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O processo das transformações sociais está, como sabemos, em ligação com a transformação do estado das forças produtivas. Este movimento das forças produtivas, assim como o movimento e reagrupamento de todos os elementos da sociedade que estão ligados a ele, não é outra coisa que o processo de perpetua ruptura do equilíbrio social e do seu contínuo restabelecimento. Com efeito, suponhamos um movimento progressivo das forças produtivas. E disso, que resulta? Primeiro e antes de tudo, que entre a técnica social e a economia social nasce uma contradição: o sistema sai do seu equilíbrio. As forças produtivas ganham um certo avanço. Donde: deve dar-se um certo reagrupamento dos homens. Por que? Porque não havendo equilíbrio, o sistema não pode subsistir por muito tempo. Esta contradição se resolve. Como? Precisamente por este reagrupamento dos homens; a economia se «adapta» ao estado das forças produtivas, à técnica social. Mas o reagrupamento dos homens no processo econômico supõe necessariamente o seu reagrupamento na estrutura social e política da sociedade (uma outra combinação de partidos, do seu poder, etc..); depois a mesma circunstância provoca necessariamente a transformação das leis (jurídicas, morais e outras). Isto porque não é senão por esta forma que se resolve a contradição, ou, o que vem a dar no mesmo, que se restabelece o equilíbrio entre os sistemas dos homens e o das normas. Ora, dá-se o mesmo com toda a psicologia da sociedade e toda sua ideologia. É o que muito bem expôs Plekanov:
«É pelo aparecimento, pela transformação e destruição das associações de idéias sob a influência do aparecimento, transformação e destruição de certas combinações de forças sociais que se explica numa medida considerável a história das ideologias» (N. Beltov, Da compreensão materialista da história, «Crítica de nossos críticos», p. 333).
A nova «combinação» dos homens entra em conflito com a velha combinação das idéias (com as velhas associações de idéias). Aqui rompeu-se o equilíbrio interior. Ele se restabelece numa nova base, quando aparece uma nova combinação de idéias, isto é, a psicologia social e a ideologia social se põem de acordo para que o equilíbrio seja novamente rompido, e assim por diante.
Apresenta-se aqui uma questão muito importante, tanto do ponto de vista teórico como do prático.
Podemos, com efeito, imaginar-nos o restabelecimento do equilíbrio social sob duas formas: sob a forma de uma adaptação lenta (evolutiva) dos elementos do conjunto social, ou sob a de bruscas transformações. A história nos ensina que tem havido e ainda há revoluções. São fatos históricos. Quando é que eles se produzem? Quando é que se já uma curta adaptação recíproca dos vários elementos da sociedade, e quando uma explosão? Onde está o fundo deste conflito, desta colisão que se exprime pela revolução?
Em ligação com este problema surge toda uma série de problemas de dinâmica social. Com efeito, sabemos que toda sociedade, qualquer que ela seja, está continuamente num processo incessante de transformações, de reagrupamentos interiores, de remodelações de forma e conteúdo. Sabemos que este processo está ligado à evolução das forças produtivas. Contudo, constatamos de um lado transformações nos limites duma só e mesma estrutura social, e do outro, a passagem duma «espécie» de sociedade a outra, substituição dum «modo de produção» por outro. Quando é que se dá um ou outro destes fenômenos? É preciso também responder a esta pergunta.
Encontra-se em Marx, na Crítica da Economia Política, uma descrição geral do processo do movimento social. Eis como ele descreve tal processo:
«Em certo estágio de sua evolução, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção em vigor, ou, o que é a expressão jurídica do mesmo fato, com as relações de propriedade no interior das quais elas até então se tinham movido. De formas de evolução das forças produtivas, estas relações se transformam em obstáculos a esta evolução. Abre-se então uma época de revolução social. Com a derrubada dos fundamentos econômicos, produz-se, de uma maneira mais ou menos lenta ou rápida, uma transformação de toda a monstruosa superestrutura. No exame de tais transformações é preciso distinguir constantemente entre a transformação material nas condições econômicas da produção, o que se pode constatar com a exatidão duma análise de história natural, e entre as formas jurídicas, políticas, religiosas ou filosóficas, numa palavra, ideologias em geral, sob as quais os homens tomam consciência deste conflito e o utilizam na luta. É tão difícil julgar o indivíduo pelo que ele pensa de se próprio, como julgar tais momentos de transformação pela sua consciência; é indispensável, pelo contrário, explicar esta consciência à luz do conflito que se observa entre as forças produtivas sociais e as relações de produção».
Assim, segundo Marx, a transformação, a revolução se produz quando o equilíbrio entre as forças produtivas da sociedade e os traços fundamentais da sua estrutura econômica se rompe. Aí está o fundo do conflito que a revolução deve resolver. Trata-se aqui, por conseguinte, da passagem de uma forma a outra. Mas enquanto a estrutura econômica torna possível o desenvolvimento das forças produtivas, as transformações sociais não assumem o caráter de desordem: elas se produzem na «ordem da evolução».
Examinaremos em seguida esta questão com maiores detalhes. Queremos, contudo, desde já, chamar a atenção para um ponto: segundo Marx, a causa duma revolução não reside de forma alguma no conflito da economia com o direito, como afirma uma quantidade de críticos do Marxismo, mas no conflito entre as forças produtivas e a economia. E isto não é em absoluto a mesma coisa. Veremos em «seguida por que as cousas assim se passam.
Dissemos que a causa de uma revolução, duma passagem violenta dum tipo de sociedade a outro, deve ser procurada no conflito que estala entre as forças produtivas, seu crescimento, de um lado, e a estrutura econômica da sociedade, isto é, as relações de produção, do outro. Pode se objetar a isto, por exemplo, o seguinte: Será que a evolução das relações de produção não é condicionada pelo movimento das forças produtivas? Não será a transformação a mais progressiva das relações de produção resultado dum conflito entre as forças produtivas e as velhas relações «caducas» de produção? Representemo-nos o crescimento das forças produtivas na sociedade capitalista. Sabemos que com este crescimento produziram-se também importantes reagrupamentos dos homens no processo econômico. Assim o desaparecimento da antiga «classe média», o aniquilamento do artesanato, o crescimento do proletariado, o aparecimento de formidáveis empresas. A textura humana da produção se transforma perpetuamente. Melhor, não haverá uma passagem duma forma de capitalismo a outra, por exemplo, do capitalismo industrial ao capitalismo financeiro, sem a menor revolução? E no entanto, todas estas transformações eram a expressão de uma constante ruptura de equilíbrio, de um incessante conflito entre as forças produtivas e as relações de produção. No seu crescimento, as forças produtivas se chocavam com as relações do artesanato, rompeu-se o equilíbrio: a economia do artesanato já não correspondia aos progressos da técnica. O equilíbrio rompido se restabelecia constantemente sob uma nova base: pois paralelamente crescia também uma nova economia que «correspondia» à técnica, etc.. Segue-se, portanto, evidentemente, que todo conflito entre as forças produtivas e as relações de produção não provoca necessariamente uma revolução, e que o problema é, por conseguinte, muito mais complexo. Para se analisar o problema do gênero de conflito que provoca uma crise revolucionária, convém dirigir-se à análise, ao exame das diferentes espécies de relações de produção.
