Grande Estética

György Lukács


Volume 2 – Problemas da mimese
7 – O caminho do sujeito para o reflexo estético
7.3 – Do indivíduo particular à autoconsciência do gênero humano


Nossas investigações sobre a relação sujeito-objeto na alienação e sua retrocaptação indicam a direção na qual é preciso buscar o posicionamento correto e a resposta ao mesmo. Essa direção nos parece determinada pela necessidade de averiguar no produto e no processo do trabalho (relação do sujeito do trabalho com este e com seus resultados) que papel desempenha neles a relação do indivíduo com a espécie, tanto do ponto de vista subjetivo quanto do objetivo. A princípio de nossas considerações sobre o tema que agora nos ocupa aduzimos já importantes manifestações do jovem Marx a respeito. Esses textos de Marx sobre o problema do sujeito colocam acertadamente no centro da relação do sujeito individual com o gênero humano. É sumamente difícil a captação dialética correta dessa relação, cuja breve análise vamos começar a seguir; mas, além disso, é preciso por também aqui antes de tudo o momento objetivo em primeiro lugar de nosso interesse. Marx protesta contra o costume filosófico tradicional que “não soube captar senão a forma de existência humana em geral, como religião ou como história, em seu aspecto geral, abstrato, como política, arte, literatura, etc., como realidade das forças humanas essenciais e como atos humanos genéricos”. Ao mesmo tempo dá uma imagem oposta a esta: “(...) a história da indústria e a indústria como existe objetivamente é um livro aberto das faculdades humanas essenciais, e uma psicologia humana que pode ser apreendida sensorialmente”(1). E Marx protesta que quando se fale do gênero humano em seu devir e em seu ser se recorra a esse protofenômeno como fundamento concreto da compreensão dos fenômenos mais abstratos, e que se expliquem estes mediante aquele (e não ao contrário).

A profunda verdade contida nessas afirmações do jovem Marx ficaram plenamente manifestadas com o posterior desenvolvimento das ciências. Sem ser marxistas e, pelo geral, conhecendo Marx apenas pelo nome, os arqueólogos descobriram muito com as ferramentas e os produtos do trabalho dos tempos pré-históricos e muito importante sobre a evolução real do gênero humano, da espécie humana (e, em minha opinião, o material conseguido se esclarecia ainda mais se houvessem tomado como fundamento o método de Marx). A situação universalmente reconhecida, o fato de que nas ferramentas e nos produtos do trabalho podem compreender-se o estado e a tendência evolutiva de uma sociedade da qual, além disso, nada ou quase nada sabemos, assim como inferir-se as condições de vida e as inter-relações dos homens que viviam nela, o fato de que esses dados podem servir também em formações superiores da convivência humana, como chave para esclarecer inequivocamente os fundamentos e a essência dos complexos que em seu modo ideológico-imediato de manifestação seriam sempre indecifráveis, tem consequências importantes para todo contexto filosófico em geral e para nosso presente problema em particular. Deve aqui sublinhar-se, sobretudo que com isso nos apresenta mais claramente a realidade da espécie, do genérico, assim como a natureza de seu existir, seu caráter essencialmente histórico. Esta afirmação é importante, por um lado, diante do materialismo mecanicista, o qual faz da espécie uma universalidade morta e imóvel; assim critica Marx a seguinte tese de Feuerbach: “A essência humana só pode ser tomada ‘espécie’, como generalidade interior, muda, que liga naturalmente os muitos indivíduos”(2). Na crítica de Marx vai implícita àquelas concepções que concebem o conceito genérico do homem com fidelidade excessiva ao modelo animal.

A muda generalidade de Feuerbach pode encaixar nessa crítica como aproximação à realidade. Marx escreve acerca dessa diferença: “As qualidades particulares das diferentes tribos dentro de uma espécie animal são naturalmente mais pronunciadas que as diferenças de aptidões e atividades dos seres humanos. Mas como os animais não são capazes de estabelecer troca, a diversidade de atributos dos animais da mesma espécie, porém de tribos diferentes, não beneficia qualquer animal individualmente. Os animais são incapazes de combinar as várias qualidades de sua espécie, ou de contribuir para a superioridade e conforto comum da espécie”(3). É interessante lembrar que à mesma época aproximadamente Balzac inferia as mesmas consequências de sua reflexão sobre esses mesmo fatos: “Uma vez descrito o leão, bastou a Buffon um par de linhas para tratar a leoa; por outro lado, na sociedade a mulher não aparece sempre como fêmea do homem. E partindo desse fato mostra as diferenças correspondentes às diversas relações: “A posição social está submetida a azares que a natureza não se permite, pois, aquela resulta da soma da natureza e sociedade. A descrição da espécie social abrange, pois, pelo menos o dobro da descrição das espécies animais, contanto que se atente aos sexos. O fato é que entre os animais tem lugar poucos dramas; jamais se produz confusão entre eles; os animais podem chegar a opor-se, e isso é tudo. É verdade que também os homens se opõem, mas sua inteligência maior o menor dá à sua luta uma complicação muito importante (...). Assim é, por exemplo, evidente que o comerciante se converte às vezes em par de França, e o nobre se some às vezes nas últimas filas da sociedade”(4). Assim, pois, o reconhecimento dos fundamentos biológico-antropológico da espécie no homem nunca deve obscurecer a fundamentação histórico-social de suas categorias particulares.

Por outro lado, o idealismo filosófico fixa o conceito do “universalmente humano” de um modo também inadmissivelmente supra-histórico, atribuindo essa consagração conceitual a determinados traços do homem (nascidos em cada caso das necessidades ideológicas de uma época ou situação histórica e generalizados sem mais delongas) e contrapondo rígida e mecanicamente esses traços às demais propriedades particulares ou estruturas, etc., dos homens. Na arte, aludimos com isto igualmente ao academicismo ou o vanguardismo. É indiferente que este papel metafísico e deformado de critério supremo se atribua a uma versão absolutizada e vulgarizada da “nobre simplicidade e serena grandeza” ou a uma “condition humaine” [condição humana – ndt] existencialista e niilista: nos dois casos a atribuição mostra filosoficamente considerada, a mesma metodologia. O que, em troca, Marx chama espécie (ou gênero, segundo o contexto) é, sobretudo algo em constante mudança histórico-social, algo que nem está isolado, em mortal generalidade, do processo evolutivo nem é uma abstração que se oponha excludentemente à singularidade e a particularidade; o gênero-espécie se encontra subjetiva e objetivamente, e sempre, em pleno processo, nunca é o resultado autoidêntico das interações entre comunidades humanas maiores e menores, mais ou menos naturais ou enormemente organizadas, apenas sempre resultado mutável das mesmas interações, até chegar aos fatos, os pensamentos e os sentimentos, de cada indivíduo, conteúdos espirituais que desembocam todos naquele resultado final modificando-o, construindo-o. Marx acentuou energicamente esta unidade do indivíduo e o ser particular. Assim escreve no curso das reflexões que já citamos em outros contextos: “A vida humana individual e a vida-espécie não são coisas diferentes, conquanto o modo de existência da vida individual seja um modo mais específico ou mais geral da vida-espécie, ou da vida-espécie seja um modo mais específico ou mais geral da vida individual. (..) O homem confirma sua verdadeira vida social, e reproduz sua existência real em pensamento; reciprocamente, a vida-espécie confirma-se na consciência como espécie e existe por si mesma em sua universalidade como ser pensante”(5).

Trata-se neste processo de uma dialética da singularidade e de sua generalização das objetivações da atividade dos indivíduos, sobretudo, pois, no trabalho. Todo produto do trabalho nasce da renda dos indivíduos, mas sua essência se fundamenta em necessidades objetivas da natureza material e social. Se o produto não alcançou um acordo com essas necessidades objetivas, se perde o inteiro processo de trabalho, e no sentido rigoroso não se pode considerar a coisa ou o resultado como um produto do trabalho, mesmo o seja do ponto de vista subjetivo. Por isso, como já indicamos, a arqueologia pode decifrar nos produtos do trabalho das culturas desaparecidas os conteúdos destas, suas formas, sua natureza, sua estrutura, etecetera. Pois os referidos produtos mostram de forma objetivada o decisivo das necessidades sociais objetivamente presentes e do modo de sua satisfação ótima em cada caso. Sua mudança é a melhor bússola para descobrir os caminhos ascendentes dou descendentes, as épocas de refluxo, etc.. dessas culturas. Exceto pelo que faz a sutis matizes, podem se ler nesses produtos os parentescos e as discrepâncias entre essas culturas. Tudo isto nos mostra com outra perspectiva o papel do sujeito – já conhecido por nós – em tais processos de trabalho; se trata de um papel objetivador, que afasta da particularidade do próprio sujeito; as particulares capacidades, propriedades, etc., do sujeito são sempre imprescindíveis para esse processo, às vezes são ademais da maior importância e até podem constituir, em circunstâncias determinadas, os veículos imediatos do progresso, da posterior constituição da espécie; mas, sempre e somente na medida em que se convertam totalmente na objetividade decisiva de cada época, na medida na qual depõem na objetivação dos últimos restos de usa particularidade. E é claro que a ciência, desenvolvida a partir do trabalho, mostra esse caráter com mais intenso acento ainda. A função estimuladora, desencadeadora de empréstimos, que têm as necessidades sociais, e a imperiosa necessidade de captar e representar o Em-si do ser, sua estrutura independente da consciência, com a aproximação mais fiel, se manifesta com firmeza na ciência. Por muito necessário que seja o gênio para o descobrimento de determinadas verdades, estas não conservam nenhum resto daquele; são verdadeiras exatamente em sua objetivação limpa de toda objetividade, e somente com essa condição podem dar vez a um progresso da espécie humana.

Contemplada com a ajuda dessas imagens de contraste, a essência da subjetividade estética aparece com mais clara iluminação. Como em outros complexos entitativos, também pelo que faz à existência como seres específicos a diferença entre o animal e o homem culmina na seguinte oposição: no animal, a espécie tem apenas um ser objetivo, enquanto no homem não somente pode penetrar mais ou menos claramente na consciência, senão que esta própria consciência se converte em um momento cada vez mais essencial do ser objetivo da espécie. Como é natural, o caráter consciente está contido em todas as atividades específicas do homem consideradas até este momento como componente ineliminável delas; mas, como em todos os casos, segundo mostramos, a objetividade tem que atuar expansivamente, abarcando tudo, não pode corresponder em última instância à consciência subjetiva nenhuma importância decisiva; ela é imprescindível para a gênese das formações conformes com o especificamente humano, mas, nisso e com isso se acaba seu papel; estas formações, precisamente em sua objetividade, são portadoras e continuadoras do que chamamos espécie humana. A subjetividade desempenha em troca um papel qualitativamente diverso na ética e na estética. A ética – resumindo para nossas presentes considerações em uma unidade a ética e a moralidade – regula de fato o lado subjetivo da prática humana. E está entendido sem mais delongas que toda ação de caráter ético tem uma intenção dirigida à por a prova e a evolução do gênero humano, independentemente da medida na qual essa referencialidade seja consciente no sujeito ativo de cada caso. Pois, o sentimento do dever ou o cálculo do dever, a virtude e o vício, etc., se tomam – pelas consequências que desencadeiam – entre os pilares do edifício que é a espécie para o homem. Ao virar suas costas desse modo ondas positivas ou negativas, aceleradoras ou desaceleradoras, se aproximam de modo imediato a formações como o direito, o estado, etc., nas quais as lutas internas da humanidade fixam em cada caso uma determinada etapa evolutiva, a qual, mesmo em um sentido mais derivativo, mais mediado, pertence sempre àquelas objetivações que nos possibilitam uma leitura, uma interpretação do que foi e é a espécie humana. Há, desde já, uma diferença relevante inclusive quando, como frequentemente acontece, se dissolvem os limites; mas não é nossa tarefa levar a cabo aqui uma investigação detalhada.

Talvez seja, entretanto, mais clara entre o aspecto espiritual da moral e a espécie como sujeito. No ânimo moral tal está contida, por um lado, uma intenção de generalização – traço essencial que Kant elaborou teoricamente do modo mais carregado –, e, como a tendência a superar a particularidade imediata do sujeito tem forçosamente que se manter dentro do ânimo da subjetividade , é claro que a intenção apontará, com maior ou menor nitidez, ao comum dos ânimos humanos, ao que neles é específico. Por outo lado, o momento essencial, o ponto nodal dessa esfera, a decisão moral, está indissoluvelmente aferrada na personalidade dos indivíduos humanos. Esta polaridade, nunca superável de um modo completo, do individual particular da generalidade específica no sujeito que atua moralmente, dá de si um dos problemas fundamentais da ética. Não podemos atender aqui às diversas soluções que produziu a evolução histórico-social. Sobretudo porque basta plenamente para nossos presentes fins recolher o fato de que tal polaridade domina amplamente com sua tensão a peculiaridade de um âmbito vital tão importante como o é da ação moral.

Não se trata, pois, em nosso tema, de que a subjetividade fique superada na objetividade, como ocorre no trabalho ou na ciência, senão de que a individualidade particular, aproximando-se ao específico, consuma e sofre em si uma generalização, mas tal que, mesmo apaga ou neutraliza pelo menos parcialmente seus traços simplesmente particulares, não perde por isso a peculiaridade real da individualidade, senão que, ao contrário, dá a esta, a sua essência, um reforço, uma intensificação. Esta decisiva peculiaridade estrutural se manifesta frequentemente deformada. No pensamento de Kant, isso ocorre porque converte em uma rígida oposição metafísica entre o Eu empírico e o Eu inteligível; nos eticistas românticos, como o jovem Schleiermacher, ou no dos existencialistas, porque retrocedem diante uma superação dialética do simplesmente particular.

