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Do que precede resulta, para as épocas pré-capitalistas e para o comportamento, no capitalismo, de numerosas camadas sociais cuja vida tem fundamentos econômicos précapitalistas, que a consciência de classe de que são portadoras não é capaz, em razão de sua própria natureza, de tomar uma forma plenamente clara e de influenciar conscientemente os acontecimentos históricos.
Antes de tudo, porque é da essência de toda sociedade précapitalista jamais poder fazer aparecer, em plena luz (econômica), os interesses de classe. A organização da sociedade dividida em castas, em estamentos,[16] etc., é feita de tal maneira que, na estrutura econômica objetiva da sociedade, os elementos econômicos aparecem unidos inextrincavelmente aos elementos políticos, religiosos, etc. Somente com a dominação da burguesia, cuja vitória significa a supressão da organização em estamentos, é que se torna possível uma ordem social em que a estratificação da sociedade tende â pura e exclusiva estratificação em classes. (Não muda absolutamente nada da justeza fundamental dessa constatação o fato de que, em mais de um país, os vestígios da organização feudal em estamentos tenham subsistido no seio do capitalismo.)
Essa situação tem, de fato, o seu fundamento na profunda diferença existente entre a organização econômica do capitalismo e a das sociedades pré-capitalistas. A diferença mais frisante, e que agora mais nos importa, é que toda sociedade précapitalista forma uma unidade incomparavelmente menos coerente, do ponto de vista econômico, do que a sociedade capitalista, que ali. a autonomia das partes é muito maior, sendo mais limitadas e menos desenvolvidas, do que no capitalismo, as suas interdependências econômicas. Quanto mais fraco é o papel da circulação das mercadorias na vida da sociedade em seu conjunto, e quanto mais cada uma das partes da sociedade vive praticamente em autarcias econômicas (comunas aldeãs) ou não desempenha nenhum papel na vida propriamente econômica da sociedade, no processo de produção em geral (como era o caso de frações importantes de cidadãos nas cidades gregas e em Roma), tanto menor é o fundamento real da forma unitária e da coesão organizacional da sociedade e do Estado,. na vida real da sociedade. Uma parte da sociedade leva uma existência "natural", praticamente independente do destino do Estado. "O organismo produtivo simples dessas coletividades autárquicas que se reproduzem constantemente sob a mesma forma, e se por acaso são destruídas, reconstroem-se no mesmo lugar, com o mesmo nome, dá a chave do mistério da imutabilidade das sociedades asiáticas, imutabilidade que contrasta de maneira evidente com a dissolução e a renovação constante dos Estados asiáticos e com as incessantes mudanças dinásticas. A estrutura dos elementos econômicos fundamentais da sociedade não é alcançada pelas tempestades que agitam o céu da política." [17] Outra parte da sociedade leva, por seu lado, uma vida econômica inteiramente parasitária. O Estado, o aparelho do poder estatal, não é para elas, como para as classes dominantes na sociedade capitalista, um meio de impor, se necessário pela violência, os princípios de sua dominação econômica ou de procurar pela violência as condições de sua dominação econômica (como o é para a colonização moderna) Não é pois uma mediação da dominação econômica da sociedade, é imediatamente essa própria dominação. Não é o caso somente de quando se trata pura e simplesmente de apossar-se de terras, de escravos, etc., mas também das relações econômicas" ditas pacificas. E assim que Marx se refere, ao falar da renda de trabalho: "Nessas condições, o excedente do trabalho não pode ser extorquido em proveito dos proprietários de terra nominais a não ser por intermédio de uma coação extra-econômica" [18] Na Ásia, "a renda e os impostos são uma mesma coisa, isto é, não existem impostos distintos dessa forma de renda fundiária". E mesmo a forma que reveste a circulação das mercadorias nas sociedades précapitalistas não lhe permite exercer unia influência decisiva sobre a estrutura fundamental da sociedade. Permanece â superfície, sem poder dominar os próprios processos de produção, e, em particular, suas relações com o trabalho. "O comerciante podia comprar todas as mercadorias, menos o trabalho como mercadoria. E só era tolerado como fornecedor dos produtos artesanais", diz Marx. [19]
