No n.° 10 da Rússkoie Bogatstvo[N80] de 1897, o Sr. Mikháilovskí escreve, expondo a opinião do Sr. Mínski sobre os «materialistas dialécticos»: «ele (o Sr. Mínski) devia saber que esta gente não deseja ter nenhum laço de continuidade com o passado e renuncia decididamente à herança» (p. 179), ou seja, «à herança das décadas de 60 e de 70», à qual, já em 1891, o Sr. V. Rózanov tinha renunciado solenemente no Moskóvskie Védomosti[N81] (p. 178).
Neste comentário do Sr. Mikháilovski sobre os «discípulos[N82] russos» há um sem-número de falsidades. É verdade que o Sr. Mikháilovski não é o único e original autor desta falsa afirmação de que «os discípulos russos renunciam à herança»; há muito tempo que ela é repetida pelos representantes da imprensa liberal-populista[N83] ao combater os «discípulos». No começo da sua furiosa guerra contra os «discípulos» o Sr. Mikháilovski, se a memória não me falha, ainda não tinha inventado esta falsidade; outros se encarregaram disso antes dele. Mais tarde, ele considerou necessário utilizá-la também. A medida que os «discípulos» foram desenvolvendo os seus pontos de vista nas publicações russas, quanto mais exaustiva e pormenorizadamente se pronunciavam sobre toda uma série de problemas teóricos e práticos, menos objecções quanto à essência se podiam encontrar na imprensa adversária contra os pontos básicos da nova orientação, contra a noção do carácter progressivo do capitalismo russo, contra o absurdo da idealização populista do pequeno produtor, contra a necessidade de procurar a explicação das correntes do pensamento social e das instituições jurídico-políticas nos interesses materiais das diversas classes da sociedade russa. Estes pontos fundamentais foram silenciados, preferiu-se e prefere-se ainda não se falar neles; mas em contrapartida aumentaram as invenções para desacreditar a nova orientação. Entre estas invenções, «invenções infelizes», encontram-se também as frases em voga acerca de que «os discípulos russos renunciam à herança», acerca da sua rotura com as melhores tradições da parte melhor e mais avançada da sociedade russa, ou de que romperam a linha democrática, etc, etc, e muitas outras coisas do mesmo género. Já que estas frases foram extraordinariamente difundidas, devemos deter-nos a analisá-las minuciosamente e refutá-las. Para que a nossa exposição não apareça como carecendo de provas, começaremos por estabelecer um paralelo histórico-literário entre dois «publicistas do campo», que nós escolhemos para melhor caracterizar a «herança». Ressalvamos que nos limitaremos exclusivamente aos problemas económicos e publicísticos, analisando, de toda a «herança», somente estes e deixando de lado os problemas filosóficos, literários, estéticos, etc.
I - Um dos Representantes da «Herança»
Há trinta anos, em 1867, começaram a ser publicados na revista Otétchestvennie Zapíski[N84] os ensaios publicísticos de Skáldine sob o título Numa Aldeia Perdida e na Capital. Estes ensaios foram publicados ao longo de três anos, de 1867 a 1869. Em 1870 a autor compilou-os e editou-os num só volume sob o mesmo título(1). A leitura deste livro, quase completamente esquecido hoje, é extraordinariamente instrutiva para o estudo do problema que nos interessa, ou seja, o da atitude dos representantes da «herança» em relação aos populistas e aos «discípulos russos». O título do livro não é absolutamente exacto. O próprio autor o notou e explica no prefácio que o tema se refere à atitude da «capital» em relação à «aldeia», isto é, trata-se de ensaios publicísticos sobre a aldeia e que não é sua intenção falar especialmente da capital. Isto é, talvez tenha tido esse propósito, mas não o julgou conveniente, e cita, para explicar esta inconveniência, a frase de um escritor grego: ώς δύναμαι - ού βούλομαι, ώς δέ βούλομαι - ού δύναμαι (como poderia, não quero; e como quereria, não posso).
Faremos uma breve exposição dos pontos de vista de Skáldine.