Por relações de produção entendemos, como já se sabe toda espécie de relações possíveis entre as pessoas que aparecem no processo da vida social e econômica, isto é, no processo da produção, que em se também inclui a repartição dos meios de produção, e no processo da distribuição dos produtos. Está claro que estas relações de produção são extremamente variadas: o especulador que compra em Paris ações de um «trust» americano de botões, entra por isso mesmo em relação de produção com os operários e proprietários, contra-mestres e engenheiros das fábricas compreendidas neste «trust». O banqueiro que emprega contadores está em relação determinada de produção para com eles. Da mesma forma, o carpinteiro está em relações determinadas de produção com o torneiro que trabalha na mesma oficina, ou com a quitandeira que lhe vende um arenque no mercado, ou com o contra-mestre e o vigia. Mas o mesmo carpinteiro está também em relações determinadas de produção com o pescador que apanhou o arenque e o tecelão que produziu, entre outros, o tecido da sua calça, etc., etc.. Numa palavra, temos realmente, diante de nós, uma quantidade enorme de relações de produção variadas, heterogêneas, que diferem entre elas em gênero e em espécie.
O problema consiste em introduzir uma classificação qualquer entre estas diferentes espécies de relações, e esforçar-se em apanhar em que gênero de relações de produção é preciso que haja conflito, para que se desencadeie uma revolução.
Para procurar a solução deste problema de outra forma que pelo simples chuchar de dedos, e resolve-lo de acordo com a realidade, convém considerar como, de fato, se realizaram as revoluções, isto é, como se resolveu a contradição entre a evolução das forças produtivas e a base econômica da sociedade. É inútil lembrar que este conflito sempre se resolveu pelos homens, e isto por uma cruel luta de classes. Que resultado se obtinha depois da vitória da revolução? Em primeiro lugar, um deslocamento do poder político. Em segundo lugar, um deslocamento das classes no processo da produção, uma transformação na repartição dos meios de produção que, como sabemos, está na mais estreita ligação com a situação das classes. Noutras palavras: a luta no tempo da revolução tem por objetivo a apropriação dos meios de produção mais importantes que, numa sociedade fundada sobre classes, estão nas mãos de uma classe, a qual consolida ainda esta dominação sobre as coisas, e por conseguinte sobre as pessoas, pelo poder da sua organização política.
Chegamos aqui ao ponto decisivo da nossa pesquisa, que diz respeito a estas relações de produção que a revolução deve fazer saltar, se a sociedade é capaz de prosseguir na evolução de suas forças produtivas. Marx, no tomo III do Capital (2.a parte), propõe a questão com toda a sua acuidade, destacando de todo o conjunto das relações de produção a sua parte fundamental, especifica.
«Uma forma econômica especifica, na qual um trabalho suplementar não retribuído é por assim dizer roubado dos produtores diretos, determina uma relação de senhores a sujeitados, tal como nasce imediatamente da produção mesma e por seu turno tem sobre ela uma influência determinante. É sobre isto que se funda toda a conformação do corpo social econômico que decorre das próprias relações de produção e ao mesmo tempo sua forma, especifica política. Encontramos cada vez o mistério o mais secreto, o fundamento escondido de toda construção social e, por conseguinte, também da forma política, que representa relações de soberania e dependência, numa palavra, de toda forma especifica de Estado... nas relações imediatas dos detentores dos meios de produção com os produtores imediatos.»
Como, em consequência, se passam as coisas? Duma forma muito simples. Entre toda variedade de relações de produção, um gênero se destaca pela sua importância: aquele que exprime as relações entre as classes que têm os principais meios de produção e as outras classes que não possuem senão os meios secundários, ou que não possuem nenhum. A classe dominante na economia domina também na política, e reforça políticamente um tipo dado de relações de produção, garantindo um processo de produção que a favorece... «A política é uma expressão concentrada da economia», como diz uma das resoluções do IX Congresso do P. C. Russo.
Pode-se ainda exprimi-lo em termos um pouco diferentes. Trata-se, nós o vemos, não de todas as relações de produção, de qualquer espécie, mas das relações de domínio econômico — apoiado nas relações determinadas com o mundo material — e dos meios de produção. Para falar a linguagem dos legisladores e juristas, trata-se das relações de propriedade fundamentais, das relações de propriedade de classe dos meios de produção. Estas «relações de propriedade» não são qualquer coisa de diferente das relações de produção fundamentais. São exatamente a mesma coisa, mas expressa noutros termos, em linguagem jurídica e não econômica. São precisamente estas relações, ligadas à dominação econômica duma classe, que esta classe procura conservar, fortalecer e alargar a todo preço.
Nestes quadros, todas as mutações possíveis «de ordem evolutiva» podem-se produzir; mas sair destes quadros não é possível, senão pela transformação revolucionária. Por exemplo: nos limites das relações de propriedade capitalista, pudemos assistir ao desaparecimento do artesanato, ao aparecimento de novas formas de empresas capitalistas, à vinda ao mundo de uniões capitalistas antes desconhecidas, à ruína de membros particulares da classe burguesa (falências); alguns membros isolados da classe operária podem chegar à situação de pequenos proprietários e em seguida empresários; novas camadas sociais podem crescer (por exemplo, o que se chama a «nova classe média», isto é, os técnicos intelectuais) e assim por diante. Mas a classe operária não se pode tornar detentora dos meios de produção; não pode alcançar o poder, ter direitos na produção, dispor dos meios fundamentais de produção. Noutras palavras, qualquer que seja a transformação que se possa efetuar sob a influência das forças produtivas nas relações de produção, seu eixo fundamental permanece. E se entra em conflito com as forças de produção, ele se rompe. E é isto a revolução que assegura a passagem a uma outra forma social.
«Na medida em que o processo do trabalho é um simples processo entre o homem e a natureza, seus elementos simples conservam-se idênticos em todas as formas sociais de sua evolução. Mas toda forma histórica determinada deste processo faz avançar a evolução de seus fundamentos materiais e das suas formas sociais. Chegada a um certo grau de maturidade, uma forma.histórica dada é afastada e cede seu lugar a uma forma superior. A hora desta crise aparece quando a contradição e oposição entre as relações de repartição de um lado, e por consequência os aspectos históricos determinados das relações de produção correspondentes, e doutro lado as forças produtivas, atingem uma certa amplitude e uma certa profundidade. Produz-se então o choque entre a evolução material da produção e sua forma social» (Capital tomo III, parte 2).
Assim a revolução se produz quando se apresenta um conflito agudo entre as forças produtivas que se desenvolvem, que não cabem mais no quadro das relações de produção, e as ditas relações, isto é, as «relações de propriedade», e os meios de produção. Então este quadro «estala».
Não é difícil compreender por que as coisas se passam assim e não de outra forma. Não é difícil porque são estas relações de produção que apresentam o aspecto mais fixo, mais conservador: é que exprimem o domínio econômico exclusivo de uma classe, firmado e refletido por seu domínio político. É natural que um tal invólucro, que materializa os interesses fundamentais de uma classe, seja mantido por esta classe até o último limite possível, enquanto as mutações que se operam no interior deste invólucro, isto é, as mutações parciais, que deixam na sua integridade os princípios fundamentais duma sociedade, podem-se produzir, e se produzem, relativamente sem dor. Segue-se entre outras coisas que não existe revolução «puramente política»; toda revolução é uma revolução social, isto é, que desloca classes; e toda revolução social é uma revolução política. Isto porque não é possível derrubar as relações de produção sem derrubar a força política destas relações; inversamente, derrubar o poder político significa derrubar o poder de uma classe também no domínio econômico, pois «a política é a expressão concentrada da economia». Responder-se-á a isto: comparai a revolução francesa com a revolução bolchevique russa; no primeiro caso, houve revolução política; no segundo, social; na revolução bolchevique triunfante, a política e as transformações políticas não representaram maior papel que na revolução francesa, mas as transformações no domínio das relações de produção não são nem mesmo comparáveis.
Esta «objeção» não faz senão confirmar o que acima já dissemos. Consideremos com efeito as coisas sob o seu aspecto político. É perfeitamente claro que na época da revolução francesa o poder passou das mãos de um grupo de proprietários às mãos de outro grupo também de proprietários. A burguesia derrubou o Estado dos proprietários territoriais e organizou o Estado da burguesia industrial, enquanto na Rússia a organização dos proprietários de qualquer categoria foi completamente varrida. A transformação política foi muito mais profunda. Tanto mais que o deslocamento das relações de produção (nacionalização da indústria, supressão do domínio dos proprietários territoriais, germens de sociedade socialista, etc..) foi mais profundo.
