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"O comunismo não é para nós nem um Estado
que deva ser criado, nem um ideal sobre o qual
a realidade deva ser regulada. Chamamos comunismo
ao movimento real que suprime as condições existentes"(1)
Marx
Abordamos aqui um dos exemplos mais típicos do desnível notável que, sob uma forma ou outra, se observa em todas as fases do desenvolvimento histórico do marxismo. Pode-se defini-lo como a contradição entre a ideologia marxista e o movimento histórico real que, numa dada época, se esconde detrás desta fachada ideológica.
Faz agora quase um século que um censor foi especialmente delegado por Berlim para substituir as autoridades locais de Colónia na dedicada missão de varrer o jornal "ultra-democrático" publicado por um jovem de 24 anos, chamado Karl Marx. Esse censor declarou ao governo prussiano que daí em diante podia com toda a tranquilidade autorizar o reaparecimento do Rheinische Zeitung, dado que a "individualidade grisalha de todo o negócio, o doutor Marx" tinha definitivamente deixado o seu trabalho, e que não existia nenhum sucessor capaz de manter o tom "de insuportável arrogância" adoptado pelo jornal ou continuar a sua política com a mesma determinação. Contudo, esse conselho não foi seguido pelas autoridades prussianas, submetidas nesse domínio, como se provou mais tarde às directivas do Czar russo Nicolau I. O seu vice-chanceler, o conde Nesselro de, acabava precisamente de ameaçar o embaixador prussiano em Moscovo de revelar a Sua Majestade Imperial "os ataques infamantes de que o Gabinete russo tinha sido recentemente objecto no Rheinische Zeitung de Colónia". Isto passava-se na Prússia, em 1843.
Três décadas mais tarde, a censura da Rússia, czarista autorizava a publicação, na Rússia, da obra de Marx — O Capital — na sua primeira tradução. A decisão era justificada por este argumento inestimável:
"Se bem que as convicções do autor sejam exclusivamente socialistas, e que o livro seja inteira e completamente de natureza socialista, contudo, a sua concepção não faz dele seguramente um livro acessível a todos; além disso, o seu estilo é estritamente matemático e científico; assim, o comité declara o livro livre de toda a perseguição".
Esse regime czarista, tão pronto a censurar mesmo o mais insignificante insulto proferido num país europeu contra a supremacia russa, e, ao mesmo tempo, tão inconsciente da ameaça que representava a análise científica feita por Marx do mundo capitalista, nunca foi na realidade abalado pelos vigorosos ataques que Marx lançou posteriormente contra
"os vastos abusos, nunca contraditados, desse poder bárbaro cuja cabeça está em São Petersburgo e as mãos em cada gabinete da Europa".
E, contudo, ele devera sucumbir a essa mesma ameaça, aparentemente tão longínqua, que esse Cavalo de Tróia tinha introduzido no coração do Santo Império. O regime czarista foi derrubado finalmente pela massa dos operários russos cuja a elite tinha aprendido a lição revolucionária em O Capital — essa obra "matemática e científica" de um pensador solitário.
Inversamente à Europa ocidental, onde a teoria marxista apareceu na época do declínio da revolução burguesa e se afirmava como expressão de uma tendência real visando ultrapassar os objectivos do movimento revolucionário burguês — a tendência representada pela classe proletária —, pelo contrário, na Rússia, o marxismo apenas foi, desde o início, um écran ideológico atrás do qual se escondia na prática a luta pelo desenvolvimento capitalista num país pré-capitalista.
Com este objectivo, toda a "intelligentsia" progressista adoptou, avidamente, o marxismo como a última palavra de ordem da Europa. Mas a sociedade burguesa, que tinha atingido na Europa ocidental o seu peno desenvolvimento, estava aqui ainda nas dores de parto. E, contudo, mesmo neste terreno virgem, o principio burguês já não podia retomar as ilusões e as auto-ilusões, aliás desgastadas, graças às quais se mascarou o conteúdo estritamente burguês das suas lutas na época heróica do seu primeiro desenvolvimento no Ocidente, e que lhe tinham permitido manter as suas paixões ao nível de grandes acontecimentos históricos. Para penetrar no Leste, era-lhe necessário nova pele ideológica. E a doutrina marxista, emprestada ao Ocidente, parecia precisamente mais apta a prestar este importante serviço ao desenvolvimento burguês na Rússia. Face a isto, o marxismo era de longe superior à doutrina russa dos revolucionários "narodniki" (populista). Ao contrário destes últimos que partiam do principio de que o capitalismo, tal como existia nos países "pagãos" do Ocidente, era inconcebível na Rússia, o marxismo, devido à sua própria raiz histórica, propunha o complemento da civilização capitalista como uma etapa histórica indispensável no processo que conduziria a uma sociedade verdadeiramente socialista. E contudo, antes de prestar à sociedade burguesa russa tais serviços ideológicos, a doutrina marxista necessitava de algumas modificações, mesmo no seu conteúdo puramente teórico. Eis a razão fundamental das enormes concessões teóricas, de outro modo inexplicáveis, feitas nos anos 70 e 80 por Marx e Engels às ideias sustentadas então pelos populistas russos, cuja doutrina era essencialmente irreconciliável com a sua própria teoria. A expressão final mais concreta dessas concessões encontra-se na famosa declaração do prefácio à tradução russa do Manifesto Comunista (1882).
