Humanismo e Ciência

Evald Vasilievich Ilienkov

1971


Primeira Edição: Artigo publicado no livro Ciência e Moralidade (Moscou, 1971). Disponível publicamente em inglês no Marxists Internet Archive [http://www.marxists.org/] e em russo no Lendo Ilienkov (Читая Ильенкова) [http://caute.ru/ilyenkov/].

Tradução: Marcelo José de Souza e Silva.(1)
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: Licença Creative Commons licenciado sob uma Licença Creative Commons.


O leitor deste livro se tornou familiar com vários pontos de vista relacionados ao problema que, de uma maneira ou de outra, é de preocupação de toda pessoa pensante em nossa época. O leitor se tornou participante nesta discussão. Não é preciso ser um filósofo para notar as diferenças essenciais em abordar uma resolução do problema em mãos. Nós também faremos uma tentativa, sem pretensões de fornecer uma resposta final, de expressar nossa própria opinião.

De primária importância é uma formulação do aspecto essencial do problema enfrentado por cada um dos autores deste livro, apesar das diferenças óbvias que os separam. Isso é importante porque algumas vezes pode parecer que várias abordagens da questão simplesmente significam discussões relativas a vários lados ou aspectos, mas não meios (frequentemente opostos) de resolver uma e mesma questão. Esta uma e mesma questão precisa ser constantemente suportada na mente em uma formação tão concisa e forte quanto possível. Somente assim pode ser decidido, seguindo os argumentos apresentados pelos autores, qual caminho aponta para a solução, e quais para um beco sem saída. Caso contrário, nós ficaremos com a impressão de que cada abordagem contém vislumbres parciais da verdade e, igualmente, que cada contém vieses, assim como erros. Mas a verdade nunca nasceu de uma simples soma de “vários” aspectos ou através da unificação de diferentes pontos de vista.

Qual é de fato esta questão que disturba a todos? Ela pode ser formulada de tal forma que cada disputante irá reconhecer nela o objeto de suas próprias reflexões? De fato, indicar a questão apropriadamente é estar bem no caminho a uma solução. Portanto, um argumento teórico autêntico sempre começa com a formulação teórica do problema.

É melhor quando a concordância com este ponto é alcançada bem no início – no mínimo, deve-se chegar a essa concordância. Caso contrário, a formulação do tópico em disputa permanecerá insuficientemente articulada de forma precisa. A tentativa precisa ser feita para trazer o problema ao nível da contradição, pois todo problema autêntico, nós somos ensinados pela dialética, precisa aparecer para a mente na forma de uma contradição intensa e não resolvida, na forma de uma antinomia.

Se, por enquanto, deixamos de lado caminhos puramente teóricos de expressar o problema e o abordamos em uma forma compreensiva sem requerer definições e explicações debilitantes, tal abordagem nos permitirá avaliar cada uma das formulações teóricas fornecidas.

Qual é a substância deste problema real e vital nos causando problema, que cada um de nós reconhece em um grau ou outro e articulado de uma forma mais ou menos clara?

Cada um de nós tem conhecimento quase literal do tempo de nossa infância, da dissonância entre as conclusões da mente e os ditames do coração, do conflito frequente entre a voz da consciência e os cálculos de nossa razão. Cada um de nós sabe que algumas vezes as “circunstâncias” fornecem um ato que está em contradição com nossa consciência, com nosso senso de gentileza e de decência; nós estamos familiarizados com o oposto, quando o desejo de fazer uma “boa ação” é superado pela força das “circunstâncias”. Algumas vezes nós preferimos nos submeter a essas circunstâncias, outras vezes nós agimos “imprudentemente”, mas “nobremente”, não criando ilusões de sucesso...

Está claro que nós percebemos tal contradição como dissonância e divergência que não trazem nem paz de espírito, nem a tranquila realização de seu assunto. Este conflito de motivos, entre “as reflexões da mente friamente observadas, as percepções amargas do coração”, não é, naturalmente, uma invenção insidiosa por parte dos advogados do dualismo filosófico. É (seja para melhor ou pior) o material da realidade, o centro de nossas vidas e pensamentos.

Nosso planeta, infelizmente, está pobremente preparado para garantir felicidade. As circunstâncias como estão atualmente na Terra são tais, que não se pode encontrar um guia automático para agir que irá coincidir até o último detalhe com nosso desejo inato de produzir o bem estar e felicidade de toda a Terra. As próprias “circunstâncias” envolvendo nossas ações são contraditórias. Frequentemente nós precisamos prejudicar alguém para fazer uma boa ação para outra pessoa, e vice-versa.

Dada essa situação, é possível alocar um princípio universal, uma fórmula geral que garanta impecavelmente a tomada de decisão?

É concebível, é claro, decidir de uma vez por todas perseguir resolutamente a “voz da consciência”, os “ditames do coração” e a “luta pelo bem”. Alguém pode decidir seguir os princípios da honestidade absoluta e sem compromisso, ingênua e diretamente, independentemente de consideração de outras pessoas e outros fatos, e apesar do alerta estabelecido pela razão levando em conta as circunstâncias pertinentes. Alguém pode, por outro lado, depender somente da razão, de um cálculo e estimativa sóbria de todas as circunstâncias, da mente matematicamente rigorosa, colocando resoluta confiança nesta mente – tanto quando suas conclusões concordam com a intuição moral direta, quanto quando elas vão a direções contrárias.

Quais desses princípios são preferidos, qual é o mais correto?

Alguém arriscará a escolha entre estes dois, particularmente depois de ter lido este livro de capa a capa? Pode ser concluído com certeza a partir dos capítulos precedentes, que cada uma das soluções sugeridas contém certa lógica e que cada uma, em sua rigorosa pureza, é abstrata em um grau idêntico. Em outras palavras, a partir de um ponto de vista mais sofisticado, o risco é irracional.

Na verdade, a primeira solução atrai pela virtude de sua nobreza moral, frequentemente celebrada na grande arte do mundo. Dom Quixote, Príncipe Míchkin em O Idiota de Dostoiévski, Siegfried (Der Ring des Nibelungen). Mas a posição é muita de um mártir. Além disso, o mártir aqui não é o único protagonista, mas também os próprios princípios. A nobreza de sentimento desprovida de racionalidade e refratada através do prisma das “circunstâncias”, algumas vezes surge como uma caricatura, e algumas vezes como tragédia. O sentimento nobre abstrato – isso quer dizer, alheio à razão e ao cálculo – inevitavelmente leva à abnegação e até mesmo suicídio. Alguém pode encontrar o conforto moral aqui, mas o simplório verdadeiramente nobre, como uma regra, serve – sem o conhecimento de si mesmo e sem querer – como uma ferramenta conveniente de maldade e tormento na rede das circunstâncias insidiosas.