Começaremos pela reforma camponesa[N85], ponto de partida ao qual devem remontar inevitavelmente, ainda hoje, todos quantos desejem expor as suas concepções gerais sobre os problemas económicos e publicísticos . A reforma camponesa ocupa um grande espaço no livro de Skáldine. Skáldine foi talvez o primeiro autor que, de uma forma sistemática e baseando-se em numerosos factos e num exame minucioso de toda a vida do campo, soube mostrar a situação miserável dos camponeses depois de efectuada a reforma, o agravamento das suas condições de vida, as novas formas da sua dependência no terreno económico e jurídico e na vida quotidiana; numa palavra, soube expor tudo o que desde então foi mostrado e demonstrado, de forma circunstanciada e minuciosa, em numerosas análises e descrições. Todas estas verdades não constituem hoje novidade alguma, mas naquela época, não só constituíam uma novidade, mas até suscitavam a desconfiança da sociedade liberal, que temia que, por detrás das alusões às chamadas «deficiências da reforma», se ocultasse a sua condenação e uma simpatia velada pelo regime de servidão. O interesse que oferece a concepção de Skáldine é ainda maior por se tratar de um contemporâneo da reforma (e, possivelmente, até de um seu participante. Não dispomos de nenhum dado histórico-literário nem biográfico sobre Skáldine). As suas concepções baseiam-se, por conseguinte, na observação directa, tanto da «capital» como da «aldeia» de então, e não no estudo de gabinete de material livresco.
Nas concepções de Skáldine sobre a reforma camponesa, chama principalmente a atenção do leitor actual, habituado às melosas narrações populistas sobre o tema, a extraordinária sobriedade do autor. Skáldine considera a reforma sem qualquer ilusão, sem nenhuma espécie de idealização, vê nela um acordo entre duas partes — os latifundiários e os camponeses — que, até então, tinham usufruído a terra em comum em determinadas condições e que agora se dividiram, modificando-se com essa divisão a posição jurídica de ambas as partes. Os interesses das partes foram o factor determinante da forma dessa divisão e da extensão que cada uma delas recebeu. Esses interesses determinavam as aspirações de cada uma das partes, mas a possibilidade de uma delas participar directamente na própria reforma e na solução prática dos diversos problemas da sua realização foi, entre outras coisas, o que determinou o seu predomínio. Tal é a interpretação que Skáldine dá à reforma. Quanto ao problema principal da reforma — o dos lotes e do pagamento do resgate —, Skáldine detém-se nele de forma particularmente minuciosa, voltando mais de uma vez a ele nos seus ensaios. (O seu livro divide-se em 11 ensaios independentes pelo seu conteúdo, e que pela sua forma parecem cartas do campo. O primeiro é datado de 1866 e o último de 1869.) No que diz respeito aos camponeses «com pouca terra», o livro não contém, claro está, nada de novo para o leitor contemporâneo, mas para o fim da década de 60 as suas afirmações eram tão novas como valiosas. Não nos propomos, naturalmente, repeti-las; só queremos assinalar as particularidades da caracterização que Skáldine faz deste fenómeno, que o distinguem vantajosamente dos populistas. Skáldine não fala de «escassez de terra», mas de que «se cortou uma parte demasiado importante das parcelas camponesas» (p. 213, bem como 214 e muitas outras; cf. título do ensaio III), de que os lotes maiores fixados pelo regulamento acabaram por ser inferiores aos que os camponeses possuíam antes da reforma (p. 257); cita, de passagem, algumas opiniões e comentários extraordinariamente característicos e típicos dos camponeses sobre este aspecto da reforma(2). As explicações e provas deste facto são em Skáldine extraordinariamente fortes, vigorosas e mesmo brutais para um escritor como ele, em regra excepcionalmente moderado, sensato e, pelas suas