"O Manifesto Comunista tinha como tarefa proclamar o desaparecimento inevitável e iminente da propriedade burguesa moderna. Na Rússia, contudo, a par do "bluff" capitalista em pleno desenvolvimento, vemos que mais de metade do solo é a propriedade comum dos camponeses. Então, a questão põe-se: a "obchtchina" russa, forma arcaica de propriedade comum do solo, poderá, uma vez já fortemente abalada, passar directamente à forma superior, à forma comunista da propriedade colectiva? Ou, pelo contrário, deverá percorrer antes o mesmo processo de dissolução que caracteriza o desenvolvimento histórico do Ocidente?
"Eis a única resposta que se pode dar presentemente a essa pergunta: se a revolução russa der o sinal de uma revolução proletária no Ocidente, e que ambas se complementarem, a actual propriedade colectiva da Rússia poderá servir como ponto de partida para uma evolução comunista(2)".
Nestas frases, como em muitas outras declarações semelhantes que figuram na correspondência de Marx—Engels — nas cartas ao escritor populista russo Nikolai-on(3), na carta a Vera Zassoulitch(4) e na resposta de Marx à interpretação fatalista feita pelo crítico russo Mikhailovski(5) da sua teoria das etapas históricas necessárias —, pode-se ler por antecipação toda a evolução ulterior do marxismo russo, e, logo também, ver cavar-se sempre mais o fosso entre a sua ideologia e o conteúdo real do movimento. É verdade que para Marx e Engels, a passagem directa de um estádio semi-patriarcal e feudal a uma sociedade socialista supunha — era uma reserva prudente — uma revolução operária no Ocidente, condição necessária para a emergência das tendências socialistas virtuais de uma sociedade pré-capitalista. A mesma reserva foi retomada mais tarde por Lenine. É também verdade que esta condição nunca preenchida (nem na época, nem após 1917) e que, pelo contrário, a comunidade camponesa russa a quem Marx, tão tarde como 1882, tinha devolvido uma função futura tão considerável, foi pouco depois completamente eliminada(6).
Contudo, mesmo slogans aparentemente tão anti-marxista como a recente "teoria" estalinista sobre a construção do socialismo num único país, utilizando o marxismo como cobertura ideológica de uma evolução cuja natureza real é capitalista, podem inegavelmente referir-se, não somente ao precedente criado pelo marxismo ortodoxo de Lenine, mas mesmo a Marx e Engels em pessoas. Eles também estavam dispostos, em certas condições históricas, a remodelar a sua teoria "marxista" crítico-materialista em simples ornamento ideológico de um movimento revolucionário que, se se proclamava socialista nos seus fins últimos, estava no seu processo real inegavelmente submetido a toda a espécie de limitações burguesas. A única diferença, e não é pequena, é que Marx, Engels e Lenine agiam assim a fim de impulsionar o futuro movimento revolucionário, enquanto que Estaline utiliza exclusivamente a ideologia "marxista" como meio para defender um "statu-quo" não socialista e como arma contra qualquer tendência revolucionária.
É assim que se retoca, em vida de Marx e Engels e com a sua colaboração activa e consciente, essa substituição da função específica pela qual o marxismo, adoptado como uma doutrina absolutamente feita elos revolucionários russos, deixou de ser a ferramenta teórica de uma revolução socialista proletária para se tornar posteriormente no simples disfarce ideológico de uma evolução capitalista burguesa. Como já vimos, essa modificação de função pressupunha, à partida, uma certa transformação da própria doutrina, que nesse caso foi realizada pela fusão e interpretação da doutrina populista tradicional e elementos ideológicos marxistas recentemente adoptados. Esta transformação da sua teoria, admitida na origem por Marx e Engels unicamente como etapa transitória, que ultrapassaria a iminente "revolução operária no Ocidente", mostrou-se bem cedo apenas ter sido o primeiro passo para a transformação definitiva da sua teoria marxista revolucionária num simples mito revolucionário. O qual, mesmo se podia servir de estímulo nos primeiros estádios de uma revolução nascente, devia conduzir inevitavelmente a travar o desenvolvimento real de revolução, em lugar de a acelerar.