Em resumo, a causa de uma revolução é um conflito entre as forças produtivas e as relações de produção, baseadas, estas na organização política da classe dominante. Estas relações de produção dificultam a tal ponto a evolução das forças produtivas, que elas devem necessariamente ser abolidas para que a sociedade possa seguir na sua evolução. E se não podem ser abolidas, elas esmagam e sufocam o desenvolvimento das forças produtivas, e toda a sociedade estagna ou retrocede, isto é, passa por um período de decadência.
A transformação revolucionária que acompanha a passagem de uma forma de sociedade de classe a outra aparece como uma colisão entre forças produtivas e as relações de produção. Mas pergunta-se, quando se produz tal transformação? Sim, porque a contradição entre as forças produtivas e as relações de propriedade duma sociedade dada não aparece bruscamente, não cai inopinadamente do céu como um aguaceiro. Ela se revela e se manifesta muito antes da revolução, desenvolve-se por muito tempo, e não é senão como resultado desta revolução que ela se resolve pela ruptura destas relações de produção que punham obstáculo ao evolver posterior das forças produtivas. Chega-se a este «ponto de ebulição» no momento em que no próprio seio das antigas relações de produção as novas já chegaram de forma latente à maturidade.
«Uma formação social não perece nunca antes de se terem completamente desenvolvido todas as forças produtivas que ela pode conter; e novas relações de produção, superiores, não entram jamais em cena antes que suas condições materiais de existência não tenham sido primeiramente chocadas sob a asa da mesma antiga sociedade». (Marx, Crítica da Economia Política, prefacio).
Que significa isto? Tomemos um exemplo na época contemporânea.
A estrutura capitalista é o conjunto das relações de produção da sociedade capitalista, cujo eixo é o conjunto das relações entre operários e capitalistas, relações que, como já sabemos, se exprimem pelos objetos (Capital). Por conseguinte, a estrutura capitalista da sociedade se define, em primeiro lugar, pela combinação das relações que existem entre os capitalistas tomados à parte, e as relações entre os operários também tomados à parte. A estrutura capitalista não se reduz de forma alguma só às relações internas da classe dos capitalistas; do mesmo modo, sua «essência» não consiste nas relações entre os operários. Esta «essência» se encontra na reunião destes dois grupos de relações de produção. É mesmo esta a relação de produção fundamental do capitalismo, este laço que reúne e liga as duas classes fundamentais, que cada qual por sua vez traz em si um conjunto de relações de produção (relações entre os capitalistas de um lado, entre os operários do outro). Se perguntarmos agora de que maneira «amadurece», no interior do antigo modo de produção determinado, um novo «modo de produção», descobriremos, tomando para exemplo ainda o capitalismo, o seguinte:
No interior das relações de produção do capitalismo, isto é, no interior da combinação das classes, uma parte destas relações de produção é ao mesmo tempo o fundamento duma nova ordem, socialista. Com efeito, já vimos o que Marx considera como base da ordem socialista. É de um lado a centralização dos meios de produção (isto é, das forças produtivas) e é em seguida (e é isto que se relaciona com as relações de produção), o trabalho socializado, isto é, antes de tudo as relações no interior da classe operária, todo o conjunto das relações de produção no proletariado, o laço de produção entre todos os operários. São precisamente estas relações de produção, que consistem na colaboração, que, amadurecendo no seio das relações de produção capitalistas em geral, são a pedra sobre a qual se erguerá o templo do futuro.
Eis aqui mais alguma coisa que nos deve esclarecer. Vimos mais acima que a camada de uma revolução reside no conflito entre as forças produtivas e as relações fundamentais de produção ou relações de propriedade.
Vimos agora que esta contradição de base encontra sua expressão numa contradição de produção, a saber, na contradição entre uma parte das relações de produção do capitalismo e uma outra parte destas relações. Com efeito. Está claro que o trabalho social e centralizado, encarnado pelo proletariado, torna-se cada vez menos compatível com a dominação econômica (e por conseguinte política) dos capitalistas. Este «trabalho socializado» exige uma economia metódica e não suporta a anarquia das classes. Ele exprime a tendência da sociedade moderna para a organização; ora, esta organização não pode ser obtida da sociedade capitalista. Isto porque a sociedade fundada sobre classes é uma sociedade contraditória, portanto inorganizada. Ora, está claro que os capitalistas não podem, não querem aniquilar seu domínio de classe. Por conseguinte, para que surjam possibilidades de organização «em toda linha», é preciso acabar com a dominação dos capitalistas. Temos assim sob nossas vistas um conflito entre estas relações de produção que são encarnadas no proletariado, e as que se encarnam na burguesia.
Isto nos permite compreender a sequência. É certo que são os homens que fazem a história. Por conseguinte, é inútil acrescentar que um conflito entre as forças produtivas e as relações de produção não se manifesta pelo fato dos meios de produção, máquinas inertes, numa palavra, objetos, se «levantarem» contra os homens. Uma tal suposição seria monstruosa e irrisória. Que se passa então? Passa-se evidentemente que a evolução das forças produtivas coloca os homens em relações de contradição marcada e que o conflito entre as forças produtivas e as relações de produção encontra sua expressão num conflito entre os homens, num conflito entre classes. Acabamos justamente de ver como isto se dá. As relações de colaboração entre os operários se exprimem nos homens vivos, no proletariado, com seus interesses, suas aspirações, sua força e seu poder social. E vice-versa, a base das relações de produção do capitalismo, que domina e oprime, também se exprimem em homens vivos, na classe dos capitalistas. Todo conflito encontra sua expressão na luta violenta de classes, na luta revolucionária do proletariado contra a classe capitalista.
Os trovadores oportunistas da social-democracia, no gênero de H. Cunow, gostam de se alongar sobre o tema da "maturidade imperfeita" das relações atuais; e para se justificarem apelam para... Marx, que ensinava que nenhuma forma de produção é substituída por outra enquanto deixa ainda lugar à evolução das forças produtivas. E estes "homens de espírito" começam a galopar pelo mundo todo para mostrar que existem ainda aldeias na África Central, onde ainda não há Bancos, e onde vivem ainda selvagens nus.
Podemos opor esta afirmação:
"a guerra mundial, o inicio de uma era revolucionária, etc., são precisamente a expressão desta maturidade objetiva de que é questão. Pois este conflito da mais alta intensidade foi a consequência dum antagonismo chegado ao apogeu e que se produzia continuamente e se desenvolvia no seio do sistema capitalista. Sua capacidade de abalo é o índice bastante exato da grande evolução capitalista e a expressão trágica da absoluta incompatibilidade do desenvolvimento posterior das forças produtivas com o invólucro das relações capitalistas de produção que as encerra. É bem isto este zusammenbruch, este krack tantas vezes previsto pelos criadores do comunismo cientifico." (N. Bukharin, A Economia do Período de Transição).
O ponto de partida da revolução é, como dissemos, um conflito entre as forças produtivas e as relações de produção, conflito que coloca numa situação particular a classe portadora do novo modo de produção, e «determina» de uma forma precisa sua consciência e sua vontade. As premissas da revolução são portanto a modificação profunda da consciência duma nova classe, a revolução ideológica na classe que será o coveiro da antiga sociedade.