concepções gerais, indubitavelmente burguês. Se até um escritor como Skáldine fala disso em termos tão enérgicos, quer dizer que o fenómeno chamou poderosamente a atenção. Skáldine também fala do carácter gravoso dos pagamentos de resgate, de uma maneira enérgica e fundamentada pouco comum, provando as suas afirmações com um grande número de factos. «Os impostos excessivos - lemos no subtítulo do ensaio III (1867) - são a principal causa da sua (dos camponeses) pobreza», e Skáldine mostra que os impostos são superiores aos rendimentos que o camponês obtém da terra; cita números de Os Trabalhos da Comissão de Impostos que mostram a distribuição dos impostos na Rússia cobrados às classes superiores e às inferiores, números que mostram que sobre estas últimas recaem 76% de todos os impostos e sobre as primeiras somente 17%, enquanto na Europa ocidental a relação é em toda a parte incomparavelmente mais favorável para as classes inferiores. No subtítulo do ensaio VII (1868) lê-se: «Os excessivos encargos monetários constituem uma das principais causas da miséria dos camponeses», e o autor mostra como as novas condições de vida exigiram imediatamente do camponês dinheiro, dinheiro e mais dinheiro; mostra como no «Regulamento» se aceitava em regra recompensar os latifundiários pela abolição da servidão (252), como o montante da renda em dinheiro era fixada «de acordo com os dados fornecidos pelos latifundiários, pelos seus administradores e pelos estarostas, isto é, segundo dados absolutamente arbitrários e carecendo de menor veracidade» (255), de modo que as rendas médias em dinheiro estabelecidas pelas comissões tornavam-se mais elevadas do que o eram na realidade. «Ao fardo dos impostos acrescentou-se ainda para os camponeses a perda das terras que tinham usufruído durante séculos» (258). «Se a avaliação da terra para o resgate tivesse sido feita pelo seu valor real na época da emancipação e não segundo a capitalização da renda em dinheiro, o resgate poderia ter sido efectuado muito facilmente e não se necessitaria sequer da colaboração do governo, nem da emissão de títulos de crédito» (264). «O resgate, que segundo o espírito do Regulamento de 19 de Fevereiro deveria ser um alívio para os camponeses e coroar o melhoramento das suas condições de vida, na realidade tende frequentemente a aumentar ainda mais a miséria (269).
Fizemos todas estas citações, por si pouco interessantes e em parte antiquadas, para demonstrar com quanta energia se exprimia em favor dos interesses dos camponeses um escritor hostil à comunidade rural e que em toda uma série de problemas se pronunciou como um verdadeiro manchesteriano[N86]. É muito instrutivo assinalar a total coincidência de quase todas as teses úteis e não reaccionárias do populismo com este manchesteriano. É evidente que, com tais concepções sobre a reforma, Skáldine não podia entregar-se a essa melosa idealização dela, como fizeram e fazem os populistas dizendo que ela sancionou a produção popular, que era superior às reformas camponesas europeias-ocidentais, que tinha feito da Rússia uma espécie de tabula rasa(3), etc. Skáldine não disse e nem pôde dizer nada semelhante, mas, pelo contrário, disse francamente que a nossa reforma camponesa se tinha realizado em condições menos vantajosas para os camponeses, tinha sido menos proveitosa do que a do Ocidente. «Colocaremos a questão frontalmente, escrevia Skáldine, se perguntarmos porque é que as benéficas consequências da emancipação não se manifestam entre nós com a mesma rapidez e o mesmo crescimento progressivo como se manifestaram, por exemplo, na Prússia e na Saxónia no primeiro quartel do presente século» (221). «Na Prússia, como em toda a Alemanha, resgatavam-se não as parcelas dos camponeses, que já há muito eram reconhecidas por lei como sua propriedade, mas a prestação obrigatória de serviços aos latifundiários»(272).
