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De Skáldine passaremos a Engelhardt. As suas cartas Do Campo[N92] também são ensaios publicísticos sobre o campo, de modo que o seu livro, tanto pelo conteúdo como até pela forma, é muito semelhante ao livro de Skáldine. Engelhardt é muito mais talentoso do que Skáldine, as suas cartas da aldeia foram escritas de modo incomparavelmente mais vivo e mais imaginativo. Não possui extensos raciocínios como os do respeitável autor de Numa Aldeia Perdida e na Capital, mas em compensação tem muito mais imagens e caracterizações acertadas. Não é de admirar que o livro de Engelhardt goze de uma simpatia tão sólida entre o público leitor e tenha sido recentemente reeditado, ao passo que o livro de Skáldine quase está esquecido, apesar de as cartas de Engelhardt terem começado a ser publicadas na Otétchestvennie Zapíski apenas dois anos depois da edição do livro de Skáldine. Por isso não temos nenhuma necessidade de falar aos leitores sobre o conteúdo do livro de Engelhardt, e lirnitar-nos-emos a dar uma breve caracterização de dois aspectos das suas concepções: em primeiro lugar, das concepções próprias da «herança» em geral e, em particular, comuns a Engelhardt e a Skáldine; em segundo lugar, das concepções especificamente populistas. Engelhardt é já um populista, mas nas suas concepções ainda existem tantos traços comuns a todos os iluministas, tem tanto daquilo que foi rejeitado ou modificado pelo populismo contemporâneo que temos dificuldades em situá-lo: entre os representantes da «herança» em geral, sem nenhum matiz populista, ou entre os populistas.
Dos primeiros, Engelhardt aproxima-se antes de mais pela notável sensatez das suas concepções, pela maneira simples e directa de caracterizar a realidade, pela implacável denúncia de todas as qualidades negativas dos «pilares» em geral e do campesinato em particular, desses mesmos «pilares» cuja falsa idealização e embelezamento são parte integrante e necessária do populismo. O populismo de Engelhardt, expresso de forma muito débil e tímida, está por isso mesmo em contradição directa e flagrante com o quadro da realidade da aldeia, que ele traçou com tanto talento; e se qualquer economista ou publicista tomasse como base dos seus juízos sobre a aldeia os dados e observações fornecidos por Engelhardt(9), ser-lhe-ia impossível tirar deles conclusões populistas. A idealização do camponês e da sua comunidade é uma das partes integrantes e necessárias do populismo, e os populistas de todos os matizes, a começar pelo Sr. V. V. e terminando pelo Sr. Mikháilovski, deram uma grande contribuição a esta tendência para idealizar e embelezar a «comunidade». Em Engelhardt não existe nem sombra de tal embelezamento. Em contraste com a fraseologia corrente sobre o espírito de comunidade do nosso camponês e com o costume de contrapor este «espírito de comunidade» ao individualismo das cidades, à concorrência na economia capitalista, etc, Engelhardt põe a descoberto de maneira implacável o fantástico individualismo do pequeno agricultor. Mostra pormenorizadamente que «quando se trata da propriedade, os nossos camponeses levam ao extremo o espírito de propriedade» (p. 62, citado segundo a edição de 1885); que eles não toleram o «trabalho em comum», odiando-o por motivos estreitamente pessoais e egoístas: no trabalho em comum cada um «teme trabalhar mais do que o vizinho» (p. 206). Este temor de trabalhar mais chega ao cúmulo do cómico (talvez mesmo do tragicómico) quando o autor relata como as mulheres que vivem numa mesma casa, que cuidam de um mesmo lar e que pertencem a uma mesma família lavam cada uma delas separadamente a parte da mesa na qual comem; ou como ordenham as vacas cada uma por sua vez, recolhendo cada uma o leite para o seu filho (com medo que o escondam) e preparando cada uma delas à parte a papa para o seu filho (p. 323). Engelhardt expõe com tantos pormenores estes traços, confirma-os com tal número de exemplos, que não se lhes poderia atribuir um carácter fortuito. Das duas uma: ou Engelhardt é um observador que não presta para nada e que não merece confiança, ou tudo o que se conta sobre o espírito de comunidade e as qualidades comunitárias do nosso camponês é uma mera invenção, a qual atribui à economia traços deduzidos da forma de propriedade da terra (além de que dessa forma de propriedade da terra se abstraem todos os seus aspectos administrativos e fiscais). Engelhardt mostra que a tendência do mujique na sua actividade económica é a de se tornar kulak: «em cada camponês há uma certa dose de kuíak» (p. 491), «o ideal do kulak impera no meio camponês» ... «Assinalei mais de uma vez que nos camponeses está extraordinariamente desenvolvido o individualismo, o egoísmo, a tendência para a exploração» ... «Cada um orgulha-se de ser um peixe grande e procura devorar o pequeno.» Engelhardt demonstra de maneira magistral que a tendência do camponês não é precisamente para o regime «de comunidade» e de modo algum para a «produção popular», mas para o mais comum regime pequeno-burguês, próprio de todas as sociedades capitalistas. A aspiração de todo o camponês abastado de dedicar-se a operações comerciais (363), de emprestar cereais reembolsáveis em trabalho, de comprar o trabalho do mujique pobre (pp. 457, 492 e outras), ou seja, em linguagem económica, a transformação dos mujiques empreendedores em burguesia rural, foi descrita e demonstrada por Engelhardt de modo irrefutável. «Se os camponeses não passarem para a economia em forma de artel - diz Engelhardt — e continuarem a explorar as suas propriedades em separado, então, mesmo que haja abundância de terra, entre os camponeses lavradores existirão camponeses sem terra e assalariados agrícolas. Direi ainda mais: creio que a diferença entre as propriedades dos camponeses será ainda mais considerável do que agora. Apesar da posse comunal da terra, existirão, ao lado dos 'ricaços', muitos camponeses sem terra, praticamente assalariados. De que me serve a mim ou aos meus filhos ter direitos sobre a terra se eu não tenho nem capital, nem instrumentos para trabalhar? É o mesmo que dar terra a um cego e dizer-lhe: come-a!» (p. 370). A «economia em forma de artel» aparece aqui com uma certa ironia triste, solitária, como um bom e inocente desejo que, longe de resultar dos dados sobre o campesinato, é, ao contrário, expressamente refutado e excluído por eles.