Não menos insidiosa em termos de consequências é a solução oposta. O hábito de dar preferência à estimativa ou cálculo rigorosamente matemático de todas as circunstâncias (quando as circunstâncias são repugnantes para a consciência) leva, no resultado final, ao colapso moral. Tudo está bem e bom quando os cálculos são infalíveis. Mas desde que no final é impossível levar plenamente em conta tudo de um fluxo interminável de circunstâncias dialeticamente entrelaçadas, mais cedo ou mais tarde, o ser humano que calcula é obrigado a fazer um erro de cálculo, e, ao fazer isso, cometer uma transgressão moral, passando no processo como algo não essencial.

A “auto-negação” dialética (isso quer dizer “suicídio” do princípio dado e seu portador) em um sentido subjetivo, para ter certeza, permanece ainda pior. Pois um erro de cálculo junto com um ato criminal contra as normas elementares da decência leva a um resultado percebido, dentre outras coisas, como retribuição moral ... como o colapso, o esmagamento total da personalidade.

Realmente, essa é outra questão – o desaparecimento interno magnificente de Dom Quixote, e outra bem diferente – o suicídio, ditado pelo horror e auto-repugnância, de Smerdiakov (um dos protagonistas de Os Irmãos Karamazov, de Dostoiévski). A mente, desprezando as demandas elementares da moralidade, acaba como uma fraude estúpida, um ignorante fraudulento, reconhecendo este estado intolerável – para a “mente” e para a “consciência” –, a qual trouxe a si pelas virtudes de seus princípios. Confiança foi colocada em um princípio abstrato, mas a confiança foi traída.

Dom Quixote – é um caso mais fácil. Aquelas “circunstâncias” que ele não leva em conta – e não tem desejo de incluir em seus cálculos – provaram ser as mais fortes. Um triste estado de coisas, mas o que podemos fazer? Dom Quixote viverá, entretanto, nas gratas recordações de todos aqueles que mais cedo ou mais tarde irão, de fato, refazer as “circunstâncias”.

Tal resultado é mais fácil, embora não seja, todavia, o mais prazeroso. O resultado para Sócrates, o resultado para Giordano Bruno.

Lá, no outro lado, nós temos Smerdiakov, Rudolf Hess, Julius Streicher.

Assim, se é para ter uma derrota, o primeiro tipo é preferível, embora unilateral e desamparado antes do esmagamento das circunstâncias, então pelo menos justificado por sua nobreza de princípio.

Mas ambos levam à derrota, à morte, à auto-negação dialética. Uma saída mais otimista precisa ser procurada.

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A partir do ponto de vista Marxista, uma solução plena do problema pode ser encontrada somente por “fazer as circunstâncias humanas”, organizando toda a rede de circunstâncias para que assim o próprio problema desapareça, assim nunca ninguém terá que escolher entre as demandas da “consciência” e os ditames da “razão”, assim as próprias circunstâncias ditarão (e a “mente” percebe) atividades e ações, em conformidade com os interesses de todas as outras pessoas.

A totalidade das relações sociais, “circunstâncias” sociais organizadas com base neste princípio, é chamada comunismo. O comunismo neste sentido é a única solução possível, concebível, teoricamente válida e completa, ao problema dado formulado neste livro. Mas as relações entre ciência e moralidade são somente uma, somente uma expressão parcial do problema fundamental de nossa era – a transformação comunista de todas as relações sociais entre humanos. Somente com base em uma solução para este problema nós encontraremos, no final, uma solução para o conflito entre a ciência imparcial, expurgada de todos os “sentimentos”, e do humanismo. Não existe outra solução. Sem a solução primordial, nosso conflito se tornará mais e mais agudo, os dois princípios polares divergirão muito mais largamente e cairão em uma clivagem mais acentuada.

O sistema capitalista tem apenas tal perspectiva: a exacerbação do problema – antinomia entre as demandas do humanitarismo, por um lado, e o cálculo a sangue frio, alheio ao humanismo científico autêntico, por outro lado. A cultura do sistema capitalista burguês divide inexoravelmente ao longo dessas duas linhas, ambas identicamente catastróficas para o fato da civilização. Estes dois polos estão contrapostos em imagens cristalizadas e há tempos estabelecidas.

Uma é o “humanismo abstrato”. Nobre, mas impotente ante a “força das circunstâncias” e condenado ao destino da ovelha diante do matador, os intelectuais do Oeste estão inclinados a suportar este polo. Às vezes, esta posição degenera em frases floreadas e conversa sem sentido. Outras vezes, instiga alguém a um anarquismo esteticamente manchado, à revolta. Algumas vezes força alguém a emprestar uma orelha para a solução oferecida pela perspectiva de longo prazo do comunismo.

O outro polo é o “cientificismo” (também bastante difundido no Oeste), que é a rejeição decisiva a todos os princípios humanos, denominado como “sentimentos anticientíficos”, como “poesia e ficção”. Cientificismo é a castração humanista do espírito científico, transformado em um novo Deus, um novo Moloque(2), a quem, se ele assim desejar, precisam ser sacrificadas dezenas, milhares, milhões e até mesmo centenas de milhões de pessoas.

Este novo espírito absoluto – o “espírito científico” a todo custo – há muito tempo tem seus sacerdotes. Um deles declarou com satisfação, após ouvir as notícias da destruição de Hiroshima: “Que magnífico experimento da física!”

Dada a preservação de tal mundo de “circunstâncias” organizadas com base na propriedade privada e no princípio da competição, não existe solução.

A única solução, de acordo com Marx e Lenin, é a luta de todas as pessoas trabalhadoras (tanto do trabalho manual quanto intelectual) pelo estabelecimento daquelas condições na Terra garantindo o desaparecimento do próprio “problema amaldiçoado”, da polarização trágica da cultura espiritual em dois campos hostis – o “espírito científico” desumanizado e o humanismo de Dom Quixote, desprovido de uma fundamentação científica. Especificamente nos referimos à luta para eliminar a esfera da propriedade privada e estabelecer o comunismo.

