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A Economia Política clássica elaborou categorias com a pretensão da universalidade e da intemporabilidade. Sua sucessora moderna, assentada sobre o terreno do positivismo, deixou de ser política e se converteu na Economics dos anglo-americanos. Preocupa-se apenas com as variações ocorrentes na alocação quantitativa dos fatores de produção, na distribuição da renda e no mercado, conservando o pressuposto da imutabilidade do mundo econômico.
A crítica da Economia Política clássica feita por Marx e Engels consistiu em desvendar o caráter histórico de suas categorias. A teoria do modo de produção capitalista não se estende aos modos de produção precedentes. Ao invés de se ocupar com um mundo econômico intemporal, cuja racionalidade é relativa apenas ao capitalismo, a Economia Política deve ter por objeto a pluralidade dos modos de produção, cada qual regido por suas leis específicas. Algumas categorias possuem, no entanto, validade universal — manifestando a identidade permanente do sujeito único da história —, mas elas mesmas se apresentam com a determinação de cada modo de produção dado. Uma essência econômica pairando acima da sucessão dos modos de produção representaria pura abstração metafísica. A categoria de modo de produção se qualifica por sua absoluta generalidade, uma vez que, em todo o decurso da história, incluindo o que chamamos de pré-história, nos deparamos com alguma organização social produtiva. Ao mesmo tempo, a categoria de modo de produção só é concebível em cada organização social historicamente determinada.
Escreveu Marx:
“(...) todos os estádios da produção possuem caracteres comuns que o pensamento fixa como determinações gerais, porém as chamadas condições gerais de toda produção não são mais que estes momentos abstratos que não permitem compreender nenhum nível histórico concreto da produção.”(1)
Tratava-se de uma revolução não só no domínio da Economia Política, mas também no domínio da ciência histórica.. As grandes épocas históricas passavam a ser compreendidas à luz do desenvolvimento e da sucessão dos modos de produção e das formações sociais.
Esta revolução esterilizou-se desde o momento em que, no campo do marxismo, se instaurou o esquema da sequência evolutiva universal de cinco modos de produção fundamentais. O materia- lismo histórico deixou de ser ciência social, como o entendeu Lênin(2), e se converteu em mais outra filosofia da história, marcada pelo apriorismo e pela teleologia.
Sem pretender aqui qualquer investigação filológica exaustiva, creio poder afirmar que este esquema invariável e universal não se originou em Marx, nem em Engels.
É certo que Marx referiu a “épocas progressivas” da formação econômica da sociedade, identificadas, a grandes traços, com os modos de produção asiático, antigo, feudal e burguês.(3) Não indicou, porém, que tivesse em vista uma linha única de desenvolvimento histórico. Qualquer dúvida que restasse ficaria eliminada nas cartas que escreveu ao diretor dos Otiechestviennie Zapiski (fins de 1877) e a Vera Zassulich (8 de março de 1881), nas quais taxativamente declarou não atribuir caráter universal à linha de evolução da Europa ocidental, estudada em O Capital. A gênese do capitalismo no Ocidente europeu não deveria ser metamorfoseada numa teoria histórico-filosófica da marcha geral que o destino impõe a todos os povos, quaisquer fossem suas circunstâncias históricas. A primeira das mencionadas cartas encerra-se com palavras que vale a pena reproduzir:
“Assim, pois, acontecimentos notavelmente análogos, que, no entanto, ocorrem em meios históricos diferentes, conduzem a resultados totalmente distintos. Estudando em separado cada uma dessas formas de evolução e comparando-as depois, pode-se encontrar facilmente a chave do fenômeno, porém nunca se chegará a isso mediante o passaporte universal de uma teoria histórico-filosófica geral, cuja suprema virtude consiste em ser supra-histórica”.(4)
Ironia amarga da qual não escapam muitos marxistas.