O modo específico aqui mencionado de generalização, esta classe especial de superação da subjetividade, na qual esta – enquanto subjetividade – se ergue a um nível mais alto, deve ter-se sempre em conta se queremos compreender o lado subjetivo da relação entre o indivíduo e a espécie na estética. Vimos já que a situação é na estética mais contraditória que no terreno da prática ética: esta, por sua estrutura, fica centrada no subjetivo, pois inclusive quando o sujeito se sabe responsável pelas consequências de sua ação, este ato da consciência contem claramente uma reabsorção do fato objetivo (com toda sua dialética objetiva) no sujeito ético. Ainda mais: a responsabilidade moral implica para o sujeito o postulado de conhecer o mundo objetivo tal como é. A reprovação – tão frequente e necessária no ato da responsabilidade – “deveria me dar conta desta ou daquela coisa” mostra que até a ética mais extrema da intenção moral não pode se considerar dispensada do dever de conhecer a realidade objetiva tal como ela é. E o que a seguir a ética, por sua tendência, de acordo com os deveres morais, pode aceitar ou recusar a realidade social corretamente conhecida por imposição daqueles imperativos, não é coisa que altere a estrutura geral do comportamento ético.

Mas o sujeito ético enquanto tal sequer nasce sem a correspondente referência objetiva. A transformação cronológica do homem inteiro que faz atual nele uma subjetividade estética, despertando-a do sonho de potencialidade, não pode realizar-se senão na relação viva com a obra de arte, seja em sua orientação a algo em devir – caso do comportamento criador – , seja como recepção do esteticamente conformado com anterioridade. Mas ambos os atos subjetivos, enquanto realizações da subjetividade estética, aparecem como simplesmente derivados: a obra de arte é sua realização adequada, a primeira coisa nascida nesse contexto. Com isso a mimese torna a apresentar-se como protofenômeno da subjetividade estética. Este caráter mimético básico diferencia formações e atos estéticos do comportamento moral do sujeito; neste comportamento, o reflexo correto da realidade é o meio de uma prática ética, enquanto que o estético a inteira prática humana, incluída, naturalmente, a moral, se converte em simples matéria, ou, no máximo em um dos elementos formais da mimese.

Deste ponto de vista é preciso contemplar a real ação da subjetividade estética com a consciência da espécie. Essa relação se diferencia de todas as estudadas até agora pelo fato de que não intervém imediatamente, nem tampouco objetivamente, no desenvolvimento e a posterior conformação da própria espécie, senão única e exclusivamente na evolução da consciência da espécie. O que em outras áreas penetra na consciência episodicamente, isto é, que todo o que constitui a humanidade – o conhecimento, a utilização, o aproveitamento da natureza, o desenvolvimento das relações entre os homens, à evolução superior e humanização do homem – é produto dos próprios homens, se põe aqui com evidência imediata no centro da atenção possível. Como em todos nossos estudos precedentes, importa mais aqui a própria coisa que seus reflexos conscientes imediatos, os quais, como vimos, podem ser falsos sem que com isso se destruam os fatos fundamentais. A própria coisa a que nos referimos é no caso agora tratado a específica unidade dialética, isto é, a unidade da unidade e da diversidade, como diria Hegel, a unidade da unidade e da diversidade da subjetividade individual e da espécie. Seja pelo que faz a própria vida protesta Marx contra uma oposição separadora do indivíduo e a espécie: “A vida humana individual e a vida-espécie não são coisas diferentes, conquanto o modo de existência da vida individual seja uma modo mais específico ou mais geral da vida-espécie, ou da vida-espécie seja um modo mais específico ou mais geral da vida individual”(6). Disso se segue que também na vida cotidiana esta dialética está ditada pelo conteúdo concreto: o conteúdo dos fatos, os pensamentos, os sentimentos, etc., do homem em cada caso, em cada situação determinada histórico-social decide sobre se estas componentes da unidade contraditória vão tomar direções convergentes ou divergentes, e qual delas se converterá em momento abrangente. Vimos que o simples fato da intenção moral contem uma orientação ao específico do homem. O específico da subjetividade estética consiste em que essa intenção não se realiza somente primariamente no sujeito, senão que, além disso, aparece objetivada como um “mundo”. Tudo o que constitui esse mundo, tudo o que aparece nesse mundo, tudo o que está em relação direta ou indireta com ele tem de possuir uma profunda e objetiva sensibilidade (que determina formal e materialmente toda objetividade), a qual, entretanto, está sempre e em todo caso aferrada no próprio homem. É claro que o sujeito de tal “mundo” não pode ser de nenhuma maneira o indivíduo em sua particularidade imediata. Sem dúvida o indivíduo projeta constantemente, já na vida cotidiana, imagens de tais “mundos”; que se pense no despertar diurno, etc. Mas essa imaginação, de todo homem normal da cotidianidade, se caracteriza como puramente subjetiva de um modo explícito, e a atribuir-lhe a partir do sujeito uma objetividade é já abeirar-se do patológico. Ernst Bloch analisou com maior cuidado esses sonhos diurnos, e ao distinguir exatamente entre os desejos assim originados e os normais apetites traçou, de outro ponto de vista, a mesma divisão que acabamos de estabelecer para nós: o desejo imaginativo permanece integralmente dentro do sujeito particular, enquanto que o sujeito se orienta a uma ação na realidade objetiva, ou seja, que a independência dos atos em relação ao sujeito fica posta igualmente, com maior ou menor consciência e de modos diferentes. Bloch escreve: “A exigência do desejo aumenta com a representação do melhor, e ainda mais do perfeito, de seu algo compatível (...) Onde há representação de algo melhor, e sem dúvida ao final de algo perfeito, aparece o desejo, às vezes impaciente e exigente. A simples representação se torna imagem desejável, com o rótulo: ‘Assim deveria ser’. Mas em todo este desejo, por mais ardente que seja, se distingue com sua natureza passiva, parente da saudade, da autêntica ‘vontade’. No desejo não há trabalho nem atividade; todo querer é, por outro lado, um querer fazer. Pode se desejar que amanhã faça bom tempo, mesmo que nada se possa fazer por isso. Os desejos podem ser inclusive irrazoáveis, podem ter objetivo que o morto X ou Y continue vivo; e pode ter sentido o desejar isso, embora seja um absurdo o querer. Por isso continua vivo o desejo quando a vontade nada possa fazer. O arrependido deseja não haver realizado sua ação, mas não pode querer isso. E o desanimado, o vacilante, o frequentemente decepcionado, o fraco de vontade, todos têm desejos, inclusive intensos, que não os move a um querer fazer. Além disso, é possível desejar coisas diferentes a querer uma coisa; o que quer, portanto, já escolheu, sabe o que prefere, tem já a escolha às suas costas”(7).

Somente uma superação da particularidade do sujeito pode levantar as formações miméticas subjetivamente elaboradas à altura da objetividade específica da estética, com a qual não se opõem já, como reações puramente subjetivas, a um mundo externo não afetado pela subjetividade, senão que se constituem em uma independente objetividade sui generis. (Nisto pode se ver, também deste ponto de vista, uma das diferenças mais importantes entre o artista e o diletante ou o trapalhão). Esta superação da particularidade subjetiva da vida cotidiana é, pelo menos em sua essência, tão decidida como na ciência ou na moral, mesmo seu modo de realização não apareça ser tão radical. Pois enquanto que o ato de desantropomorfização no compartimento científico, assim como – muito frequentemente pelo menos – a eficácia dos mandamentos morais, produzam uma clara delimitação em relação da particularidade do sujeito, por outro lado, na estética parecem se desmanchar completamente as fronteiras, e inclusive que surja na consumação do ato de por estético (na obra, na criação e na recepção) uma subjetividade excludente e pura. E isto não é somente uma aparência, pois não há atividade humana na qual a subjetividade, a individualidade se expresse com evidência tão imediata, nenhuma atividade humana na qual o momento pessoal tenha uma importância tão constitutiva de toda objetividade, tão decisiva para toda ligação como na esfera da estética. Mas precisamente por isso a passagem ao específico, a ascensão por cima da simples particularidade do homem em sua cotidiana imediação é aqui tão imprescindível como no reflexo científico da realidade e como na prática moral.

O tipo particular desta transformação do sujeito está determinado pelo caráter da objetivação. Em todas as demais esferas, de fato, fica sem afetar a objetividade do mundo dos objetos; o fato de ser conhecido do modo mais adequado e possível e transformado pela prática humana nem toca sua objetividade, e inclusive, como vimos, os desejos subjetivos, as sonhos diurnos, etc., pressupõem essa intangibilidade do mundo dos objetos. Somente a arte, exclusivamente a arte cria – com ajuda da mimese – uma figura oposta objetivada do mundo real, figura que ela própria se acerca como “mundo”, que possui um Para-si nessa autoconsumação na qual, certamente, se supera sua subjetividade, mas de tal modo que a preservação e a elevação a um nível superior continuam sendo momentos abrangentes, dominantes do fenômeno. A subjetividade assim superada desperta a consciência específica imanente, com maior ou menor consciência, a toda personalidade humana. Isto explica a peculiaridade desta transformação da subjetividade: a subjetividade se faz mais autêntica e profundamente subjetiva; a personalidade consegue uma área de domínio mais amplo e firme do que na vida cotidiana, e ao mesmo tempo supera amplamente a particularidade que nesta lhe é própria. O “mundo” da obra de arte, na qual se produz esta objetivação que assim põe à prova a subjetividade, é um reflexo da realidade objetiva, uma mimese que considera e reproduz do ponto de vista desse processo criador o mundo dado ao homem, tanto o produzido e formado por ele como o que existe com independência em relação da humanidade. A transformação do sujeito, sua superação da particularidade da vida cotidiana, é o processo que consiste em transformá-lo de tal modo que seja capaz de se converter em “espelho do mundo”, como diz Heine a propósito de Goethe. A profundidade do correto conhecimento do mundo e da correta vivência do Eu coincidem aqui em uma nova imediação.

A transposição desse fato em uma terminologia filosófica pode soar contraditória. Sua dificuldade se deve, não em último lugar à necessidade de utilizar categorias – e relações entre elas – que, referidas à própria realidade objetiva, teriam forçosamente que produzir, como categorias do conhecimento, uma deformação idealista. Falamos já deste problema em geral. Neste momento se trata da forma originária – estética-racional – da categoria central do moderno idealismo objetivo, do sujeito-Objeto idêntico. Falamos já entre outros livros das consequências desta categoria, deformadora do conhecimento(8). Aqui se aprecia claramente que em estética não se trata de um sujeito-objeto idêntico em sentido rigoroso. O fato estético é em realidade muito simples e se encontra documentado por inumeráveis dados históricos. No curso da evolução da arte observamos constantemente – toda vez que nos é dada a oportunidade de conhecer a personalidade privada dos artistas – que sua individualidade objetivada nas obras é idêntica com a privada e, ao mesmo tempo, não idêntica com ela e que a personalidade privada se supera do modo que descrevemos categoricamente.

A dificuldade de captação conceitual desse processo é dúplice. Em primeiro lugar, não pode haver nenhum critério concreto dessa autosuperação da particularidade, diferente do que ocorre no reflexo científico ou na prática ética. (Não podemos tratar aqui dos problemas que se apresentam nestas esferas. Mas é claro que o princípio de desantropomorfização ou as normas éticas, apesar de todo problema em sua aplicação a casos singulares, possuem um claro critério). Mas apesar dessa ausência de critérios concretos, tampouco aqui domina a arbitrariedade. O particular sujeito do artista tem de lançar-se a corps perdu no processo criador pelo que faz a transformação de sua objetividade. O êxito desse processo depende – uma vez pressuposta a capacidade – de se e em que medida é capaz de apagar de si próprio o simplesmente particular, de achar e expor em si o específico e fazê-lo além disso vivenciável como a essência de sua personalidade, como centro organizador de suas relações com o mundo, com a história, com o momento dado do processo evolutivo da humanidade e com a perspectiva do movimento deste – e tudo isso como expressão sumamente profunda do reflexo de si próprio –. É claro que acaba por princípio impossível achar nas vivências imediatas ou nas artísticas um critério a priori capaz de decidir, com certeza infalível, qual é o reflexo vivido – e fato evocador – da realidade, qual é a agrupação de tais vigências, qual é a avaliação de sua essência e de suas ligações que pertence à subjetividade particular e qual a que corresponde à consciência específica. A luta dos grandes artista – jamais acalmada, sempre reproduzida em cada traço artístico – pelo que muitas vezes chamam com toda simplicidade a reprodução fiel da natureza, consiste, vista subjetivamente, em contemplar a realidade do posto de observação da espécie humana. Pois visto abstratamente, é preciso muita verdade natural que não alcança esta altura; o eliminado, recusado, etecetera, pelo artista é frequentemente, contemplado como simples reflexo desse esboço da realidade, tão verdadeiro como o que fica definitivamente nas obras.

Em que consiste pois o princípio da seleção? Em muitos casos – os mais importantes, precisamente, para nosso problema –, consiste em que a objetividade aqui pensada, que continua sendo imediatamente subjetiva, ou seja, a subjetividade da consciência da espécie, se promove mediante essa eleição, enquanto que no caso contrário o único que se manifesta é a subjetividade do sujeito particular (“le monsieur” [“o senhor” – ndt], como dizia com ardente autoironia Flaubert). Tolstoi, que se aproximou muito deste problema, disse certa vez a Gorki: “Todos somo uns terríveis ‘inventores’ Eu também. Às vezes, enquanto escrevo, uma figura de repente me dá pena, e lhe dou a seguir um traço melhor, e se o retiro a outra para que seu ambiente não fique muito negro (...) Não se representa a vida real como é, apenas o que alguém pensa da vida. E a quem vai ser útil saber como vejo essa torre, ou o mar, ou esse tártaro? Que nisso que seja interessante e necessário?”(9).