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Os autores deste livro derivam suas perspectivas da premissa Marxista. Nenhum deles apresenta o problema de forma adolescente: “O que é melhor, cientificismo ou humanismo abstrato?” ou, “O que é pior, ‘a consciência irracional’ ou a ‘mente inescrupulosa’?” Nós todos entendemos que ambas são inaceitáveis, isso quer dizer “pior”.

Todos os autores tomam a posição que os padrões morais elevados nas relações humanas (isso quer dizer, humanitarismo) podem triunfar na Terra somente com a ajuda e suporte da ciência, e, reciprocamente, que a ciência pode se desenvolver ao longo do caminho das descobertas histórico-universais somente se for orientada ao bem-estar de todos, se marcar consistentemente seu curso com o compasso do humanitarismo. Todos os autores do presente trabalho propõem uma moralidade fundamentada ou, em outras palavras, o desenvolvimento moral da mente.

Todos os autores entendem bem que a tarefa primária do sistema socialista, como observado no Programa do Partido Comunista da União Soviética, consiste na educação das pessoas – tanto os cientistas quanto os leigos – no espírito do desenvolvimento harmonioso do intelecto científico e dos princípios morais mais elevados, no espírito da unidade. A combinação em cada e todo humano desses dois elementos igualmente importantes da cultura espiritual, é uma tarefa ainda a ser completada. Como esta tarefa por ser realizada mais rapidamente e conscientemente? Como os vestígios da antinomia da “mente” e da “consciência”, deixados para nós como o legado da ordem capitalista-burguesa, podem ser eliminados mais rapidamente e completamente?

Os autores também tentaram se entender com este problema. Em termos de objetivo do argumento, eles não estão em desacordo. As diferenças observadas se referem aos meios para o final. Eles podem ser descritos como matizes diversos de uma abordagem para a resolução do problema dado: como pode a “consciência racional” ou “razão consciente” ser mais fielmente promovida em cada e todo humano? As alternativas: o julgamento científico humanisticamente orientado ou o humanismo que age racionalmente, um espírito científico humanizado ou um humanitarismo cientificamente infundido. Estas alternativas são, no resultado final, uma e a mesma. Os autores estão em acordo neste ponto, não encontramos qualquer fonte de disputa.

Mas talvez, dado este acordo, não existe qualquer coisa que segure o interesse do leitor, nenhuma discordância séria?

Talvez ambos os grupos de escritores (e não é difícil notar que cada um deles é puxado para um dos dois polos, cada polo demonstrando o mesmo argumento) tem elaborado os vínculos de seus argumentos de premissas diferentes. Alguns desejam resolver a tarefa por meios da “humanização do pensamento científico”, desejam fornecer o intelecto teórico frio com uma “orientação de valor”. Outros, ao contrário, desejam equipar lutas humanitárias com a força da introspecção científica e o poder do intelecto teórico, para prover o humanitarismo com um “aparelhamento científico”. Ambos os grupos realizam uma boa ação no processo. Aquele que não possui um fundo científico deveria ser provido com o essencial, aquele que não possui uma estrutura moral, deveria ser encorajado acima de tudo nas relações morais (não ignorando, naturalmente, uma educação científica). Em um caso a ciência precisa ser transmitida em um solo moralmente “cultivado”, no outro, princípios morais precisam ser inculcados em uma mente cientificamente alfabetizada. Ambos os polos da definição teórica são assim justificados, corretos e bons, mas em aspectos diferentes.

A própria disputa não está resolvida, se não for possível dizer que “o que os filósofos estão discutindo” no caso dado é uma contradição falsa?

Parece que sim. Parece que a antinomia desapareceu e se tornou “uma contradição em relações diferentes”. Em outras palavras, cada lado é correto em relação a um objeto (àquela categoria de pessoas que tinha em mente) e incorreta em relação à outra. Se assim for, o leitor pode, em paz, colocar de lado o livro e colocar um fim à investigação. A contradição provou ser formal, verbal. Vamos deixar aqueles que tem prazer com este tipo de problema continuar a disputa.

Não obstante, vamos olhar de alguma forma mais de perto a questão. Nas letras miúdas da contradição formal dada nós não podemos achar algo mais essencial?

Assim, a primeira solução: adicionar uma dose de ciência ao humanitarismo.

A segunda: humanizar as ciências, direcioná-las aos objetivos e “valores” nobres, humanitários.

Vamos tentar clarear as premissas implícitas em cada uma das proposições, aceitas sem reflexão como dadas. Nós não encontraremos uma contradição autêntica, ao invés de uma contradição dialética meramente verbal nestas premissas?
A primeira solução, enfatizando o “armamento” científico da psique humana (de ambos os cientistas e leigos) procede da pressuposição tácita de que a maioria das pessoas já estão suficientemente desenvolvidas em um sentido moral que só é preciso provê-las com o aparato das representações científicas ou “alfabetização” para implementar o objetivo previamente estabelecido.

A segunda, ao contrário, propõe que em relação à ciência, pessoas (ou pelo menos as pessoas comprometidas com as disciplinas científicas) já atingiram o cume e que se algo for encontrado em falta, este algo é uma “escala de valores” clara e indisputável, certo regulador moral (ou, falando estritamente, ético). Armando o cientista com uma escala de “orientação de valor”, nós colocaremos tudo em ordem e a ciência começará a trazer exclusivamente bem-estar e felicidade para a humanidade; catástrofe e prejuízos serão para sempre excluídos...

O leitor está satisfeito com tal solução?

Nós tememos que cada solução tenha somente um alcance extremamente limitado de aplicação. Tal é o caso, por exemplo, com a pessoa moralmente irrepreensível, eticamente atrativa, mas infelizmente semialfabetizada; e tal é o caso com o “acadêmico” que se elevou ao nível moral de Hottentot(3). Realmente existem tais casos? Infelizmente, sim. Mas, por acaso, eles são pássaros raros, assim como são extremos “puros”. As duas estratégias (e as teorias que as fundamentam) mencionadas acima são talvez aplicáveis a estes casos. Raridade não é o único ponto aqui; estas próprias personagens são casos terminais. A ambulância da teoria chegou à cena muito tarde neste caso.