É indispensável pararmos neste ponto. Antes de tudo, é preciso lembrar que esta revolução tem uma base material. Depois é preciso compreender nitidamente porque se trata assim de uma transformarão violenta na consciência de uma nova classe, dum processo revolucionário. Examinemos esta questão com atenção. Toda ordem social, como se aprendeu nos capítulos anteriores, não repousa unicamente sobre os fundamentos econômicos: pois qualquer que seja a ideologia reinante numa ordem de coisas dada, ela não é senão o laço que sustem esta ordem.
As ideologias não são simplesmente acidentes, mas círculos de gêneros diversos que encerram como um tonel o corpo social, e o mantém em equilíbrio. Perguntemos agora o que aconteceria se a psicologia e a ideologia das classes oprimidas estivessem numa posição de hostilidade declarada contra a ordem de coisas reinante. Está claro que, nestas condições, esta ordem não poderia mais se manter. Consideremos com efeito uma forma qualquer de sociedade, e nos convenceremos imediatamente que enquanto subsistir esta sociedade reina, em geral e em conjunto, uma mentalidade e uma ideologia de paz civil. Isto se torna particularmente claro se tomamos por exemplo o capitalismo no inicio da guerra de 1914-1918. Certamente, a classe operária tinha desenvolvido uma ideologia independente da da burguesia. E que vemos nós? Mesmo no seio da classe operária existia uma crença extraordinariamente forte na estabilidade da ordem capitalista, um certo apego ao Estado capitalista, uma psicologia de paz civil. Era preciso toda uma revolução psicológica e ideológica para que uma classe se levantasse efetivamente contra outra. E quando se efetua esta revolução ideológica e psicológica? Quando a evolução objetiva coloca a classe oprimida numa «situação insuportável», quando esta classe vê e adquire uma consciência nítida de que «na ordem de coisas atual não há possibilidades de melhoria possível», «que não existe saída», «que isto não pode durar». Isto se produz quando o conflito entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção provocou o rompimento do equilíbrio social, e a impossibilidade de restabelecê-lo em suas antigas bases. Prossigamos tomando por exemplo a revolução proletária. A classe operária, como já vimos, desenvolveu no curso da evolução capitalista da humanidade uma psicologia e uma ideologia mais ou menos hostil à ordem existente. É no Marxismo que esta ideologia recebeu a sua expressão a mais marcada, a mais nítida, a mais significativa e a mais profunda. No entanto, na consciência das massas, e por este fato de que o capitalismo ainda podia se desenvolver, que ele se desenvolvia e podia mesmo melhorar os salários graças ao saque e à exploração sem piedade das colônias, por este fato o capitalismo não era em absoluto «insuportável» à consciência das massas operárias. Melhor ainda. Na classe operária européia e norte-americana se estabeleceu mesmo uma «comunidade de interesses» particulares com o «Estado nacional capitalista». Ao mesmo tempo, o Marxismo de Marx, nascido no solo da revolução de 1848, se transformava nos partidos operários num «Marxismo II.ª Internacional» todo especial, que traía, e desnaturava a doutrina de Marx, mesmo sobre a revolução social, o empobrecimento do proletariado, a queda inevitável do capitalismo, a ditadura do proletariado, etc.. Tudo isto encontrou sua expressão na traição dos partidos sociais-democratas e no estado de espírito patriótico da classe operária em 1914. Foi preciso que a guerra e suas consequências aparecessem como expressão das contradições do regime capitalista, para mostrar, ou melhor, começar a mostrar, que «isto não podia mais durar». À psicologia, e à ideologia de paz civil, substituíram-se uma psicologia e uma ideologia de guerra civil, e no domínio puramente ideológico, o «Marxismo» da II.ª Internacional cedeu seu lugar ao verdadeiro Marxismo, isto é, ao comunismo cientifico.
Assim, esta revolução nas idéias é constituída, pelo krack da antiga psicologia e da antiga ideologia, rompidas pela irrupção de fatos próprios da vida social, e pela instauração duma ideologia e duma psicologia novas e verdadeiramente revolucionárias.
A canalha social democrata não o compreenderá jamais. Pelo contrário, ela quer apresentar a coisa da seguinte forma: no terreno da miséria e da fome, não pode haver revolução proletária, por conseguinte toda revolução que se produza nesse terreno não é uma "verdadeira" revolução. É interessante opor a isto a forma pela qual Marx encara as coisas; num artigo por ele assinado no "New York Tribune" de 2 de fevereiro de 1854, lemos:
"não podemos esquecer que existe na Europa uma sexta potencia que, a um momento dado, afirmará seu poder sobre as outras cinco chamadas "grandes potencias" todas juntas, fazendo-as tremer diante de si. Esta potencia, é a revolução. Depois de longo silêncio e retiro, ela é novamente chamada para a frente de batalha pela crise e pela fome... Não é preciso senão um sinal para que a sexta mais poderosa das potencias entre em cena com todo o esplendor da sua armadura, a espada na mão... Este sinal será dado pela guerra européia ameaçadora".
Assim, Marx não adiantava este raciocínios imbecis sobre a impossibilidade duma revolução proletária, depois de uma guerra, sobre a impossibilidade de edificar a revolução sobre a fome, etc.. Marx se enganava sobre o ritmo da evolução, mas ele geralmente apanhou o esquema essencial dos acontecimentos: crise, fome, guerra.
A segunda fase da revolução é a revolução política isto é, a tomada do poder por uma nova classe. Aqui a psicologia revolucionária da nova classe entra em ação. A classe oprimida se choca diretamente com a força concentrada da classe reinante, o seu aparelho de Estado. Para quebrar essa oposição, a classe nova, no processo da luta, desorganiza, destrói numa medida maior ou menor a organização do Estado adversário, e em parte com antigos elementos, em parte com novos, instaura sua organização de Estado. É aqui indispensável notar e frisar que a «tomada do poder» por uma nova classe não pode consistir numa simples passagem da mesma organização de Estado de uns para outros. Uma idéia assim ingênua das coisas foi extremamente difundida até em meios socialistas. Portanto, em Marx e Engels, consta expressamente a destruição do poder antigo e a organização de um novo. É muito compreensível. Com efeito, a organização de Estado é a expressão suprema do poder da classe reinante, é a sua fortaleza, sua força concentrada, seu principal aparelho de luta, sua principal arma defensiva contra a classe oprimida. Como então poderá a classe oprimida quebrar a oposição da classe opressora, deixando intacto seu principal instrumento de opressão? Como vencer um inimigo sem desorganizar as forças deste inimigo? Evidentemente, de duas uma: ou as forças da classe reinante conservam-se tais quais, e então a revolução está por definição vencida; ou então a revolução é vencedora e isto subentende a desorganização, a destruição das forças (isto é, em primeiro lugar, a organização do Estado) da classe dirigente. E como a força material do poder do Estado encontra sua principal expressão na força armada, está claro que este trabalho preliminar de destruição deve-se dirigir principalmente contra o antigo exército. Mostrou-nos isto, entre outros exemplos, a revolução inglesa do século XVII, que destruiu o aparelho de Estado do poder dos reis e proprietários fundiários, seu exército, etc.. e instituiu o exército revolucionário dos puritanos e a ditadura de Cromwell. Isto nos é ainda demonstrado pela revolução francesa, que desfocou o exército real e instituiu o exército revolucionário, edificado sobre novos princípios. Isto é finalmente demonstrado e provado pela revolução russa de 1917 e dos anos seguintes, que destruiu o aparelho de Estado dos proprietários fundiários e da burguesia, que dissolveu o exército imperialista e edificou um novo Estado, dum tipo absolutamente sem precedentes, e um exército revolucionário novo. Assim, a fase política da revolução não consiste em tomar a nova classe a antiga máquina deixada intacta, mas demoli-la, mais ou menos (conforme a classe que procede à transformação social), e edificar uma organização nova, isto é, combinar de uma nova forma homens e coisas, e sistematizar duma nova forma as idéias correspondentes.
