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Nas Musas de Heródoto há material abundante para o estudo dos costumes e das instituições dos povos da Antiguidade. Mas, antes de Heródoto, que é considerado o Pai da História, os faraós egípcios e os reis da Babilônia já haviam mandado gravar, nos monumentos, varias inscrições que descreviam as suas principais façanhas.
Inspirando-se nesses primeiros documentos da civilização humana, muitos historiadores contemporâneos julgam, ainda, que, escrever a História, é apenas narrar a vida das personagens mais notáveis das diferentes épocas. Adotam, portanto, nos nossos dias, o mesmo método histórico dos faraós egípcios.
Mas, na realidade, essa “História dos acontecimentos" ou “História pragmática”, como alguns também a denominam, é somente uma parte da verdadeira História. Para prová-lo, basta lembrar que eventos tão importantes como, por exemplo, a invenção da máquina a vapor, o descobrimento das bactérias ou o aparecimento do Fausto de Goethe, não estão contidos nessa ‘História pragmática”.
Compreendendo a insuficiência das “narrativas”, alguns historiadores procuraram completá-las, criando, na História, uma parte especial consagrada ao estudo da “maneira de viver” dos homens, nas diversas épocas. Todavia, esse complemento, destacado do conjunto, perde quase todo o valor: a “maneira de viver” aparece como uma coisa rígida, imutável, cristalizada, quando, na verdade, a História tem como objetivo fundamental o estudo do movimento, o estudo das transformações, que se processam na sociedade, através dos tempos.
Aliás, a maioria dos professores não dá a mínima atenção ao estudo da “maneira de viver” que alguns compêndios antigos fazem antes de iniciar a “exposição dos acontecimentos", mesmo porque os programas oficiais não exigem o estudo dessa parte da História. Por isso, nas escolas, todos nós só aprendemos a decorar as narrações dos feitos de "grandes homens”, ou a citar-lhes os nomes com todas as silabas e letras, ao par dos dias, meses e anos das suas mais memoráveis façanhas.
Grande número de pessoas ainda hoje acham que a História é apenas isso. Eis porque, quando se pretende depreciar os conhecimentos históricos de um determinado individuo, se dizem ainda tolices desta natureza: "Pois se ele nem sabe em que ano nasceu Dom João VI!”...
Verdadeiramente, a maioria das pessoas “cultas” e muitos historiadores de renome encaram a História sob esse ponto de vista limitado e estreito. Julgam que conhecer a História é unicamente saber repetir nomes de personagens celebres, citar-lhes as datas do nascimento e da morte, dias em que se travaram grandes batalhas ou em que os seus exércitos foram derrotados. Às vezes, é certo, a “erudição” de alguns vai um pouco mais longe, porque podem a juntar às datas e aos nomes episódios anedóticos sobre a vida de um determinado rei, príncipe ou político. Nada mais, nada menos. Eis em que consiste a História para não pequeno número de homens inteligentes.
Tão profunda ignorância da verdadeira História não é fruto do acaso. Não é, também, exclusivamente um resultado do ponto de vista absurdamente tacanho dos programas de ensino oficiais. Esta ignorância é o resultado de uma lei, a lei da inércia, que, aliás, a maioria dos compêndios de História oficialmente adotados costumam lembrar. Os homens têm um grande apego à tradição. Quando enchem a cabeça com determinadas ideias, só dificilmente conseguem livrar-se do seu império. A inércia mental das pessoas cultas e dos historiadores é o principal entrave ao progresso das ciências históricas.
A burguesia não possui, nem podia possuir, uma História verdadeiramente científica. A ciência histórica demonstra que o regime atual e a existência da burguesia como classe dominante são necessariamente transitórios. A burguesia não pode aceitar esta verdade. Quer eternizar-se no poder e, por isso, só aceita as doutrinas que afirmam ser eterno o seu domínio.
A História universal burguesa, destinada a sustentar as ideias que mais convêm à classe dominante, deturpa os fatos e não os interpreta de maneira cientifica. A História da burguesia, não é, pois, e nem poderia ser, uma ciência positiva, porque foge aos fatos e evita as conclusões pelos mesmos impostas.
Foi Carlos Marx quem deu à História bases tão positivas : como as das ciências naturais, da física ou da química, por exemplo.
Antes dele, explicava-se o movimento histórico da sociedade, ou pelas imposições da “natureza humana”, ou pela influencia de qualquer entidade abstrata: a “Ideia absoluta”, o “Pensamento”, a “Razão", como o faziam os filósofos idealistas antecessores e contemporâneos de Marx.