Um outro traço que aproxima Engelhardt dos representantes da herança sem qualquer matiz populista é a sua convicção de que a causa principal e básica da situação de miséria dos camponeses reside nos vestígios do regime de servidão e na regulamentação que lhe é própria. Eliminai estes vestígios e esta regulamentação e o problema estará resolvido. A atitude absolutamente negativa de Engelhardt para com a regulamentação, a sua sarcástica ridicularização de todas e quaisquer tentativas de beneficiar o mujique através da regulamentação vinda de cima, estão na mais franca contradição com as esperanças populistas «na razão e na consciência, na sabedoria e no patriotismo das classes dirigentes" (palavras do Sr. Iujakov na Rússkoie Bogatstvo, 1896, n.° 12, p. 106), com a projectomania dos populistas sobre a «organização da produção», etc. Recordemos com que sarcasmo Engelhardt arremetia contra a disposição que estabelece que não seja permitida a venda de vodka nos moinhos, disposição que visa o «bem» do mujique; com que indignação fala sobre as decisões obrigatórias de alguns zemstvos em 1880 de não semear centeio antes de 15 de Agosto, sobre esta grosseira ingerência dos «cientistas» de gabinete na economia de «milhões de proprietários agricultores», também com o pretexto de velar pelos interesses dos mujiques (p. 424). Falando de regulamentose disposições como a proibição de fumar nos bosques de coníferas, de pescar lúcios na Primavera, de cortar bétulas para o «Maio», de destruir ninhos, etc, Engelhardt assinala sarcasricamente:... «a sorte do mujique sempre foi e continua a ser a principal preocupação dos intelectuais. Quem vive para si mesmo? Todos vivem para o mujique!... O mujique é estúpido, é incapaz de arranjar-se sozinho. Se ninguém se preocupa com ele, é capaz de queimar todos os bosques, exterminar todos os pássaros, pescar todos os peixes, esgotar a terra e acabar consigo mesmo» (398). Diga-me, leitor, poderia este escritor ter alguma simpatia, por exemplo, pelas leis predilectas dos populistas sobre a inalienabilidade das parcelas? Poderia ele dizer algo semelhante à frase que citámos de um dos pilares da Rússkoie Bogatstvo? Poderia ele compartilhar o ponto de vista de um outro pilar da mesma revista, o Sr. N. Kárichev, que censura os nossos zemstvos provinciais (na década de 90!) por «não encontrarem lugar» «para grandes e sérias despesas sistemáticas na organização do trabalho agrícola»?(10)
Citaremos ainda um traço que aproxima Engelhardt de Skáldine: é a sua atitude inconsciente em relação a muitas aspirações e medidas puramente burguesas. Não é que Engelhardt tivesse querido embelezar os pequenos burgueses nem procurar argumentos (à la(11) Sr. V. V.) contra o emprego deste qualificativo, em relação a estes ou àqueles empresários. Não, de modo nenhum, Engelhardt, sendo simplesmente um proprietário prático, sente-se atraído por tudo o que é progressivo e contribui para o melhoramento da propriedade sem notar de modo nenhum que a forma social destes melhoramentos é a melhor refutação das suas próprias teorias sobre a impossibilidade do capitalismo no nosso país. Lembremos, por exemplo, como ele se entusiasma com os êxitos alcançados por ele próprio na sua propriedade graças ao sistema do trabalho à tarefa (para bater o linho, para debulhar, etc). Engelhardt parece nem sequer perceber que a substituição da remuneração por tempo pela remuneração à tarefa é um dos procedimentos mais utilizados da economia capitalista em desenvolvimento, mediante o qual se consegue o aumento da intensificação do trabalho e o aumento da taxa de mais-valia. Outro exemplo. Engelhardt ridiculariza o programa do Zemledéltcheskaia Gazeta[N93], que diz: «a cessação do arrendamento dos campos por krug(12), a organização das explorações com base no trabalho de assalariados agrícolas, a introdução de máquinas e instrumentos de trabalho aperfeiçoados, a criação de gado de raça, o sistema de rotação de cultivos, o melhoramento dos prados e das pastagens, etc, etc».— «Mas tudo isso não passa de frases gerais!» — exclama Engelhardt (128). E, no entanto, foi justamente este programa que Engelhardt pôs em prática na sua actividade económica, e o progresso técnico alcançado na sua propriedade deve-se exactamente ao facto de ter organizado a sua exploração na base do emprego de assalariados. E mais ainda: vimos como Engelhardt desmascarou com franqueza e exactidão as verdadeiras tendências do mujique empreendedor; mas isso não o impediu de modo nenhum de afirmar «não são fábricas que são necessárias, mas sim pequenas (sublinhado por Engelhardt) destilarias e manteigarias rurais», etc (p. 336), ou seja, «é necessário» que a burguesia rural passe a desenvolver as indústrias técnicas agrícolas, passagem esta que sempre e por toda a parte foi um dos mais importantes sintomas do capitalismo agrário. Aqui manifesta-se o facto de que Engelhardt não foi um teórico, mas sim um proprietário prático. Uma coisa é argumentar sobre a possibilidade do progresso sem o capitalismo, outra coisa é dirigir a sua própria propriedade. Colocado ante a tarefa de organizar racionalmente a sua propriedade, Engelhardt foi obrigado, por força das circunstâncias que o rodeavam, a conseguir isso através de procedimentos puramente capitalistas e a deixar de lado todas as suas dúvidas teóricas e abstractas no que respeita ao «emprego de assalariados agrícolas». Skáldine raciocinava em teoria como um manchesreriano típico, não notando minimamente este carácter dos seus raciocínios nem a sua concordância com as necessidades da evolução capitalista da Rússia. Engelhardt foi obrigado a actuar na prática como um manchesteriano típico, contrariamente ao seu protesto teórico contra o capitalismo e ao seu desejo de acreditar que a sua pátria seguia uma via particular.