A mente científica altamente refinada, inculcada no ser humano com o nível moral da psique primitiva, dificilmente pode ser transformada em uma mente humana e humanitária (particularmente através da inculcação das “categorias de valor”). Por outro lado, para a pessoa moralmente apropriada, boa, honesta e altruísta, em falta de uma educação mais elevada, está provavelmente muito atrasada para encorajar um intelecto científico e teórico de primeira ordem.

Um entendimento teórico da relação existente entre “o espírito científico” e “moralidade” não pode estar preocupada, portanto, com estas situações exclusivas, nem deve se orientar sobre elas. Um entendimento teórico pode ser ganho somente através da análise dos fenômenos de massa e deve ser suficiente para resolver exemplos e problemas ocorrendo em larga escala. Se assim for, então cada uma das soluções do problema como um todo, apresentadas acima de forma esquemática, pode ser julgada imperfeita.

Naturalmente, pode-se tentar promover em cada e todo humano, ambas as qualidades – para desenvolver seu intelecto teórico sem esquecer sobre sua educação moral, sobre o encorajamento de suas inclinações humanitárias. Mas tal “solução” prática correta não conversa com nosso ponto: estes elementos são de uma cultura espiritual autêntica conectada internamente, em essência? Talvez existam várias formas – para ser claro, de importância idêntica –, mas mesmo assim mutualmente independentes e autonomamente cultivadas, com a qual um sujeito pode continuar relacionamentos com o mundo e com outras pessoas.

Se assim for, a ciência é uma imagem objetiva do mundo, absolutamente despojada de todo e qualquer “sentimento”. Esta imagem é sócio-histórica e naturalista, e precisa ser minuciosamente limpa da menor dose de “subjetividade humana”. Ela retrata o mundo que nos cerca enquanto tal e nos ensina sobre nossa própria estrutura biológica – demonstrando como o mundo e a vida enquanto tais se desenvolveram independentemente de nossa consciência, vontade, simpatias e antipatias, desejos e anseios. Sobre a questão de como dispor do mundo, do uso que fazemos de nosso conhecimento científico e teórico do meio-ambiente, isto, se nós buscarmos a razão de tal interpretação do espírito científico, é uma questão de outra ordem. Mas “valores” interpretam não o que é, mas o que deveria ser. Nós estamos, mais precisamente, no reino de ideais e sonhos, sejam eles elevados ou mesquinhos, nobres ou egoístas. De qualquer maneira, nós estamos lidando com critérios provendo uma avaliação subjetiva das circunstâncias, coisas, situações e eventos puramente objetivos, que foram descritos pela ciência.

Em sua forma classicamente clara e consistente, tal relacionamento entre a “razão pura” e a “voz da consciência”, entre dois modos igualmente importantes, mas principalmente heterogêneos de perceber o mundo de fenômenos, é apresentado na filosofia de Immanuel Kant.

A ciência descreve imparcialmente aquilo que é; a razão teórica em seu estado “puro” não tem o direito nem os recursos para julgar se algo é “bom” ou “ruim”, a partir do ponto de vista do “bem-estar da espécie humana”, de sua “auto-perfeição”. Precisamente por esta razão, Kant considerou que a “razão pura” precisa ser suplementada por um regulador moral absolutamente independente e autônomo, o “imperativo categórico” que não pode ser nem provado nem refutado cientificamente. Este imperativo categórico precisa ser aceito na fé. Sem uma fé cega neste regulador moral, a razão “pura” (científica-teórica) pode servir tanto ao bem quanto ao mal, com igual facilidade; de si e por si mesmo é capaz de qualquer ação e neutralidade na luta entre o bem e o mal. Na verdade isso significa: um cabresto ou restrições morais devem ser equipados para a reflexão científica. Tal cabresto ajudará a guiar a ciência e direcionar suas investigações.

Não é difícil observar que para Kant a solução teórica da questão representada pelo relacionamento entre a razão “pura” e “prática”, isso quer dizer, entre ciência e a “voz da consciência” – o “regulador moral” – recebe definição suficiente. Kant não argumenta simplesmente que o “intelecto” (verstand) e a “consciência” (os aspectos científicos e morais da psique humana) são de igual importância, mutuamente complementares e, isolados, modos inadequados de orientação no mundo por parte do sujeito. Se Kant tivesse confinado a si mesmo a isto, ele teria expressado pedaços triviais de sabedoria mundana, contra a qual ninguém teria se incomodado em se opor. Cada sujeito (contanto, naturalmente, que ele não é um canalha inveterado ou um cabeça dura impenetrável) tenta constantemente correlacionar seus pensamentos e ações, ambos com as conclusões do intelecto e das demandas da moralidade. O problema não pode ser localizado aqui.

Ele surge, na verdade, quando o intelecto e as morais (ciência e moralidade) conflitam com uma antinomia insolúvel, quando eles necessitam de decisões singulares diametralmente opostas. Em tais casos, Kant concede o direito de um veredicto incondicional, de uma decisão final relativa àquilo que é correto ou incorreto a partir de um ponto de vista superior – precisamente o princípio moral. Para Kant, esta posição é encontrada teoricamente no julgamento de que o intelecto (razão teórica) é fundamentalmente incapaz de levar totalmente em conta a sucessão interminável de condições necessárias para a resolução de uma tarefa, que a “voz da consciência”, de alguma forma milagrosa, é de fato capaz de agarrar de forma integral, imediatamente e sem escavações analíticas nos detalhes, a imagem total desta sequência sem fim. Portanto, se a razão colide com a voz da consciência, isso indica que o primeiro deixou algo essencial de fora, que no resultado final, tendo surgido das sombras do desconhecido, vão reverter seus cálculos.

Portanto, o princípio moral imperativo categórico é colocado sobre a ciência por Kant como algo absolutamente independente de suas considerações, e critério totalmente autônomo de elevada verdade. Por sua vez, o desenvolvimento da ciência é dependente de seus ditames. Além disso, significa que a ciência (o intelecto) é proclamado como meio de implementar fins morais, um modo para a concretização (personificação) dos princípios morais.

Isso pode estar concretamente presente da seguinte maneira: se a “razão pura” (ciência) chegou a um estado de antinomia, isso quer dizer, se duas teorias, duas escolas, ou duas concepções surgem, cada uma tão lógica quanto sua oponente, e cada uma também fundada em termos do estado contemporâneo dado do conhecimento, como a outra, a decisão de qual é correta e qual é incorreta não será deixada para a ciência (pois é incapaz de encontrar uma saída para esta situação desagradável), mas sim para a ética. A última demonstraria qual das duas teorias mutuamente exclusivas é para ser suportada e desenvolvida e qual será proibida como mal-intencionada.