A terceira fase da revolução é a revolução econômica. Consiste em utilizar-se a classe vencedora do poder que adquiriu como de uma alavanca para a transformação econômica, acabando de destruir as relações de produção do antigo tipo e ajudando a se desenvolver e consolidar as novas relações que já amadureciam na antiga ordem, mas em contradição com ela. Eis como Marx definiu este período da revolução, examinando a revolução do proletariado:
«O proletariado aproveitará da sua dominação política para arrancar inteiramente à burguesia todo o capital, para centralizar nas mãos do Estado, isto é, do proletariado organizado como classe dominante, todos os meios de produção, e para aumentar, na medida do possível, a massa das forças produtivas (este último ponto, como vemos, não vem senão mais tarde, e se relaciona propriamente com o período seguinte, N. B.). Isto não pode evidentemente se dar sem irrupções despóticas no direito de propriedade e nas relações burguesas de produção, e por conseguinte, por meio de medidas que aparecem economicamente insuficientes e insustentáveis mas que, na marcha da evolução, saem do seu próprio quadro e são inevitáveis como meios de transformação radical de todo modo de produção» (Manifesto Comunista).
Noutra passagem do Manifesto, Marx fala do proletariado que,
«como classe no poder, transformará pela violência as antigas relações de produção».
Aqui se apresenta uma nova questão muito importante e fundamental: como, num caso típico, se produz, e deve inelutavelmente se produzir, esta reorganização das relações de produção?
A maneira pela qual, antigamente, a social-democracia representava as coisas era a mais simples: uma nova classe, no caso o proletariado, «afasta» os que estão à frente do processo econômico, dizendo «Vão-se embora, imbecis!»; os «imbecis» retiram-se, mais ou menos empurrados pelo proletariado, que recebe completo e intacto o aparelho social de produção, todo pronto, amadurecido no seio de Abraão capitalista. O proletariado se instala à frente do processo econômico, e está tudo acabado: a produção segue sem embaraços, a continuidade do processo de produção não se rompe e a sociedade toda escorrega, sem choques, pelo caminho da ordem, socialista desabrochada. Examinemos contudo com maior atenção a revolução nas suas relações com a produção. O que indicam antes de tudo estas relações de produção do ponto de vista do processo do trabalho? Não são outra coisa senão um aparelho humano complexo de trabalho, um sistema de pessoas mutuamente ligadas umas às outras, já o sabemos, segundo um tipo determinado. Mas além disto — e isto é especialmente importante — as funções de trabalho dos diversos grupos de pessoas numa sociedade de classes são ligadas ao seu papel de classe, por assim dizer, germinadas com ele. Por conseguinte, a transposição das classes é, numa certa medida, a destruição do antigo aparelho de trabalho, e a construção de um novo, exatamente como na fase política da revolução. É lógico que resultará, inevitavelmente, por um certo período, um declínio das forças produtivas: toda reconstrução exige despesas. Da mesma forma, compreende-se que o grau de destruição do antigo aparelho, a importância das demolições depende em primeiro lugar da importância do deslocamento que se observa nas classes. Nas revoluções burguesas, por exemplo, o poder de comando na produção passa de um grupo de proprietários a outro; mas o princípio da propriedade fica em vigor, o proletariado conserva-se no lugar onde estava. Por conseguinte, a demolição, a destruição da antiga ordem é aqui muito menos importante que no caso em que a camada inferior da pirâmide, o proletariado, procura chegar ao cume. Neste caso, é necessário um abalo profundo. A antiga cadeia: burguesia, alta classe intelectual, média classe intelectual, proletariado, estala. O proletariado conserva-se mais ou menos só. Contra ele estão todos os outros. Dai uma inevitável desorganização temporária da produção, desorganização que se prolonga enquanto o proletariado não dispôs os homens segundo uma outra ordem, e não os uniu por um laço doutro tipo, isto é, enquanto não estabeleceu um novo equilíbrio de estrutura da sociedade.
Estas idéias foram expostas pelo autor da presente obra no seu livro A Economia do período de transição (veja-se especialmente o capítulo III), ao qual remetemos os camaradas que queiram conhecer mais em detalhe as considerações desenvolvidas a este respeito. Não faremos aqui senão uma série de reparos complementares. Antes do mais, até que ponto pode esta opinião ser considerada como ortodoxa? Pensamos que é precisamente este o ponto de vista de Marx sobre a questão. Um fato característico: Marx empregava aqui exatamente a mesma expressão que a propósito da destruição do Estado. Escrevia que o invólucro das relações de produção capitalista "saltava" (Capital, tomo I); em outras passagens fala da "decomposição" e da "refundição". Compreende-se bem que quando as relações de produção "saltam", isto não pode deixar de agitar a "continuidade do processo de produção", o que seria, é natural, muito mais agradável. É provavelmente também esta idéia que transparece em Marx quando diz que "a irrupção despótica" do proletariado é economicamente "insustentável", mas em seguida ela se justifica e, por assim dizer, encontra sua compensação.
Outra observação: Fazem-nos uma porção de objeções a propósito da Nova Economia Política (N.E.P.) na Rússia. Indica-se que na nossa "Economia do período de transição" ocupamo-nos em fazer com parcialidade a defesa do partido comunista russo, que agira como macaco em loja de louça. E agora, dizem, a vida provou que não era preciso destruir o antigo aparelho e que estamos tão calmos como o bando de Scheidman. Noutros termos: a destruição do aparelho capitalista de produção foi um fato da realidade russa e absolutamente não uma lei geral da passagem de uma forma de sociedade (capitalista) para uma outra (socialista). Esta "objeção" se apóia visivelmente numa "serena" incompreensão das coisas. Os operários russos não podiam "soltar" os capitalistas, etc.., senão depois de abalar suas bases e se terem consolidado no poder, isto é, depois de terem estabelecido nas suas linhas gerais o novo equilíbrio social. Mas nossos críticos querem começar pelo fim. Com efeito, até no aparelho de Estado (por exemplo, o exército) deixamos entrar numerosos quadros de oficiais do antigo regime e os colocamos em funções de comando. Poderíamos fazer a mesma coisa no começo da revolução? Poderíamos então ter deixado de destruir o antigo exército czarista? Não seriam então os operários que lhes imporiam sua própria direção, mas eles quem imporiam a deles aos operários. É isto coisa suficientemente provada pela política dos ministros Scheidman—Noske na Alemanha, Otto Bauer. Renner na Áustria, Vandervelde na Bélgica, etc..
Terceiro reparo: a nova política econômica na Rússia decorre, numa proporção de 9 para 10, do caráter camponês do país, isto é, de condições especificamente russas.
Quarto reparo: É evidente que o que temos em vista é um tipo de marcha dos acontecimentos. Mas em condições particulares, pode-se dar um estado de coisas tal que não haja destruição: por exemplo, se o proletariado vencer nos países de primeira importância, então é possível que a burguesia com todo o seu aparelho capitule de uma só vez.
O ponto de vista que acabamos de expor não afirma em absoluto que se trata unicamente de homens isolados. Ele afirma que as diversas camadas hierárquicas dos homens se separam umas das outras; o proletário rompe com as demais camadas (técnicos, burguesia, etc.), mes ele mesmo, como conjunto de homens, mais se agrega em um conjunto homogêneo, pelo menos numa parte considerável. Está mesmo aí a base das novas relações de produção (já vimos mais acima que "o trabalho socializado", representado principalmente pelo proletariado, é justamente o que amadureceu nos quadros do antigo regime econômico).
