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A civilização fez do camponês um burro que carrega a albarda. A burguesia, no fim de contas, somente modificou a forma da albarda. Apenas suportada no limiar da vida nacional, o campesinato ficou em suma parado diante do limiar da ciência. O historiador interessa-se habitualmente a ele tão pouco que um crítico de teatro pode interessar-se aos obscuros personagens que varrem o soalho, carregam às costas o céu e a terra e limpam o vestuário dos artistas. A participação dos camponeses nas revoluções do passado fica até ao presente apenas elucidada.
«A burguesia francesa começou a emancipar os camponeses - escreve Marx em 1848. Com a ajuda dos camponeses, ela conquistou a Europa. A burguesia prussiana estava limitada aos seus interesses estreitos, imediatos, que ela perdeu mesmo esse aliado e de facto um instrumento nas mãos da contra-revolução feudal.»
Nessa contradição, é verdade o que se relaciona à burguesia alemã; mas afirmar que a «burguesia francesa teria começado por emancipar os camponeses», é dar eco à legenda oficial francesa, que exerceu no seu tempo uma influência, mesmo sobre Marx. Na realidade, a burguesia, no sentido próprio da palavra, opunha-se à revolução camponesa com todas as sua forças. Já, nos cadernos de queixas de 1789, os líderes provinciais do Terceiro estado rejeitavam, sob a aparência de uma melhor redacção, as reivindicações mais violentas e as mais audaciosas. As famosas decisões da noite do 4 de Agosto, adoptadas pela Assembleia nacional sob o céu vermelho das aldeias que queimavam, ficaram durante muito tempo uma formula patética sem conteúdo. Os camponeses que não queriam resignarem-se a serem enganados, a Assembleia constituinte chamava-os a «voltar a realizar os seus deveres e a considera a propriedade (feudal!) com o conveniente respeito. A guarda nacional marchou mais de uma vez para reprimir os movimentos nos campos. Os operários das cidades tomando o partido dos camponeses insurrectos, acolhiam a repressão burguesa à pedrada e cacos de telhas.
Durante cinco anos, os camponeses franceses revoltavam-se a todos os momentos críticos da revolução, opondo-se aos acordos entre os proprietários feudais e os proprietários burgueses. Os sem-calções de Paris, vertendo os seu sangue pela República, libertaram os camponeses do feudalismo. A República francesa de 1792 marcava um novo regime social, diferente daquele da República alemã de 1918 ou da República espanhola de 1931 que representam o velho regime com a dinastia a menos. A base desta distinção, não é difícil reconhecer a questão agrária.
O camponês francês não pensava de um modo directo na república: ele queria meter para fora o fidalgo. Os republicanos de Paris esqueceram como habitualmente a aldeia. Mas foi somente o empurrão dos camponeses contra os proprietários que garantira a criação da república, limpando para ela o terreno da tralha feudal. Uma república com uma nobreza não é uma república. Isso tinha sido perfeitamente compreendido pelo velho Maquiavel que, quatrocentos anos antes da presidência de Ebert, estando exilado em Florença, entre a caça aos merlos e o jogo do das cartas com um carniceiro, generalizava a experiência das revoluções democráticas:
«Alguém que queira fundar uma república num país onde há muitos nobres não poderá fazê-lo senão depois de os ter exterminados todos.»
Os mujiques russos tinham em suma a mesma opinião, e eles mostram-no bem abertamente sem qualquer «maquiavelismo».
Se Petrogrado e Moscovo desempenhavam o papel dirigente no movimento dos operários e dos soldados, o primeiro lugar no movimento camponês deve ser atribuído ao centro agrícola atrasado da Grande Rússia e à região central do Volga. Aí, as sobrevivências do regime de servidão mantinham as raízes particularmente profundas, a propriedade agrária dos nobres tinha o seu carácter mais parasitário, a diferenciação da classe camponesa estava atrasada, mostrando ainda mais a miséria da aldeia. Tendo rebentado nesta região desde de Março, o movimento transforma-se logo em terror. Pelos esforços dos partidos dirigentes, logo se canaliza no leito da política conciliadora.
Na Ucrânia industrialmente atrasada, a agricultura que trabalhava para a exportação tomou um carácter muito mais progressista, por consequência mais capitalista. A segregação no campesinato foi aqui levado mais longe que na Grande Rússia. A luta pela emancipação nacional fazia desaparecer, pelo menos por um certo tempo, as outras formas de luta social. Mas as diferenças de condições regionais e mesmo nacionais traduziam-se, no fim de contas, somente pela diversidade dos prazos. Lá pelo outono, o território do levantamento dos rurais estende-se quase por todo o país. Sobre 624 distritos compondo a antiga Rússia, o movimento ganhou 482, seja 77%; e, excepção feita dos regimes limítrofes que se distinguem pelas condições especiais: a região do Norte, a Transcaucásia, a região das estepes e a Sibéria, sobre 481 distritos a insurreição camponesa engloba 439 distritos, seja 91%.
As modalidades da luta são diversas, seguindo se se trata de lavoura, de florestas, pastagens, de quintas ou de trabalho salariado. A luta muda de forma e de métodos nas diversas etapas da revolução. Mas, no o movimento nos campos desenrola-se, com um atraso inevitável, passando mesmo por duas grandes fases que tinham sido as do movimento das cidades. Na primeira etapa, o campesinato adapta-se ainda ao novo regime e esforça-se em resolver os seus problemas por meio das novas instituições. Todavia, ainda aqui, trata-se mais da forma que do conteúdo. Um jornal liberal de Moscovo que, até à revolução exprimia com uma louvável espontaneidade o sentimento íntimo dos círculos de proprietários durante o verão de 1917:
«O mujique olha à volta dele, por agora ele não empreende nada, mas vejam bem nos seus olhos, e os seus olhos dizem que toda a terra que se estende à volta dele lhe pertence.»