Mas Engelhardt tinha esta crença, e é isto que nos obriga a chamá-lo populista. Engelhardt já vê com clareza a verdadeira tendência do desenvolvimento económico da Rússia e começa a negar as contradições deste desenvolvimento. Esforça-se por demonstrar a impossibilidade do capitalismo agrário na Rússia, por demonstrar que «nós não temos knecht»(13) (p. 556) - apesar de ele próprio ter refutado do modo mais pormenorizado as fábulas sobre o elevado custo da nossa mão-de-obra, de ele próprio ter mostrado o mísero salário por que trabalharam o seu vaqueiro Piótr e a sua família, ao qual ficam, fora a manutenção, 6 rublos por ano «para a compra de sal, óleo vegetal e roupas» (p. 10). «E ainda o invejam, e se eu o despedisse surgiriam logo uns 50 voluntários para ocupar o seu lugar» (p. 11). Ao assinalar o êxito da sua propriedade e a habilidade com que os operários manejavam o arado, Engelhardt exclama triunfalmente: «E quem são estes lavradores? Os ignorantes, os negligentes camponeses russos» (p. 225).
Depois de ter refutado com a própria administração da sua propriedade e com o desmascaramento do individualismo camponês todas as ilusões quanto ao «espírito de comunidade», Engelhardt, contudo, não só «acreditava» na possibilidade de os camponeses passarem para a exploração em artel, mas também exprimia a «convicção» de que assim sucederia, de que nós, os russos, seríamos justamente os que realizariam esta grande obra, e introduziríamos novos métodos de administração das explorações. «É precisamente nisso que consiste a particularidade, a originalidade da nossa economia» (p. 349). Engelhardt realista transforma-se em Engelhardt romântico, que compensa a total falta de «originalidade» nos métodos de administração da sua própria propriedade e nos métodos dos camponeses observados por ele com a «fé» numa «originalidade» futura! Esta fé está bem pouco distante dos traços ultrapopulistas que — apesar de em casos muito isolados — se encontram em Engelhardt, de um estreito nacionalismo que confina com o chauvinismo [«Também bateremos a Europa», «também na Europa o mujique estará connosco» (p. 387) - dizia Engelhardt a um latifundiário a propósito da guerra], e até da idealização do pagamento em trabalho! Sim, o mesmo Engelhardt que dedicou tantas páginas magníficas do seu livro à descrição da situação desesperada e humilhante do camponês que, tendo tomado de empréstimo dinheiro ou cereais para pagá-los em trabalho, se vê obrigado a trabalhar quase de graça nas piores condições de dependência pessoal(14) — este mesmo Engelhardt chegou ao ponto de dizer que «seria bom que o doutor (tratava-se da utilidade e da necessidade do médico no campo. — V. I.) tivesse a sua própria propriedade, para que o mujique pudesse pagar com o seu trabalho a assistência médica» (p. 41). Isto dispensa comentários.
Em resumo, fazendo a comparação dos traços positivos acima citados da concepção do mundo de Engelhardt (ou seja, o que tem de comum com os representantes da «herança» sem qualquer matiz populista) e dos negativos (ou seja, populistas), teremos de reconhecer que os primeiros predominam sem dúvida alguma no autor das cartas Do Campo, ao passo que os segundos são como que interpolações estranhas, casuais, trazidas de fora e que não se coadunam com o tom fundamental do livro.
— Mas que entende por populismo? — perguntará possivelmente o leitor. Mais acima foi definido o conteúdo do conceito de «herança», mas ainda não foi dada nenhuma definição do conceito de «populismo».
— Por popuiismo entendemos um sistema de concepções, que compreende os três traços seguintes: 1) Considerar o capitalismo na Rússia como uma decadência, uma regressão. Daí a tendência e o desejo de «deter», de «paralisar», de «cessar a destruição» dos pilares pelo capitalismo e outros lamentos reaccionários semelhantes. 2) Considerar original o regime económico russo em geral e o camponês com a sua comunidade, artel, etc, em particular. Não se considera necessário aplicar às relações económicas russas os conceitos elaborados pela ciência moderna sobre as diferentes classes sociais e os seus conflitos. O campesinato da comunidade é considerado como algo superior e melhor em comparação com o capitalismo; é a idealização dos «pilares». Negam e dissimulam as contradições que existem entre os camponeses, que são inerentes a qualquer economia mercantil e capitalista, negam a relação destas contradições com a sua forma mais desenvolvida na indústria e na agricultura capitalistas. 3) Ignorar as relações entre a «intelectualidade» e as instituições jurídico-políticas do país, por um lado, e os interesses materiais de determinadas classes sociais, por outro. negação desta relação, a ausência de uma interpretação materialista destes factores sociais obriga a ver neles uma força capaz de «empurrar a história por outra via» (Sr. V. V.), «desviar do caminho» (Sr. N.-on, Sr. Iujakov e outros), etc.
