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Foi em grande parte por se ter inspirado em Malthus que Darwin não pôde compreender o problema humano. É certo que as ideias da concorrência e da luta aplicadas à natureza viva facilitaram a descoberta da selecção natural e do processo fundamental da evolução das espécies. Mas, embora Darwin, contra o que pretendem alguns dos seus detractores, considerasse a "luta pela vida" não apenas a luta de um indivíduo com indivíduos da mesma espécie, mas também e, fundamentalmente, "com indivíduos de espécies diferentes ou com condições físicas de vida" (67), embora considerasse justamente em muitos casos a "concorrência" dentro de uma espécie não como uma guerra, mas como a simples "sobrevivência do mais apto", ou seja, a sobrevivência do mais capaz de resistir ao meio e à luta que lhe movem as outras espécies, ele não pôde sonhar a existência da ajuda mútua entre indivíduos da mesma espécie.
Darwin viveu numa sociedade onde predominava a concorrência e a luta sem tréguas entre classes sociais. Dada a acção da base material das sociedades sobre as respectivas ideologias, compreende-se que, pela sua mão, a "lei" de Malthus, reflectindo essa concorrência e essa luta, tenha estendido a sua aplicação à natureza viva e que a organização social da Inglaterra do século XIX, com as suas ideologias e sentimentos dominantes, se apresente ingenuamente atribuída a animais e plantas. Foi preciso que homens se educassem numa sociedade sem classes para tornar possível a descoberta da ajuda mútua entre os indivíduos de uma mesma espécie, ponto concordante do mundo biológico com essa nova sociedade. E, se algum espanto ou reparo há a fazer, acerca desta descoberta, não é que ela se tenha feito sem factos bastantes em que se apoiar, mas que tenha tardado tanto a fazer-se quando agora se vê que os factos há muito a justificam. Se mesmo no domínio da biologia, a influência malthusiana limitou e prejudicou o seu trabalho, o grande erro de Darwin foi reintroduzir os princípios malthusianos no estudo das sociedades humanas, fortalecidos agora por uma pretensa comprovação na natureza e aparecendo assim como leis, universais e inelutáveis cientificamente aferidas. A concorrência, a luta de classes, o esmagamento violento de algumas camadas da população (fenómenos temporários correspondendo a uma fase do desenvolvimento da sociedade) seriam leis válidas e eternas para todas as espécies, incluindo a humana.
Darwin, a quem se deve a descoberta e provas definitivas da transformação das espécies e da origem animal do homem, não pôde compreender a evolução e transformação das sociedades humanas, das ideologias e dos sentimentos, e do próprio homem depois que emergiu da animalidade. Não pôde compreender que as sociedades, evoluindo por acção do homem, transformam o próprio homem que as faz evoluir.
Com frequência, Darwin insistiu em que "as espécies evoluem em passos muito pequenos"(68), em que a evolução é "um processo extremamente lento"(69), em que a "selecção natural não pode produzir grandes ou repentinas modificações"(70). Não pôde assim compreender como as transformações quantitativas se convertem em qualitativas, e a consequente importância dos saltos bruscos, tanto na evolução no mundo biológico como na evolução das sociedades humanas.
Darwin definiu a selecção natural como a "preservação de diferenças e variações individuais favoráveis e a destruição das que são nocivas"(71), de onde resulta que "todos os dotes corporais e mentais tenderão a progredir para a perfeição"(72). Não pôde, assim, compreender como os progressos em um sentido são retrocessos em outros sentidos e como nas sociedades humanas a selecção, muitas vezes, determina a preservação dos piores e menos aptos.
Darwin defendeu que "as faculdades mentais do homem e dos animais inferiores não diferem em qualidade, embora difiram imensamente em grau"(73), viu nos animais inferiores sensibilidade, ideias, conceitos estéticos e morais semelhantes aos do homem e tomou geralmente como padrão de beleza, de moralidade e até de civismo (padrão para a humanidade e as outras espécies animais) o seu próprio padrão de beleza, moralidade e civismo(74). Não pôde assim compreender que as ideologias são especificamente humanas e determinadas por uma base social material, que numa mesma sociedade não há ideologia uniforme e geral, mas conceitos e sentimentos divergentes, e que a evolução da vida material dos homens determina a evolução da sua vida mental.
