos, cujo nome deve ser acrescentado aos anteriores, escrevia em «Estudos Sobre a Reforma de Portugal», 1851, págs. 288, segundo uma afirmação curiosamente própria de um leninismo do futuro, que

«melhor socialismo é o que mais se harmonizar com os costumes e ideias do povo a que é aplicado».

Depois, outras organizações se instituíram, de certo modo já com carácter de classe. Alfaiates, tipógrafos, tecelões, sapateiros e muitos outros, organizam-se por profissões, predominando, porém, em todas as suas associações o já referido objectivo ou desiderato mutualista. E em 1852 é que surge alguma coisa de novo: — a Associação do Trabalho, exclusiva dos operários produtores de seda. Esta é a primeira associação de carácter não mutualista em Portugal. Ela tem por fim «estabelecer o trabalho dos associados do modo mais compatível com as forças do seu cofre, procurando estabelecer uma fábrica destinada aos sócios». Eis aí o cooperativismo a tomar os seus primeiros alentos.

Também em 1852 se organiza em Lisboa, para durar vinte anos, o Centro Promotor dos Melhoramentos das Classes Laboriosas. Mas agora é o Porto que desperta no horizonte do movimento. Em 1853 alguns tipógrafos, logo auxiliados por operários de outros ramos, iniciam a publicação de «A Voz do Operário» e no seu primeiro número interrogam e explicam:

— «Não é tempo de nos emanciparmos?... Não será tempo, finalmente, de conhecermos os nossos direitos e de pugnarmos por eles em um órgão exclusivamente artístico (operário) e dedicado às classes trabalhadoras? É tempo e mais do que tempo».

Em breve organizar-se-iam, na base mutualista, várias outras classes — ourives, sapateiros, tecelões, tipógrafos etc., e com este movimento alentam-se as aspirações, expressas ainda sem firme confiança, tentando sobreviver contra o tom social carregado de um conservadorismo contrário a inovações. É que predomina na época o paternalismo do industrial doméstico, relativo aos seus servidores. E predomina também o internato de oficiais e aprendizes. E o servilismo e a resignação das massas trabalhadoras. Mas o movimento não pára.

Durante dez anos (de 1856 a 1876) publica-se em Lisboa o periódico «A Federação», o qual defenderá com lucidez e rigor o princípio federalista. Entretanto, arranca do Porto a iniciativa de se organizar uma Confederação para se estabelecerem ligações entre todas as associações do país. E em Lisboa promove-se uma Federação local gerada a partir da Associação dos Artistas.

Em «A Federação» publicam-se, por essa época, mas por iniciativas individuais, projectos e bases de estatutos, facto conjunto que revela um espírito de autonomia e cooperação desorbitados já dos moldes puramente mutualistas. As ideias dominantes dos seus promotores, com Capital relevo para Sousa Brandão, intentam a criação de um Banco de Crédito (cuja ideia provinha já da Associação dos Operários, de 1850) a compra de matérias-primas, a fabricação e venda de produtos, a instrução, o socorro no trabalho, a elaboração de um código regulador das condições laborais e dos salários. Tudo isto, enfim, significava uma prática de algum modo revolucionária, contra os processos tradicionais, corporativos, que se instituíam na cúpula da «Casa dos 24», extinta após o advento do liberalismo.

Em 1871, conforme o incremento do capitalismo — cujo processo se iniciara claramente depois da «Regeneração» de Fontes Pereira de Melo e da «política de desenvolvimento dos meios industriais» — o movimento operário português liberta-se da ideia de colaboração de classes. Aflora, nítido, ao limiar da consciência dos trabalhadores, que as suas reivindicações se consumam praticamente pela luta. Eis o reflexo consciencial que agora se faz eco da Comuna de Paris — dessa Comuna que Marx e Engels definem como o primeiro exemplo de ditadura do proletariado, como o esboço de uma primeira experiência comunista no mundo. Este acontecimento reflecte-se no nosso país com impacto considerável, designadamente ao nível dos intelectuais progressistas de Lisboa, provocados já pela Questão Coimbrã, pelo realismo naturalista francês, pelas ideias de Proudhon. Mas o impacto não se verifica só a este nível. Alguns sectores laboriais mostram-se politizados e conscientes:— por exemplo, os tipógrafos e os manu- factores de tabaco. E o já aludido Centro Promotor dos Melhoramentos das Classes Laboriosas publica um significativo manifesto onde reflecte o acontecimento comunardo.