Passemos agora do aspecto económico para o aspecto jurídico da reforma na apreciação de Skáldine. Skáldine é um ardente adversário da caução solidária[N87], do sistema de passaportes internos e do poder patriarcal do «mir»(4) camponês (e da comunidade pequeno-burguesa) sobre os seus membros. No ensaio III (1867) ele insiste na necessidade de abolir a caução solidária, a capitação e o sistema de passaportes internos, na necessidade de estabelecer impostos patrimoniais igualitários e na substituição dos passaportes internos por certificados gratuitos e permanentes. «O imposto sobre passaportes no interior do país não existe em nenhum outro Estado civilizado» (109). Como é sabido, este imposto só foi abolido em 1897. No título do ensaio IV lemos: «A arbitrariedade das comunidades rurais e das dumas urbanas na entrega de passaportes e na cobrança de impostos a contribuintes ausentes...» «A caução solidária é um pesado fardo que os proprietários conscienciosos e diligentes devem suportar pelos vagabundos e ociosos»(126). Skáldine quer explicar a decomposição do campesinato, que já então começava a manifestar-se, pelas qualidades pessoais dos que progridem e dos que se arruinam. O autor descreve minuciosamente as dificuldades com que deparam os camponeses que vivem em São Petersburgo para obter e prorrogar os seus passaportes e refuta a objecção daqueles que dizem: «graças a Deus que toda esta massa de camponeses sem terra não foi adscrita às cidades e não veio aumentar o número de habitantes urbanos desprovidos de bens imóveis...»(130). «A bárbara caução solidária....»(131). «Pergunta-se: podem chamar-se cidadãos livres pessoas colocadas em tais condições?» «Não é isto o mesmo que os glebae adscripti?»(5) (132). Culpa-se a reforma camponesa. « Mas, por acaso, é a reforma camponesa a culpada de que a legislação, depois de ter emancipado o camponês da sua servidão em relação ao latifundiário, não tenha podido conceber nada para o libertar da sujeição à comunidade e ao lugar do domicílio?... Onde está, então, a liberdade civil se o camponês não pode escolher o lugar de residência nem o género da sua ocupação?»(132). Skáldine, de forma verdadeiramente justa e acertada, chama ao nosso camponês «proletário sedentário» (231) (6). No título do ensaio VIII (1868) lemos: «... A adscrição dos camponeses às suas comunidades e aos seus lotes é um obstáculo ao melhoramento das suas condições de vida... É um obstáculo ao desenvolvimento de trabalhos temporários fora da localidade.» «Além da sua ignorância e do esmagamento pelo peso do aumento progressivo dos impostos, uma das causas que entravam o desenvolvimento do trabalho camponês e, consequentemente, do seu bem-estar, é a sua adscrição às comunidades e lotes. Prender a mão-de-obra a um só lugar e acorrentar a comunidade da terra com laços indissolúveis é, por si só, uma condição extremamente desvantajosa para o desenvolvimento do trabalho, da iniciativa pessoal e da pequena propriedade agrária» (284). «Os camponeses, amarrados como estão aos seus lotes e às suas comunidades, privados da possibilidade de empregar o seu trabalho onde seja mais produtivo e mais vantajoso para eles, ficaram como congelados nesta forma de vida semelhante à de um rebanho, improdutiva, tal como saíram da servidão» (285). Por conseguinte, o autor considera estes problemas do modo de vida camponês de um ponto de vista nitidamente burguês, mas, apesar disso (ou mais exacto: precisamente por causa disso) aprecia, de forma extraordinariamente justa, o carácter pernicioso da adscrição dos camponeses para todo o desenvolvimento social e para os próprios camponeses. Este carácter pernicioso (acrescentaremos por nossa parte) manifesta-se com singular força nas camadas inferiores do campesinato, no proletariado rural. Skáldine diz muito justamente: «é louvável a preocupação da lei de que os camponeses não fiquem sem terra; mas não se deve esquecer que a preocupação dos próprios camponeses por este mesmo assunto é incomparavelmente mais forte que a de qualquer legislador» (286). Além da adscrição dos camponeses aos seus lotes e comunidades, até mesmo o seu afastamento provisório para ganhar uma jorna tropeça com inumeráveis restrições e gastos, como consequência da caução solidária e do sistema dos passaportes» (298). «Uma infinidade de camponeses encontrariam, a meu ver, uma saída para a difícil situação actual se fossem adoptadas ... medidas tendentes a facilitar aos camponeses a possibilidade de renunciar à terra» (294). Aqui Skáldine exprime um desejo que contradiz radicalmente todos os projectos populistas, que se resumem ao contrário: o fortalecimento da comunidade[N88], a inalienabilidade dos lotes, etc. Numerosos factos comprovaram plenamente desde então que Skáldine tinha razão: manter a sujeição dos camponeses à terra e o carácter fechado da comunidade camponesa do ponto de vista de estados sociais só agrava a situação do proletariado rural, entrava o desenvolvimento económico do país e não oferece absolutamente nenhumas condições para defender o «proletariado sedentário» contras as piores formas de sujeição e de dependência, contra a queda vertical do salário e do nível de vida.