Têm-se a chave insubstituível da política «pacífica» do campesinato num telegrama enviado em Abril por um dos burgos da província de Tambov ao governo provisório:
«Nós desejamos manter a calma no interesse das liberdades conquistadas, e é por isso proibimos de alugar as terras até à Assembleia constituinte, doutro modo nós verteremos sangue e não permitimos a ninguém de a trabalhar.»
Era tanto mais cómodo ao mujique de manter o tom de ameaça respeitosa do que a pressão dos direitos adquiridos, ele quase que não teve ocasião de afrontar directamente o Estado. Nas localidades, não existia órgãos do poder governamental. As juntas de freguesia dispunham da milícia. Os tribunais estavam perturbados. Os comissários locais eram impotentes. «Fomos nós que te elegemos - gritavam os camponeses - seremos nós que te expulsaremos.»
Desenvolvendo a luta nos meses precedentes, o campesinato durante o verão aproxima-se cada vez mais da guerra civil e a sua ala esquerda passa o limiar disso. Após uma comunicação dos proprietário de terras do distrito de Taganrong, os camponeses apoderam-se arbitrariamente dos fenos, da terras, opõem-se ao amanho das terras, fixam à sua vontade os preços da renda, expulsam os proprietários e os gerentes. Segundo o relatório do comissário de Nijni-Novgorod, as violências e as confiscações de terras e madeiras na província tornaram-se mais frequentes. Os comissários de distritos têm medo de se mostrar aos olhos dos camponeses como os protectores dos grandes proprietários. A milícia rural é pouco segura: «Houve casos onde os membros da milícia participaram com a multidão às violências.» No distrito de Schlusselborg, o comité de canton proibiu aos proprietários de cortar madeira nos seus próprios domínios. A ideia dos camponeses era simples: nenhuma Assembleia constituinte não poderá reconstituir com os tocos as árvores abatidas. O comissário do ministério da Corte queixava-se da confiscação das pastagens: eram obrigados a comprar feno para os cavalos do palácio! Na província de Kursk, os camponeses partilharam entre eles os baldios multado de Terechtchenko: o proprietário é ministro dos Assuntos estrangeiros. A Schneider, proprietário das coudelarias na província de Orel, os camponeses declararam que não somente eles iriam ceifar no seu domínio o trifoliado, mas que le próprio seria enviado para o quartel, como soldado. O regente do domínio de Rodzianko recebeu do comité do cantão a ordem de ceder as pastagens aos camponeses: «Se vocês não obedecem ao comité agrário, fazer-se-à com vocês de outra forma, serão presos.» Assinatura e carimbo.
De todos os cantos do país afluíam queixas e lamentações: dos proprietários vítimas, das autoridades locais, de honrosos testemunhos. Os telegramas dos proprietários de terras constituem a mais clara refutação das grosseiras teorias da luta de classes. Personagens com títulos e mestres de latifúndios, esclavagistas, clérigos e laicos, preocupam-se exclusivamente do bem comum. O inimigo, não é o camponês, são os bolcheviques, às vezes os anarquistas. Os seus próprios domínios interessam os senhores da terra exclusivamente do ponto de vista da prosperidade da pátria.
Trezentos membros do partido cadete da província de Tchernigov, declararam que os camponeses, excitados pelos bolcheviques, desencaminham os prisioneiros de guerra e procedem arbitrariamente à colheita do trigo: resultado, esta ameaça: «a impossibilidade de pagar os impostos». Os proprietários liberais viam o sentido da existência no apoio ao Tesouro! A sucursal do Banco de Estado de Podolsk queixa-se do comportamento arbitrário dos comités de cantão, «cujos presidentes são muitas vezes prisioneiros austríacos». Aqui fala o patriotismo ofendido. Na província de Vladimir, no domínio do notário Odintsov, retiraram os materiais de construção «preparados para as obras de caridade». Os notários só vivem para as obras humanitárias! O bispo de Podolski deu a saber que se apoderaram arbitrariamente de uma floresta pertencendo ao bispo. O Alto procurador do Sínodo queixa-se que se tenham apoderado das pastagens de Laura Alexandra-Nevsky. A abadia do mosteiro de Kizliar atraiu a ira sobre os membros do soviete local: eles intrometem-se dos assuntos do mosteiro, confiscam para si as rendas, «excitam as religiosas contra as autoridades».
Em tais casos eram atingidos directamente os dirigentes da Igreja. O conte Tolstoi, um dos filhos de Leão Tolstoi, comunica em nome da União dos proprietários rurais da província de Oufim que a transmissão da terra aos distritos locais, «sem esperar a decisão da Assembleia constituinte... provocará uma explosão de descontentamento... entre os camponeses proprietários que são, na província, cerca de duzentos mil». Esse proprietário de grande descendência preocupa-se exclusivamente de seu irmão mais fraco. O senador Belhart, proprietário na província de Tver, está pronto a consolar-se com os cortes feitos na madeira, mas aflige-se ao ver que os camponeses «não querem submeter-se ao governo burguês.» Veliaminov, proprietário na província de Tambov, pediu que se salvaguarde duas propriedades que «servem às necessidades do exército». Completamente por acaso, acontece que esses domínios pertencem-lhe. Para os filósofos do idealismo, os telegramas dos proprietários em 1917 são um verdadeiro tesouro. O materialismo verá aí sobretudo uma exposição de exemplos de cinismo. Ele acrescentará, talvez, que as grandes revoluções tiram aos possuidores mesmo a possibilidade de uma hipocrisia decente.