O árbitro, além disso, presta um julgamento peremptório e em tais disputas entre estudiosos se torna o que poderia ser chamado de sacerdote da moralidade julgando a ciência de fora.

Poderia ser, entretanto, que o problema é resolvido precisamente da maneira oposta? Talvez a ciência não deveria ser declarada a serva da ética (a forma de realização dos anseios morais); ao contrário, a moral deveria se tornar o meio para inculcar princípios cientificamente demonstrados de comportamento, isso quer dizer, à ciência deveria ser concedido o direito de guiar a moralidade. Em tal caso, a moralidade se torna uma forma da psique derivada da “razão pura”. Aqui, a moralidade, tanto pela essência quanto pela origem, é identificada com a ciência, somente expressa na linguagem das declarações imperativas (ao invés de declarativas). Vamos dizer que a ciência estabeleceu que a “natureza humana” comporta características específicas. A ética traduz este fato da seguinte maneira: “Você é humano, portanto você deve fazer isto e aquilo”. A ética em tal caso seria distinguida da reflexão científica em uma maneira exclusivamente linguística, pela forma exclusivamente imperativa da sentença que gera uma expressão para aquelas mesmas verdades estabelecidas pela ciência. A ética aqui se torna uma forma de realização da abordagem científica.

Esta alternativa também é teórica, não uma “a partir disso, siga isso”. É fácil observar que isto é oposição direta à solução Kantiana. No último, a ética direciona o desenvolvimento da ciência, no primeiro a ciência direciona o desenvolvimento da ética e da moralidade. À primeira vista tal solução parece mais razoável do que aquela preferida por Kant. Cientistas estão mais inclinados a aceitar a segunda alternativa. Talvez também devamos repousar nosso caso nisso?

As vantagens de tal solução são indisputáveis. Elas representam as vantagens mantidas pelo espírito científico sobre a fé cega na força dos “valores” morais, na força do “bom”, no triunfo do “bem-estar da humanidade”, assim como outros pontos nobres, mas, como um resultado de suas abstraticidade, de referências ambíguas. Realmente ambos “o bom” e o “bem-estar da humanidade” podem ser interpretados variamente. Aqui, depois de tudo, começa a mesma dialética que encontramos na esfera da “razão pura”.

Não obstante, nos parece que esta solução não é tão infalível, apesar do fato de que está mais próxima da verdade do que as propostas de Kant. A suspeita é despertada a partir do fato de que esta solução representa o espelho oposto de Kant. Elas carregam as mesmas similaridades e diferenças que encontramos entre a fotografia negativa e positiva. Em uma o pensamento científico evolui na direção sugerida pela ética, na outra, a moralidade é construída e remodelada para corresponder com as instruções dadas “de acordo com a ciência”.

A última seria uma solução maravilhosa, mas somente sob a condição de que a representação (ciência) era um absoluto em termos de infalibilidade, para repetir, livre de erro. Colocando brevemente, a representação científica teria que possuir todas aquelas qualidades da perfeição divina atribuída a ela por Platão e Hegel, respectivamente. A “Ideia Absoluta” Hegeliana em conteúdo, não é nada senão a “representação científica deificada” a qual é dada todos os atributos de Deus.

A ciência é uma coisa maravilhosa; nós esperamos que o leitor não acolha a suspeita de que nós a consideramos com desrespeito. A “deificação da ciência” (deificação da representação), como qualquer deificação, é outra questão. Ela (naturalmente não a própria ciência, mas seus representantes autorizados) começa a se imaginar a criadora não somente da moral, mas também do direito, dos sistemas políticos, dos eventos históricos de larga escala, das cidades, dos templos, estátuas, em geral de toda história humana. A “representação deificada” começa a olhar sobre a história como sobre sua própria obra, sua própria criação; um “mundo empírico” trazido por sua omnipotência e poder criativo. Se seguirmos essa linha de raciocínio, o homem histórico em suas ações e assuntos percebe, muitas vezes bastante inconscientemente, o projeto da “Ideia Absoluta”, isso quer dizer, da lógica deificada (sobre tal nome) da reflexão científica-teórica.

Se a representação absoluta proclama através de seus sacerdotes que o homem completou seu serviço para o absoluto e que isto decidiu criar um instrumento aperfeiçoado para personificar sua vontade, digamos uma “máquina pensante”, um intelecto artificial com capacidades que excedem aquelas do cérebro humano, então os humanos vão ser obrigados a se submeter incondicionalmente ao comando do absoluto e se conduzirem ao sacrifício, reconhecendo sua imperfeição, falibilidade e limitações biologicamente impostas. Tal é a lógica da posição que temos delineado levada à sua conclusão.

É preciso adicionar que a variante Hegeliana da representação deificada ou ideia lógica era, todavia, mais humana que a mais nova divindade no altar (a adoração da representação matemática-cibernética). Com Hegel, o Deus-Logos(4) especificamente concedeu aos homens o direito de agir como instrumentos de autoconhecimento e autoconsciência, “objetificação” e “desobjetificação”. Heinrich Heine chegou à conclusão, com base nas conversas com o próprio Hegel, que sua filosofia aponta para uma proposição humanitária: o homem é de fato o único Deus, pelo menos na Terra. O Homem, como um ser pensante, é o Deus deste mundo. O humano guiado pela lógica é o criador da história e “administrador” totalmente habilitado. A ele devem ser entregues as rédeas do governo sobre os assuntos humanos. É precisamente ele, o teórico dialeticamente pensante, que a partir deste ponto deve ser o sumo sacerdote de Deus – isto é, da Ideia Absoluta auto-impelida. O Deus de Hegel é o Deus do teórico que acredita na força da Ideia, isto é, do esquema lógico imposto sobre o desenvolvimento da ciência. Ainda assim é um Deus, com todas as subsequentes indesejáveis consequências para a humanidade.