Ao mesmo tempo que assim desperta a consciência operária, assusta-se a burguesia. Numa recente entrevista (publicada em «O Expresso», de 7/1/1975) César de Oliveira regista neste sentido:

— «...basta ler «O Crime do Padre Amaro» para ver como a burguesia portuguesa, concentrada à porta da Havaneza e da Agência Havas, em Lisboa, se encontrava atónita e assustada perante a conquista do poder em Paris pelo proletariado, ouvin- do-se em contraponto, de vez em quando, segundo conta o Eça, um «viva o proletariado» no meio do repúdio geral».

Ainda que se pretenda distanciar Antero de Quental do ideário de 1850, a verdade é que as suas coordenadas ideológicas são parelhas das de Lopes de Mendonça ou de Henriques Nogueira: — republicanismo, socialismo, federalismo. E Antero é a figura dianteira do reflexo cultural português, relativamente à Comuna. As Conferências Democráticas do Casino Lisbonense têm lugar quase simultaneamente à insurreição de Paris — e constituem como que a primeira crítica sistemática do capitalismo liberal do nosso país. No entanto, crítica realmente desfazada do seu objecto. As Conferências — observa César de Oliveira — criticam o liberalismo na base da sua destruição, quando este não existia em Portugal como expressão de supremacia das relações capitalistas industriais sobre todo o conjunto da população laboriosa.

Seja como fôr, é de assinalar o afã revolucionário de Antero de Quental, em 1871, enquanto escreve «O que é a Internacional» («Prosas», 1º volume, págs. 176). Aí ele responde que esta é

«a grande, a suprema obra do século XIX: emancipar o trabalho, apagar por uma vez da face da terra a odiosa divisão de classes, fundindo-se todas numa só de trabalhadores livres e iguais, não ricos e pobres, senhores e servos, governantes, e governados, capitalistas e operários, mas todos homens, debaixo do mesmo céu, e em face do mesmo trabalho justo e digno».

Palavras belas, sem dúvida bem intencionadas, mas produto de uma teorização que, no momento, não correspondia às condições concretas das nossas relações de produção. Só nos fins desse século XIX é que virão a tomar vulto em Portugal, como condições insuportavelmente opressivas, as estruturas de um mercado interno, consequência do desenvolvimento da rede de transportes e das restantes forças produtivas, perturbadoras do atraso do movimento capitalista no nosso país.

Em 1872 é criada em Portugal uma secção da Associação Internacional dos Trabalhadores. Do mesmo passo, um núcleo da Aliança Democrática Socialista, de Bakunine. Ao mesmo tempo inicia-se a publicação de «O Pensamento Social», veículo da doutrina da Internacional e da publicação de o «Manifesto Comunista», de Marx e Engels. E todos estes são factores práticos e teóricos que levam o movimento operário português a abandonar o mutualismo. Logo nesse mesmo ano de 1872 têm lugar as primeiras greves com relevância. Verificam-se elas em Lisboa, na metalurgia, em várias tipografias, nas manufacturas de tabaco.

Também ainda em 1872 é criado o organismo que ficou conhecido como Fraternidade Operária. Ele já não constitui uma federação de associações mutualistas. Representa, sim, um núcleo de resistência, se não até de combate à exploração capitalista. E é nesse mesmo ano que Paul Lafargue, genro de Karl Marx, vem a Portural, procurando entre nós a obtenção de votos portugueses para o apoio da facção marxista na Associação Internacional dos Trabalhadores.

Volvidos trinta anos sobre a experiência socializante de Lopes de Mendonça, Antero de Quental escreveu:

— «...independentemente das suas condições pessoais, Lopes de Mendonça não podia ser mais do que uma voz sem eco sério, um generoso diletante revolucionário, um inofensivo precursor» («Prosas», 2.° volume, págs. 303).

Esta reflexão mostra o desfazamento em que viveram e reincidiram os intelectuais socialistas portugueses, relativamente às condições concretas do operariado do nosso país naquela época — por exemplo, um Oliveira Martins. Este, que em 1872 publica a «Teoria do Socialismo» e no ano seguinte «Portugal e o Socialismo», que António Sérgio virá a prefaciar dizendo:

— «Pobre Martins, — grande português, grande vítima! Nasceu numa época que era ainda imatura para que pudesse representar o seu papel magnânimo de curador de chagas sociais do seu povo...»

Mas em Setembro daquele mesmo ano dá-se um facto que vai promover a integração dos trabalhadores portugueses no movimento internacional. O Congresso da Internacional, realizado em Haia, ao mesmo tempo que expulsa Bakunine da Associação, propõe, por intermédio de Marx e de Engels, aliás com o apoio dos votos dos internacionalistas portugueses, a criação de partidos socialistas europeus.