Considerando o homem sob o ponto de vista puramente animal, Darwin atribuiu a causas biológicas o atraso de povos de algumas raças, aproximou-os constantemente (tanto nos seus caracteres físicos como intelectuais) dos animais inferiores e foi ao ponto de considerar alguns macacos moralmente superiores aos "selvagens"...(75) Não compreendeu, assim, a existência de razões sociais determinando o atraso desses povos nem as possibilidades actuais de superar esse atraso.
Darwin fez aceitar pela ciência a origem do homem. A sua contribuição foi, a este respeito, decisiva. Mas foi incapaz de vislumbrar que, a partir de certo momento da sua evolução, os caracteres do homem se diferenciaram qualitativamente dos das outras espécies.
A partir do momento em que o homem fabricou instrumentos de trabalho, a sua evolução passou a reger-se por leis diversas das que regem a evolução das outras espécies. O homem deixou de ser apenas uma espécie animal, adaptando-se ao meio e a novas circunstâncias por acção incontrolável da selecção natural. Na sua evolução, o homem não se limita a adaptar-se ao meio; ele adapta o meio a si próprio. "[...] o homem -escreve Marx- age em face da matéria natural como uma força natural. [...] age sobre a natureza exterior, modifica-a e modifica ao mesmo tempo a sua própria natureza."(76) Modificando o meio com um propósito consciente, o homem, na sua luta com a natureza, não se limita a combater e eliminar outras espécies. O homem povoa o mundo com espécies por ele próprio escolhidas e ajuda e orienta a sua selecção. A "luta pela existência" do homem não toma assim apenas o carácter da destruidora e implacável "luta pela vida" de Darwin e Malthus; ela toma, também, o carácter de uma luta construtiva e criadora.
Darwin, que partia da selecção pela domesticação para a selecção natural, que conhecia (como ninguém) as transformações pela selecção, que em alguns casos verificou terem sobrevivido espécies graças apenas à acção do homem, sem a qual soçobrariam na natureza, não soube aí descobrir a afirmação das características específicas da espécie humana. E, embora acreditando no poder seleccionador e transformador do homem sobre outras espécies, apenas considerava a capacidade humana "pelo grande efeito produzido pela acumulação de uma mesma direcção, durante gerações sucessivas, de diferenças absolutamente inapreciáveis para olhos inexperientes"(77). Esta ideia foi ultrapassada pela história. O campo da intervenção modificadora do homem na evolução das espécies animais e vegetais alarga-se dia a dia. Quando nos lembramos de que o visconde de Coruche, justificando o atraso da agricultura, julgou ter encontrado argumento irrespondível e definitivo ao referir que "não é possível produzir hoje cereais, linho, lã, uvas, batatas ou laranjas em menos tempo do que em outras eras"(78), não podemos deixar de sorrir, porque a vida deu já um desmentido literal à fraca ironia do visconde.
O poder do homem permite-lhe construir o seu próprio futuro. Não há qualquer lei natural, quaisquer razões biológicas ou técnicas que limitem o ritmo da produção das subsistências. Esse ritmo depende apenas da acção do homem. De há muito o homem dispõe de meios técnicos capazes de inverter as progressões nos dois termos da "lei" de Malthus.