Das citações transcritas acima o leitor já pode deduzir que Skáldine é inimigo da comunidade rural. Ergue-se contra a comunidade e a redistribuição dos lotes colocando-se do ponto de vista da propriedade pessoal, do espírito empreendedor, etc. (p. 142 e segs.). Skáldine refuta os defensores da comunidade afirmando que o «direito consuetudinário secular» já caducou: «Em todos os países, à medida que os habitantes do campo se punham em contacto com o meio civilizado, o direito consuetudinário foi perdendo a sua pureza primitiva, foi-se corrompendo e deformando. Este fenómeno observa-se também no nosso país: o poder da comunidade rural converte-se pouco a pouco em poder de vampiros e de escrivães rurais, e em vez de defender a pessoa do camponês oprime-o como um pesado jugo» (143), observação muito justa, cuja verdade foi confirmada durante os últimos 30 anos por uma infinidade de factos. «A família patriarcal, a posse comunal da terra, o direito consuetudinário», estão, na opinião de Skáldine, irremediavelmente condenados pela história. «Aqueles que quisessem conservar para sempre estes venerandos monumentos dos séculos passados demonstrariam com isso que estão mais dispostos a deixarem-se arrastar por uma ideia do que a penetrarem na realidade e compreenderem a marcha irresistível da história» (162), e Skáldine acrescenta a esta observação efectivamente justa uma veemente filípica manchesteriana. «O usufruto comunal da terra — diz noutro lugar — coloca cada camponês na situação de escravo em relação a toda a comunidade» (222). Assim, portanto, a incondicional hostilidade à comunidade rural de um ponto de vista puramente burguês associa-se em Skáldine com a defesa consequente dos interesses dos camponeses. Skáldine não relaciona de modo algum a hostilidade à comunidade rural com os insensatos projectos de aniquilação violenta da comunidade nem com a implantação pela força de outro sistema similar de posse da terra, projectos estes que são ideados usualmente por adversários modernos da comunidade rural, que propugnam uma descarada ingerência na vida camponesa e se pronunciam contra a comunidade rural sem tomar em consideração os interesses dos camponeses. Skáldine, pelo contrário, protesta energicamente contra a sua inclusão entre os partidários «da destruição violenta do usufruto comunal da terra» (144). « O Regulamento de 19 de Fevereiro — diz ele — deixou muito sabiamente aos próprios camponeses... a decisão de passar... do usufruto comunal ao usufruto familiar. Efectivamente, ninguém, além dos próprios camponeses, pode decidir com conhecimento de causa da oportunidade de tal passagem». Daí decorre que Skáldine é adversário da comunidade rural só porque ela entrava o desenvolvimento económico, impede a saída dos camponeses da comunidade, a renúncia à terra, ou seja, condena-a no mesmo sentido em que agora se manifestam os «discípulos russos»; esta hostilidade não tem nada em comum com a defesa dos interesses egoístas dos latifundiários, nem com a defesa dos vestígios e do espírito do regime de servidão, nem com a defesa da ingerência na vida dos camponeses. É muito importante ter em conta esta diferença, pois os populistas de hoje, que estão acostumados a ver os inimigos da comunidade rural somente no campo do Moskóvskie Védomosti, etc, afectam de bom grado não entender nenhuma outra forma de hostilidade para com a comunidade rural.