Na Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, encontramos a conhecida sequência evolutiva: comunismo primitivo, escravismo, feudalismo e capitalismo.(5) Mas, ao iniciar a exposição da linha de evolução histórica, advertiu Engels expressamente que não se ocuparia com a parte oriental do Império Romano — o que restringe aquela sequência à Europa ocidental — e, adiante, introduziu a evolução particular dos povos germânicos, os quais passaram da comunidade primitiva ao feudalismo sem conhecer o estádio escravista.(6) Nada, pois, que devesse ser tomado por esquema universal, decorre da concepção de Engels.
O mesmo se pode dizer de Lênin, se considerarmos a concepção e a metodologia do conjunto de sua obra. Não obstante, lemos em sua conferência Acerca do Estado, de julho de 1919:
“O desenvolvimento de todas as sociedades humanas no curso de milênios, em todos os países sem exceção, nos demonstra que este desenvolvimento obedece a leis comuns, é regular e consequente, de modo que, a princípio, tivemos uma sociedade sem classes, a sociedade patriarcal primitiva, na qual não havia aristocratas; em seguida, a sociedade baseada na escravidão, a sociedade escravista. Através destas etapas passou toda a Europa civilizada contemporânea, na qual a escravidão era o regime dominante em absoluto há dois mil anos. Através desta etapa passou também a enorme maioria dos povos dos demais continentes (...) A este regime se seguiu na história outro, o da servidão da gleba. Na imensa maioria dos países, a escravidão, no curso de seu desenvolvimento, converteu-se na servidão da gleba (...) No curso do século XVIII e no curso do século XIX, tiveram lugar revoluções em todo o mundo. A servidão da gleba foi eliminada em todos os países da Europa ocidental. Isto sucedeu na Rússia mais tarde que em nenhuma outra parte. Em 1861, também na Rússia se operou uma reviravolta radical, que teve como consequência a substituição de uma forma de sociedade por outra, a substituição da servidão da gleba pelo capitalismo (.. .)”.(7)
Percebe-se que Lênin conferiu generalidade ao processo que Engels relacionou exclusivamente ao Ocidente europeu incluído no Império Romano. Talvez o trecho citado seja único na obra de Lênin e sua evidente simplificação da complexidade histórica obedecesse a fins didáticos. Todavia, é difícil argumentar que não representasse o pensamento maduro do autor, já refletindo possivelmente uma corrente de ideias no campo do marxismo.
O fato é que Stálin se encarregou de “oficializar” o que se converteu em esquema no sentido estrito, ao escrever:
“A história conhece cinco tipos fundamentais de relações de produção: o comunismo primitivo, a escravidão, o feudalismo, o capitalismo e o socialismo”.(8)
Na verdade, a exposição não se reporta a relações de produção, mas a modos de produção. Conquanto estabeleça a ressalva a respeito dos tipos fundamentais, Stálin deles excluiu o modo de produção asiático que, para Marx, correspondia a uma época da formação econômica da sociedade. Os tipos secundários de relações de produção ficaram omitidos e não se sabe que lugar teriam na história. De qualquer maneira, Stálin não deixou margem a dúvidas, ao concluir sua sequência dos cinco tipos fundamentais:
“Tal é o quadro que apresenta o desenvolvimento das relações de produção entre os homens, no curso da história da humanidade”.(9)
É dispensável insistir na força institucional com que este esquema, durante muito tempo, se impôs aos estudos marxistas. Toda a história universal ficava de antemão decifrada por uma sequência unilinear. Já se conhecia previamente o que precisava ser pesquisado e esclarecido. Bastava selecionar fatos para encaixe na sequência preestabelecida. A este esquema, que dispensa o penoso trabalho de pesquisa e reflexão da ciência, poderíamos aplicar,a crítica de Hegel ao método intuitivo de Schelling:
“(...) se considerarmos de mais perto este desdobramento, vemos que não resulta de que uma só e mesma matéria se configurou e se diversificou; ele é, pelo contrário, a repetição informe do Idêntico que é somente aplicado do exterior a materiais diversos e obtém, com isso, uma fastidiosa aparência de diversidade. Se o desenvolvimento não é nada mais do que esta repetição da mesma fórmula, a ideia, indubitavelmente verdadeira por si mesma, fica sempre, de fato, no seu começo. Quando o sujeito explicitando seu saber não faz outra coisa que pregar esta forma única e imóvel aos dados disponíveis, quando os materiais são mergulhados de fora neste calmo elemento, tudo isso, bem como as fantasias arbitrárias sobre o conteúdo, não constitui a consecução do que é reclamado, ou seja, a riqueza jorrante de si mesma, a diferença de figuras se auto- determinando. Tal procedimento é antes um formalismo monocromo, que chega à distinção no conteúdo somente porque este conteúdo diferenciado já foi preparado e já é bem conhecido”.(10)
Não precisamos ser hegelianos para reconhecer que dificilmente se caracterizaria melhor todo dogmatismo na Filosofia e na ciência. Inclusive o dogmatismo stalinista, também reduzido a um formalismo monocromo para o qual o conteúdo, diferenciado apenas na aparência ou em detalhes insignificantes, já está preparado e bem conhecido.