Eis o que entendemos por «populismo». O leitor vê, consequentemente, que empregamos este termo no sentido amplo da palavra, como o empregam também todos os «discípulos russos», que se pronunciam contra todo um sistema de concepções e não contra este ou aquele representante seu. Entre estes existem, naturalmente, diferenças, e às vezes grandes. Ninguém ignora estas diferenças. Mas os traços dessa concepção do mundo citados são comuns aos diferentes representantes do populismo, começando... bem, digamos, pelo Sr. Iúzov e terminando pelo Sr. Mikháilovski. Os Srs. Iúzov, os Sazónov, V. V. e outros acrescentam aos traços negativos das suas concepções já mencionados ainda outros traços, igualmente negativos, que, por exemplo, não existem nem no Sr. Mikháilovski, nem em outros colaboradores da actual Rússkoie Bogatstvo. Negar estas diferenças entre populistas no sentido estreito da palavra e os populistas em geral seria, evidentemente, incorrecto, mas seria ainda mais incorrecto ignorar que as concepções socioeconómicas fundamentais de todos e quaisquer populistas coincidem nos pontos principais já citados. Mas como os «discípulos russos» rejeitam precisamente estas concepções fundamentais, e não só os seus «lamentáveis desvios» num sentido pior, têm, evidentemente, o pleno direito de empregar a noção de «populismo» no sentido amplo da palavra. Não só têm o direito como também não podem proceder de outra maneira.
Voltando às concepções fundamentais do populismo já descritas, temos de constatar antes de mais nada que a «herança» não tem absolutamente nada a ver com essas concepções. Toda uma série de incontestáveis representantes e depositários da "herança» não têm nada de comum com o populismo, nem mesmo colocam o problema do capitalismo, não acreditam de modo nenhum na originalidade da Rússia nem da comunidade camponesa, etc, e não vêem na intelectualidade e nas instituições jurídico-políticas um factor capaz de «desviar do caminho». Citámos acima a título de exemplo o director e editor da revista Véstnik Evrópi [N94], que pode ser acusado de tudo menos de violar as tradições da herança. Pelo contrário, há pessoas que pelas suas concepções se aproximam dos princípios fundamentais do populismo já apontados e que «renegam a herança» directa e abertamente - citemos pelo menos o mesmo Sr. I. Abrámov que é mencionado também pelo Sr. Mikháilovski, ou o Sr. Iúzov. O populismo contra o qual lutam os «discípulos russos» nem mesmo existia quando (usando a linguagem jurídica) se «abriu» a sucessão, ou seja, na década de 60. Germes, embriões do populismo existiam, evidentemente, não só na década de 60, mas também na de 40 e até mesmo antes(15) — mas não é a história do populismo que agora nos preocupa. O que é importante para nós, repetimos uma vez mais, e estabelecer que a «herança» da década de 60, no sentido em que a caracterizámos acima, nada tem de comum com o populismo, ou seja, pelo conteúdo das suas concepções, nada há de comum entre eles, pois colocam problemas diferentes. Existem depositários da «herança» que não são populistas e existem populistas que «renegaram a herança». Evidentemente também há populistas que são depositários da «herança» ou que pretendem sê-lo. É precisamente por isso que falamos de uma ligação entre a herança e o populismo. Analisemos, pois, os resultados desta ligação.
Em primeiro lugar, o populismo deu um grande passo em frente em relação à herança ao colocar ao pensamento social problemas que os depositários da herança em parte ainda não tinham podido (na sua época) colocar e em parte não colocaram nem colocam devido à estreiteza de vistas que lhes é própria. A colocação destes problemas é um grande mérito histórico do populismo, e é completamente natural e compreensível que o populismo, ao dar uma solução (qualquer que fosse) a estes problemas, ocupasse por isso mesmo um lugar de vanguarda entre as correntes progressistas do pensamento social russo.
Mas a solução que os populistas deram a estes problemas revelou-se totalmente inadequada, pois se baseava em teorias antiquadas, há muito postas de lado na Europa ocidental, na crítica romântica e pequeno-burguesa do capitalismo, na ignorância dos principais factos da história e da realidade russas. Enquanto o desenvolvimento do capitalismo na Rússia e as contradições que lhe são inerentes eram ainda muito fracos, esta crítica primitiva do capitalismo podia manter-se de pé. Mas o populismo não corresponde indubitavelmente ao actual desenvolvimento do capitalismo na Rússia, ao actual estado dos nossos conhecimentos sobre a história e a realidade económica russas, às actuais exigências colocadas à teoria sociológica. Progressista no seu tempo por ter sido o primeiro a colocar o problema do capitalismo, o populismo é agora uma teoria reaccionária e nociva, que desorienta o pensamento social, contribui para a estagnação e para toda a espécie de asiatismos. O carácter reaccionário da sua crítica do capitalismo imprime no momento actual ao populismo traços tais que o colocam abaixo da concepção do mundo que se limita a ser a fiel depositária da herança(16). Que assim é, procuraremos comprovar agora pela análisede cada um dos três traços fundamentais da concepção populista do mundo mencionados acima.