~Theodor Fontaine com não menor consciência expõe essa contradição com relação à sua obra. A chama contradição “de nossa natureza” e “nosso gosto e afirma:” Se nosso gosto há de (...) determinar nossa produção, a natureza, que percorreu outros caminhos, nos deixa plantados e fracassamos. Haveremos cumprido nossa vontade, mas dando à luz a um morto”(10). Seria fácil acrescentar outros exemplos.

Provavelmente é mais útil contemplar esta situação de outro ponto de vista. Então se apreciará a importância da eleição do motivo do tema para o destino de toda a obra: esta é a pergunta a que tanta importância dão Schiller e Goethe em sua correspondência; os dois autores pensam que um fracasso na eleição tem que acarretar inclusive o de maior talento e arte mais dono de si. Aqui se manifesta sobretudo o vínculo mimético de toda subjetividade estética ao objeto pronto que já conhecemos bem. Mas além disso, como este vínculo somente determina uma ligação em geral, tem que se apresentar outra pergunta: por que um tema ou motivo influiu favoravelmente na criação e outro o faz por outro lado desfavoravelmente? A resposta tem de indicar necessariamente que o princípio promotor consiste em uma generalização estética, ou seja, que já a escolha do tema o do motivo sobre o sujeito criador à consciência da espécie ou a afasta dela, lhe ajuda na superação de sua própria particularidade ou inibe seus esforços em superá-la. Por outro lado – mesmo em íntima ligação om o que acabamos de expor – é preciso recordar o que frequentemente aparece nas reflexões de artistas importantes a observação de que a obra projetada ou começada por eles tem uma vida própria, independentemente de sua vontade e de seu desejo. Quando o artista transgride as leis segundo as quais se apresentou a obra em curso de realização, se condena de novo ao fracasso. As contradições que surgem desse modo são extremamente variadas. Pode se tratar, por exemplo, do alcance da obra, o de seu gênero. Thomas Mann conta que projetou A Montanha Mágica como conto, mais ou menos como pendant de A Morte em Veneza; mas, contra sua intenção inicial, a obra se converteu em suas mãos em um extenso romance histórico. Pode também se tratar de problemas do tipo que indicamos com os exemplos de Tolstoi e Fontaine. E essas contradições podem chegar inclusive ao centro da concepção do mundo, como mostrou Engels no caso de Balzac. Com isto, precisamente, nos apresenta o problema com toda clareza: a subjetividade particular de Balzac era a de um norma e inteligente legitimista; sobre esta simples base haveria sido impossível criar uma “comédia humana”, representar ampla e definitivamente uma importante crise de passagem da espécie humana. As fábulas e teorias sobre a inspiração superior da criação artística, que sempre se apresenta desde que a arte existe, contêm – sem dúvida ao lado de interpretações subjetivistas-irracionalistas que se apresentam sempre em etapas tardias – algo da essência dessa situação, mesmo que seja de modo muito deformado.

A segunda dificuldade da captação da relação entre a consciência individual e a particular consiste em que esta última não está dada subjetiva-imediatamente ou, no máximo, está dada de uma modo de antecipação e utópico. Os homens vivem imediatamente vínculos sociais, como a família, o clã, a casta, a tribo, a classe, a nação, etc., mas não vivem imediatamente, ou somente em casos muito excepcionais, a humanidade como unidade da espécie (e quando o fazem, é comumente com falsa consciência). A unidade da espécie não pode se converter em vivência imediata da cotidianidade senão no estado de humanidade unificada no socialismo. Objetivamente se encontra sem dúvida desde a humanização, e se desenvolve extensiva e intensivamente em intensidade crescente. A princípio apena é um puro Em-si, presente como identidade de estrutura antropológica; com crescimento e o enriquecimento das relações sociais se formam unidades cada vez maiores, que os homens se veem obrigados a viver e experimentar como fundamentos de sua existência individual física e espiritual. Com o capitalismo se constitui o mercado mundial e, sobre sua base, uma verdadeira história universal. Continua se tratando de um Em-si da espécie humana, mas um Em-si de ordem qualitativamente superior ao inicial e simplesmente antropológico, porque nesta copertinência se vive somente como resultado de catástrofes do “destino”, enquanto que no Em-si da espécie no mercado mundial, a prática humana se vê obrigada, sob pena de desastre, a ocupar-se constantemente da totalidade, já concreta, dos homens, e porque o número dos homens para os quais esse Em-si da espécie se vai convertendo em um afirmado Para-nós aumenta constantemente, como o número dos homens que – em escala, sem dúvida, quantitativamente menor – se esforçam ativamente pra sua plena realização.

O problema indicado subsiste para a subjetividade estética, apesar dessa linha evolutiva unívoca. Pois é próprio da essência da ate não ser utópica. Para a grande maioria das artes, os gêneros artísticos e as obras, é impossível representar a perspectiva do futuro salvo como tendência de movimento, mais ou menos visível, sempre somente indicada, do presente ao que dão forma. A filosofia, a ciência e imprensa diária eram e são capazes de antecipar conceitualmente, em previsões abstratas, uma realização de suas perspectivas. O resultado pode ser formal e materialmente tão utópico quanto sequeira, e os fatos da evolução histórica podem mostrar tão frequente e tolamente como pode se imaginar a falsidade da maioria dos detalhes: mas se o pensamento utópico, em um amplo sentido histórico-universal, empreende precisamente a rumo do caminho evolutivo da humanidade, a antecipação utópica exige uma força espiritual crescente. Assim ocorre já no direito natural e na ética da Stoa, nas declarações dos direitos humanos das grandes revoluções burguesas, nas profecias dos grandes utópicos, de Morus até Fourier. E assim ocorre também, de modo qualitativamente superior, com Mar, Engels e Lenine. Para a ciência é em princípio possível descobrir as perspectivas verdadeiras da futura evolução. Que se pense na determinação dos períodos do socialismo na Crítica do programa de Gotha(11) por Marx. Do dito se depreende desde já que o conteúdo dessas proposições não pode se referir senão ao sumamente geral; enquanto descem ao detalhe genialmente antecipado muito ao nível das generalidades, uma fantasia absurda e sem sentido (que se pense, por exemplo, em Fourier).

Era inevitável que essas correntes de pensamento influíssem também na teoria estética. O atraso a este respeito da prática artística se aprecia claramente neste tema especialmente porque, como vimos, se ignorou o caráter específico da generalização artística e ela foi concebida segundo o modelo científico ou filosófico. A obscuridade na concepção da realidade da espécie humana – obscuridade histórico-socialmente necessária – se combina na teoria estética com a própria obscuridade desta em relação da generalização artística. Isto produz a confusa e errada categoria do “universalmente humano”. Afirmamos já da questionável essência desta categoria. Para o problema que agora estudamos, a ideia do “universalmente humano” tem na teoria e a prática estéticas a consequência de por a humanidade em uma excludente e metafísica oposição com formas concretas das relações humanas, sobretudo com a classe e a nação. Ao superar essas concretas relações e vínculos da humanidade – cujas influências sobre o quê e como concreto de cada personalidade, de cada relação humana, de cada destino, etc., são incomensuráveis – ao nível do secundário, do que mentalmente pode se desprezar, se produz inevitavelmente uma concepção pálida do homem, aguada, sem sangue. E os próprios conflitos que enchem a vida dos homens, os fatos e sentimentos desencadeados por eles, são componentes essenciais de cada individualidade. Se forem eliminados, se passamos por cima, se passam para o último lugar, se aumenta ainda a abstração do “universalmente humano”. Não é casual que essa doutrina impere na medida em que a arte e sua teoria se afastam da vida de seu presente e se tornam acadêmicas no mal sentido da palavra (para evitar equívocos é preciso dizer que também existem períodos de academicismo decadente de vanguarda: que se pense na época do “Ó, homem!” do expressionismo, ou que se pense na abstração da “condition humaine” [condição humana – ndt], etc.). Artisticamente, esse conteúdo vazo por princípio tem de levar a um formalismo artificioso e abstrato, seja classicista, seja surrealista, etecetera. E o conteúdo desprovido de toda concretude, de toda matéria viva- verdadeira, pode dar de si apenas um cosmopolitismo sem perfil, uma solipsistica imagem desesperada, etc. A orientação direta, unilateral, eliminadora das complicações reais, ao específico do homem tem pois de empobrecer e deformar precisamente o conceito e a imagem da humanidade.

A correlação desta argumentação não exclui, naturalmente, a possibilidade de levantar a forma artística também essas vivências da existência da espécie humana cujos reflexos intelectuais analisamos antes. Para compreendê-lo esteticamente é preciso tomar em consideração que, em si mesma, uma representação artística utópico-concreta contêm ainda contradições mais insolúveis que as de uma antecipação conceitual do futuro. A intensificação consiste em que , mesmo que não seja em princípio impossível uma captação intelectual de determinadas leis e tendências que apontem ao futuro, entretanto, esta conquista não pode ter senão relevância muito excepcionalmente para o modo do reflexo próprio da arte. A mimese estética tropeça aqui com um mundo objetivo cujos conteúdos, cujas ligações, relações, etc., estão para nós fechadas em sua concretude; isto significa para ela um obstáculo insuperável. A arte tem, pois, um caráter muito mais decididamente anti-utópico que a ciência ou a filosofia. Se, para argumentar contra esta afirmação, se apela aos poemas “proféticos” de Schiller, Shelley, ou Blake, ou ao final da nona sinfonia, etc., é preciso observar: essas obras não exprimem primariamente uma realidade futura e existente como tal, apenas que anseia dela que tenha a matéria, sua previsão do que há de vir, sua relação subjetiva ao gênero humano, por mais generalizada que seja, e não o ser objetivo deste. Os traços concretos da conformação artística tem pois suas raízes e seu objeto no sujeito e este é concreto produto, concreto componente de seu próprio presente, de seu concreto hic et nunc [aqui e agora – ndt] histórico-social.

A conformação artístico-objetivada de um comportamento utópico não é, pois, esteticamente considerada, qualquer utopia. É certo que de um modo de representação sui generis, cuja análise detalhada não podemos empreender agora. Limitar-nos-emos a observar que seria uma generalização defeituosa e precipitada a oposição neste problema as formas líricas de conformação às formas diretamente objetivadoras. Trata-se antes de uma particular subespécie do que Schiller chamou “sentimental” opondo-o ao “ingênuo”. O elegíaco, o idílico e o satírico são formas de intenção com ajuda da qual se dá forma ao fato aqui mencionado; o qual não quer dizer que estes conteúdos específicos esgotem o âmbito inteiro desses estados de ânimo. Mas permitem uma conformação artística na qual a realidade que ainda não é, a realidade ainda subjetiva do gênero humano, pode exprimir um aspecto importante de seu ser-para-nós, exatamente porque a última verdade de tais representações – mesmo que não sejam de caráter decididamente lírico, apenas evoquem imediatamente um mundo de objetos mais objetivo – se encontra no sujeito. A bela descrição de Acis e Galatea de Claude Lorrain por Dostoievisqui mostra plasticamente o que queremos dizer. A descrição dele das lembranças, as ideias e os sentimentos de Versilov contém o seguinte que é essencial para nosso problema: “Neste quadro a humanidade europeia fixou a memória de seu berço, e o pensar nisso preenchia também minha alma como de amor ao torrão natal. Aqui estive uma vez no paraíso terrestre dos homens. A idade de ouro é, de todas as ilusões que o homem teve, a mais verossímil, e, entretanto, os homens lhe entregaram sua vida e todas suas energias, por ela morreram profetas, por ela os mataram, sem ela não poderiam viver, nem poderiam morrer”. Pouco importa aqui o problema de em que medida dá Dostoievisqui com adequação através do herói de seu romance , o conteúdo objetivo pitoresco-anímico do quadro de Lorrain. O decisivo é que o quadro pode chegar a ser expressão indireta dessas vivências, o que as conformações objetivas elegíacas, idílicas ou satíricas possam se erguer a portadoras desse reflexo subjetivo do destino da espécie. Swift é um exemplo claro das possibilidades satíricas neste sentido.