Quanto mais o homem renuncia a Deus, menos ele deixa para si mesmo. Quanto mais Deus apropria, mais é “alienado” do ser humano vivente. Além do mais, a razão “alienada” (i.e., deificada) significa, por outro lado, o homem “alienado” (incluindo as esferas da razão, ciência – a Ideia). Com a deificação da ciência nós temos (assim como na filosofia Hegeliana) uma inversão mistificada das verdadeiras relações. Para ser preciso: o homem criou e continua a criar a ciência, mas então acontece que não é a ciência que serve o bem-estar e felicidade da humanidade, mas muito pelo contrário. A humanidade está sendo alistada no serviço da ciência e está se tornando o executor obediente e até mesmo escravo de seu projeto despótico. Isso é muito bom quando o projeto é autenticamente científico (Veritas(5) no sentido mais elevado da palavra). Mas e se esse não for o caso?

A ciência, uma vez deificada, se torna não somente despótica e intolerante, mas também bastante incapaz de autocrítica. Não é necessário dizer que nos referimos não à própria ciência, pois, por si só, é desprovida de consciência e vontade, mas sim a seus cientistas plenipotenciários, individuais e, algumas vezes, bastante autoritários. As pessoas respeitam a ciência, por esta razão a frase cobertor “em nome da ciência” algumas vezes esconde a verdadeira natureza de certas ideias desfilando sob este título, mas na realidade tendo nada em comum com o humanismo ou com o autêntico espírito científico.

As coisas são ainda piores quando a pessoa moralmente inferior começa a estabelecer a lei em nome da ciência. Quando Truman ordenou a bomba a cair em Hiroshima, isto foi aparentemente uma medida inadequada para um cientista. Ele sugere que Hiroshima seja destruída ainda mais “cientificamente”, nomeadamente, lançar antecipadamente sobre a cidade foguetes iluminados multicoloridos. Os residentes da cidade olhariam para este espetáculo curioso, e precisamente nesta hora a bomba atômica explodiria. O resultado seria uma cegueira em massa – para os sobreviventes. Assim o “experimento na física” seria, em sua opinião, o mais completo e seria demonstrado mais sucintamente ao mundo a “força da ciência americana”. E aqueles que projetaram e construíram as câmaras de gás móveis de Hitler eram também, apesar de tudo, cientistas...

Naturalmente, para sonhar em prevenir aplicações similares da ciência pela “iluminação moral” de tais “cientistas”, por introduzir eles a uma “orientação de valor centrada no bom” e pela propagação de uma “escala de valores morais” – tal sonho vale a pena apenas para o humanista mais ingênuo.

A idolatria da ciência não é uma solução melhor que a oferecida por Kant. O poder da ciência precisa ser respeitado, mas de forma alguma deificado.

Tanto a moralidade quanto a ciência pode ser o “valor mais elevado” na escala daquilo que é válido na civilização humana. Moralidade e ciência sempre foram, e permanecem atualmente, simples meios, ferramentas, instrumentos, projetados pelo Homem para seu próprio uso, para aumentar seu domínio sobre a natureza, para suportar medidas que facilitam a felicidade humana. Se a ciência e a moralidade, ao invés disso, começam a suportar a opressão, deformando, desfigurando e até mesmo exterminando os seres humanos viventes, isso quer dizer, se eles são transformados não somente em um antípoda, mas também em um inimigo letal do humanismo, para o Marxista isso testemunha, acima de tudo, para a natureza inumana, anti-humanista daquele sistema de relações entre pessoas que perverte as relações entre ciência, moralidade e o ser humano. Por “ser humano” nós temos em mente as massas de pessoas – um corpo composto de pessoas trabalhadoras, nas esferas intelectual e manual do trabalho – e não uma “humanidade em geral” abstrata.

O Marxismo representa uma forma mais elevada de humanismo, precisamente porque rejeita a idolatria (ou como também é dito, “alienação”) de qualquer forma institucionalizada dada da atividade humana, incluindo a da ciência (em outras palavras, atividade de um tipo teórico-científico, profissionalmente isolado da maioria dos seres humanos: reflexões lógicas, transformadas em uma profissão, em uma ocupação em tempo integral de um grupo mais ou menos restrito de sujeitos – matemáticos e lógicos por profissão etc.). Isso de forma alguma significa menosprezar a importância da ciência ou do profundo respeito concedido a uma ciência fundada na visão de mundo materialista dialética, pois a última é a visão de mundo mais científica.

Isto excluiu a visão científica das pessoas como “matéria-prima” para a pesquisa científica. O cientificismo é, portanto, a forma contemporânea do anti-humanismo. A partir do ponto de vista do Marxismo-Leninismo, a ciência é em essência (ao invés das imagens distorcidas e alienadas nas quais é frequentemente apresentada na sociedade burguesa) uma forma para a realização dos objetivos humanistas. O humanismo Marxista procede dos requisitos historicamente maturados (e cientificamente clarificados) para o desenvolvimento compreensível da maioria (ou maximamente – todos os humanos sem exceção) dos humanos.

Isto é, de fato, o conteúdo do comunismo. A partir de tal ponto de vista, a ciência não é uma forma para a realização da “ideia lógica” ou “representação” (como com Hegel). Ambas, ciência e ética (uma moralidade autêntica, humanisticamente orientada ou código de moral), representam duas formas de consciência, expressando e realizando um e o mesmo – o concreto e historicamente entendido ser do homem e do mundo da vida e obras do homem. Portanto, uma ciência autêntica e moralidade autenticamente de alto nível não podem senão coincidir em sua própria essência. Elas não podem ficar em justaposição.

Mas, e se elas coincidirem somente “em essência”, mas, na realidade, no mundo empírico, frequentemente acabam em conflito uma com a outra?

Aqui de forma alguma é admissível ignorar o “sentimento moral” e colocar todo o apoio por trás da ciência, não importam as circunstâncias, como os defensores do cientificismo recomendam. Realmente, a ciência (não como um todo, isto é, não a totalidade do conhecimento científico do homem e da natureza, mas ciência isolada, teoria isolada) e, mais precisamente, cientistas falando em seu nome, são capazes de errar. Se uma ciência singular abruptamente avança uma concepção (com recomendações decorrentes desta concepção) que vai contra os princípios do humanismo, então estamos totalmente justificados em assumir que no exemplo dado a verdade absoluta pode ser encontrada na moralidade, que a ciência dada se desencaminhou. Aqui é útil submeter a Deusa infalível à uma análise crítica, a partir do ponto de vista de seus próprios critérios.

