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A História é, geralmente, dividida de maneira simplesmente cronológica. Quase todos consideram, na História, quatro partes, perfeitamente distintas:
Examinada com mais cuidado esta divisão mostra-se absolutamente precária.
Os Impérios da Mesopotâmia, o Egito, os antigos hebreus, os gregos e os romanos, constituem aquilo que geralmente se denomina a Antiguidade. Mas os celtas, os germanos e os eslavos não possuem também a sua própria Antiguidade?
A História não estuda uma Humanidade única, que vive na Antiguidade até a época das imigrações, e que depois passa sucessivamente pela Idade Média, os Tempos Modernos e a Época Contemporânea. Estuda apenas os Estados, Impérios, raças e povos diferentes, que atravessaram, em épocas diversas, certas fases de desenvolvimento, sem atingir, portanto, os demais. Não explica, por exemplo, por que motivo as ideias modernas já existem na Antiguidade ou por que
razão, na Europa, no começo dos Tempos Modernos, — no Renascimento — ressurgem as velhas tradições da “Antiguidade” grega. Não explica, também, porque nós, modernos, frequentemente, retomamos ideias e concepções elaboradas pelos antigos, há dois mil anos atrás. A que se devem atribuir esses fatos? Será que os “antigos” estavam situados fora do tempo e do espaço? Ou a sua sabedoria era o resultado de uma inspiração sobrenatural?
Teremos mais probabilidades de acertar, se admitirmos que a Antiguidade não é nenhuma unidade intelectual ou histórica. Os antigos hebreus, os helenos e os romanos tiveram igualmente a sua Antiguidade, a sua Idade-Média e os seus Tempos Modernos. Apenas, surgiram mais cedo na cena histórica do que os germanos e os eslavos, por exemplo. Mas também atravessaram esses períodos, criando determinadas instituições e ideias, que sempre correspondem, aproximadamente, a tais períodos.
Os diferentes povos sucedem-se cronologicamente, mas possuem um desenvolvimento social e intelectual paralelo. Verifica-se, por exemplo, que a vida intelectual dos romanos e dos germanos, no século XV e XVI, tem muitos pontos de contacto com a vida intelectual dos gregos, no século VI antes de Jesus Cristo. Este fenômeno, porém, explica-se: nessa época, os gregos já haviam deixado para trás a sua Antiguidade e a sua Idade Média, já viviam nos seus Tempos Modernos. Criavam, portanto, produtos intelectuais correspondentes a essa época da sua História.
Cada época histórica tem suas características sociais próprias, já no domínio econômico, já na esfera intelectual. Na Antiguidade, ou, melhor dito, na infância dos povos, os homens vivem sempre em clãs ou em tribos, comunidades baseadas na igualdade. Não conhecem nem a propriedade privada, nem o casamento monógamo, nem cidades. A vida intelectual encontra-se no estado mais primitivo. A vida simples dos homens é apenas governada, na maioria das vezes, pela tradição e o hábito. São nômades e não se fixam ainda em territórios determinados. O povo, nesse período, está sob a direção dos chefes militares ou “reis”.
A escrita ainda não existe. As tribos em apreço não descrevem por si mesmas as instituições sociais.
Tudo o que sabemos desse período da História, foi nos transmitido por viajantes que, vindos de um país de civilização superior, visitam os territórios habitados pelas tribos primitivas e, observando o contraste existente entre as instituições desses povos e as suas próprias, deixam-nos documentos narrando o que viram. Também é possível fazer uma ideia aproximada dessa parte da História, através das velhas lendas e tradições, das supervivências das velhas instituições que se conservaram até a época da História escrita. Como nós verificamos um curso regular na evolução dos povos, fomos obrigados a generalizar — criando uma teoria. Concluídos então que todos os povos, nos tempos primitivos, viviam na base da igualdade, organizados em tribos, sem conhecer nenhuma forma de propriedade privada.
A época primitiva termina no momento em que as tribos se tornam sedentárias e começam a organizar-se em comunidades localizadas em determinados territórios, ou em cidades, distritos e Estados, dedicando-se ao mesmo tempo à agricultura. Os colonos tentam conservar a antiga forma social — a única que conhecem. Mas as novas condições econômicas criam a necessidade de uma ordem social nova, porque, ate então unida, a antiga sociedade começa a decompor-se e a dividir- se em classes. Aparecem as cidades. O comércio desenvolve-se. A propriedade privada elimina pouco a pouco a propriedade coletiva. Mas não é facilmente que os homens se adaptam à nova situação. As camadas pobres da população agarram-se à antiga igualdade, em vias de desaparecimento, que idealizam, representando-a, seja como o Paraíso Perdido, seja como a Idade do Ouro dos primeiros tempos da Humanidade. A descrição bíblica do Jardim do Éden e a expulsão do homem do Paraíso Terrestre, assim como os versos do poeta grego Hesíodo sobre a Idade de Ouro e o seu desaparecimento, são as mais antigas manifestações escritas deste estado de espírito que invade toda a Antiguidade. Logo surgem os conflitos interiores: os antigos chefes de tribos — “reis” ou “juízes” — desaparecem e, em seu lugar, instala-se a nobreza. Começam a dominar os senhores, grandes proprietários de terras. Já estamos aqui, em plena Idade Média. Só nesta etapa do desenvolvimento é que começam a aparecer a escrita o os dogmas religiosos. Assiste-se então à formarão de uma mitologia ou de uma teologia, à elaboração de leis: os Dez Mandamentos dos Israelitas, o Código de Dracon entre os gregos e a Lei das Doze Taboas em Roma. Entre os israelitas, a Idade Média começa no século X antes de Cristo. Surgem os primeiros reis de Israel. Mas o verdadeiro poder fica nas mãos da classe possuidora, salvo talvez, no tempo de David e Salomão. Entre os gregos, a Idade Média começa aproximadamente no ano 1000 e, entre os romanos, no século VIII, A. C.