É interessante observar como esse processo de adaptação ideológica da doutrina marxista se desenrolou ao longo das décadas seguintes no quadro das diversas escolas de revolucionários russos. Se se estudar de perto as violentas controvérsias sobre a perspectiva de um desenvolvimento capitalista na Rússia, as quais animaram os círculos confidenciais dos marxistas russos no exílio e na Rússia, desde os anos 90 até ao fim da guerra,— controvérsias cuja expressão teórica mais acabada se encontra na principal obra económica de Lenine O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia — pode-se, à luz desse estudo, afirmar sem exagero que o conteúdo real da teoria marxista original, enquanto que expressão teórica socialista, tinha desaparecido do debate.
É indiscutivelmente verdade que pretensos "marxistas legais", na sua exposição "científica" do aspecto objectivo da doutrina marxista, se gabavam de manter uma "pureza" particularmente inalterada, mas que compensavam largamente essa rigidez doutrinal renunciando a toda a aplicação prática dos princípios marxistas susceptíveis de ultrapassar em objectivos estritamente burgueses. A teoria revolucionária marxista no seu conjunto já não estava representada por essas outras correntes que, na época, procuravam combinar, sob uma forma ou outra, a necessidade de uma etapa transitória do desenvolvimento capitalista na Rússia com o combate antecipado contra as condições sociais futuras que esse desenvolvimento devia criar. A essa corrente pertence o escritor populista erudito já mencionado, Nikolai-on, tradutor russo de O Capital, que no inicio dos anos 90, sob a influência directa da doutrina marxista, abandonou a convicção populista ortodoxa respeitante à impossibilidade absoluta do capitalismo na Rússia para adoptar a teoria inspirada do marxismo da impossibilidade de um desenvolvimento capitalista orgânico normal na Rússia. A essa corrente pertence igualmente o adversário materialista veemente do idealismo populista, o marxista ortodoxo Lenine e os seus partidários, que, ulteriormente, depois da sua ruptura com os "mencheviques" ocidentalizados, se proclamaram os únicos herdeiros autênticos, na teoria como na prática, da integridade do conteúdo revolucionário da teoria marxista, tal como a restituía a doutrina do marxismo bolchevique.
Quando analisamos retrospectivamente as ardentes controvérsias teóricas deste período, constatamos uma relação manifesta entre, por um lado, a teoria populista da "impossibilidade de um desenvolvimento capitalista orgânico normal na Rússia" (defendida pelo "narodnik" marxista Nikolai-on e combatida na época pelos marxistas de todos os géneros, "legais" e "revolucionários", os mencheviques e os bolcheviques) e, por outro, as duas teorias rivais: "estalinismo" no poder e "trotskismo" na oposição, que numa fase recente da evolução russa, se defrontaram. Muito paradoxalmente, a teoria "nacional-socialista" estalinista dominante sobre a possibilidade da construção do socialismo num só país, tal como a tese "internacionalista", aparentemente diametralmente oposta, elaborada por Trotsky a propósito da inevitabilidade da revolução "permanente" — quer dizer, de uma revolução ultrapassando os objectivos revolucionários burgueses simultaneamente ao escalão russo e europeu (ou mundial) — essas teses assentam ambas na ideologia comum da crença "neo-narodnik" na ausência ou impossibilidade de um desenvolvimento capitalista "normal e orgânico" na Rússia. Trotsky e Estaline assentam as sua versões da ideologia marxista na autoridade de Lenine. Efectivamente, mesmo o mais ortodoxo de entre os marxistas ortodoxos, que, antes de Outubro de 1917, tinha combatido asperamente ao mesmo tempo o narodnikismo de Nikolai-on e a teoria de Parvus—Trotsky sobre a "revolução permanente", que depois de Outubro, se opôs com a mesma coerência à corrente geral glorificando as realizações menores do que se chamou mais tarde o "comunismo de guerra" dos anos 1918-1920 — Lenine — abandonou por fim essa luta sem quartel a favor do realismo crítico-revolucionário para sustentar, ao encontro das condições objectivas reais, o conceito neo-populista de um socialismo russo original. Esses mesmo que tinham combatido a tendência inicial da idealização socialista e que, aquando da proclamação da NEP, em 1921, tinham ainda declarado sobriamente que "esta nova política económica do Estado operário e camponês" era uma regressão necessária em relação às tentativas mais avançadas do comunismo de guerra, esses mesmos descobriram em algumas semanas a natureza socialista do capitalismo de Estado e de uma economia que continuava essencialmente burguesa, a despeito de uma ligeira tintura cooperativa. Assim, não foi o epígono leninista Estaline, mas o marxista ortodoxo Lenine que no momento crucial histórico em que as tendências práticas da revolução russa, até aí indecisas, se encontravam orientadas "bem e por muito tempo" para a restauração de uma economia não socialista, acrescentou então a esta restrição final dos objectivos práticos da revolução o que ele pensava ser um complemento ideológico indispensável. Foi o marxista ortodoxo Lenine que, em contradição com todas as suas declarações anteriores, criou o primeiro novo mito marxista de um socialismo inerente ao Estado soviético e, consequentemente, da possibilidade assim garantida de realizar integralmente a sociedade socialista na Rússia soviética isolada.