Enfim, a quarta e última fase da revolução é a revolução técnica. Depois que se atingiu um novo equilíbrio social, isto é, depois da constituição de um novo invólucro estável para as relações de produção, que possa servir de forma à evolução das forças produtivas, a partir de um ponto determinado começa a sua evolução acelerada: desaparecidos os obstáculos, a sociedade começa uma ascensão até então desconhecida. Introduzem-se novos instrumentos, forma-se uma nova base técnica, produz-se a revolução técnica. E desde então começa o período «normal», «orgânico» de desenvolvimento da nova forma social, que se constitui uma psicologia e uma ideologia correspondentes.
Recapitulemos. O ponto de partida do desenvolvimento da revolução foi, como vimos, a ruptura do equilíbrio entre as forças produtivas e as relações de produção. Isto se dá na ruptura do equilíbrio entre as diversas categorias das relações de produção. Por seu turno, esta última ruptura de equilíbrio conduz à ruptura de equilíbrio entre as classes, que se manifesta antes de tudo na destruição da ideologia de paz social. Produz-se em seguida uma brusca ruptura de equilíbrio político e sua restauração numa base nova, em seguida uma brusca ruptura do equilíbrio da estrutura econômica e sua restauração também numa nova base, enfim o aparecimento dum novo fundamento técnico. Assim a sociedade começa a se desenvolver sobre uma nova base de vida, e todas as funções vitais fundamentais tomam outro aspecto histórico.
Estudando o processo da revolução, que não é outra coisa que o processo da passagem duma sociedade duma forma a outra, chegamos à conclusão de que, iniciando-se pelo choque das forças produtivas e das relações de produção, este processo percorre diversas fases da ideologia à técnica, isto é, parece, segundo uma ordem invertida.
Para ver como se passam as coisas, tomemos um exemplo concreto, digamos, a revolução proletária.
H. Cunow, novo crítico de Marx, opôs as seguintes passagens extraídas, uma da Miséria da Filosofia e outra do Manifesto Comunista. A primeira diz:
«A classe operária no curso da evolução transforma a sociedade burguesa em uma associação tal que excluirá as classes e as contradições entre elas, por uma associação onde não haverá propriamente poder político, pois que o poder político é justamente a expressão oficial das contradições no interior da sociedade civil».
Na outra passagem, Marx assim define o curso dos acontecimentos:
«Se o proletariado se une como classe na sua luta contra a burguesia, ele se torna pela revolução a classe dominante, e como classe dominante abolirá pela violência as suas antigas relações de produção; ora, ao mesmo tempo que estas relações, ele destrói as condições de existência das contradições de classes em geral, e entre outras, a sua própria dominação de classe».
A este propósito, Cunow observa o seguinte (ob. cit, vol. I, pag. 321):
«Isto (trata-se da passagem do Manifesto, N. B.) é sob o ponto de vista sociológico quase a inversão completa da frase mais acima citada da Miséria da Filosofia. Assiste-se lá (na Miséria, N. B.) no curso da evolução social. primeiro à supressão da divisão em classes, e é somente em seguida que por efeito deste mesmo fato a base do antigo poder político é derrubada, e produz-se uma nova conquista «política» (!). No Manifesto Comunista, pelo contrário, a conquista do poder do Estado dá-se antes de tudo e somente em seguida, por meio da transformação deste poder, é que se produz o deslocamento das relações de produção capitalista; em seguida, por sua queda progressiva, o desaparecimento da oposição de classe, e ao mesmo tempo, finalmente, a supressão das classes em geral».
Assim Cunow afirma que na Miséria Marx é um sábio evolucionista e no Manifesto um revolucionário insensato. O sr. Cunow mente cinicamente, pois sabe perfeitamente que a Miséria da Filosofia apela para a «luta sangrenta» («Luta Sangrenta ou Morte. É só assim que a história apresenta a questão»). Mas examinemos a coisa em si. Na primeira passagem citada de Marx, trata-se do período que se segue à conquista do poder e ao desaparecimento progressivo do poder do proletariado. Não se fala na «conquista política». O poder do proletariado é desde o inicio compreendido como um elemento condenado a desaparecer. Da mesma forma na passagem do Manifesto. Assim, está fora de dúvida que Marx considerava a conquista do poder político, (isto é, a destruição da antiga máquina de Estado e a organização duma nova, original) como uma condição para a destruição das relações de produção por meio da expropriação violenta dos expropriadores. Por conseguinte, aqui também, está-se diante de uma «ordem invertida». A análise vai, não da economia à política, mas desta àquela. De fato, se as relações de produção são transformadas com auxilio da alavanca do poder político, segue-se que a economia é aqui determinada pela política. E Cunow não terá agora razão de dizer que nós temos aqui uma sociologia em contradição com a verdadeira sociologia de Marx?
Não, certamente, não tem razão. Ele não faz mais que falsificar Marx, e age como um vulgar falsário.
Com efeito. Não se deve perder de vista o ponto de partida de todo o processo. Onde está tal ponto? No conflito entre a evolução das forças produtivas e as relações de produção. É esta a base do processo, o ponto inicial de toda reorganização social. Quando interrompe o processo a sua marcha louca? Quando se constitui um novo equilíbrio na estrutura da sociedade. Noutras palavras, a revolução começa porque as relações de propriedade se tornaram um entrave ao desenvolvimento das forças produtivas; a revolução, para falar por metáforas, «desempenha o seu papel» quando se edificam novas relações de produção, podendo servir de forma à evolução das forças produtivas. E que há entre estes dois pontos da revolução? A influência em torno das superestruturas.
Vimos nos capítulos precedentes que as superestruturas não são elementos «passivos» do processo social: são também forças determinadas. Seria ridículo contestá-lo, e o sr. Cunow, ele mesmo, não tem a audácia de levantar alguma objeção. O que se produz aqui é precisamente um processo, muito ampliado no tempo, de influência ambiente; esta extensão no tempo decorre do caráter catastrófico de todo o processo, da supressão de todas as funções comuns. Num período normal, toda contradição entre as forças produtivas e a economia, ou outra qualquer, se resolve rapidamente, exerce rapidamente sua influência sobre a superestrutura, em seguida a superestrutura sobre a economia e as forçar produtivas, e o circulo recomeça sem cessar. Mas aqui, esta acomodação mutua das diferentes partes do mecanismo social se opera de uma forma áspera, cruel, como preço de sacrifícios prodigiosos; as próprias contradições tomam uma amplitude formidável. Nada de extraordinário, portanto, que o processo de influência em torno das superestruturas (ideologia política — conquista do poder, transformação deste poder para o refazimento das relações de produção) seja longo, enchendo todo um período histórico. É aí que reside a originalidade do período de transição, coisa perfeitamente incompreensível para o sr. Cunow.
É indispensável não perder de vista o que aqui se segue. Toda força que se prende às superestruturas, e entre outras, o poder concentrado de uma classe, um poder de Estado, é uma força. Mas esta força não é ilimitada. Nenhuma força pode fazer o que está acima dela. Por que então, se acha limitada a força política da nova classe que vem tomar o poder? Pelo estado das forças econômicas dadas e, por conseguinte, das forças produtivas. Noutras palavras: esta transformação das relações econômicas, que pode ser realizada com o auxilio da alavanca política, depende ela mesma do estado anterior das relações econômicas. Não se poderia melhor explicá-lo que com o exemplo da revolução proletária russa. A classe operária tomou em 1917 o poder nas suas mãos. Ela, porém, não poderia nem pensar em centralizar e socializar a economia pequeno-burguesa, particularmente a economia camponesa. Tornou-se claro em 1921 que a economia russa resistira ainda mais do que se esperava, e que as forças do Estado proletário bastavam apenas para conservar socializada a grande indústria, e assim mesmo nem toda ela.
Atendamos agora ao seguinte: Vimos mais atrás que o processo revolucionário interrompe o desenvolvimento das forças produtivas, melhor, que ele rebaixa o nível destas forças. É indispensável esclarecer esta idéia e o sentido deste fenômeno.