As petições das vítimas enviadas às autoridades do distrito e da província, ao ministro do Interior, ao presidente do conselho de ministros, ficam sem consequências. A quem pedir ajuda? A Rodzianko, presidente da Duma de Estado. Entre as jornadas de Julho e o levantamento korniloviano, o gentil-homem sente ter-se tornado uma personagem influente: muitas coisas acontecem depois da sua chamada telefónica.
Os funcionários do ministério do Interior expedem para as províncias circulares incitando para que se levem a tribunal os culpados. Rústicos, os proprietários da província de Samara, telegrafavam respondendo: «As circulares não assinadas pelos ministros socialistas não têm efeito.» Assim se manifesta a utilidade do socialismo. Tseretelli teve que ultrapassar a sua modestia: no 18 de Julho, ele enviou uma instrução difusa, ditando «medidas rápidas e resolutas». Tal como os proprietários, Tseretelli só se preocupa com o exército e o Estado. Parece portanto aos camponeses que Tseretelli protegem os proprietários.
Nos métodos de repressão do governo há uma reviravolta. Até Julho eram os belos discursos que prevaleciam. Se os destacamentos de tropas eram enviados para as províncias, era somente para fazer a cobertura do orador governamental. Após a vitória sobre os operários e os soldados de Petrogrado, as equipas de cavalaria, sem já sem discursos, são colocadas directamente à disposição dos proprietários. Na província de Kazan, uma das mais perturbadas, só se pode - segundo o jovem historiador Iogov - «por detenções, pela introdução de destacamentos do exército nas aldeias, e mesmo pelo restabelecimento do castigo das vergastadas... obrigar os camponeses a se resignarem por algum tempo». Noutros lugares, a repressão não é eficaz. O número de propriedades dos nobres baixou em Julho de 516 para 503. Em Agosto, o governo conseguiu obter outros sucessos: o número de distritos perturbados caiu de 325 288, isto é 11%; o número de propriedades atingidas pelo movimento reduziu-se a 33%.
Certas regiões, as mais agitadas até então, acalmam-se ou passam para segundo plano. Em contra-partida, as regiões que, ainda ontem eram seguras, entram hoje na via da luta. Ainda não tem um mês, o comissário de Penza esboçava um quadro consolador: «O campo ocupa-se da colheita... Preparam-se as eleições para os zemstvos de cantão. O período de crise governamental esgotou-se na calma. A formação do novo governo foi acolhida com uma grande satisfação.» Em Agosto, deste idílio já não restam marcas: «Vêm em massa pilhar os pomares e cortar lenha... Para a liquidação das desordens, é preciso recorrer à força armada.» Segundo o seu carácter geral, o movimento estival relaciona-se ainda ao período «pacífico». Todavia, observa-se aí já os síntomas, na verdade fracos, mas indiscutíveis , de radicalização: se durante os quatro primeiros meses, os ataques directos contra as mansões diminuíram, desde Julho eles voltaram a aumentar. Os pesquisadores estabelecem no conjunto na ordem de uma curva descendente: confiscações dos pastagens, das colheitas, dos abastecimentos e dos fenos, da lavoura, do material agrícola: a luta pelos salários de arrendamento; assalto das propriedades. Em Agosto: confiscação das colheitas, das reservas de abastecimentos e dos fenos, das pastagens e dos prados, de terras e de madeiras; o terror agrário.
No inicio de Setembro, Kerensky, na qualidade de generalíssimo, reproduziu numa ordem especial as ameaças recentes do seu predecessor Kornilov contra «os actos de violência» vindos dos camponeses. Alguns dias depois, Lenine escrevia:
«Ou então... toda a terra para os camponeses imediatamente... ou os proprietários e os capitalistas levam o assunto até uma formidável insurreição camponesa.»
No decorrer do mês seguinte, isso tornou-se um facto.
O número de propriedades nas quais os conflitos agrários se estenderam, em Setembro, subiu, comparativamente ao mês de Agosto, de trinta por cento; em Outubro, em comparação com Setembro, de quarenta e três por cento. Para Setembro e as três primeiras semanas de Outubro, é preciso contar mais do terço de todos os conflitos agrários registados desde Março. Sua ousadia cresceu todavia infinitamente mais que o seu número. Nos primeiros meses, mesmo depois das confiscações directas de diversos bens de raíz tomavam a aparência de negociações atenuadas e dissimuladas pelos órgãos conciliadores. Agora, a máscara da legalidade cai. Cada um dos ramos do movimento toma um carácter mais intrépido. Abandonando diversos aspectos e graus de pressão, os camponeses confiscam pela violência partes essenciais dos domínios, assaltam os ninhos dos proprietários nobres, incendeiam as mansões, mesmo o assassinato de proprietários e gerentes.
A luta pela modificação das condições de arrendamento que, em Julho, era superior para o número dos caos no movimento de destruição, constitue em Outubro menos de cinquenta porcento dos saques, e o próprio movimento dos agricultores muda de carácter, tornando-se unicamente um meio de expulsar os proprietários. A proibição de comprar ou vender terras ou madeiras é substituída pela confiscação directa. As razias nas florestas, o gado deixado nas terras, tais medidas toma o carácter da destruição intencional dos bens de raíz. Registou-se em Setembro duzentos e setenta e nove casos de assaltos de propriedades; eles constituem já mais que a oitava parte de todos os conflitos. Outubro produziu mais de 42% de todos os casos de destruição registadas pela milícia entre a insurreição de Fevereiro e a de Outubro.