Os socialistas franceses do seculo XVIII, ao condenar as instituições da época, não encontraram melhor argumento que a “natureza humana”. Afirmavam, então, que tais ou quais instituições deviam ser abolidas porque "eram contrárias à natureza dos homens”, ou porque “se opunham à índole da Humanidade”. Esta “natureza” e esta "índole” eram entidades misteriosas. Os utopistas como Fourrier, Owen e até Saint-Simon, não sabiam explicar porque esta “natureza” e esta “índole” variavam, através dos tempos. Por outro lado, os representantes da ideologia oficial da época dos utopistas também invocavam a “natureza” humana para combater os partidários do comunismo. Diziam, frequentemente, coisas desta natureza:
“A implantação do comunismo é impossível, porque o comunismo é contrário à natureza humana... A índole dos homens o repele”.
Se compararmos as polêmicas sociais dessa época com as que se travam nos dias presentes, vamos encontrar esta mesma argumentação na boca dos mais eminentes vultos da ciência burguesa. Nos discursos, nos jornais, nos livros consagrados ao combate anticomunista da burguesia, encontraremos afirmações deste teor:
“No nosso país, o comunismo não pode ser implantado porque é um regime avesso à natureza humana” ou então: “O comunismo opõe-se à índole de nosso povo”.
É verdade que ainda hoje muitos adversários do comunismo não se servem da "natureza humana” como argumento, porque preferem condená-lo em nome de Deus. Mas, já no tempo de Fourrier, Owen e Saint-Simon, considerava-se de nenhum valor a argumentação dos que invocavam a vontade divina como causa favorável ou oposta à marcha da História e às transformações sociais. Os que adotavam esse ponto de vista já eram, no seculo XIX, considerados atrasados, ignorantes ou caducos. Por isso, ninguém mais se dava ao trabalho de discutir com eles.
Os grandes filósofos idealistas da Alemanha (Schelling, Hegel) compreendem perfeitamente a insuficiência do ponto de vista da natureza humana. Hegel, na Filosofia da História, ridiculariza os utopistas franceses que procuram encontrar uma “legislação perfeita”, ou seja, a “melhor de todas as legislações possíveis”, tomando como ponto de partida, para as suas “pesquisas sociológicas”, essa entidade abstrata: a “natureza humana”. O idealismo filosófico alemão já considera a História como um processo submetido a leis. Por isso, procura a causa da evolução histórica fora da “natureza dos homens”. Dá, assim, um passo no caminho da verdade.
Mas os filósofos idealistas, para combater uma abstração, criaram uma abstração semelhante. Para eles, a causa da evolução histórica, já não era mais a natureza humana, mas a “Ideia Absoluta” ou o “Espírito do Mundo”.
“E, como a sua ideia absoluta não era mais que uma abstração da “nossa maneira de pensar” — diz Plekhanov — eles se encontravam, nas especulações filosóficas em terreno histórico, com a velha amiga dos filósofos materialistas, a senhora d. Natureza Humana, apenas vestida com trajes adequados ao convívio respeitável e austero dos pensadores alemães. Expulsando a “natureza humana” pela porta, ela entrava pela janela!” (Plekhanov — Anarquismo e Socialismo, pg. 46 da edição portuguesa, Rio de Janeiro, 1934).
E o problema continuava insolúvel.
Onde está então essa força oculta que determina o movimento histórico da Humanidade?
Foi Marx quem livrou a ciência social desse impasse.
A concepção materialista da História, de Marx, ou, mais exatamente, a extensão do materialismo ao domínio dos fenômenos sociais, elimina os dois principais defeitos das teorias históricas anteriores. Em primeiro lugar, estas não consideravam, na maioria dos casos, senão os moveis ideológicos da atividade histórica dos homens, sem lhes procurar a origem, em determinar as leis objetivas que presidem à evolução do grau de desenvolvimento da produção material. Em segundo lugar, essas teorias esqueciam-se precisamente da ação das massas da população. O materialismo histórico, pela primeira vez, torna possível o estudo rigorosamente científico das condições sociais da vida das massas e das transformações históricas dessas mesmas condições.
O materialismo histórico não é mais que a aplicação geral dos métodos científicos ao estudo dos fenômenos históricos.