Com métodos rudimentares, apenas à custa de trabalho e da sua imaginação criadora, pôde o povo português transformar, em vastas regiões, a fisionomia agrícola de Portugal. Nas encostas nuas do Douro ergueu essa monumental escadaria onde hoje se exibem os vinhedos que dão do melhor vinho do inundo. Nas íngremes vertentes e nos vales apertados do Minho, de Trás-os-Montes, da Beira, da Estremadura, foi também dispondo e segurando em socalcos terra trazida à força de braços e foi buscar às entranhas da terra água para fazer verdejar jardins. Desde o canteiro minúsculo ao retalho rendoso, solo fértil surgiu onde ontem existiam apenas penedias. Terras minhotas, naturalmente pobres, tornaram-se terras ricas pela rega e estrumagens. Nas areias safaras da Gafanha ou da Póvoa ou nas dunas das Caldas, com adubações intensas de caranguejo, de sargaços, de moliço, nasceram belas hortas. Nas serras mais pedregosas - na Estrela, na de Aire, em tantas outras - das fendas da pedra brotaram olivais ou, nos ásperos declives, manchas lavradas. Nas charnecas alentejanas e na borda do Tejo, os seareiros romperam os matagais e obrigaram a terra a dar pão. Nos "foros" de Almeirim, Mugem, Salvaterra, culturas viçosas surgiram como oásis em campos de areia. Na generalidade dos casos, todo esse esforço gigantesco, realizado com a miragem de uma vida desafogada, revelou-se uma ilusão para os seus autores. Uns semearam, outros colheram. Mas esse esforço evidencia o poder do homem, evidencia como o homem pode impor e impõe à natureza uma direcção, como pode arrancar e arranca da terra as subsistências que ela por si só recusa, como pode modificar e modifica a terra, as espécies vivas, a paisagem. E se isto pôde fazer o nosso povo à força de braço e de imaginação, mas apegado a recursos velhos de séculos, o que não poderá ele fazer ganhando para o seu serviço a ciência e a técnica modernas?
Quando nos dizem e repetem ser Portugal país pobre, de solo fraco, de terreno acidentado e pedregoso, de clima irregular, e quando assim pretendem amarrar o povo português a um irremediável destino de miséria - nós respondemos que não só o nosso país tem raras e favoráveis aptidões agrícolas, como pode o nosso povo transformá-lo num verdadeiro jardim da Europa à beira-mar, que só o é no entender dos poetas.
Centenas de milhares de hectares no Alentejo, nos incultos e nas terras áridas sem fim podem encher-se de campos vicejantes com águas levadas das bacias do Tejo e do Guadiana ou arrancadas aos lençóis subterrâneos. Os rios podem ser dominados e disciplinados, dando rega e energia, em vez de enxurradas e cheias devastadoras, alternando com secas. Grandes manchas de floresta podem levantar--se em montes descarnados, em areias nuas, em terrenos pantanosos, também junto às linhas de água, dando novos meios de vida, formando cortinas de protecção contra os ventos prejudiciais e contra as areias e torrentes, aumentando a capacidade de absorção de humidade pelos solos, diminuindo o escoamento e a evaporação, facilitando a condensação do vapor de água da atmosfera, defendendo o solo da erosão, dando até melhor ar para o homem respirar e paisagem mais bela para alegria dos olhos.
A oliveira e a nogueira, os freixos e ulmos, o eucalipto e a acácia tornarão ricas e acolhedoras zonas hoje desérticas. A arborização de cumes rochosos de onde as torrentes trazem marés de areia salvará magníficos terrenos de aluvião da ameaça agora iminente da ruína e da esterilidade. A regulamentação do regime das águas abundantes das Beiras oferecerá prados onde se multiplicará o gado. A defesa das cheias, o enxugo, a drenagem, darão produtividade insuspeitada aos aluviões do Mondego e dos seus afluentes, às margens do Lis, às baixas dos afluentes do Tejo, particularmente do Sorraia, assim como aos "focos miasmáticos e palustres" do sul do Tejo. Os ricos fundos dos pauis e brejos numerosos podem ser roubados às águas estagnadas. Pela defesa das marés, o dessalgamento, a drenagem e a irrigação podem tornar-se fertilíssimos os aluviões marítimos e fluviais do Algarve e os vastos sapais do Ribatejo, ilhotas e esteiros no delta do Vouga e podem ser libertados da esterilidade.