A luta tomou um carácter particularmente renhido sobre as madeiras. As aldeias eram frequentemente consumidas pelos incendios. As madeiras de construção eram rigorosamente guardadas e vendiam-se caras. Houve entre os mujiques fome de madeira. Além disso, o tinha chegado o tempo de fazer provisões para o aquecimento no inverno. Das províncias de Moscovo, de Nijni-Novgorod, de Petrogrado, de Orel, da Volhynia, de todos os pontos do país chegam queixas sobre a destruição das florestas e a confiscação das reservas de madeira. «Os camponeses procedem de sua própria vontade e impiedosamente ao corte de árvores.» «Os camponeses queimaram duzentos acres de floresta pertencendo aos proprietários nobres». «Os camponeses dos distritos de Klimov e de Tcheridov destroem as madeiras e devastam as culturas de outono...» Os guardas florestais fogem. Um gemido se levanta nas florestas da nobreza, as lascas voam por todo o país. Durante o outono o machado do mujique bate ao ritmo febril da revolução.
Nas regiões importadoras de trigo, a situação do abastecimento é ainda mais grave que nas cidades. Faltavam não somente meios de subsistência, mas mesmo sementes. Nas regiões que exportavam, a situação não era melhor, os recursos alimentares eram bombeados sem parar. O aumento dos preços obrigatórios dos cereais atingiu duramente os pobres. Num bom número de províncias desencadearam-se numerosos motins relacionados com a fome, pilham-se celeiros, atacam os empregados dos abastecimentos. A população arranjava sucedâneos do pão. Notícias propagavam-se, anunciando casos de escorbuto e de febre tifóide, suicídios causados pelas situações sem saída. A fome ou o seu espectro tornavam particularmente intolerável a vizinhança de bem estar e do luxo. As camadas mais necesitadas do campo tomavam lugar nas primeiras filas.
As vagas de irritação levantavam do fundo bastante lodo. Na província de Kostroma «observa-se a agitação dos Cem Negros e dos antisemitas. A criminalidade aumenta... Nota-se uma diminuição do interesse em relação à vida política do país». Esta última fase, no relatório do comissário, significa que as classes educadas voltam as costas à revolução. De repente rebenta, na província de Podolsk, a voz dos monárquicos dos Cem Negros: o comité da localidade de Demidovka não reconhece o governo provisório e considera «como o mais fiel do povo russo» o imperador Nicolau Alexandrovitch: se o governo provisório não se vai, «nós nos juntaremos aos alemãs». Confissões tão ousadas eram todavia coisa rara: os monárquicos entre os camponeses tinham há muito tempo mudado de cor como os proprietários. Em certos lugares, e nesta mesma província de Podolsk, as tropas, com os camponeses, devastam as fábricas dos destiladores. O comissário faz um relatório sobre a anarquia. «As aldeias e as pessoas estão em perdição; a revolução perde-se.» Não, a revolução está longe de se perder. Ela cava uma cova profunda. As suas águas turbulentas aproximam-se do estuário.
Na noite do 7 ao 8 de Setembro, os camponeses da localidade de Sytchevka, na província de Tambov, com cacetes e chicotes, indo de casa em casa, convocam toda a gente, do mais pequeno ao maior, a demolir a propriedade do Romanov. Na assembleia comunitária, um grupo propõe a confiscação da propriedade de forma ordeira, de partilhar os bens entre a população, de conservar os edifícios para fins culturais. Os pobres exigem que se incendie a mansão, e que tudo seja demolido. Os pobres são os mais numerosos. Na mesma noite um mar de fogo estende-se às propriedades de todo o cantão. Queima-se tudo o que era susceptível de queimar. Mesmo uma plantação modelo, degola-se o gado de raça, «embebedam-se loucamente». O fogo passa de um cantão a outro. O exército de chinelos de cânhamo não se limita a empregar às forquilhas. O comissário da província telegrafa: «Os camponeses e desconhecidos, armados de revolveres e de granadas, roubam as propriedades nos distritos de Ranenburgo e de Riajsk.» A guerra tinha trazido uma rica técnica à insurreição camponesa. A União dos proprietários assinalou que em três dias queimaram vinte e quatro propriedades. «As autoridades locais são impotentes em estabelecer a ordem.» Com atraso chegou um destacamento enviado pelo comandante das tropas, o estado de sítio foi declarado, as reuniões proibidas; prenderam os instigadores. Os barrancos estavam cheios de bens dos proprietários, as ribeiras engoliram muito do que foi pilhado.
Um camponês de Penza, Beguichev, conta: «Em Setembro, todos iam demolir a propriedade de Logvine (tinham-na sacado em 1905). Na ida e volta, alongava-se uma fila de carroças, centenas de mujiques e outra coisa...» Um destacamento pedida pela direcção do zemstvo tentou recuperar uma parte do que tinha sido confiscado, mas cerca de quinhentos mujiques tinham-se reunido à volta da capital do cantão, e o destacamento dispersou-se. Os soldados, evidentemente, não faziam qualquer zelo em restabelecer os direitos espezinhados dos proprietários.
A partir dos últimos dias de Setembro, na província de Tauride, segundo as memórias do camponês Gaponenko, «os camponeses meteram-se a devastar as explorações, a expulsar os gerentes, a confiscar o trigo nos celeiros, as bestas de carga, o material... Mesmo as persianas, as portas, os soalhos e o zinco dos telhados foram arrancados e levados...». «No princípio, vinham somente a pé, tomavam e levavam - conta um camponês de Minsk, Grunko - mas logo atrelaram os cavalos, os que tinham, e levaram tudo isso em carroças inteiras. Sem descanso... transportaram, levaram, a partir do meio dia, durante dois dias inteiros, noite e dia, sem interrupção. Em quarenta e oito horas, limparam tudo.» A confiscação de bens, segundo Kozmitchev, camponês da província de Moscovo, justifica-se assim: «O proprietário era nosso, trabalhávamos para ele, e a fortuna que ele tinha devia voltar para nós somente». Outrora, o nobre dizia aos servos: «Vocês pertencem-me e todo o que é vosso é meu.» Agora os camponeses respondem: «O fidalgo pertence-nos e todo o seu bem é nosso.»