Durante a Idade Média desenvolve-se o comércio e a indústria, representados pela burguesia das cidades. A Idade Média está prestes a terminar, quando esta classe atinge um grau suficiente de desenvolvimento. A nobreza, ou se aburguesa, ou desaparece. Novas concepções religiosas ou filosóficas começam a substituir o antigo sistema de dogmas mitológicos ou teológicos, já arruinado. As ciências naturais progridem. A arte torna-se mais livre e mais variada Os agrupamentos medievais dissociam-se nos seus diferentes elementos. Surgem, assim, os Tempos Modernos.
Na Grécia, começam no século VI, em Roma, no século II. Entre os israelitas, este desenvolvimento econômico-social foi interrompido por catástrofes nacionais. Em 722, o reino de Israel (o reino do norte, que tinha por capital Samaria), foi vencido e destruído pelos assírios. Em 586, o reino de Judá, (reino hebreu do sul, cuja capital era Jerusalém) teve a mesma sorte: foi destruído pelos babilônios. Mas o processo de desenvolvimento religioso, em vez de deter se, reforçou-se. Em conformidade com o espírito dos Tempos Modernos, os judeus chegaram ao monoteísmo ético, os gregos à filosofia moral, e, entre as camadas dirigentes, ao monoteísmo e à ética social (platonismo e escola estoica). As lutas sociais, que se iniciam no decorrer da Idade Média, tornam-se cada vez mais violentas. Entre os israelitas, entre os gregos, foram as massas populares que lutaram contra os usurários e os espoliadores. Em Roma, foram os plebeus contra os patrícios, os pobres contra os ricos, os escravos contra os senhores. As principais reivindicações são: cancelamento das dividas e divisão das terras. Iniciam-se grandes reformas sociais: provavelmente no começo do século VII, em Esparta; em 621, na Judeia; em 594 (Solon), em Atenas; e, em 367 e 133 em Roma. Em Esparta, a luta de classes desaparece por vários séculos. Em Atenas, pelo contrário, atinge incrível violência e agrava-se incessantemente. É a quem se deve o maior filósofo da antiguidade: Platão (427-347). É também em Atenas que são elaboradas, pela primeira vez, uma teoria do comunismo e uma teoria do direito natural. Em Roma, as lutas sociais não exercem influência revolucionária profunda na vida intelectual. Os romanos, aliás, não foram um povo intelectual. Nada fizeram para desenvolver a religião, a filosofia e as ideais sociais. A vida intelectual de Roma não é, na realidade, senão um pálido reflexo da dos gregos. Os romanos parecem ter dedicado todas as suas capacidades intelectuais à guerra e à submissão dos povos estrangeiros, assim como à elaboração do direito privado. Na História do desenvolvimento intelectual da Humanidade, os romanos ocupam (exceto no domínio da História do direito) um lugar muito pequeno.
Um olhar rápido à economia e à política da Antiguidade é o suficiente para mostrar a diferença considerável que existe entre essa época e a nossa. Logo de início, quando se estuda a Antiguidade, nota-se a inexistência completa de máquinas e de instrumentos de trabalho aperfeiçoados. Há, ao invés, massas formidáveis de escravos. Inicialmente, essas massas foram compostas de cidadãos reduzidos à condição de escravos em virtude de dívidas. Mais tarde, os escravos eram exclusivamente prisioneiros de guerra, indígenas dominados ou roubados pelos mercadores de escravos, sujeitos à mais desumana e cruel exploração. Entre os judeus, há poucos escravos, mesmo porque a vida política dos judeus é bastante diversa da dos gregos e romanos. Durante muitos séculos, o Estado não ia além dos limites de uma cidade e das suas circunvizinhas. Os mais célebres foram os Estados de Atenas, Esparta e Roma. Eram pequenos territórios habitados por uma população pouco numerosa, que raramente ultrapassava trinta ou quarenta mil cidadãos livres, aproximadamente. A Grécia e a Itália continham vários deles. Mas, ou devido ás guerras, ou em consequência de tratados de aliança, estes pequenos Estados foram-se reunindo até constituírem (um único Estado de grandes proporções. Cada cidadão livre era, ao mesmo tempo, um soldado. Todos os trabalhos materiais estavam entregues a escravos. Os romanos, pela primeira vez, criaram, pouco a pouco, um Império, que abrangia ao mesmo tempo as classes dominantes e os povos oprimidos Os romanos também desenvolveram mais tarde o feudalismo e a servidão, quando o trabalho dos escravos se foi tornando pouco rendoso ou impolítico.