Primeiro traço — considerar o capitalismo na Rússia como uma decadência, uma regressão. Quando se colocou o problema do capitalismo na Rússia, logo se tornou evidente que o nosso desenvolvimento económico era capitalista e os populistas consideraram este desenvolvimento como um retrocesso, um erro, um desvio do caminho que seria determinado por toda a história da vida da nação, do caminho que teria sido consagrado pelos pilares seculares, etc, etc. No lugar da fé ardente dos iluministas nesse desenvolvimento social, apareceu a desconfiança nele; no lugar do optimismo histórico e do ânimo elevado, opessimismo e o desalento baseados na certeza de que quanto mais as coisas avançassem, como avançavam, tanto pior, tanto mais difícil seria a solução dos problemas colocados pelo novo desenvolvimento; aparecem então as propostas de «deter» e «paralisar» esse desenvolvimento; aparece a teoria de que o atraso é a felicidade da Rússia, etc. Todos estes traços da concepção populista do mundo, não só nada têm de comum com a «herança», como a contradizem directamente. Considerar o capitalismo russo como um «desvio do caminho», uma decadência, etc., leva à desnaturação de toda a evolução económicada Rússia, à desnaturação da «substituição» que se efectua diante dos nossos olhos. Animado pelo desejo de deter e cessar a destruição dos pilares seculares pelo capitalismo, o populista incorre numa espantosa falta de tacto histórico, esquece que para trás deste capitalismo nada há senão uma exploração idêntica associada a infinitas formas de sujeição e de dependência pessoal, que agravam a situação do trabalhador; nada há senão a rotina e a estagnação na produção social, e, por conseguinte, em todas as esferas da vida social. Ao lutar contra o capitalismo do seu ponto de vista romântico e pequeno-burguès, o populista abandona todo o realismo histórico, comparando sempre a realidade do capitalismo com a ficção da ordem pré-capitalista. A «herança» da década de 60 com a sua fervorosa fé no carácter progressista deste desenvolvimento social, com a sua implacável hostilidade, única e exclusivamente dirigida contra os vestígios do passado, com a sua convicção de que bastaria apenas acabar por completo com eles e as coisas correriam da melhor maneira possível — esta «herança» não só nada tem de comum com as citadas concepções populistas, como as contradiz directamente.
Segundo traço do populismo — a fé na originalidade da Rússia, a idealização do camponês, da comunidade, etc. A teoria da originalidade da Rússia obrigou os populistas a agarrarem-se a ultrapassadas teorias europeias ocidentais, impeliu-os a uma atitude de impressionante ligeireza para com muitas das conquistas da cultura europeia-ocidental: os populistas consolavam-se com a ideia de que se não temos estes ou aqueles traços da humanidade civilizada, em contrapartida «fomos destinados» a mostrar ao mundo novos métodos de gestão da economia, etc. A análise do capitalismo e de todas as suas manifestações, elaborada pelo pensamento avançado da Europa ocidental, não só não era admitida em relação à santa Rússia, como, pelo contrário, faziam-se todos os esforços para inventar pretextos que impedissem que se chegasse às mesmas conclusões sobre o capitalismo russo que aquelas a que se tinha chegado em relação ao capitalismo europeu. Os populistas prosternavam-se diante dos autores desta análise e ... e continuavam tranquilamente a ser os românticos contra os quais lutaram toda a vida esses autores. Mais uma vez, esta teoria sobre a originalidade da Rússia, comum a todos os populistas, nada tem de comum com a «herança», antes a contradiz directamente. «Os da década de 60», pelo contrário, aspiravam a europeizar a Rússia, acreditavam na sua integração na cultura europeia geral, preocupavam-se com transplantar as instituições desta cultura também para o nosso solo nada original. Qualquer teoria sobre a originalidade da Rússia encontra-se em total discrepância com o espírito da década de 60 e as suas tradições. A idealização e o embelezamento do campo pelos populistas estão ainda menos de acordo com esta tradição. Esta falsa idealização, que desejava ver a todo o custo o nosso campo como algo de especial, algo que em nada se parece com a estrutura de qualquer outro campo de qualquer outro país no período das relações pré-capitalistas, está em flagrante contradição com as tradições da sensata e realista herança. Quanto mais ampla e profundamente se desenvolvia o capitalismo, quanto mais se manifestavam no campo as contradições que são comuns a qualquer sociedade mercantil capitalista, tanto mais agudamente se manifestava a contradição entre as melosas fábulas dos populistas sobre o «espírito de comunidade» e «o espírito de artel» do camponês, etc, por um lado, e, por outro, a divisão de facto do campesinato em burguesia rural e proletariado rural; e tanto mais rapidamente os populistas, que continuavam a ver as coisas com olhos de camponês, se transformavam de românticos sentimentais em ideólogos da pequena burguesia, pois o pequeno produtor na sociedade contemporânea vai-se transformando em produtor de mercadorias. A falsa idealização do campo e os sonhos românticos sobre o «espírito de comunidade» fizeram com que os populistas adoptassem uma atitude de extrema ligeireza em relação às verdadeiras necessidades dos camponeses, que decorrem do desenvolvimento económico actual. Em teoria, podia-se falar quanto se quisesse da força dos pilares, mas, na prática, cada populista sentia muito bem que a eliminação dos vestígios do passado, dos restos do regime anterior à reforma, que continuam até hoje a enredar da cabeça aos pés o nosso campesinato, abriria caminho precisamente ao desenvolvimento capitalista e não a qualquer outro. É preferível a estagnação ao progresso capitalista — tal é, no fundo, o ponto de vista de cada populista sobre o campo, mesmo que, evidentemente, nem todos os populistas se decidam a dizê-lo aberta e directamente com a ingénua franqueza do Sr. V. V. «Os camponeses, amarrados como estão aos seus lotes e às suas comunidades, privados da possibilidade de