Mas, contudo não passamos da antecâmara de nosso próprio problema. Este consiste em que a grande maioria das obras de arte refletem imediatamente as relações e estruturas dos homens que influenciam diretamente em seu destino nas sociedades existentes em cada caso. A personalidade de cada homem plasmada pela arte, o modo essencial de cada sentimento que chega a expressão artística, está atado, com os fios da vida verdadeiramente vivida, nesse terreno imediato de toda existência humana. Ao recordar novamente o caráter não-utópico da mimese estética se apresenta com toda razão a pergunta: e onde há aqui campo para a plasmação dos problemas do gênero humano? Para compreender corretamente a dialética que rege estes problemas é preciso pensar nas relações humanas imediatamente dadas, da família até a classe e a nação, em seu modo de manifestação por meio de e através das paixões individuais de personalidades concretas. Enquanto as relações eficazes entres os homens formam tão profundamente cada indivíduo que é impossível ignorá-las na consideração de qualquer concreto, singular ser-assim, surge na própria vida a dialética que a seguir a arte evoca mimeticamente: as consequências, ativas e eficazes no indivíduo, da formação deste pela família, a classe, a nação, etc., não são simplesmente influências externas, nem sequer “camadas” situadas no marco de sua personalidade, apenas afetos, que no essencial são todos da mesma natureza (mesmo sem dúvida de qualidade diversa, intensidade, etecetera, segundo a identidade pessoal do indivíduo). Em todo homem, os combates suscitados por essa constelação se convertem em lutas internas de suas próprias paixões. Esta situação nascida na vida é refletida fielmente pela mimese, a qual, além disso, a aumenta e intensifica de acordo com sua própria essência, que descrevemos já várias vezes. A importante verdade de Spinoza de que o única coisa que pode opor-se nos indivíduos eficazmente aos afetos são outros afetos não se costuma se aduzir em estética, mas apesar disso – e precisamente por isso – essa verdade é o axioma, geralmente silenciado, implícito, de toda plasmação mimética. Pois graças ao fato recolhido nesse axioma pode se exprimir clara e comovedoramente (em sentido trágico ou no cômico) a participação, complicadíssima na vida, do interno e o externo, de socialidade e personalidade no destino do homem. Como as forças “externas”, sociais, toma seu poder através das paixões que desencadeiam nos homens individuais, mas ao mesmo tempo continuam sendo capazes de exprimir de um modo puro, mais direto, sua força “externa”, social, a imagem da realização do homem com seus vínculos sociais pode se apresentar enfeitiçada e desenfeitiçada. Marx descreveu plasticamente – a propósito da mercadoria – o fenômeno da feiticização: “E apenas a relação social determinada entre os próprios homens que toma aqui para eles a forma fantasmagórica de uma relação de coisas”(12). Uma das grandes contribuições da arte – sobre a qual ainda haverá muito que dizer – consiste em dissolver tais feitiços, isto é, em exprimir inequivocamente as relações sociais como relações entre os homens. Somente assim pode se exprimir evocadoramente de acordo com suas verdadeiras proporções a contraditória unidade dialética do externo e interno, do social e o pessoal. Hegel expôs com muito acerto esta unidade do interno e o externo comentando a cena das feiticeiras de Macbeth, e inferiu de sua exposição a seguinte consequência: “Por último, é possível agora dar aos poderes gerais que não somente se manifestam para si próprios em sua independência substantiva, senão que também alentam em seu peito humano e movem o animo do homem em sua mais profunda interioridade, o nome de pathos que lhe outorgaram os antigos (..). O pathos neste sentido é uma força, em si mesma justificada, do ânimo, um conteúdo essencial da razoabilidade e da vontade livre”(13). Contudo isto não se descreve diretamente apenas naquela dialética na qual a contradição entre o indivíduo e as forças histórico-culturais realmente presentes podem conseguir expressão poética, junto com a unidade dessas contradições. Mas isso dá ao mesmo tempo a chave de nosso presente problema. Objetivamente, porque ao se dar as forças sociais reais em uma correta compreensão e conformação artística, forçosamente tem de exigir essa mesma forma também suas relações internas com a evolução do gênero humano, mesmo que sem dúvida não sejam ainda historicamente conscientes ou reflitam erroneamente na consciência aquelas próprias forças. O modo da aparência de tudo isto é, desde já, de muita variedade já na própria vida, de acordo com a fase evolutiva, a nação, a classe, etecetera, até o ponto que certamente o único possível é o descobrimento das leis que dominam este campo, e não sua sistematização abstrata; e mesmo isso somente à base de uma investigação pacientíssima do detalhe. Esta remissão ao específico, ainda reconhecendo a mencionada variabilidade, que é quase ilimitada, vai implícita no funcionamento de toda relação social. Cada uma delas tem deste ponto de vista um rosto dúplice: os fatos, os problemas vitais, etc., se põe a cada homem desde essa origem, mas esses fatos podem orientar sua intenção puramente a exigências diárias, ou melhor, podem sem abandonar esse vínculo direto, se orientar no sentido dos problemas da espécie; os problemas vitais podem nunca abandonar o nível de uma utilidade simplesmente particular e ´podem conter – consciente, erroneamente consciente, de todo inconscientemente – menções a suprema generalidade da vida humana. Já esta situação pode ser fonte de inumeráveis colisões. Aparentemente, o sentido da família (a veneração da mãe), o amor à cidade paterna são em Coriolano coerentes com seu aristocratismo. Mas o desempenho de contradições como essa, que frequentemente estão latentes, dissolve a superficial harmonia aparente da cotidianidade “normal” em uma violenta contraditoriedade, e somente sua ligação dinâmica, sua trágica culminação, descobre o que nessas relações dos homens estão plenamente vinculados ao hic et nunc [aqui e agora – ndt] particular e o que depende direta ou indiretamente da evolução do gênero humano, o que pode se converter em elemento permanente da continuidade dessa evolução. Assim, pois, para sua referência aos problemas do gênero humano – não é em absoluto necessário que as oposições dialéticas sejam conscientes nos homens que atuam e sofrem. Também neste ponto vale nossa divisa de Marx: “Não o sabem, mas o fazem”. Podemos já identificar essa estrutura no exemplo do Coriolano de Shakespeare. Recordemos também, com a mesma intenção, uma grande citação de A Montanha Mágica de Thomas Mann que juntamos antes em outro contexto. Isto mostra que a intenção marxista que aqui estamos predicando nada mais é do que uma conscientização de algo constantemente executado na prática dos grandes artistas. A situação de que se trata está sempre presente como fundamento prático da mimese estética. No caso de Thomas Mann recolhemos as características de mencionadas interações para o caso de uma época extremamente problemática; mas o sentido metodológico é, para a prática estética, o mesmo que tem, por exemplo, a análise de Marx da “ilusões heroicas”, da grande révolution [grande revolução – ndt] francesa. Um livro como Les dieux ont soif [Os deuses tem sede - ndt], de Anatole France, que sem dúvida se escreveu sem influência direta destas considerações de inspiração de Marx, é um exemplo claro de como em uma viva composição artística pode exigir expressão das contradições também vivas (e sua unidade) como complexo feito de paixões individuais, de seu condicionamento pela estrutura histórico-social de uma fase evolutiva e de relevância para o desempenho do específico humano.

Não é casual que tenhamos que colocar sempre no precede em primeiríssimo plano das considerações as contradições (e sua unidade). Pois a evolução histórica do específico não pode se manifestar nem se impor à percepção senão pelo fato de que o novo entra em choque com o velho, com as velhas instituições, vínculos, ideias, afetos, etc., nas personalidades, relações, etc., dos homens. Certamente que as colisões assim originadas podem logo se reduzir a um hic et nunc [aqui e agora – ndt] local e cronológico, e o façam além disso na grande maioria dos casos; mas a possibilidade de uma elevação acima dessa localização espaço-tempo em todas essas colisões; o único problema consiste em saber até que ponto é capaz cada colisão de encarnar, objetiva ou subjetivamente, essas instâncias gerais. A grande missão histórico-cultural da arte tem precisamente aqui suas raízes: a arte é capaz de levantar o latente à atualidade, de prestar ao que na realidade é silencioso em inequívoca expressão evocadora e compreensível. O “E quando o homem cala em seu martírio, um deus me concedeu dizer o que sofro” de Goethe pode se interpretar decididamente neste sentido, sem generalizar inadmissivelmente sua intenção(14).

As contradições que acabamos de afirmar mostram, não poucas vezes, seja em suas formas aparentes imediatas, uma estrutura que aponta o que afirmamos. Que se pense nas radicais transformações que sofreram os postulados da evoluções democrático-burguesas (ou seja, as “ilusões heroicas”), ou na constante luta entre os grandes interesses histórico-universais do proletariado e seus interesses momentâneos, passageiros, etc.; o movimento reformista, marcado por Bernstein com a separação entre o “objetivo final” e o “movimento”, era e é, por exemplo, uma tentativa – feita com a ajuda da oposição metafísica dos interesses fundamentais do proletariado e os que são passageiros – de extirpar da teoria e da prática do movimento operário tudo autenticamente humano, tudo que supera as pequenas reformas no âmbito do capitalismo. Mas seria uma superficial simplificação do problema atribuir a toda generalização que os homens realizam no curso de suas lutas sociais uma relação direta com o específico da humanidade, e negá-la a todo realismo orientado aos fatos. A oposição que acentuamos nada mais é do que uma alusão clara a esta constelação, mas seus efeitos, podem ser extraordinariamente multívocos. Basta recordar, por uma lado, com o exemplo já fornecido, do conflito Antígona-Creonte para ver o propriamente humano no aferrar-se a formações de “ordem inferior” (família contra estado), e por outro lar, levar em conta muitas abstrações subjetivas e dogmáticas de Stálin e sua escola para apreciar claramente que nem toda generalização das lutas sociais é capaz de passar em branco no que nessas lutas é especificamente humano.

Também a generalização de acontecimentos imediatos nascidos como contradições a partir de determinada situação procede por caminhos particulares, na medida em que preserva os traços essenciais da situação concreta sem ater-se de modo absoluto aos detalhes concretos de sua ocorrência fática normal. Neste ponto é muito instrutivo o erro de Hegel na avaliação de Macbeth. Hegel reprova a Shakespeare por haver descuidado completamente do direito que sua personagem tinha à Coroa, a injustiça que havia sofrido(15). Shakespeare utilizou realmente até à saciedade motivos deste tipo no ciclo de seus dramas da realeza, os compõe uma representação do processo de sua última época – como O rei Lear entre elas – não recolhem desse processo de dissolução que foi assunto de seu trabalho dramático mais do que pode se preservar totalmente no quadro do especificamente humano; por isso nessas tragédias Shakespeare não concretiza as condições e situações senão na medida em que acontece ser absolutamente necessário para a plasticidade dos acontecimentos. O motivo que Hegel perde no Macbeth superaria consideravelmente esse nível. Mas tampouco deve se entender a eleição e o modo de composição de Shakespeare deste período tardio como um esquema definitivo, como o único método justificado na tarefa de acentuar o particularmente humano. O modo como se representa o movimento operário em A Mãe de Gorki, por exemplo, ou em A pele dos conquistadores de Andersen Nexö, mostra – sem esquecer a grande diferença entre ambas as obras – a transposição de cenas cotidianas detalhadamente descritas em particularidade, a especificidade que vai implícita nas lutas de classes representadas como a missão histórica da classe operária. Podem bastar esses exemplos; pois é impossível dar, nem um esboço, as formas de dialética que aqui se produzem. Para complementar o referido até agora nos será permitido duas simples observações. Em primeiro lugar, a alusão generalizadora ao particular é capaz de acertar, precisamente, em sua contraditoriedade e sua problematicidade, seu objeto próprio, e esclarecê-lo intuitivamente, que se pense no citado romance de Anatole France sobre a revolução. Em segundo lugar, o particular se move claramente ao longo de uma trajetória ascendente; mas esta não somente apresenta numerosos rodeios e involuções, apenas que em seu percurso o particular é muito mais que uma preservação de conquistas positivas. Toda negatividade significativa que haja desempenhado um papel nesse caminho como obstáculo importante e duradouro é também um elemento da particularidade: o é Tartufo tanto como como o Fausto, e o são as obras satíricas de Goya e de Daumier, expressões não menos autorizadas do particularmente humano que a Capela Sixtina.

A Aparição da particularidade nas relações sociais dos homens não é pois uma oposição gritante e metafísica de princípios “simplesmente históricos” com princípios “supratemporais”, não é nenhum abandono de determinações histórico-sociais, nenhuma ascensão acima destas para penetrar em outra esfera “mais pura” da existência, apenas que é um momento indistinguível a priori, dessas relações, momento que se impõe em suas contradições historicamente motoras como resultado final de suas lutas.

Isto basta para perceber claramente a diferença e oposição entre uma particularidade assim entendida e a concepção do “universalmente humano”. Por um lado, a especificidade nada é de uma vez por todas, apenas o resultado de choques histórico-sociais e, consequentemente, algo sempre em mutação, em desenvolvimento evolutivo. Por outro lado, há nesse processo uma continuidade, sem dúvida muito irregular e submetida a muitas interrupções. Precisamente o que se mantem nessa continuidade constitui objetivamente, para os homens que vivem e atuam em cada momento, um conteúdo importante de particularidade, junto àqueles conteúdos – sem dúvida – com os quais os fatos, as ideias, os sentimentos, etc., atuais contribuem a futura marcha do processo. Segue-se também de tal concepção histórico-dialética da particularidade que a superação das fases ultrapassadas ou as etapas deixadas para trás é de muita diversidade: propriedades inclusive centrais podem desaparecer totalmente no curso da evolução, outras podem permanecer, manter-se apesar de tudo na continuidade, mesmo que eclipsadas durante longos períodos de esquecimento; tudo isso, evidentemente com frequentes transformações importantes de seus conteúdos e formas.

Este processo objetivo de superação (que inclui preservação) tem entretanto a particularidade de que os pressupostos, as fundamentações, etc., já historicamente desaparecidos do presente conceito da espécie se conservam em forma de passado que segue sendo atual. O homem vivo e ativo é – se nos é permitida uma variação sobre a expressão de Aristóteles – um “animal histórico”. O é em sua vida individual; o é em relação às formações sociais que determinam imediatamente seus destinos. E como conteúdos de especificidade se constituem e empenham na evolução dela própria, o que acabamos de dizer tem de valer também para eles. Como é natural, havia que acrescentar complementar e exatamente: o homem devém um “animal social”. Pois mesmo que sejam muito primitivos os níveis nos quais aparece a necessidade de tal fixação histórico-consciente do essencial do próprio passado, e já dão testemunho dessa necessidade certas cerimônias mágicas (para não falar das fábulas), entretanto, tal consciência se constitui lentamente, irregular e contraditoriamente no curso da história, mesmo sempre de ascendente. Esta afirmação vale já em relação ao indivíduo. Gorki, por exemplo, descreve muito belamente como uma velha trabalhadora maltratada, acuada, o contato com a revolução, a crescente consciência da consideração corrente, desperta e ilumina ao mesmo tempo um passado sumido no esquecimento, e o faz um caminho visível para o presente. O que descrevemos como irregularidade, tropeço, perda aparente – inclusive – de si no transcorrer da história aparece no pensamento de Hegel, nos pensamentos finais da Fenomenologia, precisamente como resposta a pergunta proposta. Chama a história de o “Espírito alienado no tempo”, e diz sobre as diversas fases do Espírito: “Este devir representa um movimento inerte em uma preguiçosa sucessão de espíritos, uma galeria de imagens, cada qual, dotada de toda riqueza do Espírito, move-se tão preguiçosamente porque a Monotonia tem que penetrar e digerir toda essa riqueza de sua substância”. Mas, acrescenta Hegel, “a recordação a conservou, e é o interno e, de fato, a forma superior da substância. Assim, pois, quando este espírito, partindo aparentemente somente de si, volta a começar do início, começa ao mesmo tempo em um nível superior”(16).