Nós já vimos, acima, que as camadas populares deserdadas, no começo da Idade Média, apegaram-se às sobrevivências da antiga igualdade e idealizaram o passado, em vias de desaparecimento. O estado natural ou a sociedade primitiva era o ideal que alimentavam, a situação a que desejavam retornar. Em As Leis, Platão escreve o seguinte sobre os homens e a sociedade primitiva:
“Nestas condições, eles não eram extremamente pobres nem se viam obrigados, pela miséria, a trabalhar em operações comerciais. Mas também não era possível enriquecer, porque nessa época não se possuía ouro nem prata.
“Quando, numa sociedade, não existem pobreza nem riqueza, é natural que nela reinem os mais nobres costumes. Porque não podem existir nem arrogância, nem injustiça, nem inveja, nem rivalidades. Os homens têm a de ser necessariamente bons — gracas à simplicidade de suas condições de vida... É verdade que as gerações que vivem em tais condições... tornam-se menos experimentadas e menos aptas para as artes e indústrias que as gerações atuais.
“Entretanto, nesses tempos passados, os homens eram melhores e mais corajosos, mais bondosos e mais justos, sob todos os aspectos. A escrita não existia ainda nessa época. Os homens organizavam a sua vida unicamente segundo os hábitos e os costumes tradicionais”.
Esta doutrina do estado de natureza baseado na igualdade foi aperfeiçoada, em seguida. Na época de Aristóteles (que foi discípulo de Platão e mestre de Alexandre o Grande de 340 a 325 A. C.), pensava-se, em geral, que
“o direito atribuído ao senhor de dispor livremente do escravo é contrário à natureza” e que “a diferença entre homens livres e escravos foi criada apenas pelas leis humanas e não pela natureza; e isto é uma injustiça, porque significa uma modificação na ordem natural das coisas”. (Aristóteles, Política).
Estas duas citações de Platão e de Aristóteles já contêm uma boa parte da História do direito natural. Os estoicos (século III A. C.) desenvolveram esta doutrina, ampliando-a. O fundador da escola estoica foi Zenon que ensinou aproximadamente no ano 300. As doutrinas desta escola exerceram, a partir do século II A. C., uma influência considerável nos meios cultos da Grécia, nos pensadores do Império romano, assim como em toda a Europa cristã e moderna, até a Época Contemporânea. As concepções social-utópicas e anarco-comunistas modernas muito devem a essa escola.
A teoria do direito natural é um protesto contra as instituições cívicas e jurídicas edificadas na base da propriedade privada. É uma idealização das condições de igualdade democrática da época do comunismo primitivo. Chamando os homens para a vida natural, gritando: “Voltemos à natureza”, a teoria do direito natural condenava a civilização. Mas, simultaneamente, é também a expressão de uma aspiração que poderia tanto ser o desejo de volver ao antigo estado de coisas, como um ideal para a transformação jurídica e social da ordem vigente. As condições de vida da época moderna, engendradas pelo desenvolvimento das cidades, do comércio e da indústria e pela destruição de todos os remanescentes da propriedade coletiva do solo, são julgadas condições de vida antinaturais, porque se afastam da simplicidade primitiva, criando um tipo de vida artificial, o luxo, as ocupações múltiplas e variadas, num labirinto de leis e de regulamentações exteriores de toda a sorte. No estado de natureza, não havia nem leis, nem órgãos de compressão exteriores. A natureza, impregnada do espírito divino, marchava de acordo com a lei divina, sem princípio nem fim, que só estabelece o que é bom e o que é justo. A lei natural é boa porque é uma lei da Razão. Está acima de todas as leis humanas, acima daquilo que foi chamado o direito positivo. É válida para todos os homens, sem exceção. Todos são livres e iguais. Na Idade de Ouro, no estado de natureza, no período anterior ao pecado original, o mundo era regido pela lei natural divina, isto é, pelo direito da Razão. Os homens viviam sem Estado, sem nenhuma especie de opressão, sem que os seus atos estivessem sujeitos a regras de qualquer espécie. Obedeciam aos mandamentos naturais do bem e da justiça. Mas as gerações seguintes corromperam-se. Surgiu a cobiça, o descontentamento, as lutas interiores. Os homens então criaram um Estado, a propriedade privada e as diferentes leis, sem, com isso, conseguirem a felicidade que desfrutavam anteriormente. A sociedade humana adoeceu. Só um remédio pode curá-la: a renuncia a todas as instituições artificiais, a volta às instituições naturais, o retorno à vida em harmonia com a natureza.
Os estoicos eram comunistas, anarquistas e internacionalistas. Neste ponto, parecem-se com os profetas judeus, dos quais se diferenciam apenas porque estes concentravam as esperanças em Jahvé, ao passo que os estoicos viam a salvação na natureza, completamente impregnada do espírito divino.
Estas duas correntes estão reunidas, fundidas numa só doutrina: o Cristianismo.
Inclusão | 14/04/2015 |