«Em certos lugares começaram a inquietar os proprietários à noite, diz um outro camponês de Minsk, Novikov. Cada vez mais incendeiam as mansões dos proprietários nobres». E a vez coube à propriedade do grande-duque Nicolau Nicolaievitch, antigo generalíssimo.» Quando levaram tudo o que podia ser levado, começaram a demolir os fogões e a retirar os fornos, os soalhos e a levar tudo isso para casa...» Por detrás desses actos de destruição, havia o cálculo multi-secular, milenário, de todas as guerras de camponeses: sapar até à base as posições fortificadas do inimigo, não lhe deixar lugar onde ele poderia reposar a cabeça. «O mais razoáveis - escreve nas suas lembranças Tsygankov, camponês da província de Kursk - diziam: não é necessário destruir os edifícios, teremos necessidade deles... para escolas e hospitais, mas a maioria dos que gritavam de se devia destruir tudo para que os nossos inimigos, de qualquer modo, não saibam onde se esconder...» «Os camponeses confiscavam todos os bens dos proprietários - conta Savtchenko, camponês da província de Orel - expulsavam os proprietários dos domínios, quebravam as janelas das casas, as portas, o soalho, os tectos... Os soldados diziam que se destruíam o covil dos lobos, era também preciso estrangular os lobos. No seguimento de tais ameaças, os mais importantes e os mais consideráveis dos proprietários escondiam-se uns após os outros, é por isso que não houve assassinatos de proprietários.»
Na aldeia de Zalessie, na província de Vitebsk, queimaram celeiros cheios de grão e de feno, numa propriedade pertencendo ao francês Bernard. Os mujiques estavam tanto menos dispostos a distinguir entre nacionalidades que muitos proprietários apressavam-se a passar as suas terras a estrangeiros privilegiados.» A embaixada de França pediu que se tomassem medidas. «Na zona da frente, em pleno Outubro, era difícil tomar «medidas», mesmo para agradar à embaixada de França.
O saccage de uma grande propriedade próxima de Rizan persegui-se durante quatro dias; «na pilhagem participaram mesmo crianças». A União dos proprietários de terras disse aos ministros que se não se tomassem medidas, «haveria linchagens, a fome e a guerra civil». Não se compreende porquê os proprietários nobres falam ainda de guerra civil no tempo futuro.
No congresso da cooperação, Berhenheim, um dos líderes do sólido campesinato comerciante, dizia, no princípio de Setembro: «Estou convencido que a Rússia ainda não se transformou completamente num manicómio, que, por momento, a demência ganhou sobretudo a população das grandes cidades.» Esta voz presunçosa de uma parte sólidamente estabelecida e conservadora do campesinato atrasava sem recurso; precisamente durante esse mês, o campo arranca definitivamente todos os controlos da sabedoria, e por exaspero na luta deixa longe atrás dela «os manicómios» das cidades.
Em Abril, Lenine considerava ainda possível que os cooperantes patriotas e os kolaques trouxessem com eles a grande massa dos camponeses na via de um acordo com a burguesia e os proprietários. Ele insistia incansavelmente sobre a criação de sovietes particulares de operários agrícolas (batraks) e sobre uma organização independente de camponeses mais pobres. Cada vez menos descobriu-se, todavia, que esta parte da política bolchevique não tinha raízes. Excepção feita das províncias bálticas, não existia de forma nenhuma sovietes operários agrícolas. Os camponeses pobres não encontraram igualmente formas independentes de organização. Explicar isso unicamente pelo estado atrasado dos operários agrícolas e das camadas mais pobres da aldeia, seria passar ao lado do essencial. A causa principal residia na própria natureza do problema histórico: o da revolução agrária democrática.
Sobre as duas questões mais importantes - as da renda e do trabalho assalariado - descobriu-se de maneira mais convincente como os interesses gerais da luta contras as sobrevivências da servidão interceptaram as vias de uma política independente não somente dos camponeses pobres, mas dos operários agrícolas. Os camponeses tomavam as quintas aos proprietários nobres, na parte europeia da Rússia, vinte e sete milhões de acres, cerca de sessenta porcento de todas as propriedades particulares, e pagavam cada ano um tributo de renda elevando-se a quatro centos milhões de rublos. A luta contra as condições espoliadores da renda tornou-se, depois da insurreição de Fevereiro, o elemento mais essencial do movimento camponês. Um lugar menor, portanto muito considerável, foi ocupado pela luta dos operários agrícolas que, opunha-os não somente à exploração dos proprietários nobres, mas à dos camponeses. O agricultor lutava por alívio das condições de arrendamento, o operário pela melhoramento das condições de trabalho. Um e outro, cada um à sua maneira, partiam desse ponto que eles reconheciam o fidalgo como proprietário e patrão. Mas a partir do momento onde se abriu a possibilidade de levar o assunto até ao fim, isto é confiscar as terras e de se instalar aí, o campesinato pobre deixou de se interessar às questões do arrendamento, e o sindicato começou a perder a sua força de atracção para os operários agrícolas. São precisamente estes últimos e os agricultores pobres que, pela sua associação ao movimento geral, deram à guerra camponesa o seu carácter extremo de resolução e de intransigência.