O “materialismo invertido” de Hegel – para usar a expressão cunhada por Engels – se mostra aqui com mediana clareza. Encontramo-nos, eficazmente, no cume e consumação do idealismo absoluto: a Substância está a ponto de se converter no Sujeito, está a ponto de se realizar o Sujeito-Objeto idêntico. Mas se a recordação há de representar, ou preparar pelo menos, esse ato de fusão em alguém, se depreende com clareza do próprio pensamento de Hegel recém citado que a recordação apenas pode apropriar-se da imagem especular da Substância, não ela própria; inclusive entendido como “re-cordação”(17), a interioridade que contem do recolhido da alienação no sujeito nada mais é que a consciência de um ser que existe com independência do processo. Se, pois, a descrição de Hegel do fenômeno é, como descrição do processo real objetivo, algo pior que ambígua, entretanto, dela resulta uma acertada imagem da eficaz situação do fato, como representação do especificamente humano tal como esta representação se expressa na recordação e na vivência dos homens. O “re-cordo” é realmente a forma de interiorização na qual e pela qual o indivíduo humano – e a humanidade nele – pode se apropriar do passado e do presente como obra própria, como destino que lhe cabe. A “re-cordação” evoca uma realidade objetiva, mas de forma que se encontra penetrada de atividade humana em todos seus poros, e em todos cujos objetos o entendimento humano, o sentimento humano, investiram o melhor que têm e se enriqueceram ao mesmo tempo internamente nesse processo do dar e do fazer. Quando essa atividade do homem no seio do mundo dos objetos – a atividade passada e presente – se retrocapta no sujeito por meio da “re-cordação”, o idealismo absoluto se faz sem dúvida da ilusão que com isso a Substância se pode transformar no Sujeito, mas o fato é que sua gênese e a evolução do homem como sua própria obra, como própria história, se lança até uma clara precisão plástico-evocadora. O que o homem entregou generosamente à realidade objetiva (e à realidade de si mesmo e de seus semelhantes) nas diversas formas de alienação. Aquilo pelo qual possui em cada momento sua própria riqueza de pensamento e sentimento, se retrocapta agora no sujeito, e o mundo se vive como mundo próprio do homem, como posse que nunca se pode perder. Nestes dois atos inseparáveis nasce, se difunde e se aprofunda a autoconsciência humana. Estes atos inseparáveis se unificam adequadamente, com pureza acabada, somente na arte. Como já indicamos, Hegel descreveu frequentemente com acerto, em muitas de suas interpretações da realidade deformadas pelo idealismo absoluto, algo que não pretendia, a saber, a particularidade específica da posição estética. (Não podemos esclarecer aqui o problema de até que ponto, no curso da evolução histórico-social da humanidade, a objetividade do histórico-humano se transforma de simples substancialidade em subjetividade consciente, ou, para melhor dizer, em que medida tal subjetividade exige uma tendência à preponderância em sua inter-relação com a substancialidade objetiva do social. Este problema importante deve ficar aqui apenas apontado).

A determinação da subjetividade estética – sobretudo tal como aparece em sua realização adequada, na obra de arte, como autoconsciência do gênero humano (como “re-cordação” do caminho percorrido em sua evolução e de suas etapas) – confirma e concretiza os resultados que alcançamos pelo momento sobre sua natureza essencial. A análise detalhada da alienação como etapa necessária para alcançar a verdadeira subjetividade estética mostra até que ponto são errôneas as teorias que buscam o caminho ao estético em um simples aprofundamento da subjetividade em si. Ainda mais decididamente que na ética – na qual tal concepção só “Conhece-te a ti mesmo” costuma levar a hipocondria estéril e autodestruidora –, é um fato fundamental da estética que a riqueza e a profundidade da subjetividade não possam se conseguir senão mediante a apropriação aprofundada de um mundo real de objetos. Diferente de algumas teorias atuais como a da “introversão”, diferente de autores de autores modernos, que se professam marxistas, em discordância com o próprio Caudwell, porque pensam que a autoconsciência estética é um afastamento do mundo externo(18), a estética anterior, inclusive a idealista, sublinha esta ligação entre a interioridade e a relação com o mundo externo; “a originalidade” afirmou Hegel, “é (...) idêntica com a verdadeira objetividade”(19).

É uma vivência muito geral que o vínculo indestrutível ao mundo dos objetos produza uma superação da unicidade imediata do sujeito, aprofundada, nessa imediação até o extremo, até o solipsismo. A descoberta dessa estrutura do sujeito remonta já ao ceticismo e isso, em verdade, como diversidade qualitativa do individual de todos os seres vivos, não somente do homem, como também dos animais. Disso se inferiu em outro tempo da impossibilidade de conhecimento da realidade objetiva(20). Aqui pouco nos interessam as consequências epistemológicas. Pois é claro que o materialismo ingênuo da prática cotidiana as ignora totalmente; os homens da cotidianidade atuam e se tratam uns aos outros como se não existisse tal barreira a sua compreensão e entendimento recíprocos. A função generalizadora da linguagem – que afeta também, naturalmente, às impressões sensíveis, as percepções, etc. – fornece aqui uma plataforma suficiente para a prática não somente entre os homens, como inclusive entre os animais e os homens (caso do caçador e seu cão, etc.). No reflexo científico da realidade, assim como nas formas de trabalho que o prepararam, etc., a transformação desantropomorfizadora cuida de proporcionar um terreno comum de entendimento entre os homens, verdade que sobretudo pelo procedimento de lançar a segundo lugar todos os modos de manifestação da particularidade imediata do sujeito e desenvolvendo uma linguagem orientada aos objetos (matemática, geometria, etc.).

Mas o absurdo epistemológico do solipsismo não basta para eliminar o fato de que existe uma tensão entre as generalizações entre as generalizações de qualquer linguagem e a qualidade particular das vivências imediatas, limitadas a assuntos imediatos, e que essa tensão pode se manifestar também na vida cotidiana. Por exemplo, quando dois homens não se entendem, ou deixam de se entender, ocorre se manifestar em seu diálogo o fato de que uma mesma palavra não tem já para ambos o mesmo conteúdo vivencial. E assim ocorre que intensas tendências que levam uma carga emocional individual podem fazer que a distância latente, que na comunicação normal é praticamente nula, se apresente como um abismo entre dos seres humanos, como a impossibilidade de se entender. Esse fenômeno não deve ser confundido com outro fato que em diversos grupos sociais uma mesma palavra – por exemplo “greve” – possa exigir acentuações emocionais contrárias, ter associações não menos opostas, etc. A divergência parte aqui primariamente do assunto, mesmo determinado pela divergência de interesses (mas inclusive nesta por algo objetivo); sua fonte é além disso o comum aos membros do grupo, não a qualidade particular dos indivíduos. A arbitrariedade semântica consiste antes que por um lado trata como se fossem unitários esses fenômenos heterogêneos, e, por outro, acredita poder eliminar mediante uma definição supostamente objetivo-científica reais controvérsias sociais. Não é nessas controvérsias senão um sintoma superficial que a uma mesma palavra se atribuam significados diverso, o qual, seja dito de passagem, tampouco é verdade, pois o conteúdo diferenciado emocional da palavra “greve” se deve precisamente a que capitalistas e trabalhadores estão pensando no mesmo fenômeno.

A emotividade dos homens pode às vezes generalizar o fenômeno antes citado até fazer dele outro fenômeno indissoluvelmente ligado à estrutura básica da existência humana. Assim ocorre no célebre verso de Schiller: “E se fala a alma, então, ai, deixa de falar a alma”. Não é este o lugar adequado para discutir se e em que medida é este fenômeno tão fundamental e universal como o apresenta Schiller. Seja pelo que faz em sua época há que dizer que nem Lessing nem Goethe viram nele nada universalmente típico da existência humana. Por outro lado, essa concepção de Schiller ganha constantemente terreno na ideologia burguesa, da segunda metade do século XIX até nossos dias. Nesta se coloca cada vez mais intensamente no centro – nos hinos ou elegiacamente, trágica ou satiricamente – a qualidade particular dos indivíduos exacerbada até o particularismo, e se mostra incansavelmente que não é possível comunicação alguma entre qualidades tão isoladas; se às vezes se dá a aparência dessa comunicação, logo se manifesta seu caráter de ilusão. Assim se produz, no sentido de Heráclito(21) (“Os que velam tem um mundo comum, porém todo dormente atende somente ao próprio”), um mundo de sonâmbulos, que negam a vigília como forma de existência ou a recusam, se fundem sempre no mundo de seus solitários sonhos e não podem, obviamente, encontrar desse mundo qualquer caminho que os leve aos sonhos de outro que dorme. Pode, pois, reconhecer-se perfeitamente como um fato que a qualidade específica do tipo de vivência, tal como aparece ao nível da imediação pura, não é adequadamente comunicável, e pode reconhecer-se isso sem chegar por isso a um solipsismo insuperável. E isso não apenas para a prática da cotidianidade, terreno no qual isso é indubitável, como também para o mais complicado trato entre os homens. Como é natural, essa imediação do simplesmente particular, como aparece animicamente na ligação da inteira personalidade, será fonte de muitos conflitos. Segundo os períodos e sobretudo, segundo o aspecto classista, muda de peso, que isto tenha no quadro global. E nesse contexto se enquadram, naturalmente, as exacerbações de tais colisões em nossa época. Mas seria evidentemente errôneo interpretar, como se fez muitas vezes, o verso de Schiller nesse simples sentido. Schiller conhece e aceita a vigília e a comunidade necessariamente presente nela. O que ocorre é que põe – não apenas nesse verso – a uma extraordinária altura as condições de sua possibilidade e somente reconhece ao Espírito como nível adequado de sua realização. A isso se acrescenta que para ele o que chama aqui alma é um princípio dinâmico, não estacionário, que leva portanto em si a capacidade de devir Espírito. Esta negação de Schiller da expansibilidade adequada da alma, de adequada comunicação entre almas, pressupõe um plano das relações humano-morais infinitamente superior ao ocupado pelas ideologias da solidão a que nos referimos antes. Esse plano costuma se expressar em concepções do mundo soberbamente idealistas, como em Platão ou os neoplatônicos, ou na gnose, com diferença entre os psíquicos e os pneumáticos, contexto no qual o cotidiano-médio é o hílico [pertencente a matéria, corpóreo –ndt]. E esse pensamento conduz normalmente a uma recusa da subjetividade ativa no âmbito estético. Schiller não vai tão longe tanto na teoria como na prática; aquele ao que pretende dar forma artística como comunicação humana entre o marquês de Posa, Carlos e Isabel, entre Max Piccolomini e Tekla, se baseia precisamente em que a alma é capaz de “falar”.

Há pois aqui um problema real, para a estética principalmente. Trata-se de que modo vivencial imediato, a qualidade perceptiva imediata, única, etc. da particular individualidade se intensifica em sua singularidade qualitativa e ao mesmo tempo, sem perturbar nem inibir essa intensificação, se generaliza. A alma tornada estética tem pois que poder falar precisamente no sentido do verso de Schiller, mas sem perder essa sua natureza específica que a faz parecer incapaz de comunicação. Com isso se encontra Schiller gritantemente oposto ao moderno contraste alma-espírito (Rathenau, Klages, etc.), que concebe essa incapacidade da alma de objetivar-se racionalmente como fundamento de sua “superioridade” sobre o espírito. É um fato universalmente conhecido e reconhecido que esse processo tem lugar na subjetividade criadora. Mas também tem essa estrutura na vivência receptiva da arte. T. S. Eliot descreve este fato em sua factualidade imediata com toda correção: “Inclusive quando duas pessoas de gosto amam a mesma poesia, esta se apresentará em seus ânimos dois modelos levemente diversos; nosso gosto poético individual acarreta ondas indestrutíveis de nossa vida individual, com todas suas vivências agradáveis e dolorosas (...) Talvez não haja dois leitores que se enfrentem com a poesia com as mesmas exigências”(22). Tudo isto vale para a imediação da recepção estética. Mas se nos quedarmos diante essa imediação, o estético fixaria definitivamente o solipsismo do mundo vivencial e o asseguraria a esfera de realização adequada e própria. Quando a finais do século passado e inícios do nosso Alfred Kerr e Oscar Wilde declararam que a crítica é arte pensavam realmente na crítica como “doação de forma”, como forma “artística” de comunicação dessa peculiaridade individual, dessa direta incomunicabilidade das vivências diante das obras de arte; deste modo construíram um segundo andar acima da relação – assim entendida – do artista à realidade. O subjetivismo solipsista se proclama com toda clareza: “O que importa não são pois as obras aqui comentadas, apenas o que se diz sobre elas”(23). Se se aplicaram coerentemente tais princípios, se produziria necessariamente a “má infinitude” de um processo interminável, pois a impressão e avaliação de tal “obra de arte crítica” teria de ser por seu lado uma análoga “conformação” subjetivamente atada à crítica da crítica e assim sucessivamente. Mas Kerr tem que renegar de suas próprios princípios: “Um impressionista-simplesmente poderia se suicidar como crítico. O impressionismo não é crítica, porque existem exigências temáticas”(24). Somente nos interessam os problemas resultantes dessas premissas na medida em que se referem à natureza essencial da subjetividade artística como tal; a investigação mais detalhada do comportamento crítico em relação a arte e seu método não pode se praticar até a segunda parte desta obra(25), na qual se determinará sua localização no típico dos modos de comportamento estéticos.