O humanismo Marxista (ou, em outras palavras, a visão de mundo e lógica Marxista), localizando seus pontos de referência no conhecimento científico como um todo, tem a vantagem de ser um representante integral da verdade científica no sentido mais elevado. Ele detém essa vantagem sobra qualquer ciência ou teoria singular dada, não importa quão maravilhosamente elaborada esta ciência ou teoria é no sentido formal. Tal é a imagem da verdade, acessível para a ciência somente naquele caso e naquele sentido da palavra significando não uma teoria singular dada, mas sim toda a cultura teórica-científica da humanidade, a última entendida a partir de uma perspectiva de desenvolvimento. Neste sentido, nesta interpretação, a ciência e o humanismo coincidem em todas as suas conclusões e fórmulas. Entre uma ciência singular (teoria) e humanismo, um conflito pode surgir. Para decidir esta contradição em favor de dada teoria e suas “fórmulas infalíveis” seria, no mínimo, pouco prudente. Deve-se inicialmente determinar a causa do conflito.

Isto é precisamente como Friedrich Engels retratou o relacionamento entre a “precisão científica” e “a moral autoconsciente da massa”. Ele observou que a ciência não poderia depender de argumentos derivados de uma moralidade nem basear suas proposições em argumentos derivados de um “sentimento moral”.

Precisamente por isso, Marx jamais fundou suas reivindicações comunistas sobre argumentos semelhantes, [...] Mas o que é formalmente falso em termos econômicos pode ser verdadeiro em termos da história universal. Se a consciência moral das massas considera injusto um fenômeno econômico qualquer, como, outrora, a escravatura ou a servidão, isso mostra que o fenômeno em tela é algo anacrônico e que emergiram outros fenômenos econômicos em função dos quais ele se torna já intolerável e insustentável. Assim, numa inexatidão econômica formal pode ocultar-se um conteúdo econômico real.(6)

O “sentimento moral da massa” acaba por ser correto em sua posição contra a “ciência estrita” que ainda não teve êxito em chegar ao coração da questão, precisamente porque as massas estão verdadeiramente presas no vício da contradição entre duas categorias de fatos teimosos. Em outras palavras, o “sentimento moral” – consciência humanisticamente orientada – expressa no exemplo dado a presença de um problema real que deve ser resolvido, tanto teoricamente quanto praticamente, a existência de uma contradição social real, uma saída que deve ser buscada de forma científica.

Portanto, foi precisamente Karl Marx – um homem com uma desenvolvida moralidade e sensitividade a argumentos decorrentes de uma consciência moral das massas – que viu um problema científico autêntico onde cientistas filisteus viram causa somente para a elaboração de um esquema formalmente não-contraditório de conceitos. Detectar um problema científico autêntico significa viajar metade da distância para sua solução. Portanto, O Capital de Marx, apesar de construído com um andaime estritamente científico, é, não obstante, investido com um núcleo humanístico, isso quer dizer, uma formulação humanística do problema e empuxo.

A inspiração moral básica fundamentando O Capital é expressa totalmente e precisamente pela tese de um humanismo autêntico: Homem, o ser humano vivente, não dinheiro, nem máquinas, nem produtos ou qualquer forma de “riqueza”, é o valor mais elevado e o “sujeito criador” de todas as formas “alienadas”. Se fossemos despojar O Capital de seu princípio “moral”, declarando-o não-científico, a lógica científica fundamentando este trabalho de gênio entraria em colapso como um todo. Realmente alguém pode dar uma base puramente “lógica” à tese de que o trabalho humano cria valor, enquanto o trabalho do burro, embora ele execute exatamente o mesmo trabalho, não cria valor novo?

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O comunismo científico de Marx, Engels e Lenin, provê uma unificação interna para o humanismo e o espírito científico, que vai ao coração da questão. Isso significa que o comunismo científico, primeiro de tudo, encontra seu ponto de referência no ser humano como o valor mais elevado; o homem entendido não de uma maneira abstrata, mas como a verdadeira maioria das pessoas que trabalham. Encontra sua orientação nos interesses gerais e fundamentais das pessoas que trabalham. O comunismo científico, segundamente, representa, do início ao fim, um programa prático e concreto para a realização do humanismo, entendido precisamente neste sentido.

Portanto, o humanismo não forma um “subsistema” especial dentro do Marxismo, também não representa uma “escala de valores” separada, existindo autonomamente em relação ao restante sistema científico de conceitos.

A partir disso deriva também a definição Leninista da ética comunista e moralidade comunista e seu princípio norteador: aquilo que serve à construção da sociedade comunista é moral. Nós classificamos como moral aquela ação, aquela forma de pensamento que oferece suporte a esta causa nobre. Qualquer outro entendimento de moralidade e ético representa, sem falha, uma mentira burguesa inteligentemente mascarada de uma forma ou de outra.

Nesta conexão notamos a insustentabilidade teórica da tentativa de criar dentro do Marxismo um subsistema especial (autônomo) que lida com “valores morais”. A proposta para suplementar o comunismo científico com uma “escala de imperativos morais” especial, com “premissas humanísticas”, se originou como uma regra no Ocidente, a partir de pessoas que pessoalmente simpatizam com o comunismo, mas entendem pobremente a solução Marxista-Leninista do verdadeiro problema incorporado aqui.

Este problema é particularmente agudo atualmente porque a luta pelo autêntico humanismo, pelo comunismo, é precisamente uma luta. Não é uma luta fácil, não somente uma luta ideológica, mas em certos momentos até mesmo sangrenta. A última é realizada contra um inimigo preparado para executar as medidas mais extremas e inumanas, neste luta o velho conflito entre os “valores do humanismo” e a necessidade de violá-los em nome do humanismo é renovado diariamente, senão a cada hora. A situação dialética típica surge no que o humanista autêntico (distinto do “humanista de clima bom”) é, algumas vezes, forçado a aplicar violência contra outro humano. Algumas vezes circunstâncias evoluem de tal maneira que um humanista autêntico é compelido a recorrer à mentira e esperteza (por exemplo, durante interrogatórios nas câmaras de tortura fascistas). Uma vez mais esta mentira e esperteza são aplicados em nome do humanismo, pois dizer a verdade em tais condições seria cometer um ato mais hediondo e imoral do que mentir. Aqui não existe problema teórico, mas meramente uma resistência pessoal, uma fortaleza moral na busca por princípios morais elevados.