Podem fabricar-se solos ricos das terras pobres. Podem escolher-se, seleccionar-se e criar-se os tipos de plantas mais apropriados ao meio português, ou, mais exactamente, aos diversos meios portugueses. Podem obter-se plantas mais rendosas e também animais mais rendosos: podem apressar-se os prazos de maturação das plantas e de desenvolvimento dos animais. Uma planificação da agricultura permitirá um melhor aproveitamento do solo nacional. Com as máquinas e a técnica ao seu serviço, o trabalho será menos penoso e renderá incomparavelmente mais.
Haverá mais fartura nos lares e sairá do que se produz para a compra do que se necessita.
Temos no nosso próprio país todo um novo país a conquistar, um país mais fértil e até mais belo. Temos todas as condições naturais para uma vida desafogada para todos os portugueses. Que se chame a isto um sonho: são legítimos os sonhos de quem dá a vida para realizá-los. Mas não, não é apenas um sonho. Acrescentando-se à simples consideração dos factos nacionais, o triunfo do socialismo em grande parte do mundo dá a certeza de que tal sonho será realizado.
Se já no século XIX alguém pôde dizer ter o homem modificado de tal forma a natureza que "os efeitos da sua actividade não podem desaparecer senão com a morte geral do planeta"(79), seguindo o mesmo pensamento os mitchurianos, seguros do carácter material da vida, puderam demonstrar no século XX ser possível "obrigar cada variedade de animais ou vegetais a desenvolver-se e a modificar--se mais rapidamente e no sentido favorável ao homem". Sendo o homem guiado pela máxima de que não podemos esperar as dádivas da natureza, antes é necessário arrancar-lhas, não é possível prever quaisquer limites a essa criadora intervenção humana.
Não há qualquer lei natural, quaisquer razões biológicas ou técnicas, qualquer fraqueza de espécie humana, que forcem a agricultura ao atraso. Apenas factores sociais a isso a obrigam.
Se se importam artigos que a agricultura portuguesa produz e concorrem desastrosamente com os de produção nacional; se não se colocam nos mercados internacionais os produtos agrícolas que o mercado interno não pode absorver; se se elevam os preços dos adubos químicos restringindo-se ou impossibilitando-se o seu uso pelos pequenos agricultores; se se obriga ao transporte de adubos por via férrea criando dificuldades ao seu consumo; se, taxando-se preços não compensadores para a pequena produção, forçando-se a uma distribuição centralizada, obrigando-se à venda ao desbarato e à perda de colheitas por falta de mercados, se provoca a restrição das culturas; se, por uma política fiscal regressiva, se sufoca o pequeno agricultor com impostos, levando-o a cortar despesas essenciais ao amanho das terras - é evidente que a acção quotidiana do governo tem efeitos directos e imediatos no nível da produção e da produtividade, nas dificuldades e no atraso da agricultura.
Entretanto, o atraso geral da agricultura, a lentidão do seu desenvolvimento, em relação à indústria, resulta, fundamentalmente, da propriedade privada do solo e da exploração dos camponeses, e tais causas não se podem remover dentro do capitalismo.
Originando a renda absoluta, impedindo, por isso, que mais-valia criada na agricultura participe na formação da quota média de lucro, provocando a elevação dos preços das matérias-primas necessárias à indústria e dos meios de subsistência - a propriedade privada da terra retarda a acumulação do capital. Obrigando a gastos de capital na compra da terra, desanimando os arrendatários a inverterem capitais na exploração - retarda o progresso agrícola. A propriedade privada da terra é, assim, um entrave ao desenvolvimento das forças produtivas levado a cabo pelo próprio capitalismo.
Podem ver-se com um pouco mais de atenção alguns aspectos desta questão primordial.
Primeiro aspecto: o obstáculo ao desenvolvimento económico geral pela criação da renda absoluta.