O campo contra os proprietários nobres não ocasionou plenamente o pole oposto da aldeia. Como o assunto não ia até ao levantamento declarado, as cimeiras do campesinato desempenhavam no movimento um papel evidente, por vezes dirigente. No período outonal, os mujiques ricos consideravam com uma desconfiança crescente o transbordar da guerra camponesa: eles não sabiam como isso se terminaria, eles tinham qualquer coisa a perder -. eles afastavam-se. Mas não conseguiram, mesmo assim, a se meterem de lado: a aldeia não lhes permitiu.
Mais fechados e mais hostis que «os do meio», kulaques pertencendo à comuna, mantinham-se os pequenos proprietários de terras, camponeses afastados da comuna. Os agricultores que possuíam lotes que iam até aos cinquenta hectares eram, em todo o país, seis centos mil. Eles constituíam em muitos lugares a espinha dorsal das cooperativas e, em política, eram levados, particularmente no Sul, para a União camponesa conservadora que constituía já uma ponte para os cadetes. «Os camponeses afastados da comuna, e os rurais ricos - segundo Gulis, cultivador da província de Minsk - apoiavam os proprietários nobres, esforçando-se de conter o campesinato por advertências.» Aqui e acolá, sob a influência das condições locais, a luta no interior do campesinato tomava um carácter furioso mesmo antes da insurreição de Outubro. Os camponeses afastados das comunas sofreram particularmente disso. «Quase todas as explorações particulares - conta Kusmitchev, camponês na província de Nijni-Novgorod - foram queimadas, o material foi em parte destruído, em parte confiscado pelos camponeses». O camponês afastado da comuna era «o criado do proprietário nobre, homem de confiança vigiando as várias reservas florestais; ele era o favorito da polícia, da guarda e dos seus mestres». Os camponeses e os comerciantes mais ricos de certos cantões do distrito de Nijni-Novgorod desapareceram durante ou outono e não voltaram para casa senão dois ou três anos depois.
Mas, na maior parte do país, os relatórios internos da aldeia estavam longe de atingir esse grau de gravidade . Os kolaques comportam-se diplomaticamente, acautelavam-se e resistiam, mas esforçavam-se para não se colocarem demasiado em oposição com o mir (comuna rural). O camponês pelo seu lado, vigiavam o kolaque, não lhe permitindo unir-se ao proprietário nobre. A luta entre os nobres e os camponeses pela influência sobre o kolaque perseguiu-se durante todo o ano de 1917, sob formas variadas, indo de uma acção «amigável» até ao terror furioso.
Enquanto que os proprietários dos latifúndios abriam obsequiosamente diante dos camponeses proprietários a porta de honra da Assembleia da nobreza, os pequenos proprietários de terras afastavam-se claramente dos nobres para não desaparecem como eles. Na linguagem da política, isso significava que os proprietários nobres que tinham pertencido até à revolução aos partidos da extrema direita revestiam-se agora da cor do liberalismo, tomando, segundo as velhas recordações, a cor protectora; então os proprietários entre os camponeses que, frequentemente, tinham antes apoiado os cadetes, evoluíam agora para a esquerda.
O congresso dos pequenos proprietários da província de Perm, em Setembro, desolidarizavam-se veemente do congresso moscovita dos proprietários de terras à cabeça do qual encontravam-se «condes, príncipes, barões». Um proprietário de cinquenta acres dizia: «Os cadetes nunca transportaram o burel e chinelos de cânhamo e por isso eles nunca defenderão os nossos interesses.» Afastando-se dos liberais, os proprietários trabalhadores procuravam «socialistas» que apostavam na propriedade. Um dos delegados pronunciava-se pela social-democracia «... O operário? Dêm-lhe terra, ele virá à aldeia e deixará de cuspir sangue. Os sociais-democratas não nos tirarão as terras.» Trata-se, bem entendido, dos mencheviques. «Nós não cederemos a nossa terra a ninguém. É fácil de se separar dela a favor de quem a obteve sem dificuldades, por exemplo para o proprietário nobre. Para o camponês, a terra foi uma aquisição penosa.»
Nesse período de Outono, a aldeia lutava contra os kolaques sem os rejeitar, ao contrário obrigando-os a se juntarem ao movimento geral e a protegê-lo contra as camadas de direita. Houve mesmo casos onde a recusa de participar a uma pilhagem foi castigada pela execução do indócil. O kolaque serpenteavam tanto quanto podia, mas, no último minuto, depois de ter coçado a cabeça mais uma vez, atrelava os cavalos bem alimentados à sua telega, montada sobre sólidas rodas, e partia para tomar a sua parte. Era frequentemente a parte do leão. «Os que aproveitaram eram sobretudo gente rica - conta Baguichev, camponês da província de Penza que tinham os cavalos e as pessoas à sua disposição.» É quase nos mesmos termos que se exprime Savtchenko, da província de Orel: «O lucro volta a maioria dos kolaques que eram bem alimentados e tinham os meios de transportar madeira...» Segundo o cálculo de Vermenitchev, sobre quatro mil novecentos e cinquenta e quatro conflitos agrários com os proprietários nobres, de Fevereiro a Outubro, houve na totalidade trezentos e vinte e quatro com a burguesia camponesa. Relatório evidentemente notável! A ele só, demonstra indiscutivelmente que o movimento camponês de 1917, na sua base social, era dirigido não somente contra o capitalismo, mas contra as sobrevivências da servidão. A luta contra os kolaques só se desenvolveu mais tarde, desde 1918, após a liquidação definitiva dos proprietários nobres.