Apesar de tudo, tal sociedade forma também uma unidade econômica. Só resta indagar se essa unidade é de tal maneira que a relação dos diversos grupos particulares, de que a sociedade se compõe, com a totalidade da sociedade, pode tomar, na consciência que lhe pode ser adjudicada, unia forma econômica. Marx, por sua vez, ressalta que a luta de classes dos antigos se desenrolava "principalmente sob a forma de uma luta entre credores e devedores" [20] Mas tem plena razão ao acrescentar: "Contudo, a forma monetária - e a relação de credor a devedor possui a forma de uma relação monetária - não faz mais do que refletir o antagonismo de condições econômicas de vida muito mais profundas". Esse reflexo pôde revelar-se como simples reflexo para o materialismo histórico. Todavia, tinham as classes dessa sociedade, nas condições em causa, possibilidade objetiva de ascender â consciência do fundamento econômico de suas lutas, da problemática econômica da sociedade em que padeciam? Essas lutas e esses problemas não se tornariam necessariamente para elas - conforme as condições de vida em que viviam - formas ora "naturais" e religiosas,[20a] ora estatais e jurídicas? Mas é que a divisão da sociedade em estamentos, em castas, etc., significa exatamente que a fixação tanto conceptual como organizacional dessas posições "naturais" permanece economicamente inconsciente, e que o caráter puramente tradicional de seu mero crescimento deve ser imediatamente vertido nos moldes jurídicos.[21] Porque ao caráter mais frouxo da coação econômica na sociedade corresponde unia função, tanto objetiva como subjetivamente, diferenciada da que lhe é dada ser no capitalismo, das formas jurídicas e estatais que constituem, aqui, as estratificações em estamentos, os privilégios, etc. Na sociedade capitalista essas formas são, simplesmente, uma fixação de interconexões cujo funcionamento é puramente econômico, se bem que, com freqüência, as formas jurídicas - como Karne já mostrou com. pertinência [22] - possam referir-se, sem por isso modificar sua forma ou o seu conteúdo, a estruturas econômicas modificadas. Em compensação, nas sociedades précapitalistas devem as formas jurídicas necessariamente intervir de maneira constitutiva nas conexões econômicas. Não há aqui categorias puramente econômicas - e as categorias econômicas são, segundo Marx, "formas de existência, determinação de existência"[23] - que aparecem nas formas jurídicas, que são vertidas em outras formas jurídicas. Mas as categorias econômicas e jurídicas são, efetivamente, em razão do seu conteúdo, inseparáveis e imbricadas umas nas outras (que se pense nos exemplos dados acima, da renda da terra e do imposto, da escravidão, etc.). A economia não atinge, para falar em termos hegelianos, sequer objetivamente, o nível do ser-para-si, e eis por que no interior de tal sociedade não é possível uma posição a partir da qual O fundamento econômico de todas as relações sociais pudesse tornar-se consciente.
De nenhum modo isso vem suprimir o fundamento econômico objetivo de todas as formas de sociedade. Ao contrário, a história das estratificações em estamentos demonstra, de maneira bastante clara que estas, após terem originariamente percorrido uma existência econômica "natural" nas formas sólidas, decompunham-se pouco a pouco no curso da evolução econômica que se desenrolava subterraneamente, "inconscientemente', isto é, deixavam de constituir uma verdadeira unidade. O seu conteúdo econômico dilacerou sua unidade jurídica formal. (A análise, feita por Engels, das relações de classes no tempo da Reforma, como a feita por Cunow das relações de classes da Revolução Francesa, confirmam suficientemente esse fato.) Contudo, apesar dessa rivalidade entre forma jurídica e conteúdo econômico, a forma jurídica (criadora de privilégios) guarda uma importância muito grande, freqüentemente decisiva para a consciência de classe desses estamentos em via de decomposição. A forma da divisão em estamentos dissimulava. a interdependência entre a existência econômica de estamento - existência real, embora "inconsciente" 7 e a totalidade econômica da sociedade. Ela fixa a consciência ora no nível da pura imediaticidade de seus privilégios (cavalheiros da época da Reforma), ora no nível da particularidade - também inteiramente imediata - dessa parte da sociedade, a que se referem os privilégios (corporações). Mesmo no caso de o estamento já estar completamente desagregado economicamente, e seus membros passarem a pertencer a classes já economicamente diferentes, apesar disso guarda este vínculo ideológico (objetivamente ideal). Isso porque a relação que a "consciência estamentária" desenvolve com a totalidade se dirige a outra totalidade que não a unidade econômica real e viva. Dirige-se, isto sim, a fixação passada da sociedade que constituiu, ao seu tempo, os privilégios estamentários. A consciência estamentária, como fator histórico real, mascara a consciência de classe, impede-a de manifestar-se. Um fenômeno análogo pode-se observar na sociedade capitalista, naqueles grupos "privilegiados" cuja situação de classe não tem um fundamento econômico imediato. A faculdade de adaptação de tal camada a evolução econômica real cresce com sua capacidade de "capitalizar-se", de transformar seus privilégios" em relações econômicas e capitalistas de dominação (por exemplo, os grandes proprietários de terra)