Marx dá uma definição completa das proposições fundamentais da aplicação do materialismo ao estudo da sociedade humana e da História, no Prefácio de seu livro Contribuição à Crítica da Economia Política:
"No curso da produção social dos meios de existência, os homens contraem entre si relações determinadas, necessárias, independentes da própria vontade, relações de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças materiais de produção. O conjunto das relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, base verdadeira sobre a qual se edifica a superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de pensamento social. O modo de produção da vida material determina, em geral, o desenvolvimento da vida social, política e intelectual. Não é, pois, a maneira de pensar dos homens que lhes determina o modo de viver. É, pelo contrario, a maneira de viver que determina a maneira de pensar.
“Em certo grau de desenvolvimento, as forças materiais de produção da sociedade entram em conflito com as relações de produção existentes, ou, para falar em linguagem jurídica — com as relações de propriedade, no seio das quais essas forças produtivas se haviam até então desenvolvido. Essas relações, que são necessárias ao desenvolvimento das forças produtivas, transformam-se em obstáculos a estas forças. Inicia-se então um período de revolução social.
“A modificação da base econômica determina, mais ou menos lenta ou mais ou menos rapidamente, a ruína de toda a formidável superestrutura.
“Quando se estudam estas revoluções, é necessário distinguir sempre a revolução material que se verifica nas condições econômicas da produção, — que devem ser observadas com exatidão por meio das ciências naturais — das formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, numa palavra, das formas ideológicas que o conflito toma na consciência dos homens e no domínio em que eles lutam. Do mesmo modo que não se pode julgar um individuo pelo juízo que faz de si mesmo, também não se pode julgar uma época de revolução pela sua consciência. Pelo contrário: esta consciência deve ser explicada pelas contradições da vida material, pelo conflito entre as forças produtivas da sociedade e as relações de produção que ainda existem.
“De maneira geral, pode dizer-se que as formas de produção da Asia, da Antiguidade, do feudalismo e da burguesia moderna, constituem etapas progressivas da formação econômica da sociedade.
“As relações burguesas de produção representam a última forma contraditória do processo social da produção!"
Esta concepção inteiramente materialista da História é um dos maiores descobrimentos do seculo XIX.
A “sociologia” e a historiografia pré-marxistas acumularam, na melhor das hipóteses, materiais, fatos em bruto, colhidos ao acaso. Quando muito, chegaram a representar certos aspectos do processo histórico.
Marx abriu o caminho para um estudo completo e profundo do processo da gênese, do desenvolvimento e do declínio dos agrupamentos sociais e econômicos, considerando as tendências contraditórias no seu conjunto, estabelecendo-lhes as relações com as condições de existência e de produção das diferentes classes da sociedade, eliminando o subjetivismo e o arbitrário na escolha ou na interpretação das ideias “dirigentes” de uma dada época, revelando a origem de todas as ideias e de todas as tendências sem exceção de nenhuma, encontrando essa origem no grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais. Os homens fazem a sua própria História. Mas, que lhes determina a ação, ou, mais exatamente, a ação das grandes massas humanas? Qual a causa desses conflitos de ideias e de aspirações opostas? Quais os fatores objetivos da produção da vida material, base de toda a atividade histórica dos homens? Que lei rege o desenvolvimento dessas condições?
Marx estudou com atenção todos esses problemas, e mostrou o caminho que permite estudar cientificamente a História considerando-a como um só processo em desenvolvimento, sujeita a leis bem precisas em sua prodigiosa variedade de aspectos, em todas as suas contradições.
Que na sociedade inteira as aspirações de uns se opõem às de outros; que a vida social sempre esteve e ainda está cheia de contradições; que a História nos mostrou lutas entre povos e sociedades, assim como no seio de povos e sociedades, ao lado da sucessão constante de períodos de paz e de guerras, de revoluções e de reações, de crises e de progresso rápido ou decadência, todo o mundo o sabe.
Marx deu-nos o fio orientador que permite descobrir, nesse labirinto e nesse caos aparente, a ação de determinadas leis: a teoria da luta de classes. Só estudando o conjunto das aspirações dos membros de uma sociedade é possível chegar a definir cientificamente a resultante dessas aspirações, uma vez que as aspirações contraditórias têm por causas as diferenças de situação e de condição das classes que constituem a sociedade.
"A História de toda a sociedade até os nossos dias — escreveu Marx no Manifesto Comunista de 1848 (com exceção da História da comunidade primitiva, acrescentou Engels mais tarde) — não é senão a História das lutas de classes.
“Homem livre e escravo, patrício e plebeu, senhor feudal e servo, numa palavra, opressores e oprimidos, em oposição constante, viveram sempre em guerra ininterrupta, aberta ou dissimulada, guerra que acabava sempre, ora pela transformação revolucionária da sociedade inteira, ora pela destruição das duas classes em luta...