O lucro não é senão uma forma da mais-valia e a quota do lucro a relação entre a mais-valia social e o capital social. Uma vez que, dadas as diferenças de produtividade do trabalho, o valor é tanto menor quanto mais elevada for a composição orgânica do capital "se em todos os ramos da produção as mercadorias fossem vendidas pelo seu valor, a quota de lucro seria desigual nos diversos ramos". Os capitalistas teriam quotas de lucros tanto mais elevadas quanto mais baixa fosse a composição orgânica do capital (e mais alta a taxa de mais-valia). Isto não acontece porque, por efeito das transacções de capital e da concorrência, as mercadorias são vendidas nuns casos acima e noutros abaixo do valor, ou seja, são vendidas a preços que correspondem aos preços de produção (despesas de produção mais lucro médio). Desta forma, embora o preço social das mercadorias seja igual ao seu valor social e embora o lucro social seja igual à mais-valia social, existe em cada caso um desnivelamento entre o preço e o valor e entre o lucro e a mais-valia. Forma-se uma quota média de lucro, comum aos sectores onde é elevada e àqueles onde é baixa a composição orgânica do capital.
Sendo o preço social das mercadorias igual ao seu valor social, ao venderem os produtos acima do valor, obtendo assim um lucro superior à mais-valia criada nos seus sectores, os capitalistas dos sectores onde é mais elevada a composição orgânica do capital partilham do valor criado não nos seus sectores, mas nos sectores onde a composição orgânica do capital é mais baixa. Isto significa que as indústrias menos evoluídas como que pagam uma "taxa invisível" às mais evoluídas. Esta "taxa invisível" é um factor da acumulação do capital e do desenvolvimento geral do capitalismo. (No capitalismo monopolista, sérias alterações são introduzidas neste processo, sem entretanto o desmentirem.)
Como a agricultura é um dos ramos da produção onde a composição orgânica do capital é mais baixa, a mais-valia nela criada devia também ser partilhada pelos capitalistas dos ramos onde a composição orgânica do capital é mais elevada. Se isso sucedesse, a agricultura, pagando a sua "taxa invisível" à indústria, faria elevar a relação entre a mais-valia social e o capital social, isto é, faria elevar a quota média do lucro. Ora, tal não sucede de facto. Na agricultura, dada a baixa composição orgânica do capital (e a elevada taxa de mais-valia), há um excedente da mais-valia nela criada sobre o lucro médio, mas tal excedente não passa para os outros ramos da produção. A propriedade privada da terra, impondo um preço de monopólio (Marx), impede o "nivelamento dos lucros" e mantém no sector agrícola a mais-valia nele criada. O excedente sobre o lucro médio é retido peio proprietário da terra (seja ou não lavrador) sob a forma de renda.
A propriedade privada da terra concebe desta forma a renda absoluta, impede que a mais-valia criada na agricultura participe na formação da quota média de lucro social, faz da agricultura um compartimento vedado da economia nacional e deixa a determinação da quota média de lucro apenas à indústria, onde a composição orgânica do capital é mais elevada (e cada vez mais elevada) e onde, por isso, a quota de lucro tende a ser mais baixa (e cada vez mais baixa). A propriedade privada do solo entrava assim o aumento da quota de lucro e dificulta a acumulação do capital e o desenvolvimento geral do capitalismo.
Segundo aspecto: obstáculo ao desenvolvimento da própria agricultura pela renda diferencial. A renda absoluta é, como se acaba de ver, um excedente do preço de produção, ou seja, um excedente do lucro médio. Há, porém, outro excedente do lucro médio provocado pela diferença da produtividade do trabalho derivada da diferença da fertilidade das terras. A sua causa não é especificamente a propriedade privada da terra, mas coexiste com ela e só com ela pode desaparecer.
O valor dos produtos agrícolas, tal como o de quaisquer outros produtos, é o tempo de trabalho necessário para a sua produção. Os capitalistas não estão, porém, dispostos a investir os seus capitais em empreendimentos que não lhes assegurem o lucro médio. Dada a desigualdade da fertilidade das terras, as terras menos férteis cultivadas são aquelas onde o valor dos produtos é igual ao preço de produção, ou seja, aquelas em que os capitalistas, vendendo os produtos aos preços gerais do mercado, obtêm a quota média de lucro. Se o valor fosse inferior ao preço de produção, tais terras seriam abandonadas; se fosse superior, entrariam em cultura terras ainda menos férteis. Além disso, a oferta e a procura determinam variações na correspondência entre o preço e o valor, e consequente entrada em cultura ou abandono de terras agrícolas. (Também provocadas pelas alterações na quota média de lucros.) Tais desvios tendem, porém, a compensar-se num ponto de equilíbrio: serem os terrenos menos férteis cultivados aqueles onde o valor dos produtos agrícolas (o tempo necessário para a sua produção) iguala o preço de produção. Isto tem sido esquecido por alguns vulgarizadores de Marx, conduzidos por tal esquecimento a negar a aplicação da lei do valor na agricultura.