Kant foi quem formulou o verdadeiro problema, a controvérsia de como pode se alcançar sem eliminação radical da subjetividade particular imediatamente fechada em si, senão, ao contrário com uma intensificação dela, o terreno de uma determinada objetividade e da comunidade (uma superação estética do solipsismo da pura particularidade). Kant tem razão quando postula como condição de uma comunicabilidade e necessidade dos juízos estéticos um “sentido comum” (sensus communnis). O filósofo distingue a necessidade assim surgida tanto da comunicação do “simples sentido do gosto” –no qual não se pode dar qualquer necessidade deste tipo – quanto daquele sentido comum que julga “em cada caso segundo conceitos”, mesmo que estes princípios estejam somente “obscuramente representados”; com isso Kant caracteriza acertadamente certas formas de manifestação da cotidianidade(26). Mas na dedução do comum, os pressupostos idealista-subjetivos de Kant o confundem na solução adequada. Pois, em primeiro lugar, o comum não é possível para senão sobre a base de um conhecimento conceitual-racional. Em segundo lugar, postula um “disposição das forças de conhecimento em relação a um conhecimento em geral”, o qual está “determinado pelo sentimento (não segundo conceitos)”. Kant ao inferir redutivamente da comunicabilidade do conhecimento a da “disposição”, a do “sentimento da referida disposição (diante uma representação dada)”, crê haver deduzido o “sensus communnis”(27). Mas em verdade nada fez mais do que provar a comunicabilidade do conhecimento – que ninguém, ademais, põe em dúvida – de um modo extremamente problemático, isto é, procedendo da consequência para a causa, passando em troca completamente fora de seu objetivo presente, a comunicabilidade na esfera estética. A particularidade da filosofia kantiana neste campo, o fato de que, por um lado – com ideia de “sem conceito” – exclui da estética toda ratio [razão – ndt], enquanto por outro vê o “protofenômeno” estético não nos originários atos estéticos, senão no “juízo de gosto”, muito mais derivativo, impossibilita qualquer solução satisfatória, mesmo que já o posicionamento da controvérsia do “sensus communnis” dê testemunho, aqui como em muitas outras passagens da Crítica da Faculdade de Julgar dê a riqueza da genialidade premonitória do filósofo.

Seja prescindindo desses motivos, Kant não pode, além disso, descrever acertadamente aquele sentido comum – e ainda menos analisá-lo corretamente – porque parte de um modo idealista-subjetivo de uma análise formal de um assunto não perdido no mundo dos objetos. Mas como mostraram as considerações anteriores, as ligações determinantes são primariamente do personalidade do conteúdo, e surgem da mimese estética dos objetos que existe independentemente do sujeito, mundo que, certamente, mostra em todos os detalhes de sua objetividade as marcas da atividade do gênero humano, e que se reflete de um modo que põe no centro do interesse precisamente essa personalidade da realidade, da manifestação do intercâmbio da sociedade com a natureza.

Mas por meio desse reflexo da realidade está vinculada à particularidade peculiar do sujeito, que é peculiar de um modo imediatamente qualitativo. Este intercâmbio, este metabolismo, é de fato objetivo que nem sempre permite perceber de um modo imediato que suas qualidades específicas nascem daquela fonte; sem dúvida essa qualidade podem se revelar por meio do reflexo científico e de sua elaboração conceitual. Mas a mimese estética ainda está obrigada a refletir a objetividade do modo mais fiel possível, aspira conseguir outra finalidade: aspira tornar vivenciáveis ligações como atos e sofrimentos, êxitos e derrotas, florescimento e deformações dos homens (do gênero humano). A duplicidade da tarefa resultante, isto é, o tornar que uma constelação objetiva atue evocadoramente , subjetivamente, sem abandonar sua objetividade, determina a duplicidade aqui necessária do comportamento do sujeito, sobretudo do comportamento da subjetividade encarnada na obra: a preservação da imediação sensível e significativa da vivência o do tornar vivenciável, ficando sempre na superação algo da particularidade, da unidade, da incomparabilidade do sujeito.

Esta unificação indissolúvel de unicidade e generalização do assunto se expressa no fato de que a consciência aqui engendrada não é primariamente uma consciência subjetiva de um mundo de objetos independentes dela e a ela oposta, apenas antes uma forma muito peculiar da autoconsciência. Hegel dá em sua Fenomenologia do Espírito uma interessante descrição da gênese e a essência dessa consciência, vendo-a precisamente no statu nascendi [o estado de gestação – ndt] no qual “deveio já para-si” e não conseguiu ainda seu lugar no âmbito global da consciência. (Como é natural, essa descrição de Hegel não tem qualquer relação direta ou intencional com nosso problema estético). Afirma também Hegel sobre a autoconsciência: “é para si própria, é diferenciação do diferente ou autoconsciência. Eu me distingo de mim e nisso é imediato para mim que esse distinto não é distinto. Eu, que me chamo igual, me separo de mim mesmo; mas este diferente, este posto como desigual, não é imediatamente para mim, no momento em que se distingue, nenhuma diferença”(28). Posto que em toda autoconsciência determinável como estética o subjetivo se submerge sempre no mundo dos objetos como em seu ambiente, ordenando-o, distribuindo seus destaques, colorindo sua objetividade com uma particular qualidade, etc., se exprimindo assim, se tem uma modificação em relação àquela de Hegel no sentido de que a fluidez da divisória entre o distinto do sujeito e o indistinguível vale também para o mundo externo artisticamente formado. O movimento imposto na alienação e retrocaptação – a entrega do sujeito ao mundo externo para a plena penetração deste com sua própria qualidade, a extensão do sujeito pela recepção e a elaboração da objetividade que ele reflete – constitui também aqui o fundamento do específico de seu modo de manifestação externo.

Apesar de todas as diferenças que mostra a autoconsciência desempenhada no estético em relação a sua aparição simples e abstrata na Fenomenologia de Hegel, a dialética, pelo destaque, do diverso e o não diverso continua sendo um momento importantíssimo para a aparição da subjetividade estética como autoconsciência da espécie humana. Ao falar do aspecto objetivo desta ligação indicamos já que as diversas “camadas” das relações entre os homens (da família até a humanidade) não estão rígida e metafisicamente separadas, não constituem andares separados da subjetividade, apenas que se encontram rodeadas de fluídas fronteiras as quais, como os mares em geografia, separam e vinculam ao mesmo tempo as diversas regiões. Inclusive os pontos nos quais podem se produzir e se produzem conflitos reais (nação-humanidade, nação-classe, classe-humanidade, etc.), esses conflitos nascem objetivamente em um terreno comum, põem à mostra contradições internas objetivas da evolução da humanidade imediatamente dadas entre as duas “camadas” que em cada caso apareçam em oposição. Que se pense, por exemplo, nos conflitos ativos entre as guerras de propagação revolucionária da época da Revolução Francesa e suas tendências de expansão nacionalista. Não apenas é incerto em muitos casos particulares o lugar em que é preciso encontrar o momento abrangente senão, que, além disso, as guerras pela independência produzidas pelas campanhas de conquista levam em sua semente essas contradições. “Todas as guerras pela independência combatidas contra França”, escreve Marx, “apresentam o selo comum de uma regeneração que se combina com reação”(29). E basta reler, pelo que faz à Alemanha, a Heine ou Raabe, e a Stendhal ou Nievo, pelo que faz a Itália, para contemplar essa contraditoriedade em toda sua amplitude e profundidade.

É tarefa da ciência histórica estudar detalhadamente essas contradições. O que nos importa aqui é mostrar que a plasmação artística, sua subjetividade, a encarnada nela como aquela por ela desencadeada, reproduz esta estrutura da realidade histórico-social objetiva, conservando suas verdadeiras proporções, mas com intensidade aumentada. Disso se conclui que as diluídas fronteiras da realidade objetiva, as passagens entre suas contradições, exigem e desenvolvem modos de comportamento objetivos adequados para assumir em si essa estrutura e reproduzi-la plasmada ou receptivamente. Nossa formulação anterior, que o sujeito tem de se precipitar à corps perdu [à corpo perdido – ndt] nesse mundo da espécie humana como sujeito, se confirma e concretiza assim, A dialética de Hegel do diferente e o não diferente tem aqui uma importância especial. Pois dentro do sujeito criador se decide onde e como é preciso traçar linhas divisórias, por distâncias, síntese unificadoras, etc., com objetivo de realizar na matéria real aquelas generalizações concretas, sensíveis e significativas, que são capazes de fazer de sua objetividade – sem destruir seu autêntico Em-si – uma animada reafirmação do homem e de seus atos. Neste sujeito criador se decide em qual nível se realiza a unificação da qualidade puramente subjetiva com a verdade histórico-social, e se nessa unidade não deve ficar mais do que um simples reflexo da particularidade ou preciso despertar em si as demais amplas formas vitais da subjetividade (da família até a humanidade). E é claro que na subjetividade receptiva – mutatis mutandis [mudando o que deve ser mudado – ndt] - têm que se desenvolver processos análogos, sem dúvida com a diferença qualitativa de que nesse caos o sujeito não se enfrenta com uma realidade que é preciso começar por plasmar artisticamente, apenas que se encontra submetido a efeitos irradiados por uma obra já formada que orienta as vivências. As diferenças de nível da subjetividade estão, portanto postas nas obras, não é o contemplador o que as arranca da realidade; mas é perfeitamente possível que esse nível não se alcance em suas vivências, ou antes, que as vivências introduzam vivencial ou interpretativamente na obra algo não conquistado nela. Seja esse processo de recepção adequado à obra, seja representado em relação à ela um movimento para cima ou para baixo, o fato é que esse processo mostrará no sujeito – também aqui mutatis mutandis – uma estrutura análoga.

As obscuridades tão difundidas a propósito desta questão procedem, em sua maior parte pelo menos, de que as análises dos modos de comportamento estéticos não costumem se fundamentar a partir dela dos fenômenos secundários, derivados. (A segunda parte desta obra oferecerá uma detalhada tipologia desses modos de comportamento. Aqui teremos de nos limitar a observações muito gerais e, portanto, abstratas). Recordamos, por exemplo, que Kant vê no juízo estético o “protofenômeno” do comportamento estético, apesar de que uma consideração sem preconceitos torna evidentes que os juízos estéticos são mais do que a constituição conceitual das primitivas vivências estéticas, ou seja, que a correlação de conteúdo desses juízos depende da estrutura das vivências, coisa a que Kant não presta a menor atenção, pois, busca apenas critérios formais de validade. Como é natural, aquela passagem aos conceitos não é qualquer transposição mecânica, senão que contêm necessariamente um esclarecimento – ou, pelo menos, uma tentativa nesse sentido – das causas gerais da vivência estética. Até mais à frente, como dissemos, não poderemos levar a término uma análise dos problemas especificamente estéticos e lógicos em geral que nascem dessa situação, mas a alusão era necessária porque a dialética do sujeito que aqui nos interessa exige na vivência estética sua forma realmente peculiar; por isso é preciso apelar à referida vivência para captar esse próprio fenômeno em sua pureza. Diremos apenas, para satisfazer esse ponto de vista, que essas complicadas relações entre o originariamente estético e o derivamente estético se encontram também no processo de criação; também neste desempenham um papel considerável traços que tem muito contato com as formas de reflexo da cotidianidade e da ciência, e que às vezes são idênticos com estas. É suficiente, entretanto, com esta simples menção ao problema.

A deformação – considerada do ponto de vista estético – se deve na maioria dos casos q que ligações que se concentram de modo originariamente estético em uma unidade orgânica indissolúvel, acabam por se apartar, e os momentos assim produzidos se opõem frequentemente uns aos outros como entidades independentes. Isto ocorre na maioria das vezes segundo uma tendência pela qual o sujeito particular do criador, a qualidade específico-individual da obra a tomada classista de partido e a revolução classista da realidade, seu colorido nacional e de época, sua manifestação do especificamente humano, todos os traços que na obra constituem, indissoluvelmente vinculados, uma unidade – sem dúvida dialeticamente contraditória –, exigem agora uma vida própria ou, pelo menos, se opões como tendências independentes umas das outras. Façamos uma observação de passagem: como é natural, uma investigação histórica de detalhe – nessa conclusão – tem metodologicamente pleno direito de estudar obras de arte, por exemplo, do ponto de vista de sua fidelidade à história, e tias estudos podem às vezes ajudar inclusive ao conhecimento de problemas artísticos. Mas ao trabalhar assim o investigador saiu da esfera estética, contempla a arte de fora, não de dentro, o estético se converte em simples material de uma avaliação científica e a obra em simples documento. Enquanto houver consciência de que esse diversos aspectos permanecem em simples aspetos em relação da unidade da formação estética objetiva, não existe qualquer perigo que se fragmente a unitariedade do assunto estético. A determinação do indivíduo por esta ou aquela forma importante das relações sociais entre os homens não suprime, de fato, a unidade da individualidade, apenas se limita a lhe prestar novos destaques, a enriquecê-la e aprofundá-la. Quando, por exemplo, um trabalhador exige consciência de classe, aparecem sem dúvida novos conteúdos de consciência em sua personalidade e produzem às vezes grandes modificações nela, enérgicas reorientações, etc., mas a continuidade da personalidade se preserva sempre em todo Saulo, por mais repentino que se haja convertido em Paulo. O mesmo vale, naturalmente, da relação alterante das formas sociais entre elas, e especialmente do modo como estas determinam a personalidade dos homens, sua evolução, seus conflitos, etc. A arte confirma e acentua esta verdade da vida. Pois a arte reproduz a natureza e a história do ponto de vista dos homens ativos nelas, e, portanto, inclusive nos pontos nos quais a continuidade e a passagem ao discreto desempenham sua contraditoriedade dialética até o salto a uma nova qualidade, tem de preservar o momento da continuidade e até tratá-lo como momento abrangente.