“A sociedade burguesa moderna, edificada sobre as ruínas da sociedade feudal, não aboliu os antagonismos de classe. Não fez mais que substituir por classes novas as antigas, criando novas condições de opressão e novas formas de luta.
“Entretanto, o que caracteriza a nossa época, a época da burguesia, e a diferencia de todas as outras, é o fato de haver simplificado os antagonismos de classe. A sociedade se divide, cada vez mais nitidamente, em duas grandes classes diretamente inimigas: a burguesia e o proletariado”.
Depois da grande Revolução Francesa, a História da Europa mostrou, em muitos países, com particular clareza, que a luta de classes era o motor dos acontecimentos. Da Restauração em diante começam a surgir em França alguns historiadores (Thierry, Guizot, Mignet, Thiers), que, tirando dos acontecimentos deduções gerais, são obrigados a reconhecer que a luta de classes é a chave de toda a História da França
E a época moderna, caracterizada pela vitoria completa da burguesia, com instituições representativas, sufrágio universal, imprensa quotidiana penetrando as massas, associações operarias e patronais poderosas e cada vez mais vastas, etc., mostrou com maior evidencia ainda (embora sob novas formas, às vezes pacíficas e constitucionais), que a luta de classes era realmente o motor dos acontecimentos. Marx deu, em vários trabalhos históricos, brilhantes e profundos modelos de historiografia materialista, de análise da situação de cada classe considerada em si mesma e das diversas camadas sociais, ou de diferentes grupos no seio de cada classe, salientando, assim, com poderosa evidencia, como e porque “toda luta de classe é uma luta política”. A passagem que citamos mostra a trama de relações complicadas e as gradações que há entre as classes e entre o passado e o futuro.
A teoria de Marx foi brilhantemente confirmada na Revolução proletária de Outubro de 1917. O proletário russo, guiado pelo maior gênio político de todos os tempos, utilizando-se do marxismo, na época do imperialismo, derrubou uma fortaleza do capitalismo e implantou a ditadura, iniciando a edificação do socialismo num sexto da superfície da Terra.
O materialismo histórico, assim que surgiu, teve de sustentar uma tremenda luta para impor-se. Hoje, já conquistou fortíssimas posições. Os adversários, quando honestos, já o reconhecem.
"O número dos que, praticamente, aceitam o materialismo econômico é muito maior do que os dos adeptos declarados e conscientes...” — diz S. Bulgakov no livro Filosofia da Economia.
Esta verdade torna-se patente quando se deita um olhar à literatura contemporânea. Senão vejamos. Leiamos, por exemplo, o livro do erudito linguista Hirt sobre os indo-germanos. Os filólogos, em geral, estão bem distanciados da interpretação econômica da História. Mas, no livro de Hirt, encontramos este trecho:
“O desenvolvimento da sociedade humana depende, preliminarmente, da forma econômica. As investigações destes últimos anos provaram que a sua influencia se manifesta não só na densidade da população de um país, como em coisas aparentemente muito distantes dela, como a arte, a religião, a organização da família, etc.”
No trabalho do sábio francês Dechelette, autor do melhor compêndio de arqueologia pré-histórica publicado na Europa, iremos encontrar uma explicação puramente materialista da origem do culto entre os primitivos habitantes da Europa. Na opinião de Dechelette, o culto do sol surgiu simultaneamente com a agricultura. As modificações na consciência religiosa correspondiam exatamente às que se processavam na economia.
Entretanto, se disséssemos a Hirt ou a Dechelette que as suas conclusões são argumentos em favor do materialismo histórico, eles, por certo, ficariam admirados.
A maioria do materialistas históricos “inconscientes” adotam um ponto de vista materialista de maneira, por assim dizer, espontânea. Foram levados a conclusões materialistas, não em virtude de um estudo teórico ou de um conhecimento prévio do materialismo histórico, mas simplesmente através do conhecimento cientifico dos fatos e do raciocínio cientifico.
Hoje, quer queiram quer não, a maior parte dos cientistas são obrigados a reconhecer que só pode haver uma única interpretação científica da História, e esta é a interpretação materialista.
Nos países onde o pensamento filosófico está altamente desenvolvido, a maior parte dos cientistas honestos do próprio campo da burguesia já reconhecem, há muito tempo, que, admitir a interpretação materialista da História, nos dias que correm, significa banir a História do domínio das especulações abstratas sem nenhuma base científica.
Inclusão | 14/04/2015 |