O ponto de vista geral de Skáldine a respeito das causas da penosa situação dos camponeses reduz-se a que todas elas assentam nos vestígios da servidão. Ao descrever a fome do ano de 1868, Skáldine observa que os defensores da servidão se referiam com malévola alegria a essa fome, dizendo que a sua causa residia na indisciplina dos camponeses, na supressão da tutela latifundiária, etc. Skáldine ergue-se vivamente contra estes pontos de vista. «As causas do empobrecimento dos camponeses — diz ele — foram herdadas do regime da servidão (212), e não são o resultado da sua abolição; são estas as causas gerais que mantêm a maioria dos nossos camponeses num nível próximo do proletariado», e Skáldine repete as opiníãos já citadas sobre a reforma. É absurdo atacar as partilhas entre membros de uma mesma família: «Mesmo que as partilhas prejudiquem momentaneamente os interesses materiais dos camponeses, em compensação salvaguardam a sua liberdade pessoal e a dignidade moral da família camponesa, ou seja, os bens supremos do homem, sem os quais é impossível qualquer progresso cívico» (217), e Skáldine indica com razão as verdadeiras causas da campanha contra as partilhas: «muitos latifundiários exageram os prejuízos que decorrem das partilhas, e lançam sobre elas, da mesma forma que sobre o alcoolismo, todas as consequências das diversas causas da pobreza dos camponeses, cujo reconhecimento é tão desagradável aos latifundiários» (218). Aos que dizem que agora se fala muito na pobreza dos camponeses, ao passo que antes não se faiava nisso — o que provaria que a situação se agravou —, Skáldine responde: «Para que se possa avaliar os resultados da emancipação do jugo dos latifundiários, através da comparação da actual situação dos camponeses com a anterior, ter-se-ia que, ainda no tempo em que imperava a servidão, cortar os lotes camponeses tal como estão cortados, impor aos camponeses de então todas as obrigações que surgiram depois da emancipação e ver-se-ia então se os camponeses teriam podido suportar tal situação» (219). É um traço altamente característico e importante das concepções de Skáldine, que reduz todas as causas da agravação da situação dos camponeses aos vestígios da servidão, a qual deixou como herança as prestações em trabalho, as rendas em dinheiro, os cortes de terra, a falta de direitos individuais e a obrigatoriedade de os camponeses terem um lugar de residência fixo. Skáldine não só não vê o facto de que no próprio regime das novas relações socioeconómicas, no próprio regime da economia posterior à reforma possam residir as causas do empobrecimento dos camponeses, como nem sequer admite tal pensamento, porque está profundamente convicto de que com a total abolição de todos estes vestígios da servidão virá a prosperidade geral. O seu ponto de vista é precisamente negativo: eliminai os entraves ao livre desenvolvimento do campesinato, eliminai os grilhões herdados da servidão e tudo irá pelo melhor neste mundo, que é o melhor dos mundos. «Por parte do poder estatal — diz Skáldine — neste caso (ou seja, em relação ao campesinato) só pode haver um caminho: a gradual e contínua eliminação das causas que levaram o nosso camponês ao actual embrutecimento e pobreza e que não lhe permitem levantar-se e refazer-se» (224, sublinhado por mim). É extremamente característica neste aspecto a resposta de Skáldine àqueles que defendem a «comunidade» (ou seja, a sujeição dos camponeses à comunidade rural e aos lotes) e que alegam que, caso contrário, «se formaria um proletariado rural». «Esta objecção — diz Skáldine — refuta-se a si mesma se pensarmos nas imensas extensões de terra que temos por cultivar e que não encontram mão-de-obra que as trabalhe. Se a lei deixar de impor restrições à distribuição natural da mão-de-obra, na Rússia só poderão ser verdadeiros proletários os mendigos profissionais ou aqueles que são irremediavelmente corruptos e se entregam à bebida» (144); esse é um ponto de vista típico dos economistas e «iluministas» do século XVIII, que acreditavam que a abolição da servidão e de todos os seus vestígios criaria na terra o reino do bem-estar geral. Um populista olharia Skáldine provavelmente com altivez e diria simplesmente: ele é um burguês. Sim, efectivamente Skáldine é um burguês, mas é um representante de uma ideologia burguesa progressista, ao passo que o populista representa uma ideologia pequeno-burguesa e, numa série de pontos, reaccionária. Quanto aos interesses práticos e reais dos camponeses, que coincidiam e coincidem com as exigências do desenvolvimento social no seu conjunto, este «burguês» sabia defendê-los ainda melhor que um populista(7)!
Para concluir a caracterização das concepções de Skáldine, acrescentaremos que ele é adversário da divisão da sociedade em estados sociais, é defensor de um tribunal único para todos os estados sociais, simpatiza «em teoria» com a administração de vólost sem estados sociais, é partidário ardente da instrução pública, sobretudo da instrução geral, é partidário da autonomia administrativa e das instituições do zemstvo[N89], é partidário de um amplo crédito agrícola, sobretudo do pequeno crédito, pois a sua procura pelos camponeses para a compra de terras é grande. Também aqui se manifesta o «manchesteriano»: Skáldine diz, por exemplo, que os bancos dos zemstvos e urbanos são uma «forma patriarcal ou primitiva de bancos», que devem ceder o lugar aos bancos privados, os quais possuem «todas as vantagens»(80). A valorização da terra «pode ser alcançada através da reanimação da actividade industrial e comercial nas nossas províncias»(71), etc.