Uma sociedade inorganizada, cujo exemplo concreto mais típico é a sociedade capitalista mercantil, se desenvolve sempre por saltos. Todos sabem agora que, por exemplo, o capitalismo traz em si guerras e crises industriais. Ninguém ignora que estas guerras e estas crises são o «atributo inevitável» da ordem capitalista. Que indica esta lei se a considerarmos do ponto de vista das forças produtivas da sociedade? Tomemos antes as crises. O que se dá em tempos de crise? A parada das empresas, o aumento da falta de trabalho, a diminuição da produção, a ruína e a perda duma quantidade de empresas, sobretudo as pequenas, numa palavra, a ruína parcial das forças produtivas. Ao mesmo tempo, ao lado disto, a ascensão das formas de organização do capitalismo: a consolidação das maiores empresas, o desenvolvimento dos «trusts» e outras fortes uniões monopolizadoras. E depois da crise? Um novo ciclo de evolução, uma nova ascensão sobre uma nova base, com formas superiores de organização, que dão um novo impulso à evolução das forças produtivas. Assim, é pelo preço de uma crise, e de uma perda considerável de forças produtivas, que a crise adquire a possibilidade de uma evolução posterior.
Dá-se a mesma coisa, até um limite determinado, nas guerras capitalistas. Elas são a expressão da concorrência capitalista. São acompanhadas duma queda temporária das forças produtivas. Mas depois os Estados da burguesia são aumentados, os fortes tornam-se ainda mais fortes, os pequenos foram absorvidos; o capital se centralizou numa escala mundial, adquiriu um campo de exploração mais vasto, os quadros da evolução das forças produtivas se alargaram, e depois de um declínio temporário, o processo de acumulação tomou novo impulso.
A mesma lei se aplica na evolução geral da sociedade capitalista. Sabemos já que a significação da revolução é aniquilar os obstáculos ao desenvolvimento das forças produtivas. Mas, porquanto pareça estranho, aniquilando estes obstáculos, ela aniquila também temporariamente uma parte das próprias forças produtivas. E isto é tão inevitável quanto às crises no regime capitalista.
Assim, a passagem da sociedade de uma forma a outra se acompanha de um rebaixamento temporário das forças produtivas, rebaixamento sem o qual toda evolução posterior é impossível.
A lei do período de transição se distingue da lei da decadência em que, neste último caso, não há passagem a uma forma superior de economia; a queda das forças produtivas se manifesta até que a sociedade receba um abalo, um choque exterior qualquer, ou até que encontre seu equilíbrio numa base inferior, depois do que começa uma «repetição do passado» ou um estado prolongado de estagnação, mas, em nenhum caso, uma forma superior de relações econômicas.
Se analisamos as camadas da decadência constatamos que em geral elas se reduzem ao seguinte: as relações de propriedade dadas não se podem romper; por conseguinte, elas se tornam obstáculos à evolução, pesando em torno sobre as forças produtivas, que «cedem», por assim dizer, constantemente. Isto se pode produzir, por exemplo, quando na revolução as forças, das classes em presença são aproximadamente iguais, de tal forma que nem uma nem outra pode vencer, e que a sociedade toda deperece. Aqui, o conflito entre as forças produtivas e as relações de produção determinou duma maneira definida a vontade das classes, mas a revolução não ultrapassou sua primeira fase. As classes se entre devoram, nenhuma consegue obter a vitória, a produção se extingue, a sociedade agoniza. Ou então pode acontecer que a classe vitoriosa não está em condições de desempenhar as funções que assumiu. Ou ainda, podemos nos imaginar que as coisas não foram até a revolução, mas que a evolução das forças produtivas chegou a um ponto onde determinou um agrupamento todo particular das classes; de um lado uma classe reinante parasita e de outro lado uma classe oprimida completamente sem força. Então, também, não haverá revolução; haverá simplesmente, mais cedo ou mais tarde, uma decomposição e uma decadência, por assim dizer «exangue». Pode enfim haver um tipo misto de revolução. Neste caso, vemos que o desenvolvimento das forças produtivas conduz a uma economia tal e a tais «superestruturas», que sua influência ambiente paralisa a evolução das forças produtivas e as impele para baixo. E cedendo as forças produtivas, não é preciso acrescentar que também baixará o nível de todo o conjunto da vida social.
Quando examinamos o processo da produção e reprodução num período de crescimento das forças produtivas, notamos esta lei geral: nos períodos de crescimento sempre a maior parte do trabalho é despendido na produção de instrumentos de produção. Com auxilio destes meios de produção sempre em aumento e que entram para a técnica social, uma parte cada vez menor de trabalho vai dando quantidades cada vez maiores de produtos úteis de toda espécie. O trabalho manual de preparação de instrumentos de produção absorvia antes relativamente pouco tempo; com instrumentos miseráveis, sem valor, feitos à mão, os homens, com esforço considerável, tinham uma produtividade reduzidíssima. Pelo contrário, nas sociedades evoluídas, uma parte enorme do trabalho social é gasto na produção de poderosos instrumentos de trabalho, máquinas e aparelhos destinados a produzirem em massa outros instrumentos de produção, tais como usinas consideráveis, entrepostos, geradores de energia elétrica, etc.. Um grande gasto de forças humanas é feito neste sentido. Mas em compensação, com estes poderosos meios de produção, o trabalho vivo se torna de uma produtividade inaudita: as «despesas adiantadas» são reembolsadas com usura.
Na sociedade capitalista, esta lei encontra sua expressão no crescimento relativo do capital constante em comparação com o variável. A parte do trabalho dedicada à construção de usinas, máquinas, etc., cresce mais depressa que a dedicada ao salário dos operários. Ou, noutras palavras, na evolução das forças produtivas da sociedade capitalista, o capita constante cresce mais depressa que o variável. Isto pode ainda ser expresso de outra forma: no desenvolvimento das forças produtivas, estas se repartem constantemente de forma diferente, de tal sorte que uma parte cada vez maior só é colocada nos ramos que produzem meios de produção.
Assim, o crescimento das forças produtivas, a acumulação do poder do homem sobre a natureza, se exprimem no fato de que o «peso especifico» dos objetos, do trabalho morto, da técnica social, vai sempre em aumento.
Perguntamos agora se não se produzem fenômenos análogos nos outros domínios da vida social. Eis o que nos confere o direito de propor esta questão. Vimos mais acima que o trabalho relativo às superestruturas é também um trabalho diferenciado, cindido, separado do trabalho material. Vimos também que a superestrutura, por sua estrutura interna, contém simultaneamente elementos materiais, humanos e ideológicos no sentido próprio dessa palavra. Como se produz, portanto, aqui a acumulação desta cultura intelectual? Não haverá aqui alguma analogia com o processo material da produção, e no caso afirmativo, como ela se manifesta?
Digamo-lo já: existe uma analogia, e ela se manifesta nisto, que a ideologia social se materializa, se fixa nas coisas, se acumula ela também sob a forma de objetos perfeitamente materiais. Com efeito, lembremo-nos das fontes de que nos servimos para ressuscitar as antigas «culturas intelectuais», o que chamamos os «monumentos» das épocas passadas, os restos de bibliotecas antigas, os livros, as inscrições, as estatuas, os quadros, os templos, os instrumentos de música encontrados, os milhares de outras coisas. Estes objetos são para nós como que a forma fixada, materializada, da ideologia de épocas afastadas, e por eles podemos com aproximação julgar da psicologia dos contemporâneos, da sua ideologia, exatamente da mesma forma que, pelos instrumentos de trabalho, fazemos um juízo sobre o grande desenvolvimento das forças produtivas e em parte também da economia destas épocas. Notemos ainda o seguinte: No trabalho de superestrutura, no ideológico, os meios de prazer representam ao mesmo tempo meios de produção ulterior. Examinemos, por exemplo, uma galeria de quadros. Estes quadros são para o publico que os contempla um motivo de prazer. Mas são ao mesmo tempo meios de produção, não certamente comparáveis aos pincéis ou à tela, mas em todo o caso meios de produção dum caráter particular. Isto por que, por eles, as gerações seguintes aprendem. Quando surge uma nova escola artística, uma nova corrente de pintura ela não cai do céu: nasce das que a precederam, mesmo quando as ataca violentamente, quando «nega» e destrói o antigo sistema ideológico. Nada nasce do nada. Do mesmo modo que em política, em tempos de revolução, o antigo Estado é destruído, mas que o novo é até certo ponto constituído de elementos antigos, ligados entre si de uma outra forma, assim também no domínio ideológico, mesmo nas rupturas mais bruscas, há transmissão e ligação com o passado: o novo não se constrói sobre uma «tabula rasa» absoluta. Os quadros são para os artistas um meio de produção, experiências artísticas acumuladas, ideologia condensada, a partir da qual começa neste domínio todo o movimento ulterior.