empregar o seu trabalho onde seja mais produtivo e mais vantajoso para eles, ficaram como que congelados nesta forma de vida semelhante à de um rebanho, improdutiva, tal como saíram da servidão.» Esta era a opinião de um dos representantes da «herança» com o seu ponto de vista característico de «iluminista»[N95]. «É melhor que os camponeses continuem a congelar-se na sua forma de vida rotineira, patriarcal, do que abrir o caminho para o capitalismo no campo» - assim pensa, no fundo, cada populista. Na realidade, não se encontrará provavelmente nenhum populista que ouse negar que o carácter fechado do ponto de vista dos estados sociais da comunidade camponesa, com a sua caução solidária e com a proibição da venda da terra e da renúncia ao lote está em flagrante contradição com a realidade económica actual, com as actuais relações mercantis capitalistas e o seu desenvolvimento. É impossível negar esta contradição, mas a essência da questão é que os populistas temem como o fogo colocar o problema assim, confrontar assim a situação jurídica do campesinato com a actual realidade económica, com o actual desenvolvimento económico. O populista obstina-se em acreditar num desenvolvimento inexistente, criado pela sua fantasia romântica, sem capitalismo, e por isso ... por isso ele está disposto a deter o desenvolvimento actual, que segue a via capitalista. Quanto aos problemas relativos ao carácter fechado do ponto de vista dos estados sociais da comunidade camponesa, à caução solidária e ao direito de os camponeses venderem a terra ou de renunciarem ao lote, o populista não só tem uma atitude de grande preocupação e temor pelo destino dos «pilares» (pilares de rotina e de estagnação) como cai tão baixo que felicita a proibição policial de os camponeses venderem a sua terra. «O mujique é estúpido — poder-se-ia dizer a tal populista repetindo as palavras de Engelhardt —, é incapaz de arranjar-se sozinho. Se ninguém se preocupa com ele, é capaz de queimar todos os bosques, exterminar todos os pássaros, pescar todos os peixes, esgotar a terra e acabar consigo mesmo.» Aqui o populista «renega a herança» directamente, tornando-se reaccionário. E é preciso notar que esta destruição do caracter fechado da comunidade camponesa do ponto de vista dos estados sociais se torna, à medida que o desenvolvimento económico avança, uma necessidade cada vez mais imperiosa para o proletariado rural, ao passo que para a burguesia camponesa os inconvenientes que daí derivam não são de modo algum tão consideráveis. O «mujiquc empreendedor» pode arrendar com facilidade terra noutro lugar, abrir um estabelecimento noutra povoação e viajar para onde e quando quiser para tratar de negócios. Mas para o «camponês» que vive principalmente da venda da sua força de trabalho, a sujeição ao lote e à comunidade significa uma enorme restrição da sua actividade económica, significa a impossibilidade de encontrar um patrão melhor, significa a necessidade de vender a sua força de trabalho precisamente aos seus compradores locais que pagam sempre menos e procuram toda a espécie de meios para o sujeitar. — Uma vez que caiu no domínio dos sonhos românticos, que se propôs como objectivo apoiar e preservar os pilares a despeito do desenvolvimento económico, o populista deslizou, sem se dar conta, por este plano inclinado até se encontrar ao lado do agrário, que anseia de todo o coração a manutenção e consolidação dos «laços do camponês com a terra». Basta recordar como este carácter fechado da comunidade camponesa do ponto de vista dos estados sociais originou modos particulares de contratação de operários: os proprietários de fábricas e de explorações agrícolas enviam os seus agentes às aldeias, principalmente às atrasadas no pagamento de impostos, para contratarem trabalhadores do modo mais vantajoso. Felizmente, o desenvolvimento do capitalismo na agricultura, destruindo a vida «sedentária» do proletário (tal é o efeito do trabalho dos camponeses fora da sua povoação) substitui gradualmente esta escravidão pela contratação livre.
Mais uma confirmação, e talvez não menos importante, da nossa tese sobre o carácter nocivo das actuais teorias populistas é-nos dada pelo facto de, entre os populistas, ser corrente a idealização do pagamento em trabalho. Acima citámos o exemplo de como Engelhardt, ao cair no pecado populista, chegou mesmo a dizer que «seria bom» desenvolver no campo o pagamento em trabalho! Isto mesmo encontramo-lo no famoso projecto do Sr. Iujakov acerca das escolas secundárias agrícolas (Rússkoie Bogatstvo, 1895, n.° 5) (17). Na mesma idealização incorreu o Sr. V. V., colaborador como Engelhardt da revista, o qual afirmou em artigos económicos sérios que o camponês conquistou uma vitória sobre o latifundário, que segundo ele desejava instaurar o capitalismo; mas o mal consistia em que o camponês se encarregava de trabalhar terras do latifundiário recebendo em troca terras «em arrendamento», ou seja, tinha restaurado exactamente o mesmo modo de economia que já existia no regime de servidão. Estes são os exempíos mais palpáveis da atitude reaccionária dos populistas em relação aos problemas da nossa agricultura. O leitor poderá encontrar esta ideia de forma menos aguda em cada populista. Todo o populista fala do carácter prejudicial e perigoso do capitalismo na nossa agricultura, pois este, vejam lá, substitui o camponês independente pelo assalariado agrícola. A realidade do capitalismo (o «assalariado agrícola») é contraposta à ficção do camponês «independente»; esta ficção baseia-se no facto de o camponês da época pré-capitalista dispor dos meios de produção, mas silencia-se discretamente o facto de ter de pagar por estes meios de produção o dobro do seu valor; de estes meios de produção servirem para o pagamento em trabalho; de o nível de vida deste camponês «independente» ser tão baixo que em qualquer país capitalista seria considerado indigente; de à extrema miséria e à inércia mental deste camponês «independente» se ter de acrescentar ainda a dependência pessoal que acompanha inevitavelmente as formas pré-capitalistas de economia.