Resumindo. Pelo carácter das suas concepções, Skáldine pode ser chamado um burguês iluminista. As suas concepções lembram extraordináriamente as dos economistas do século XVIII (claro está, com a devida refracção das mesmas através do prisma das condições russas), e o carácter «iluminista» geral da «herança» da década de 60 foi por ele expresso de modo bastante nítido. Tal como os «iluministas» da Europa ocidental, e como a maioria dos representantes da literatura da década de 60, Skáldine é animado por um ódio ardente ao regime de servidão e a todas as suas manifestações no domínio económico, social e jurídico. Este é o primeiro traço característico do «iluminista». O segundo traço característico, comum a todos os «iluministas» russos, é a fervorosa defesa da instrução, da autonomia administrativa, da liberdade, das formas europeias de vida e em geral da europeização da Rússia em todos os aspectos. Finalmente, o terceiro traço característico do «iluminista» é a defesa dos interesses das massas populares, principalmente dos camponeses (que ainda não estavam completamente emancipados ou que apenas se iam emancipando na época dos «iluministas»), a sincera fé de que a abolição da servidão e dos seus vestígios proporcionaria o bem-estar geral e o sincero desejo de contribuir para isso. Estes três traços constituem a essência daquilo que entre nós se chama a «herança da década de 60», e é importante sublinhar que nesta herança não há nada de populista. Na Rússia há muitos escritores que pelas suas concepções correspondem aos mencionados traços característicos e que nunca tiveram nada de comum com o populismo. Quando na concepção do mundo de um escritor existem os mencionados traços ele é reconhecido por todos como um «depositário das tradições da década de 60», de modo plenamente independente da sua atitude para com o populismo. Ninguém pensaria evidentemente em dizer que, por exemplo, o Sr. M. Stassiulévitch, cujo jubileu foi festejado há pouco, «renegou a herança» por ter sido adversário do populismo ou ter uma atitude indiferente para com os problemas apresentados por este. Tomámos Skáldine(8) como exemplo precisamente pelo facto de que, sendo ele um representante incontestável da «herança», ser ao mesmo tempo um inimigo aberto das instituições do passado de que o populismo assumiu a defesa.
Dissemos que Skáldine é um burguês. As provas desta caracterização já citadas são mais do que suficientes, mas é indispensável fazer a ressalva de que entre nós se compreende com frequência de modo absolutamente incorrecto, estreito e anti-histórico esta palavra, ligando-a (sem distinguir épocas históricas) à defesa egoísta dos interesses de uma minoria. Não se deve esquecer que na época em que escreviam os iluministas do século XVIII (que são reconhecidos pela opinião geral como dirigentes da burguesia), e em que escreviam também os nossos iluministas das décadas de 40 a 60, todos os problemas sociais se reduziam à luta contra a servidão e os seus vestígios. As novas relações económicas e sociais e as suas contradições encontravam-se ainda em estado embrionário. Por isso, nenhum interesse egoísta se manifestava então nos ideólogos burgueses; ao contrário, tanto no Ocidente como na Rússia eles acreditavam com toda a sinceridade na prosperidade geral e desejavam-na sinceramente; não viam sinceramente (e em certa medida não podiam ver ainda) as contradições do regime que surgia do regime de servidão. Não é sem razão que Skáldine cita Adam Smith numa passagem do seu livro: vimos que tanto as suas concepções como o carácter da sua argumentação repetiam em muitos pontos as teses deste grande ideólogo da burguesia avançada.
Pois bem, se confrontarmos as aspirações práticas de Skáldine, por um lado com as concepções dos populistas contemporâneos, e por outro lado com a atitude dos «discípulos russos» para com elas, veremos que os «discípulos» estarão sempre a favor das aspirações de Skáldine, pois estas expressam os interesses das classes sociais progressistas, os interesses vitais de todo o desenvolvimento social pela presente via, ou seja, a capitalista. E o que foi alterado pelos populistas nestas aspirações práticas de Skáldine ou no seu modo de formular os problemas é um facto negativo que os «discípulos» rejeitam. Os discípulos «atacam» não a «herança» (isso é uma invenção absurda), mas os acrescentos românticos e pequeno-burgueses à herança por parte dos populistas. E agora passaremos à análise destes acrescentos.