Tudo isso parece claro por si pelo que faz aos efeitos das relações reais histórico-sociais entre os homens. A controvérsia se complica mais quando se trata de desempenhar o ponto de vista próprio da humanidade, pela simples razão de que este ponto de vista não conseguiu ainda qualquer forma objetivada nas relações humanas de qualquer sociedade que existiu até o presente, de tal modo que não pode nunca determinar de modo direto os atos e as ideias dos homens. Mas não deve se esquecer de que o desenvolvimento e o desempenho do nascido na história como próprio do gênero humano, como característica sua, não foi nem é primariamente resultado do pensamento ou o sentimento humanos, apenas que surgiu e continua surgindo do jogo das forças objetivas dessa evolução. Com isto não se pretende negar a importância daquelas ideias e aqueles sentimentos; ao contrário, eles exigem precisamente uma importância considerável pela fixação e preservação das experiências e as conquistas impostos aos homens pelo processo objetivo. Mas, como todas as ideias e todos os sentimentos, também estes são reflexos do que eficazmente ocorre na realidade objetiva. Sublinhamos já que estes momentos, nos quais se expressa o particular à evolução do gênero humano, estão sempre indissoluvelmente vinculados à histórias das formas de comunidade (classe, nação, etc.); que seu caráter específico não pode exigir nunca existência senão como traço, matiz, tendência, etc., do movimento de tias formas de comunidade. A inseparabilidade dessas ligações dos contextos como são o vínculo espacial e cronológico, ou seja, a essência nacional e classista de toda manifestação do especificamente humano é um fato objetivo da história. Sua manifestação subjetiva, a autoconsciência desses processos, tem, pois de possuir, como reflexo deles, uma natureza e uma estrutura que lhes correspondam.

É óbvio que o reflexo estético tem de acentuar ainda mais energicamente, posto que seja reflexo de tal realidade, a tendência existente à inseparabilidade dos vários momentos. Pois, como dissemos já várias vezes, a essência do reflexo estético se baseia precisamente em que levanta a unidade sensível e significativa do humano e sua inteira e contraditória riqueza a um efeito evocador. Esta transformação qualitativa da matéria vital imediatamente dada tende a orientar as vivências da recepção de tal modo que a unidade humana do conteúdo – por mais contraditória que seja – consegue se exprimir, mediante uma construção formal unificadora, com uma unidade intensificada. Com isto exige um aspecto novo na dialética da unidade de Hegel de unidade e separação do diverso e o não diverso: a autoconsciência que, em relação do inteiro e indistinto complexo dos modos humanos de manifestação, se distingue de si própria como contemplação, se reconhece a si mesma nesse complexo e objetiviza sua autorreflexão, se esforça por conseguir a mais alta generalização possível, isto é, por prestar à formação estética o efeito mais intenso e duradouro imaginável. A orientação do reflexo estético ao especificamente humano não se vê por isso obrigada a ser consciente. A altura objetivamente alcançada na obra deste ponto de vista depende da riqueza; pode realizar esta ascensão ao específico inclusive no horizonte de uma orientação consciente-imediata ao hic et nunc [aqui e agora – ndt] do instante histórico-social dado e pode fracassar na tentativa apesar do mais intenso esforço por captar artisticamente o “universalmente humano”. Isto significa que o fenômeno estudado nos põe diante um caso muito radical da unidade de forma e conteúdo na obra de arte. A especificidade que se manifesta nessa unidade é antes de tudo um problema de conteúdo: do número ilimitado de caracteres, traços, fatos, colisões, etc., possíveis (e até típicos) em uma determinada época e em determinadas circunstâncias, se elegem uns e se ordenam compositivamente de tal modo que em seu conjunto faça significativo o que é digno de se sobreviver na memória da humanidade e o que os homens podem experimentar, em amplas distâncias cronológicas e locais, em circunstâncias historicamente muito alteradas, como o acento emocional do nostra causa agitur [nossa causa é –ndt]. Mas o problema se faz também de forma pelo fato mesmo de sê-lo de conteúdo. Pois, sem dúvida, o que dá a base para tal efeito é essa seleção, essa agrupação; mas o que esse efeito se produza presentemente e conserve sua atualidade durante séculos e até milênios é uma conquista exclusiva das específicas qualidades da forma. Como é natural. É preciso entender aqui a forma em um sentido muito amplo: as autênticas e grandes renovações da forma ou o nascimento das formas novas que se convertem em posse duradoura da humanidade nascem do que o específico daquele importante conteúdo novo exige uma radical reconstrução das formas pré-existentes ou a invenção de outras novas, coisa que talvez se revele do modo mais acentuado no dado da introdução do segundo ator por Ésquilo; porém também o dramatismo pitoresco de Giotto, o cromatismo de Rembrandt, a harmonia de Beethoven e muitos outros dados da história da arte dão testemunho em favor dessa afirmação.

A indissolúvel unidade de generalização humana e preservação, perpetuação sensível e significativa do hic et nunc [aqui e agora –ndt] histórico social e puramente pessoal não perece contraditório senão que se tente impor ao reflexo da realidade os critérios do científico. Precisamente nessa peculiaridade do estético se manifesta a diferença entre uma consciência sobre a realidade (mesmo que às vezes a realidade seja o Eu humano) e a autoconsciência da humanidade (mesmo que essa autoconsciência se objetive às vezes em uma paisagem ou em uma natureza morta sem figuras humanas), tal como mencionada autoconsciência se põe em evidência nas grandes obras da arte. A autoconsciência tem como conteúdo o duradouro, o significativo – positiva ou negativamente – da vida humana, da evolução do gênero humano, e do mesmo modo que esse conteúdo supera – preservando-o – tudo de importante para a vida. Da personalidade particular até o especificamente humano, assim também sua forma cria uma unidade do personalismo com a suprema generalização, a qual supõe aqui uma capacidade de evocação que supere as limitações do tempo e espaço. E aquela unidade é a adequada à relação com o conteúdo. Também a consciência sobre a realidade objetiva tem que fixar, naturalmente, fatos, personalidades, tempos, condicionamentos locais, etc., em sua particularidade concreta, porém todas essas coisas – e tanto mais decididamente quanto mais desenvolvida a consciência – são pontos de partida, trampolins para captar as leis universais que governam ou, pelo menos, para se aproximar a essas leis, com objetivo de poder continuar, quando for possível, também o individual como tal. Somente no estético tem valor substantivo essa qualidade pessoal, e em todos os sentidos: como qualidade pessoal do objeto representado e como qualidade pessoal do mesmo modo de representação; a tal qualidade é apoio e despertar da autoconsciência: como memória, como “re-cordação” do caminho que percorreu e percorrerá a humanidade, das pessoas e as situações, as virtudes e os vícios, do mundo interno e externo dos homens, a partir de cujo desempenho dinâmico, de cuja dialética contraditoriedade, o gênero humano se levantou do que é hoje e o que será amanhã. Mesmo que essa preservação pareça em algum caso muito pontual – como o caos de uma paisagem, com a iluminação particular de uma hora precisa, de um instante – entretanto, seu efeito é neste sentido histórico, pois se vive como etapa daquele caminho; mas, ao mesmo tempo – continuando com o exemplo da paisagem –, a criação supera o simplesmente histórico, porque o instante fixado se eleva imediatamente à condição de posse ineliminável da humanidade em uma continuidade em transformação, mas cada vez mais rica e mais profunda.

O conhecimento destas ligações esclarece finalmente a essência do sujeito pelo qual se realiza a retrocaptação artística da alienação artística. O processo é e fica sempre inseparavelmente vinculado à particularidade da subjetividade criadora, e tampouco a vivência da obra de arte pode romper com a particularidade do sujeito receptor. Mas, ao mesmo tempo se produz em ambas uma elevação acima dessa particularidade: mesmo conservando a assinatura de sua peculiaridade qualitativa, desaparece delas – ou se reprime pelo menos até o último lugar – tudo o que na vida possa transformar essa unicidade em um fechamento sobre si próprio, tudo o que é subjetivo em um sentido social pejorativo, tudo que levanta uma barreira entre o eu e o mundo, tudo que recubra superficialmente o mundo, sem penetrar em seu núcleo, com uma camada de cor da qualidade particular. O caminho que leva disso até a volta a si, arrancando de uma imersão tão profunda no mundo que tudo o que este contem – com uma objetividade intensificada – se converte em posse íntima da subjetividade humano, é longo e abundante em etapas; mas é pela sua essência um caminho que vai da subjetividade particular da personalidade imediatamente dada até a realização da especificidade humana no próprio eu. Visto do sujeito, trata-se, pois, de um processo que realiza ao mesmo tempo uma purificação e uma intensificação, um enriquecimento e um aprofundamento.

Se antes sublinhamos que a conquista de um cume do humano na confirmação não depende da consciência da intenção orientada a eles, há que recordar agora o sentido de consciência tomado em conta. Não se trata, pois, do misterioso e mistificado Inconsciente de nossos dias. Uma intenção não consciente pode ser acompanhada, segundo nossa concepção, pela superior consciência, e isso não somente em relação aos meios artísticos que deve utilizar (coisa que também reconheceriam muitos defensores do “Inconsciente”), senão inclusive em relação da finalidade de conteúdo proposta. A possível ausência de consciência se refere a que nenhum contemporâneo pode prever com certeza apodítica quais propriedades dos homens que vivem com ele – positivas ou negativas – são temporárias, passageiras, e quais serão incorporadas pelo futuro aos nascente “corpus” [corpo – ndt] do específico. Não pode haver nisto para a formação artística qualquer segurança de que o apresente, por exemplo, a concepção do mundo, O marxismo é, certamente, capaz de prever as tendências evolutivas mais gerias da sociedade para grandes intervalos históricos, e pode também indicar perspectivas para etapas mais curtas – mesmo dando sempre essas perspectivas em necessária universalidade –, mas não pode nem pretende propor-se a tarefa de antecipar mentalmente todas as “astúcias” (Lenine) do caminho evolutivo. A formação conquistada ou fracassada, da compreensão ou a cegueira em relação de tais momentos do caminho evolutivo. A correção científica de uma previsão ou de uma perspectiva se confirma enfrentando-a com a massa dos fatos e tendências reais; não podem anular seu acerto as discrepâncias de detalhe, por mais consideráveis que sejam. A correção artística na tarefa de dar forma ao específico se confirma, por outro lado, ou fracassa por comum no âmbito do que do ponto de vista científico costuma se considerar simples detalhe. Tal é o caso da “proféticas figuras” de Balzac, o qual conseguiu desenvolver e representar como realidade determinados traços dos homens do Segundo Império, tomando-os de seus germes na época da monarquia burguesa(30). Este é também o caso de Eurípides, na figura de Fedra, ou de Dido de Virgílio, personagens que levantaram a paixão amorosa individual à altura do especificamente humano, de possessão da autoconsciência da humanidade, muito antes que aquela paixão chegasse a ser um fenômeno socialmente geral.

Isto produz para o sujeito estético – para o criador na produção e para o receptor na recepção da obra – aquela situação, já várias vezes indicada, na que tem que se lançar à corps perdu [à corpo perdido – ndt] no mundo destes fenômenos. Esta estrutura tem naturalmente como consequência que possam inserir-se teorias irracionalistas nas aparentes lacunas da derivabilidade conceitual; e não se refuta essas teorias, senão que antes se as faz mais tenazes, tentando arguir contra ela mediante pensamentos pseudo-racionais. Em realidade, impera nestas controvérsias uma ratio [razão – ndt] claramente perceptível, mas que, na maioria dos casos, não se pode fixar e esclarecer-se senão a posteriori [depois – ndt]. Os limites da predicabilidade se encontram na própria matéria real. Esta afirmação se baseia não apenas na relação, até agora analisada, do específico com os demais momentos de construção do mundo histórico-social, não somente nas específicas tarefas que se apresentam na hora de escolher o conteúdo e dar forma artística. Deve-se também – coisa a qual mencionamos antes – à complicação do próprio caminho histórico, à irregularidade desta evolução e, sobretudo – e decisivamente para a eficácia da arte –, a que todo presente olha o passado do ponto de vista das próprias necessidades e perspectivas e as valoriza com essa mesma perspectiva, especialmente pelo que faz à autoconsciência expressa na arte. Talvez baste mencionar de novo às variantes polêmicas sobre os méritos de Homero e Virgílio. Mas o fato de que todas essas pugnas possas esclarecer-se a posteriori [mais tarde – ndt] com a racionalidade mostra a insustentabilidade objetiva de toda interpretação irracionalista das mesmas, mostra que, mesmo sem dúvida não possa existir axioma abstrato qualquer que permita uma dedução direta dos fenômenos individuais, entretanto, todo fenômeno individual pode se analisar integralmente do ponto de vista de suas raízes histórico-sociais da natureza de sua estrutura estética. Estamos, pois, aqui diante de um caso daquela explicação científica que Marx formulou do seguinte modo referindo-se à irregularidade da arte em geral: “A dificuldade está na formulação geral destas contradições. Quando se especificam ficam explicadas”(31).