De outra forma pode exprimir-se a mesma realidade e essa forma permite compreender a renda diferencial. Se só entram em cultura os terrenos que asseguram o lucro médio, isto é o mesmo que dizer que o preço social dos produtos agrícolas é determinado pela produtividade do terreno de mais escassa fertilidade. Nos terrenos mais férteis, o preço individual de produção é inferior ao preço de produção nos terrenos menos férteis. Ao venderem-se os produtos das terras mais férteis, apura-se um excedente sobre o preço individual de produção. Esse excedente, essa diferença entre o preço individual e o preço social da produção, é a renda diferencial, recebida igualmente pelo proprietário da terra.
As tabelas 9 e 10 ilustram o que afirmamos.
Querendo determinar as diferenças de produtividade resultantes apenas da diferença da fertilidade dos terrenos, temos de admitir que, em terrenos de igual dimensão, a um igual número de horas de trabalho, correspondem produções diferentes. Na hipótese da tabela 9: 180 horas de trabalho estão contidas nos 200 kg produzidos no terreno A; nos 300 kg produzidos no terreno B e nos 400 kg produzidos no terreno C. O valor é determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário, isto é, 0,6 (540 : 900).
Terrenos | Horas de trabalho | Produção (kg.) |
Horas por Kg. | Valor da Colheita |
---|---|---|---|---|
A | 180 | 200 | 0,9 | 120 |
B | 180 | 300 | 0,6 | 180 |
C | 180 | 400 | 0,45 | 240 |
540 | 900 | 0,6 | 540 |
A tabela 10 - ilustração clássica do processo - mostra como o preço social dos produtos agrícolas é determinado pela produtividade no terreno de mais escassa fertilidade. O preço individual de produção no pior terreno é que determina o preço social (como se vê pelo confronto das duas tabelas, esse preço individual é igual ao valor - trabalho socialmente necessário). Para os terrenos B e C o excedente do preço individual é a renda diferencial. Pode fazer-se uma objecção: se o preço social da produção é determinado pela produtividade do trabalho no pior terreno, neste o preço social é igual ao preço individual e, portanto, não existe aí esse excedente, isto é, a renda diferencial. Como sucede então que também pelos piores terrenos se cobre renda? Como pode o rendeiro pagar essa renda? Em primeiro lugar: em todos os terrenos, mesmo nos piores, se produz a renda absoluta. Em segundo lugar: o pior terreno pode produzir renda diferencial, se em inversão suplementar de capital num terreno mais fértil o trabalho for menos produtivo do que no pior terreno; a produtividade nessa inversão suplementar substitui a do pior terreno na determinação do preço social dos produtos e, assim, tanto no pior terreno, como na primeira inversão de capital no melhor, se produz renda diferencial. Em terceiro lugar: em muitas pequenas explorações agrícolas (aquelas a que, em geral, cabem os piores terrenos) o rendeiro, não só entrega ao proprietário a renda absoluta e a diferencial quando ela existe, como partilha com ele, ou lhe entrega totalmente, o próprio lucro médio. Tal como sucedia na economia feudal, é entregue ao senhor tudo quanto excede os meios de subsistência do produtor e, às vezes, até parte do trabalho necessário.