Inspiradas no esboço genial das Formen(11), as investigações marxistas mais recentes vêm explorando a multilinearidade da evolução histórica, de acordo com a concepção genuína de Marx e Engels. O modo de produção asiático, discricionariamente abolido por Stálin, recuperou o estatuto de categoria marxista. E, ao invés da teleologia, do finalismo ideológico, o reconhecimento do progresso histórico decorre de um critério objetivo: o da imanência da dialética entre o desenvolvimento das forças produtivas — em primeiro lugar, os próprios homens — e a revolução das relações de produção. Qualquer que seja a respeito o julgamento de valor, as direções da história humana, em suas variadas formas, consubstanciam o progresso das forças produtivas, em última análise, a elevação da produtividade social do trabalho e o crescente domínio do homem sobre a natureza.
Notas de rodapé:
(1) Marx, K. “Introducción.” Op. cit., p. 8. (retornar ao texto)
(2) Cf. Lênin, Vladimir. “Ce que Sont les ‘Amis du Peuple’ et Comment Ils Luttent Contre les Social-Democrates.” In Oeuvres. Paris, Él. Sociales. Moscou, Êd. en Langues Étrangères, 1958. t. I. p. 155 et pas. (retornar ao texto)
(3) Cf. Marx, K. Contribution à la Critique de l'Économie Politique. Op. cit., p. 5. (retornar ao texto)
(4) Marx, K. “De Marx al Director dei Otiechestviennie Zapiski." In Marx, Carlos y Engels, Federico. Correspondencia. Buenos Aires, Ed. Problemas, 1947. p. 371-372. “Marx a Vera Zassulich.” In Godelier, Marx, Engels. Sobre el Modo de Producción Asiático. Barcelona, Ed. Martínez Roca, 1969. p. 171-172. (retornar ao texto)
(5) Engels, F. “El Origen de la Família, la Propriedad Privada y el Estado." In Marx y Engels. Obras Escogidas. Moscou, Ed. en Lenguas Extrangeras, 1952. t. n, p. 300-302. (retornar ao texto)
(6) Ibid. p. 278 e 285. (retornar ao texto)
(7) Lênin, Vladimir. “Acerca del Estado.” In Marx, Engels y el Marxismo. Moscou, Ed. en Lenguas Extrangeras, 1947. p. 454-455. (retornar ao texto)
(8) Stálin, J. “Sobre el Materialismo Dialéctico y el Materialismo Histórico.” In Cuestiones del leninismo. Moscou, Ed. en Lenguas Extrangeras, 1941. p. 658. (retornar ao texto)
(9) Ibid. p. 662. (retornar ao texto)
(10) Hegel, G. W. F. La Phénomenologie de l'Esprit. Paris, Aubier, 1939. t. I. p. 15. (retornar ao texto)
(11) [Formações econômicas pré-capitalistas (Formen, die der kapitalistischen Produktion vorhergehen)] (retornar ao texto)
Fonte |
Inclusão | 13/04/2015 |