O terceiro traço característico do populismo — ignorar as relações entre a intelectualidade e as instituições jurídico-políticas do país, por um lado, e os interesses materiais de determinadas classes sociais, por outro — está estreitamente ligado aos precedentes: só falta de realismo na abordagem dos problemas sociológicos pôde gerar a teoria de que o capitalismo russo é um «erro» e de que é possível «desviar do caminho». Também esta concepção do populismo não tem relação alguma com a «herança» e as tradições da década de 60, pelo contrário, contradiz directamente estas tradições. Desta concepção decorre naturalmente a atitude dos populistas para com os inúmeros vestígios da regulamentação anterior à reforma na vida russa, que não poderia ser de modo algum partilhada pelos representantes da «herança». Para a caracterização desta atitude permitir-nos-emos utilizar as excelentes observações do Sr. V. Ivanov no artigo Uma Infeliz Invenção («Nóvoie Slovo»[N96], Setembro de 1897). O seu autor refere-se ao conhecido romance do Sr. Boboríkine De Outra Maneira e revela a sua incompreensão da discussão dos populistas com os «discípulos». O Sr. Boboríkine põe na boca do herói do seu romance — um populista — uma censura aos «discípulos» que, segundo ele, sonham com «um quartel com o intolerável despotismo da regulamentação». O Sr. V. Ivanov observa a este respeito:
«Sobre o intolerável despotismo da 'regulamentação' como um 'sonho' dos seus adversários, eles (os populistas) não só não falaram, como também, permanecendo populistas, não podem falar e não falarão. A essência da sua discussão com os 'materialistas económicos' neste domínio consiste precisamente no facto de os vestígios da antiga regulamentação que se conservaram no nosso país poderem, na opinião dos populistas, servir de base para o ulterior desenvolvimento da regulamentação. O carácter intolerável desta antiga regulamentação é-lhes ocultado, por um lado, pela ideia de que 'a própria alma camponesa (única e indivisível) está a evoluir' para a regulamentação e, por outro, pela convicção de que existe ou virá a existir a beleza moral da 'intelectualidade', da 'sociedade' ou das 'classes dirigentes' em geral. Acusam os materialistas económicos de paixão não pela 'regulamentação', mas, pelo contrário, pela ordem europeia ocidental, que tem por base a ausência de regulamentação. Os materialistas económicos afirmam realmente que os vestígios da antiga regulamentação, surgida na base da economia natural, se tornam cada dia mais 'intoleráveis' num país que passou à economia monetária, a qual provoca numerosas modificações tanto na situação real como na fisionomia intelectual e moral das diferentes camadas da sua população. Por isso, estão convencidos de que as condições necessárias para o surgimento de uma nova 'regulamentação' benéfica para a vida económica do país não podem desenvolver-se na base dos vestígios de uma regulamentação adaptada à economia natural e à servidão, mas somente numa atmosfera de ausência ampla em todos os aspectos da antiga regulamentação como existe nos países avançados da Europa ocidental e da América. É neste estado que se encontra o problema da 'regulamentação' na discussão entre os populistas e os seus adversários» (pp. 11-12, loc. cit.). Esta atitude dos populistas para com os «vestígios da antiga regulamentação» representa talvez o maior afastamento dos populistas em relação às tradições da «herança». Os representantes desta última, como já vimos, distinguiram-se pela irrevogável e apaixonada condenação de todos os vestígios da antiga regulamentação. Portanto, neste aspecto, os «discípulos» estão incomparavelmente mais próximos das «tradições» e da «herança» da década de 60 do que os populistas.
A falta de realismo sociológico, além do já citado erro extremamente importante dos populistas, condu-los também a uma maneira especial de pensar e de reflectir sobre assuntos e problemas sociais, a que se pode chamar presunção estreitamente intelectualista ou, talvez, mentalidade burocrática. O populista está sempre a discorrer sobre que caminho «nós» devemos escolher para a pátria, que desgraças teremos de enfrentar se «nós» encaminharmos a pátria por tal ou tal caminho, que resultados «nós» poderíamos assegurar se evitássemos os perigos do caminho pelo qual seguiu a velha Europa, se «tomássemos o que há de melhor» tanto da Europa como da nossa tradicional comunidade, etc, etc. Daí a total falta de fé e o desdém do populista pelas tendências independentes das diferentes classes sociais, que fazem a história de acordo com os seus interesses. Daí a espantosa ligeireza com que o populista se lança (esquecendo-se das circunstâncias que o rodeiam) a todo o tipo de projectomania social, começando pela «organização do trabalho agrícola» e terminando pela «comunalização da produção» por meio dos esforços da nossa «sociedade». «Mit der Gründlichkeit der geschichtlichen Action wirdder Umfang der Masse zunehmen, deren Action sie ist»(18) — nestas palavras está expressa uma das mais profundas e mais importantes teses da teoria histórico-filosófica que os nossos populistas não querem e não podem compreender. Na medida em que se amplia e aprofunda a criação histórica dos homens deve crescer também a massa da população que é o agente histórico consciente. O populista, porém, sempre considerou a população em geral e a população trabalhadora em particular como objecto destas ou daquelas medidas mais ou menos razoáveis, como qualquer coisa que deve ser encaminhada por esta ou aquela via, e nunca olhou para as diferentes classes da população como agentes históricos independentes numa dada via, nunca colocou o problema das condições dessa via, que podem estimular (ou, pelo contrário, paralisar) a actividade independente e consciente destes criadores da história.