O problema real e bastante difícil, pedindo por uma solução teórica clara, reside em outro lugar. É admissível interpretar a fórmula: “aquilo que serve à vitória do comunismo é moral” significando que em nome desta grande causa “tudo é permitido”, que não existe e não pode haver restrições de natureza moral impostas aqui? Ou pode-se argumentar que até mesmo aqui nem tudo é “permitido”?

Existe, em geral, um limite além do qual um desvio, forçado por circunstâncias extremas, a partir das normas gerais abstratas do humanitarismo em nome de e para o bem do triunfo de um concreto e historicamente entendido humanismo é transformado em – em total acordo com as leis da dialética – um crime contra o próprio objetivo para o bem ao qual o ato foi realizado? Para dizer mais precisamente, este limite fatal pode ser determinado, pois ele sempre existe em um lugar ou outro? Na verdade, esta fronteira forma a grande divisão entre o comunismo autêntico de Marx, Engels e Lenin e aquelas doutrinas “esquerdistas” que interpretam a fórmula moral Marxista como indicação de que “tudo é permitido”. É uma questão entender que a violência e assassinato são ações inevitáveis evocadas pelas circunstâncias extremas acompanhando a batalha mortal das classes, ações que o revolucionário deve recorrer, reconhecendo plenamente sua inumanidade. É uma questão bastante diferente olhar para estas atividades como ideais, como as mais seguras e como únicos métodos de estabelecer a “felicidade” na Terra. Ambos Marx e Lenin aprovaram moralmente a violência somente nas circunstâncias mais extremas, e então, somente em escala mínima, aquilo que é absolutamente necessário.

Lenin escreveu que Comunistas são contrários à violência contra pessoas em geral e eles recorrem à coerção somente quando é imposto sobre eles pelos admiradores autênticos da violência. A única justificativa para a violência é como um meio de opor violência, como violência contra o violento, mas não como meio de influenciar a vontade da maioria das pessoas trabalhadoras.

Portanto, Comunistas nunca são os iniciadores de ações tal como guerra ou “exportação da revolução(7)” na ponta da baioneta. Lenin sempre opôs categórica e consistentemente ideais “esquerdistas” deste tipo. Em seu entendimento, o espírito científico do comunismo está sempre conectado inseparavelmente com o princípio do humanitarismo no sentido direto da palavra.

Isso também forma a principal diferença entre Lenin e aqueles doutrinários que se permitem o prazer de contar cinicamente o número de vidas humanas “dignas” de pagar para a vitória do comunismo mundial. ... Como uma regra, tais cálculos no mundo atual são a ocupação de pessoas caracterizadas pelo primitivismo, tanto em termos da teoria quanto de seu perfil moral.

A fim de resolver o problema de unir padrões morais elevados com o máximo do espírito científico, o problema precisa, primeiro de tudo, ser visto em toda a sua acuidade e complexidade dialética que adquiriu no tempo difícil e tumultuoso que vivemos. Uma simples solução algébrica não fará isso. O problema do relacionamento entre moralidade e espírito científico tem sido resolvido somente na forma mais geral pela filosofia Marxista. Em situações concretas, por outro lado, vai acontecer repetidamente no futuro próximo; cada vez terá uma nova e inesperada reviravolta. Portanto, não pode existir uma solução simples ou pronta para cada ocorrência singular do conflito entre a “mente” e a “consciência”.

Não pode existir uma simples receita ou fórmula matemática capaz de atender todas as ocasiões. Se você se encontra em um conflito desta natureza, não assuma que em cada caso a “ciência” está correta e a “consciência” lixo, ou, na melhor das hipóteses, um conto de fadas para crianças. O contrário não está mais próximo da verdade, nomeadamente que o “sentimento moral” está sempre correto, que a ciência, se se encontra em conflito com o primeiro é o “mal” sem coração e brutal de Ivan Karamazov, engendrando tipos como Smerdiakov. Somente através de um exame concreto das causas do próprio conflito, podemos encontrar uma resolução dialética, isso quer dizer, a solução mais sábia e mais humanitária. Somente então podemos encontrar, para dizer no jargão corrente, a “variante ideal” da correspondência entre as demandas do intelecto e as da consciência.

Para encontrar com certeza a unidade dialética, concreta entre os princípios da mente e consciência em cada caso não é uma tarefa fácil. Infelizmente, não existe varinha mágica, não existe um simples algoritmo, tanto de natureza “científica” quanto “moral”.


Notas de rodapé:

(1) Possui graduação em farmácia pela UFPR e é mestre em educação pela UFPR. Participa dos Grupos de Pesquisa: Núcleo de Pesquisa Educação e Marxismo (NUPE-Marx/UFPR), na linha Trabalho, Tecnologia e Educação; e Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva (NESC/UFPR), na linha Estudos Marxistas em Saúde. Contato: marcelojss @ gmail.com (retornar ao texto)

(2) Nota do Tradutor: Nome do deus ao qual os amonitas, uma etnia de Canaã, sacrificavam seus recém-nascidos, jogando-os em uma fogueira. (retornar ao texto)

(3) Nota do Tradutor: Grupo étnico de pessoas nativas do sudoeste da África, que vivem na região desde o século V D.C. Imigrantes europeus que chegaram ao continente africano no século XVII chamavam esse grupo de pessoas de Hottentots, imitando o som da linguagem do grupo. (retornar ao texto)

(4) Nota do Tradutor: Logos, inicialmente, tem o significado de palavra escrita ou falada - Verbo. A partir dos filósofos gregos antigos, passa a ser um conceito filosófico traduzido como razão, a capacidade de racionalização singular ou o princípio cósmico da Ordem e da Beleza. Já no cristianismo, Logos é identificado com a Palavra, Jesus Cristo. (retornar ao texto)

(5) Nota do Tradutor: Veritas significa verdade. Na mitologia romana, é a deusa da verdade, filha de Saturno e mãe da Virtude. (retornar ao texto)

(6) ENGELS, Friedrich. Prefácio à primeira edição alemã de MARX, Karl. Miséria da filosofia. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p. 200. (retornar ao texto)

(7) Nota do Tradutor: significa que um país que realizou a revolução impõe à força a revolução a outros países. (retornar ao texto)

Inclusão 28/04/2013
Última atualização 05/04/2016