O carácter puramente democrático do movimento camponês que devia, ao que parecia, dar à democracia uma força irresistível, demonstrou de facto e mais que tudo quanto ela estava podre. Se considerarmos as coisas de alto, o campesinato no seu conjunto tinha a cabeça dos socialistas-revolucionários, dava-lhes os seus votos, seguia-os, confundia-se quase com eles. No congresso dos sovietes camponeses, em Maio, Tchernov obteve, nas eleições para o Comité executivo, oitocentos e dez votos, Kerensky oitocentos e quatro, enquanto que Lenine só obteve vinte. Não foi por engano que Tchernov se nomeava «ministro do campo». Mas também não era por engano que a estratégia dos campos se afastava violentamente da de Tchernov.
A dispersão económica faz dos camponeses, tão resolutos na luta contra um proprietário determinado, impotentes contra o proprietário generalizado na pessoa do Estado. Daí a necessidade orgânica do mujique em se apoiar num reino fabuloso contra o Estado real. Nos velhos tempos, o mujique avançava os impostores, agrupava-se em torno de um falso pergaminho dourado do czar ou à volta de uma legenda sobre a terra dos justos. Após a Revolução de Fevereiro, os camponeses uniam-se à volta da bandeira socialista-revolucionária, «Terra e Liberdade», procurando nela ajuda contra o proprietário nobre e liberal que se tornou comissário. O programa populista relacionava-se ao governo real de Kerensky como o pergaminho dourado apócrifo do czar ao autocrata real.
No programa dos socialistas-revolucionários, houve sempre muita utopia: eles dispunham-se a construir o socialismo sobre a base de uma pequena economia mercantil. Mas no fundo o programa era democrata revolucionário: retomar as terras dos proprietários nobres. Encontrando-se na obrigação de preencher o seu programa, o partido atrapalhava-se na coligação. Contra a confiscação de terras erguiam-se irredutivelmente os proprietários nobres, mas também os banqueiros cadetes: os bens-de raíz terrenos tinham sido hipotecados pelos bancos por pelo menos quatro biliões de rublos. Dispunham-se a negociar, na Assembleia constituinte, com os proprietários nobres sobre o preço, mas finalizar amigavelmente, os socialistas-revolucionários metiam todo o zelo em impedir o mujique de tomar a terra. Eles perdiam assim influência junto dos camponeses, não por causa do carácter utópico do seu socialismo, mas pela sua inconsistência democrática. A verificação do seu utopismo agrário tornou-se evidente em alguns meses: sob o governo dos socialistas-revolucionários, os camponeses deviam se comprometer na via da insurreição para realizar o programa desses mesmos socialistas-revolucionários.
Em Julho, quando o governo reprimiu a aldeia, os camponeses lançaram-se felizes sob a protecção desses mesmos socialistas-revolucionários: no Ponce cadete, eles procuravam a defesa contra o Pilatos mais velho. O mês onde os bolcheviques são mais fracos nas cidades torna-se o mês da maior expansão dos socialistas-revolucionários nos campos. Como acontece habitualmente, sobretudo numa época de revolução, o máximo da empresa organizacional coincidiu com o início de uma decadência política. Escudando-se atrás dos socialistas-revolucionários para escapar aos golpes de um governo socialista-revolucionário, os camponeses perdiam cada vez mais confiança nesse governo e nesse partido. Foi assim que o inchaço das organizações socialistas-revolucionárias no campo tornou-se mortal para esse partido universal que, por baixo, rebelava-se e, pelo alto, reprimia.
Em Moscovo numa reunião da Organização militar, no 30 de Julho, um delegado da frente, ele próprio socialista-revolucionário, dizia: ainda que os camponeses se considerem como socialistas-revolucionários, há uma fenda ente eles e o partido. Os soldados concordam: sob a influência da agitação socialista-revolucionária, os camponeses ainda são hostis aos bolcheviques, mas eles resolvem os problemas da terra e do poder à maneira dos bolcheviques. Povoijky, bolchevique que militava sobre o Volga, testemunha que os mais distinguidos socialistas-revolucionários, tendo participado ao movimento de 1905, sentiam-se cada vez mais eliminados: «Os mujiques chamavam-os «os velhos», tratavam-os com as aparências de respeito, e votavam como eles entendiam» Eram os operários e os soldados que ensinavam aos camponeses a votar e a agir «e faziam como entendiam».
É impossível avaliar a influência revolucionária dos operários sobre o campesinato: ele tinha um carácter permanente, molecular, omnipresente, e por consequência pouco susceptível de ser calculado. A reciprocidade da penetração era facilitada pelo facto que um número considerável de empresas industriais eram repartidas no campo. Mas mesmo os operários de Petrogrado, a mais europeia das cidades, conservavam laços imediatos com a aldeia natal. O desemprego, que tinha aumentado durante os meses de verão, e os lock-out dos capitalistas enviavam para a aldeia numerosos milhares de operários: ele tornavam-se a maioria dos agitadores e dos líderes.
Em Maio-Junho, em Petrogrado, criam-se organizações operárias regionais (zemliatchestva) reagrupando os originários de tal província, de distritos, mesmo de cantões. Colunas inteiras na imprensa operária são consagradas aos anúncios de reuniões de zemliatchestva, nas quais liam-se relatórios sobre os percursos feitos nas aldeias, estabeleciam-se instruções para os delegados, procuravam-se recursos financeiros para a agitação. Pouco antes da insurreição, os zemliatchetva fusionaram-se em volta de um Burô central especial, sob a direcção dos bolcheviques. O movimento dos zemliatchestva logo se estendeu a Moscovo, a Tver, provavelmente também a um bom número de outras cidades industriais.