O Partido Socialista (que nada tem a ver com o actual) funda-se no nosso país em 10/1/1875, mercê da agora referida conjuntura internacional. Esta traduz o princípio do internacionalismo proletário, ideologia da solidariedade internacional dos operários e trabalhadores de todos os países, constituindo um dos princípios ideológicos da classe trabalhadora, aliás estabelecido por Marx e Engels no «Manifesto Comunista», por meio da célebre proclamação: — «Proletários de todo o mundo: uni-vos!» Mas traduz, também, o próprio desenvolvimento da classe operária em Portugal. Agora já não respeita a qualquer desfazamento de todo idealista o vaticínio de Antero quanto ao futuro, escrito no mesmo ensaio há pouco citado:

— «A revolução socialista, que se aproxima, não será uma poética mascarada republicana, como a revolução de 1848, mas uma séria tragédia histórica. As classes não se convertem: podem morrer, mas morrem impenitentes. Tal é a lei da História, que é uma dura e impassível lei natural, não uma lei moral, sentimental».

Nada de ilusões, porém!... O operariado português não estava penetrado fundamente de uma ideologia, muito menos do socialismo científico, único que lhe marcará o seu carácter de eficaz vanguarda revolucionária. Sem uma doutrina que lhe permitisse criar e impôr valores próprios, a breve trecho a classe operária do nosso país projectou-se e desdobrou-se em ímpetos libertários, desde a sua sedução pela propaganda republicana (que ela julgou, ingenuamente, ser o caminho da liberdade), até às posteriores atitudes anarquizantes, que lhe expressaram as ânsias do desespero. Na rubrica já atrás citada, Joel Serrão surpreende curiosamente uma clara homologia entre o trajecto pessoal e ideológico de Antero de Quental e a curva histórica daquele velho Partido Socialista. À energia do primeiro arranque seguiu-se, depois, a estabilização e a recessão. O republicanismo vence o socialismo. As energias das classes proletárias vão canalizar-se, não para o seu combate contra os exploradores, mas ao lado da burguesia que procura, com meros fins capitalistas, a extinção da monarquia.

Assim, com a revolução de 1910 aí vemos toda a massa operária a debandar para o campo republicano. A esta debandada se refere, analiticamente, César Nogueira a págs. 181 do 2.° volume da suas «Notas para a História do Socialismo em Portugal», de 1966. Abertos os caminhos da república, debandados os operários da ala socialista, pertenceria a palavra política ao anarquismo e ao sindicalismo. Estes, na verdade, lograriam poderosa audiência popular e operária, muito especialmente porque se manifestavam de forma prática, visível e sensível, através das greves.

A par desta acção prática, revolucionária, do anarquismo, foi-se mantendo (como um espectro ou fantasma) a mentalidade socialista, apanágio das minorias intelectuais. Tão inóquo e ineficaz se mostrava o Partido Socialista que, não obstante ter contrariado o golpe militar de 28 de Maio de 1926, a verdade é que o regime do Estado Novo intencionou manter a sua improcedente existência. Transcrevo da referida entrevista dada por César de Oliveira, ao «Expresso», esta síntese que me parece muito adequada à realidade:

— «A razão por que o regime saído do 28 de Maio não destrói de imediato também o Partido Socialista, quer-me parecer que é óbvia: é porque o salazarismo sempre terá pensado, nos anos da sua consolidação, em servir-se eventualmente do Partido Socialista como ponte ideológica de ligação à classe operária, pois sabia-o reformista, fraco e sem implantação (...) E, até 1933, é esta a história do Partido Socialista».

Isto nos dá uma ideia aproximada do carácter marginal da aspiração socializante muito própria do decurso da nossa experiência e da edificação da nossa sociedade burguesa contemporânea. O socialismo português nada significou porque esteve ausente dos quadros do socialismo científico marxista. Os mestres de Antero, e de tantos outros, foram socialistas utópicos, éticos etc., etc., O verdadeiro socialismo só entraria na liça política com a fundação, em 1921, do Partido Comunista Português. Bento Gonçalves, em «Palavras Necessárias a vida proletária em Portugal de 1872 a 1927» (Inova, 1974, pág. 29) faz este reparo:

«Na realidade, o nosso atraso industrial, a ignorância do marxismo e o baixo nível de cultura geral, principalmente dos operários e camponeses, tolhiam o passo ao proletariado para mais largos objectivos políticos».

 


Inclusão 15/12/2014