Esta degenerescência da doutrina marxista, que faz dela a simples justificação ideológica de um Estado na realidade capitalista e, portanto, inevitavelmente, de um Estado baseado na supressão do movimento revolucionário do proletariado, encerrou o primeiro período da história da ideologia marxista na Rússia. Único período, aliás, em que a revolução do marxismo na Rússia parece apresentar um carácter autónomo. Contudo, é preciso assinalar que de um ponto de vista mais global, a despeito das aparências e numerosas dificuldades resultantes das condições específicas a cada país, a evolução histórica do marxismo russo (compreendendo as suas últimas etapas leninista e estalinista), é fundamentalmente semelhante à do marxismo dito "ocidental" (ou social-democrata) do qual foi, e continua a ser, parte integrante. A Rússia nunca foi essa nação santa e excepcional com que sonhavam os pan-eslavos, tal como o bolchevismo nunca foi, como o pretendiam os marxistas considerados mais refinados da Inglaterra, França e Alemanha, uma versão grosseira de um marxismo adaptado às condições primitivas do regime czarista. Do mesmo modo, a actual degenerescência burguesa do marxismo na Rússia é fundamentalmente semelhante à degenerescência que afecta progressivamente as diversas correntes do marxismo "ocidental" durante a guerra, após-guerra e nazismo.
O "nacional-socialismo" de Herr Hitler e o "Estado corporativo" de Mussolini rivalizam com o "marxismo" de Estaline para doutrinar os cérebros dos seus operários através de uma ideologia pseudo-socialista, não contentes de terem o controlo sobre a sua existência física e social. Do mesmo modo, o regime "democrático" de um governo de Frente Popular presidido pelo "marxista" Léon Blum ou, também, pelo próprio M. Chautemps, não difere essencialmente do actual Estado soviético, senão pela utilização menos eficaz da ideologia marxista.
Menos que nunca, o marxismo serve hoje como arma
teórica numa luta autónoma do proletariado, para e por o proletariado.
Todos os pretensos partidos "marxistas" estão agora muito mais
interessados, tanto na sua teoria como sua prática real, na via da
colaboração. Reduzidos à função de "sacristães" dos dirigentes
burgueses, apenas podem ajudar modestamente a resolver o que o
"marxista" americano L. B. Boudin definia ainda recentemente como "o
maior problema do marxismo — a nossa posição em relação às lutas
internas da sociedade capitalista".
Notas de rodapé:
(1) A Ideologia Alemã, ed. Presença, Porto, 1975. (N.T.P.) (retornar ao texto)
(2) Karl Marx, Oeuvres, Bibliothèque de la Pléiade, t. 1, p. 1483. (N.T.F.) (retornar ao texto)
(3) in "Lettres sur le Capital", Éditions sociales, Paris, 1964. Nikolai-on é o pseudónimo de Nikolai Danielson (1844-1918), tradutor do Capital em língua russa. (N.T.F.). (retornar ao texto)
(4) Karl Marx, Oeuvres, Bibliothèque de la Pléiade, t. 2, p. 1557, e sg. Esta carta data de 1881. (N.T.F.).
(retornar ao texto)
(5) Id., p. 1552. (N.T.F.). (retornar ao texto)
(6) Ver-se-á Engels tomar em consideração esta falha nas suas cartas a Danielson, escritas no princípio dos anos 90. In "Cartas sobre o Capital" op. Cit. E "Escritos sobre o czarismo e a Comuna russa". Cahiers do ISEA, n.º 7, Julho de 1969. (N.T.F). (retornar ao texto)
Inclusão | 23/05/2014 |