A relação entre a consciência de classe e a história é, por conseguinte, uma nos tempos précapitalistas e outra na época capitalista. Nos tempos pré-capitalistas, as classes não podiam ser destacadas da realidade histórica imediatamente dada a não ser por intermédio da interpretação da história elaborada pelo materialismo histórico. Enquanto hoje as classes são essa própria realidade imediata, histórica. Não é, pois, de modo algum um acaso - como já ressaltava Engels - que esse conhecimento Só se tornou possível na época do capitalismo. E isso não somente em razão da simplicidade maior dessa estrutura em comparação com as "conexões complicadas e ocultas" dos tempos passados, como pensa Engels, mas, antes de tudo, porque o interesse econômico de classe, como motor da história, só apareceu em toda a sua pureza com o advento do capitalismo. As verdadeiras "forças motrizes" que "estão por trás dos móveis dos homens que atuam na história" jamais poderiam alcançar a consciência (mesmo como consciência simplesmente adjudicada) nos tempos précapitalistas. Permanecem, na verdade, ocultas por trás dós móveis como forças cegas da evolução histórica. Os momentos ideológicos não "acobertam" somente os interesses econômicos, não são somente as bandeiras e as palavras-de-ordem de combate. São parte integrante e os próprios elementos da luta real. É claro que, quando o sentido sociológico dessas lutas é pesquisado por intermédio do materialismo histórico, então esses interesses podem, indubitavelmente, ser descobertos como momentos de exploração finalmente decisivos. Mas a diferença intransponível no que se refere ao capitalismo está em que, na época capitalista, os momentos econômicos não estão mais ocultos "por trás" da consciência, mas presentes na própria consciência (simplesmente inconscientes ou recalcados, etc.). Com o capitalismo, com o desaparecimento da estrutura estamentária e com a constituição de uma sociedade de articulações puramente econômicas, a consciência de classe alcançou uma fase onde pode tornar-se consciente. Agora a luta social se reflete em uma luta ideológica para a consciência, a revelação ou a dissimulação do caráter de classe da sociedade. Mas a possibilidade dessa luta já anuncia as contradições dialéticas, a dissolução interna da pura sociedade de classes. "Quando a Filosofia", diz Hegel, "pinta de cinzento o cinzento, é que uma forma de vida envelheceu e não se deixa rejuvenescer pelo cinzento sobre o cinzento, no que apenas se faz reconhecer. A coruja de Minerva só alça vôo ao cair da noite".
Notas:
[16] Aqui, como alhures, traduzimos a palavra alemã Stand por état e a palavra Staat por État. (Nota dos tradutores franceses.) Para que o leitor Inexperto não se deixe confundir com a polissemia do vocábulo estado (Stand). preferimos traduzi-lo ao vernáculo por estamento. (Nota do tradutor da edição brasileira.) (voltar ao texto)
[17] Kapital, 1, 323.(voltar ao texto)
[18] Kapital, III, 2, 324. Grifado por G. L.(voltar ao texto)
[19] KapitaI, 1, 324. Sem dúvida, por ai é que é preciso explicar o papel politicamente reacionário que o capital comercial desempenhou nos albores do capitalismo. em oposição ao capital industrial. Cf. Kapital. III, 1, 311. (voltar ao texto)
[20] Kapital, 1, 99. (voltar ao texto)
[20a] Marx e Engels assinalam repetidamente o caráter "natural.' dessas formas de sociedade. KapitaI, 1, 304, 316, etc. Toda a trajetória do Pensamento de Engels, na Origem da Família..., baseia-se nessa idéia. Posso estender-me sobre as divergências, mesmo entre marxistas, em torno dessa questão. Quero somente assinalar que, aqui igualmente, Considero o ponto de vista de Marx e de Engels mais justo do que o dou seus "revisores". (voltar ao texto)
[21] Cf. KapitaI, 1, 304. (voltar ao texto)
[22] Die soziale Funktion der Rechtsinstitute, Marx-Studien, Bd. 1. (voltar ao texto)
[23] Contribution a la critique de l'économie politique. (voltar ao texto)
Inclusão | 18/07/2003 |