Terrenos | Capital | Lucro médio |
Preço de Produção | Colheita | Preço indiv. da produção | Prço social da produção | Preço da colheita | Renda |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
A | 100 | 20 | 120 | 200 | 0,6 | 0,6 | 120 | - |
B | 100 | 20 | 120 | 300 | 0,4 | 0,6 | 180 | 60 |
C | 100 | 20 | 120 | 400 | 0,3 | 0,6 | 240 | 120 |
300 | - | 360 | 900 | - | 0,6 | 540 | 180 |
Compreendida a renda diferencial, compreendem-se novos obstáculos ao desenvolvimento da agricultura. É evidente que um rendeiro pode conseguir obter um considerável aumento da renda diferencial ("segunda renda diferencial") com inversões suplementares do capital; mas é também evidente que, nesse caso, não a entrega ao proprietário. Daqui a grande diferença de desejos entre proprietário e rendeiro: o proprietário deseja prazos curtos, para se aproveitar das inversões suplementares de capital na terra e do aumento da sua fertilidade e poder assim aumentar a renda; o rendeiro deseja prazos prolongados que lhe permitem reter a segunda renda diferencial obtida com a inversão de novos capitais; o proprietário deseja beneficiar-se dos melhoramen-tos que o rendeiro faz; este evita fazê-lo por não estar disposto a "fazer filhos em mulher alheia". Assim se criam dificuldades ao investimento de capitais e, particularmente, ao aumento da composição orgânica do capital na agricultura.
Estas dificuldades criadas ao progresso agrícola são reconhecidas mesmo pelos mais apaixonados defensores da propriedade privada da terra e representantes dos proprietários rurais. "O rendeiro empreendedor - diz um técnico - arrisca-se, quando se retirar ou for despedido, a ficar com todo o seu trabalho inutilizado [...] indo todas as benfeitorias, realizadas em prédios que não são seus, favorecer outro ou outros [...]. Por isso, na maioria dos casos, não faz melhoramentos ou executa apenas os que considera estritamente indispensáveis, com prejuízo para o proprietário (!) e para a nação."(80) E outro técnico, embora atribuindo ao arrendamento a virtude de "acudir" à falta de terra da parte do rendeiro e à falta de capital da parte do proprietário, reconhece que, "trabalhando em terra alheia, sujeito a renda pesada, o rendeiro não tem interesse em fazer trabalhos e despesas que, aumentando a produção total, diminuam o custo de produção unitária, e não tem interesse porque não tem garantia de não perder os adiantamentos feitos à terra ou de não ver ainda uma parte ou quase tudo do que a mais conseguiu ir ter às mãos do proprietário num ulterior aumento de renda"(81).
Ao mesmo tempo que se coíbe de empregar capitais, o rendeiro procura extrair da terra o mais possível, mesmo ao preço do seu esgotamento. Nisto estão também de acordo todos os especialistas. O sistema de arrendamento a 3 anos - lê-se num estudo - "ao mesmo tempo que esgota a fertilidade das terras (pois, em virtude do seu prazo, não se efectuam adubações orgânicas convenientes), não permite a realização de quaisquer melhoramentos fundiários como estábulos, montureiras, silos, etc."(82) O rendeiro - lê-se noutro estudo - "tira da terra o mais que pode, sem atender à conservação da fertilidade, e nada melhora na incerteza de poder colher o que semeou"(83). Os rendeiros - lê-se noutro estudo - "pouco ou nenhum amor podem dedicar a uma terra que só ocasionalmente cultivam e da qual pretendem tirar o máximo rendimento, sem cuidar das consequências futuras". "O solo enfraquece gradualmente."(84) E, sintetizando os efeitos prejudiciais do arrendamento, escreve outro especialista: "Geralmente, uma propriedade rústica arrendada mantém-se indefinidamente no mesmo estado, sem sofrer transformações ou benfeitorias que a melhorem."(85)
Tentando vencer esta resistência dos rendeiros ao emprego de capital, os proprietários têm procurado, por vezes, a via da coacção. Uma lei de 1946(86), ao estabelecer na sua Base XI que "os melhoramentos fundiários realizados pelo senhorio ao abrigo desta lei em prédios arrendados obrigam o arrendatário a compensá-lo do encargo que assumiu, pelo tempo correspondente à duração do arrendamento, acrescido de equitativo aumento de renda", tentou introduzir tal sistema. A falta de aplicação (pelo menos em escala apreciável) deste preceito mostra bem que a causa das magras inversões de capital nas terras arrendadas não é questão de boa ou má vontade do arrendatário, nem de carência de recursos, mas a própria instituição da propriedade privada da terra.