A isto pode-se objetar mais ou menos o seguinte: que contradição grosseira é esta! Que existe de comum entre a alta doutrina cristã e os sinais materiais traçados em caracteres negros sobre um pergaminho ou um papel? Que existe de comum entre aquilo e o couro de porco com que se encaderna o Evangelho? Que existe de comum entre a sabia ideologia e a massa de velharias acumuladas nas bibliotecas? Todos os argumentos deste gênero repousam num mal entendido. Certamente nem o papel tomado em si, nem os materiais ornamentais, nem o couro de porco teriam significado algum para nós se não os considerássemos na sua, existência social. Vimos no § 30 deste livro que mesmo a máquina tomada fora do seu laço social é simplesmente um pedaço de metal, madeira, etc.. Porém ela possui ao mesmo tempo uma existência social como objeto utilizado pelo homem, no processo de trabalho. Da mesma forma: fora da sua existência física como um pedaço de papel, ele tem também sua vida social; ele é compreendido como livro no processo da leitura. E é aqui que precisamente ele se manifesta como ideologia concentrada, como meio de produção ideológica.
Se abordamos por esse lado a questão da acumulação de cultura intelectual, veremos sem esforço que esta acumulação tem precisamente lugar sob formas concretas, e de certa forma se precipita em deposito palpável, material. Tanto mais o domínio da cultura intelectual é «rico», mais grandioso, mais amplo é o domínio desses «fenômenos sociais materializados». Para falar por metáforas (e sem esquecer que se trata apenas de uma analogia), a carcaça material da cultura intelectual constitui «o capital de base» desta cultura; é tanto mais rica quanto ele é mais considerável, o que novamente, «em última análise», depende do nível de evolução das forças produtivas materiais. Inscrições ingênuas, mascaras, ídolos grosseiros, desenhos sobre pedra, monumentos artísticos, manuscritos de papiros, «livros» de pergaminho, etc. — e mais tarde galerias, museus, jardins botânicos, laboratórios, jornais, etc. — tudo isto é a experiência acumulada, materializada da humanidade. As novas prateleiras de livros, com os livros novos que constantemente se ajuntam aos que já lá estão, mostram-nos, de uma forma concreta, a colaboração de uma quantidade de gerações que se sucedem umas às outras numa sequencia ininterrupta.
Podemos agora recapitular brevemente.
Entre a sociedade e a natureza produz-se constantemente uma «troca de substancias», um processo de reprodução social, de trabalho que se repete por ciclos e que constantemente substitui o que está errado, alarga sua base, paralelamente à revolução das forças produtivas, o que dá à sociedade a possibilidade de alargar constantemente as fronteiras da sua vida.
Mas o processo da produção de produtos materiais é ao mesmo tempo um processo de relações econômicas dadas.
«O processo capitalista de produção, diz Marx, considerado como qualquer coisa de contínuo, isto é, como processo de reprodução, não produz unicamente mercadorias, mas também produz e reproduz esta relação mesma que se chama capital, isto é, de um lado o capitalista, e doutro, o operário assalariado». (Capital, tomo I).
Esta fórmula de Marx não é somente verdadeira para o modo capitalista de produção; é verdadeira em geral. Se, por exemplo, tomarmos a economia escravagista da antiguidade, cada ciclo de produção será acompanhado por este fato de que o senhor de escravos receberá a sua parte, os escravos a sua, que também no ciclo seguinte o dono de escravos desempenhará um papel, o escravo outro; que em caso de ampliação da reprodução a mudança consistirá apenas no aumento da parte do senhor, do seu poder, do número de seus escravos, da massa de trabalho suplementar por ele fornecida. Assim o processo de reprodução material é ao mesmo tempo um processo de reprodução das relações de produção, o envoltório histórico dentro do qual ele se coloca. Doutra parte, o processo de reprodução material é um processo de constante reprodução das forças operárias correspondentes.
«O homem ele próprio, diz Marx, considerado simplesmente como força trabalhadora em si, é um objeto da natureza, uma coisa, viva sem dúvida e consciente de ser uma coisa; e mesmo seu trabalho aparece com uma exteriorização concreta da sua força» (Capital, tomo I).
Mas nos diversos períodos históricos, em correlação com a técnica da sociedade, o modo de produção, etc., tem-se forças operárias definidas, a saber, forças operárias de qualificação adequada. O processo de reprodução reproduz constantemente esta qualificação. Noutras palavras: o processo de reprodução social reproduz não somente as coisas, mas também «as coisas vivas», isto é, operários qualificados de forma determinada; ele reproduz também as relações entre eles; ele traz, no caso de alargamento, as correções correspondentes ao novo nível das forças produtivas, dispondo nesse caso de outros homens, de outra forma qualificados, doutras «máquinas vivas», de outros postos do campo de trabalho. Mas deixa imutáveis (se não se trata de um período revolucionário de transição) o plano fundamental das relações de produção, reproduzindo-o constantemente numa escala cada vez maior.
Se se quer dar ao conjunto das diferentes forças de qualificação das forças de trabalho o nome de fisiologia social, pode-se dizer que o processo de reprodução reproduz constantemente a economia da sociedade, e, por consequência, sua fisiologia.
Mas ao mesmo tempo que o processo de reprodução material, gira toda a gigantesca máquina da vida social; há a reprodução das relações entre classes, reprodução das relações de organização do Estado, reprodução das relações que dizem respeito aos diferentes ramos do trabalho ideológico. Paralelamente a essa reprodução de conjunto da vida social, reproduzem-se também constantemente as contradições sociais. As contradições parciais que aparecem como ruptura do equilíbrio consecutiva a um choque vindo da evolução das forças produtivas, se resolvem constantemente pela reconstrução parcial da sociedade nos quadros do modo de produção que é o seu. Mas as contradições fundamentais, que decorrem da essência mesma da estrutura econômica dada, estas se reproduzem sobre uma base que constantemente se alarga, até que seu crescimento alcance tais dimensões, que elas conduzem à catástrofe. Desaba então toda a antiga formação das relações de produção, e para que a sociedade possa se desenvolver, é preciso que se estabeleça uma nova forma de relações de produção.
«A evolução das contradições duma forma histórica dada de produção é o único meio histórico da sua deslocação e reforma». (Capital, t. 1).
Este momento se acompanha de uma interrupção temporária do processo de reprodução, da sua ruptura, que encontra sua expressão na ruína duma parte das forças produtivas. A refundição geral de todo aparelho de trabalho humano, a reorganização de todos os laços humanos conduz a um novo equilíbrio, e a sociedade começa um novo ciclo histórico de sua evolução, alargando sua base técnica e acumulando sua experiência social, que cada vez serve de ponto de partida a todo movimento para frente, qualquer que ele seja.
Inclusão | 27/07/2011 |