É preciso manter a ideia da natureza essencial do estético como forma maximamente adequada de manifestação da autoconsciência da humanidade, se é que queiramos avaliar adequadamente sua particularidade. Ao fazê-lo se apelou até agora nesta obra a seu modo de manifestação originário, e recusamos ao mesmo tempo energicamente toda tentativa de explicar sem mais delongas estes fenômenos estéticos já desenvolvidos mediante uma aplicação direta de categorias do reflexo científico. Desta nossa atitude não se conclui, como é natural, não uma recusa de explicação científica dos fenômenos estéticos – pois toda nossa presente investigação é uma tentativa neste sentido – nem uma rígida oposição metafísica entre a ciência e a arte, a consciência e a autoconsciência da humanidade. A primeira controvérsia, como já dissemos, não se poderá estudar até a segunda parte desta obra. Pelo que concerne à segunda, repetimos já que a ciência e a arte (e também o pensamento cotidiano) refletem a mesma realidade. A particularidade de cada reflexo se constitui no curso da história como uma forma extremamente importante da divisão do trabalho no sentido geral, como divisão do trabalho que não somente dispõe dos distintos homens individuais e grupos de homens no seio de uma sociedade e de acordo com suas necessidades, senão que além disso e sobretudo, produz neste caso uma divisão do trabalho, em cada individuo humano, entre os sentido, o intelecto e a razão. A divisão do trabalho, entre a ciência e a arte é uma necessidade elementar da vida, sem a qual não se poderia jamais produzir com êxito a divisão social do trabalho no sentido objetivo nem poderia começar a funcionar. O indiferenciado comportamento da cotidianidade, no qual tudo se orienta para uma prática imediata, seria incapaz de resolver satisfatoriamente os problemas cada vez mais complicados com o desenvolvimento das forças produtivas. Mostramos já como, sob a pressão de tais circunstâncias, que tem de dissolver-se a plena indiferenciação do período mágico, assim como o nascimento das tendências capitais de tal divisão do trabalho, os reflexos científico e estético da realidade. Também indicamos que essas forma mais diferenciadas do reflexo nascem de necessidades sociais da cotidianidade, desenvolvem com a maior pureza possível suas específicas naturezas essenciais – para satisfazer de mais ótimo aquelas necessidades –, mas que com isso, em última instância, não se produz qualquer isolamento em relação da prática da cotidianidade. Ao contrário, os resultados objetivos e subjetivos do reflexo científico e do estético afluem constantemente à vida cotidiana, à prática cotidiana, a enriquecem e aprofundam sem superar, desde já, seu caráter de cotidianidade, razão pela qual o nível da cotidianidade, em ascensão constante, não estrangula a necessidade de posteriores diferenciações do reflexo científico e o artístico, senão que o faz aumentar extensiva e intensivamente.

Partindo dessa base se esclarece plenamente s divisão do trabalho entre a consciência e a autoconsciência. A consciência conquista para o homem o mundo que existe em si. Ao transformar seu Em-si em um Para-nós, cria atmosfera de jogo real e próprio para a prática conquistadora do mundo, para a transformação da realidade em um fértil campo de atividade dos homens. Sua necessidade social é, pois, imediatamente óbvia. Mas, com o crescente desempenho da cultura a apropriação do mundo pelo homem requer além disso que se ponha em relação consigo mesmo o mundo externo que dominou prática e factualmente, que conquiste, com essa conquista, também uma nova pátria. Essa necessidade é tão elementar como a que conduziu ao desenvolvimento independente das ciências. O fato de que os meios para a satisfação desta necessidade não tenham sido exclusivamente, nem o sejam ainda, os da arte não pode constituir prova contra essa função humano-específica da arte. Pois também a ciência conseguiu uma situação de monopólio em seu próprio campo; “não mais que” a forma mais adequada de um determinado cumprimento de exigências sociais, e junto com estas exigências, promovendo-as e promovida por elas, a ciência cresce finalmente até sua própria pureza e maturidade. Mesmo que a relação da arte com a vida seja ainda mais complexa que da ciência com ela (e esta relação tampouco não é simples), o fato é que a arte, no curso da evolução histórica, se conquista uma posição análoga de forma culminante no complexo vital que ela exprime do modo mais adequado. Pudemos observar uma parte desse vínculo da arte com a existência humana, sua separação e independência de suas formas expressivas inadequadas, sua volta à vida em uma expressão e uma evocação adequadas, na sua relação com as formas primitivas de expressão da humanidade, e sobretudo em sua relação com a magia. Em diferentes contextos – como o da beleza natural, o da liberdade do estético em relação ao religioso – voltaremos a estudar mais vagarosamente estes problemas.

Aqui se tratava exclusivamente de recordar com alguma clareza mais concreta que a possível até agora o fato de que a arte é o modo de manifestação mais adequado e superior da autoconsciência da humanidade. Haveria de mostrar que nossas teses puramente estéticas acerca da particularidade deste reflexo da realidade (como a tese da prioridade do conteúdo em relação à forma, a do caráter evocador-orientador da forma, o da essencialidade para a forma de sê-la de um conteúdo, etc.) não podem mostrar seu verdadeiro sentido mais do que referidas ao especificamente humano, pelo crescimento e a passagem do reflexo da realidade a elemento autoconsciente. Todos as reprovações de “engano e mentira” feitas à arte ao longo de uma evolução de muitos milênios, até chegar ao que nega essencialidade à reprodução de algo que já existe por si próprio, exigem uma justificação – muito imediata – em determinadas constelações históricas pelo fato, exclusivamente, de que alguns críticos (e, em certas circunstâncias, os artistas e suas próprias obras) fizeram que se passasse por cima dessa ligação ou caísse no esquecimento. Pois o vitorioso mundo próprio das obras de arte, o mundanismo desta, a irresistibilidade de seu poder evocador, se baseiam precisamente nesse desempenho do concreto e especificamente humano. Se isso desaparecesse inclusive na “imitação” mais autêntica da realidade, o domínio mais virtuoso das forma, a invenção mais inteligente de novas possibilidades de efeito ficariam em “pedaços de ferro que retumbam e campainhas que tocam”. A revelação artística desse conteúdo é o que faz da mimese um fato básico do estético, um reflexo da realidade independente da consciência humana, mas um reflexo no qual, por seu princípio, não mais se apresenta que aquilo que promove ou inibe a evolução do especificamente humano, um reflexo no qual todo objetivo, toda emoção não pode se erguer até a condição de objetivo senão no contexto de referida evolução. Todas as transformações praticadas pelo reflexo estético no mundo aparente imediato perdem todo caráter formalmente arbitrário graças a essa referencialidade; e, por outro lado, a fidelidade desse modo de reflexo da realidade, inclusive em seu modo imediato de manifestação, se justifica somente pelo fato de fazer branco nesta suprema realidade do ser-homem. Assim, pois, somente a aceitação – carregada de contradições – da autoconsciência do gênero humano pode fundamentar filosoficamente a peculiaridade do reflexo estético. Precisamente a contraditoriedade concentrada nesse conceito – suprema objetividade com suprema referência ao sujeito –, precisamente uma subjetividade como critério, a qual não existe no mundo interno e externo objetivamente dado mais que ocultamente, “inconscientemente”, às vezes utopicamente, junto com a criação de um mundo da arte não tem de apresentar nada utópico: isso é, como base do originariamente estético, o que compõe uma lisa e plana descrição da realidade refletida.


Notas de rodapé:

(1) MARX, Manuscritos econômicos-filosóficos do ano de 1844, cit., Werke [Obras], Band [Volume] III, p. 21. Parágrafo que se inicia com “Pode ser notado que...”

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(2) Marx, Thesen über Feuerbach [Teses sobre Feuerbach] Werke [Obras], Band [Volume] V, p. 535. Marx – Teses sobre Feuerbach – 6ª tese – {A partir de “(...)2 – (...) a essência humana(..) – ndt} (retornar ao texto)

(3) MARX – Ökonomisch –Philosophische Manuskripte [Manuscritos econômicos filosóficos do ano de 1844] Werke [Obras] Band [vol], III, p. 142. Parágrafo que começa com “O raciocínio de Adam Smith(...)” (retornar ao texto)

(4) BALZAC, Oeuvres completes, Paris, 1869, I, p. 3. (retornar ao texto)

(5) MARX – Manuscritos econômicos filosóficos do ano de 1844, Obras, cit., Vol. III, p. 117. Parágrafo que começa: “Acima de tudo, é mister (..) e termina no outro parágrafo que começa com “Em sua consciência como espécie, o homem (...)” e termina “(...) sua universalidade como ser pensante”. (retornar ao texto)

(6) Texto citado. (retornar ao texto)

(7) E. BLOCH, Das Prinzip Hoffnung [O princípio Esperança], Berlim, 1954, Band [vol] I, p. 58 e ss. (retornar ao texto)

(8) Cfr. meu livro sobre o jovem Hegel. (retornar ao texto)

(9) GORKI, Erinnerungen [Recordações – ndt], ed. Alemã, Berlim, 1928, p. 71. (retornar ao texto)

(10) Citado em meu livro Die deutschen Realisten des 19. Jahrhunderts [Os realistas alemães do século XIX - ndt], p. 260, incluído agora no vol. 7 das Werke [Obras], Deustsche Literatur in zwi Jahrhunderten [Dois séculos da literatura alemã – ndt]. Nesse trabalho se mostra além disso como se produz as vezes a queda do autêntico poeta realista Fontane ao nível da boa literatura de profissão, o qual, desde já, no lado objetivo, no lado da obra, o dilema que estamos tratando do plano do sujeito. (retornar ao texto)

(11) Este texto pode ser encontrado em MARX, Crítica do Programa de Gotha [ndt]: (retornar ao texto)

(12) MARX, Capital, Band [vol.] I, cit. p. 39. (retornar ao texto)

(13) HEGEL, Estética, Obras, cit., I, p . 297 e ss. (retornar ao texto)

(14) É muito interessante que Emil Staiger entenda como uma simples “citação-errada” essa coerente e profunda alteração da palavra do Tasso “Como sofro”. Eis aqui como justifica Steiger sua interpretação: “ ‘Dizer o que eu sofro’ é a formulação mais a mão que ‘como sofro’; mas ‘como sofro’ é mais doloroso e, ao mesmo tempo, mais ligado no Eu; esta tradução fiel do modo e grau do sofrimento; a outra dá apenas o conteúdo”. (Emil Staiger, Die Kunst der Interpretation [A arte da interpretação – ndt], Zurique, 1955, p. 163). Não discutiremos aqui a hierarquia de valores subjetiva implícita nesse comentário. Não há qualquer dúvida que no período dominado pelo Tasso também Goethe concedia prioridade ao “como”; mas é preciso se perguntar qual era a atitude do velho Goethe diante do problema. Ele escreveu o poema “Na Werther” [ A Werther] depois da “Elegie” [Elegia], e seu verso final, a apóstrofe ao poeta do Werther, “Que lhe conceda um deus dizer o que suporta”, é sem dúvida, com seu caráter postulador, uma preparação ideal – criada a posteriori – do motto [lema – ndt] da “Elegie”; e como essa preparação não é uma citação, mas uma paráfrase, não é sensato posicionar-se sequer a possibilidade de um “erro de memória”, mas que tem a ver com o fato de uma alteração da concepção do mundo e, portanto, da missão do poeta. No Tasso, o “como” exprime simplesmente a intenção do protagonista de salvar subjetivamente sua própria existência de poeta, enquanto que agora, na velhice de Goethe, se fala da vocação (missão) geral do poeta: dizer a palavra libertadora em nome da humanidade e para a humanidade. E o fato de que o velho Goethe julgue a Tasso e Werther como pertencentes ao mesmo tipo mostra seu acordo com o crítico francês Ampère, que havia chamado ao Tasso “um Werther exagerado”. Cremos, pois, ter pleno direito a considerar o “que” do motto como extrema sabedoria de Goethe, não como “citação errada”. (retornar ao texto)

(15) HEGEL, Aesthetik [Estética – ndt], Obras, I, p. 267. (retornar ao texto)

(16) HEGEL, Fenomenologia do Espírito, Obras, cit., II, p. 611. (retornar ao texto)

(17) A compreensão deste conceito de Hegel (uma vez traduzido) exige levar em consideração e até recarregar significativamente, a etimologia de “recordação”: pensar que “re” refere-se a repetição, e que a raiz de voz está intimamente aparentada com “coração”, ou seja, com a ideia de interioridade. Re-cordação neste sentido de Hegel é pois despertar ou renovação da interioridade, nova interiorização de algo. A expressão usada por Hegel é “Er-Innerung”, que em alemão conversacional significa recordação, mas se escreve “Erinnerung”. [ndt] (retornar ao texto)

(18) Caudwell escreveu sobre a lírica: “Assim se destrói e nega constantemente a linguagem da poesia a estrutura da realidade para destacar a monotonia individual” (Illusion and Reality [Ilusão e Realidade – ndt, cit., p. 199). Que Caudwell reconheça por outro lado na épica e na dramaturgia um reflexo da realidade objetiva é irrelevante neste ponto. Mas vale a pena precisar brevemente uma curiosa consequência dessa teoria: se segue, entretanto, dos motivos fundamentais da mesma que o romance não conheça nem ritmo nem estilo, nem se construa com palavras, mas com cenas. Ibid., p. 200. (retornar ao texto)

(19) HEGEL. Estética, cit., I, p. 379 (retornar ao texto)

(20) SEXTO EMPÍRICO, Hipóteses pirrônicas, Livro primeiro, capítulo XIV. (retornar ao texto)

(21) DIELS, Os fragmentos dos pré-socráticos, Berlim, ed. De 1960, volume I, p. 75, fragmento de Heráclito número 89. (retornar ao texto)

(22) T. S. ELIOT, The Use of Poetry [O uso da Poesia], Londres, 1934, p. 141. (retornar ao texto)

(23) KERR, Obras, cit. volume I, p. XVII. (retornar ao texto)

(24) Ibid., p. VIII. (retornar ao texto)

(25) A segunda parte desta obra não foi publicada em vida pelo autor [ndt]. (retornar ao texto)

(26) Kant – Crítica da Faculdade de julgar, § 20. (retornar ao texto)

(27) Ibid., § 24. (retornar ao texto)

(28) HEGEL – Fenomenologia do Espírito volume II, p. 128 e ss. (retornar ao texto)

(29) MARX – ENGELS, Obras Completas (1852-1862), Stuttgart, volume II, p. 421. (retornar ao texto)

(30) LAFARGUE – Recordações sobre a vida íntima de Carlos Marx. “Balzac, não foi só o historiador da sociedade de seu tempo, mas também o criador de tipos proféticos que, na época de Luis Felipe, existiam apenas em estado embrionário, só se desenvolvendo completamente ao tempo de Napoleão III”. (retornar ao texto)

(31) MARX – Grundrisse [Fundamentos – ndt], I, cit., p. 30. (retornar ao texto)

Inclusão: 21/07/2021