Terceiro aspecto: obstáculo ao desenvolvimento económico geral pela existência de capitais improdutivos.
A terra, não sendo produto do trabalho, não tem valor. Mas tem prego. Esse preço, além de aumentar com os capitais investidos na terra, tem como origem fundamental o querer o proprietário, vendendo a terra, continuar recebendo o equivalente à renda. A renda é assim transformada em juro e o preço da terra não é mais que "renda capitalizada". O preço da terra, que aumenta com a diminuição da taxa de juro (tendência da economia capitalista), obriga à paralisação de importantes e crescentes capitais e retarda a renovação da composição orgânica do capital resultante da acumulação.
Através de tudo quanto fica dito, vê-se bem ser a propriedade privada da terra não só um entrave ao desenvolvimento geral do capitalismo como um entrave particular ao desenvolvimento das forças produtivas na agricultura. A ruína e a expropriação da população rural pelo curso da evolução do capitalismo, a feroz exploração dos camponeses pela burguesia e pelos proprietários rurais e a exploração da aldeia pela cidade impedem que a agricultura acompanhe o desenvolvimento económico geral. Revela-se que, por detrás do atraso agrícola, não estão condições naturais inelutáveis, nem leis biológicas, nem a impotência da espécie humana, mas condições sociais geradas pelo capitalismo.
4 - O Proprietário e o Lavrador >>>
Notas:
(67) The Origin of Species by Means of Natural Selection or the Preseruation of Favoreã Races in the Struggle for IÁfe, Ed. The Modern Library, New York, III, p. 53. (retornar ao texto)
(68) Ibid., VII, p. 182. (retornar ao texto)
(69) Ibid., X, p. 249. (retornar ao texto)
(70) Ibid., XV, p. 351. (retornar ao texto)
(71) Ibid., IV, p. 64. (retornar ao texto)
(72) Ibid., Conclusão, p. 373. (retornar ao texto)
(73) The Descent of Man anã Selection in Relation to Sex, Ed. The Modern Library, VI, p. 513. (retornar ao texto)
(74) Ibid., III, pp. 467-468; VIII, pp. 570-571; XIII, p. 697; IV, pp. 480-481; V, p. 498; etc. (retornar ao texto)
(75) Ibid., Conclusão, pp. 919-920. (retornar ao texto)
(76) Marx, O Capital, t. 1, 3.ª secção, V, 1. (retornar ao texto)
(77) The Origin of Species, 1, p. 30. (retornar ao texto)
(78) Visconde de Coruche, A Agricultura e o Pais, p. 7. (retornar ao texto)
(79) Engels, Dialéctica da Natureza, Introdução. (retornar ao texto)
(80) F. A. M, Vilhena, Inquérito à Freguesia de Sto. Tirso, P. 137. (retornar ao texto)
(81) Lima Basto, Alguns Aspectos, pp. 413-414, (retornar ao texto)
(82) Vitória Pires e Paiva Caldeira, Inquérito à Freguesia de Sto. Ildefonso, p. 33. (retornar ao texto)
(83) J. R. Vaz Pinto, A Colonização do Pliocénico, Campo Aberto à Iniciativa particular, J. C. L, Problemas de Colonização, v, I, p. 78. (retornar ao texto)
(84) João de Sousa e Melo, A Propriedade e a Exploração iia Mancha Pliocéníca ao sul do Tejo, p. 26. (retornar ao texto)
(85) Lima Basto, cit. E. C. Caldas, Formas de Exploração ãa Propriedade Rústica, pp. 187-188. (retornar ao texto)
(86) Lei n.° 2017, de 25 de Junho de 1946. (retornar ao texto)
Inclusão | 24/07/2006 |