Assim, apesar de o populismo ter dado um grande passo em frente em relação à «herança» dos ilumínistas ao colocar o problema do capitalismo na Rússia, a solução que deu a este problema foi tão insatisfatória, em consequência do seu ponto de vista pequeno-burguês e da sua crítica sentimental do capitalismo, que numa série de importantes questões da vida social ficou atrás em comparação com os «iluministas». A associação do populismo com a herança e com as tradições dos nossos iluministas mostrou-se no fim de contas um facto negativo: os novos problemas que o desenvolvimento da Rússia posterior à reforma colocou ao pensamento social russo não foram solucionados pelo populismo, que se limitou a lamentações sentimentais e reaccionárias a seu respeito, e obscureceu com o seu romantismo os velhos problemas, que já tinham sido levantados pelos iluministas, e retardou a sua completa solução.
IV — Os «Iluministas», os Populistas e os «Discípulos» >>>
Notas de rodapé:
(9) Diga-se de passagem: isso seria não só extraordinariamente interessante e instrutivo, mas seria também um procedimento plenamente legítimo para um economista-investigador. Se os homens dc ciência confiam nos materiais dos inquéritos — nas respostas e opiniões de muitos proprietários, com frequência parciais e pouco entendidos, que carecem de uma concepção coerente e cujos pontos de vista não foram bem meditados —, porque então não confiar nas observações que durante 11 anos inteiros fez um homem com um notável espírito de observação e de irrefutável sinceridade, um homem que estudou muito bem a matéria de que fala? (retornar ao texto)
(10) Rússkoie Bogatstvo, 1896, n.º 5, Maio. Artigo do Sr. Kárichev sobre as despesas dos zemstvos provinciais em medidas económicas, p. 20. (retornar ao texto)
(11) À maneira de. (N. Ed.) (retornar ao texto)
(12) Krug (círculo): antiga unidade de medição da terra (que compreendia três deciatinas), com a obrigação, ao ser arrendada, de se destinar uma parte para os cultivos de Outono, outra parte para os de Primavera e a outra para pastos. (N. Ed.) (retornar ao texto)
(13) Criado de lavoura. (N. Ed.) (retornar ao texto)
(14) Recordai a cena: o estarosta (isto é, o administrador do latifundiário) chama o camponês para trabalhar quando este tem o seu cereal já a perder o grão, e só a perspectiva de ter de «baixar as calças» no vólost o obriga a obedecer. (retornar ao texto)
(15) Ver agora o livro de Tugán-Baranóvski A Fábrica Russa (São Petersburgo, 1898). (retornar ao texto)
(16) Já tive a oportunidade de assinalar antes, no artigo sobreo romantismo económico, que os nossos adversários mostram uma miopia espantosa ao interpretar os termos reaccionário, pequeno-burguès como recursos polémicos, ao passo que estas expressões têmum sentido histórico-filosófico bem definido. (Ver V. I. Lénine, Obras Completas, 5.ª ed. em russo, t. 2, p. 211 - N. Ed.) (retornar ao texto)
(17) Ver V. I. Lénine, Obras Completas, 5.a ed. em russo, t. 2, pp.61-69 e471-504. (N. Ed.) (retornar ao texto)
(18) Marx, Die heilige Familie (Marx, A Sagrada Família - N. Ed.), 120. Segundo Béltov[N97], p. 235. («Juntamente com o carácter fundamental da acção histórica crescerá o volume da massa cuja acção ela é.» - N. Ed.) (retornar ao texto)
Notas de fim de Tomo:
[N92] Trata-se das cartas Do Campo do publicista populista A. N. Engelhardt, que ganharam grande popularidade. Onze cartas foram inseridas na revistaOtétchestvennie Zapíski em 1872-1881; a décima segunda carta foi publicada em 1887. (retornar ao texto)
[N93] Zemledéltcheskaia Gazeta (Jornal da Agricultura: órgão do Ministério dos Bens do Estado; a partir de 1894, do Ministério dos Bens do Estado e da Agricultura). Publicou-se em Petersburgo de 1834 a 1917. (retornar ao texto)
[N94] Véstnik Evrópi (Mensageiro da Europa): revista mensal histórico-política e literária, de orientação burguesa liberal. Publicou-se em Petersburgo entre 1866 e 1918. Na revista eram publicados artigos contra os marxistas revolucionários. (retornar ao texto)
[N95] Lénine tinha em vista Skáldine, de cujo livro cita as palavras. (retornar ao texto)
[N96] Nóvoie Slovo (A Nova Palavra): revista científico-literáría e política mensal. Foi editada em Petersburgo a partir de 1894 pelos populistas liberais, e a partir do início de 1897 pelos «marxistas legais» (P. B. Struve, M. I. Túgan-Baranóvski e outros). Em Dezembro de 1897 a revista foi encerrada pelo governo tsarista. (retornar ao texto)
[N97] O pseudónimo N. Béltov foi usado por G. V. Plekhánov ao publicar o conhecido livro Sobre a Questão do Desenvolvimento da Concepção Monista da História, livro editado legalmente em Petersburgo, em 1895. (retornar ao texto)
Inclusão | 22/06/2006 |
Última alteração | 03/11/2011 |