Todavia, do ponto de vista da acção directa sobre a aldeia, os soldados tinham uma importância ainda maior. Foi somente nas condições artificiais da frente ou do quartel na cidade que os jovens camponeses, ultrapassando até um certo ponto os efeitos da sua dispersão, encontraram-se frente a frente com os problemas de envergadura nacional. A falta de autonomia política ainda se fazia sentir. Caindo invariavelmente sob a direcção dos intelectuais patriotas e conservadores, e esforçando-se de lhes escapar, os camponeses tentavam fazer bloco no exército, à parte dos outros grupos sociais. As autoridades mostravam-se desfavoráveis a tais tendências, o ministro da Guerra opunha-se a isso, os socialistas-revolucionários não vinham ao ponto de os ajudar - os sovietes de deputados camponeses só se ligavam fracamente ao exército. Mesmo nas condições mais favoráveis, o camponês não está em estado de transformar a sua esmagadora quantidade numa qualidade política.
É somente nos grandes centros revolucionários, sob a acção directa dos operários, que os sovietes de camponeses-soldados chegaram a desenvolver um trabalho considerável. Foi assim que o Soviete camponês de Petrogrado, de Abril de 1917 ao 1 de Janeiro de 1918, enviou para o campo mil trezentos e noventa e cinco agitadores munidos de mandatos especiais; outros, também tão numerosos, partiram sem mandato. Os delegados percorreram sessenta e cinco províncias (governos). Em Cronstadt, entre os marinheiros e os soldados, constituíam-se, segundo o exemplo dos operários, zemliatchestva que entregavam aos delegados certificados atestando o seu «direito» de viajar gratuitamente no caminho de ferro e em barco. Os caminhos de ferro das sociedades privadas aceitavam tais certificados sem hesitar, mas nos caminhos de ferro do Estado produziam-se conflitos.
Delegados oficiais das organizações eram mesmo assim gotas de água num oceano de camponeses. Um trabalho infinitamente mais importante era realizado pelas centenas de milhares e os milhões de soldados que desertavam a frente e as guarnições da retaguarda, guardando nas suas orelhas as consistentes palavras de ordem, discursos nos comícios. Os mudos da frente tornavam-se em casa, na aldeia, faladores. E as pessoas ávidas em ouvir não faltavam. «Entre os camponeses que rodeavam Moscovo, conta Moralov, um dos bolcheviques do lugar - produzia-se um formidável movimento para a esquerda... As vilas e aldeias da região abundavam de desertores. Lá também penetrava o proletariado da capital que não tinha ainda rompido com a Aldeia.» O campo adormecido da província de Kaluga, segundo o camponês Naumtchenkov, «foi acordada pelos soldaos que chegavam da frente por uma razão ou outra no período de Junho a Julho». O comissário de Nijni-Novgorod relatava que «todas as infracções ao direito e à lei são causadas pelo aparecimento nos limites da província de desertores, de soldados em licença ou de delegados dos comités de regimentos». O capataz principal das propriedade da princesa Bariatinskaia, do distrito de Zolotonochsky, queixava-se em Agosto dos actos de arbítrio do comité agrário que preside o marinheiro de Cronstadt, Gatran. «Os soldados e os marinheiros vindos de folga - segundo o relatório do comissário do distrito Bogolminsky - fazem agitação com o objectivo de criar anarquia e de provocar perseguições». «No distrito de Mglinsk, na localidade de Belogoch, um marinheiro proibiu com a sua própria autoridade de cortar e enviar madeira da floresta.» Se não eram os soldados que começavam a luta, eram eles que a terminavam. No distrito de Nijni-Novgorod, os mujiques atormentavam o convento de mulheres, cortavam seus pastos, quebravam as vedações, não deixavam as freiras tranquilas. A abadia não cedia, os milicianos levavam os mujiques para os reprimir.» «Isso durou - escreve o camponês Arbeko - até à chegada dos soldados. Os homens da frente seguraram o boi pelos cornos»: o convento foi evacuado. Na província de Mohilev, segundo o camponês Bobkov, «os soldados que tinham regressado da frente para os seus lares eram os primeiros agitadores nos comités e dirigiam a expulsão dos proprietários nobres».
Os homens da frente metiam no assunto a grave resolução dos que tomaram o hábito de se servir da espingarda e da baioneta contra o homem. Mesmo as mulheres dos soldados tomavam dos seus maridos o espírito combativo deles. «Em Setembro - conta Beguichev, camponês da província de Penza - houve um forte movimento dos soldados mulheres, que se pronunciavam nas assembleias pelo saque. «Observava-se a mesma coisa nas outras províncias. As «soldadas», mesmo nas cidades, activavam frequentemente a fermentação.
Os casos onde aconteceram sarilhos rurais causados por soldados contaram, segundo o cálculo de Vermenitchev, em Março, eram 1%, em Abril 8%, em Outubro 17%. Tal cálculo não pode pretender ser exacto; mas indica sem erro a tendência geral. A direcção moderadora dos mestres escola, escrivões e funcionários socialistas-revolucionários era substituída pela direcção dos soldados que não recuavam diante de nada.
Um escritor alemão, bom marxista no seu tempo, Parvus, que soube enriquecer durante a guerra, mas perdendo os seus princípios e a sua perspicácia, comparava os soldados russos aos lansquenetes da Idade Média, ladrões e violadores. Para falar assim, era preciso não ver que os soldados russos, apesar de todos os seus excessos, continuavam a ser simplesmente o órgão executivo da maior revolução agrária da história.
Enquanto que o movimento não rompesse definitivamente com a legalidade, o envio de tropas para o campo mantinha um carácter simbólico. Só se podia empregar os cossacos efectivamente para reprimir. «Expedimos nos distritos de Serdobsky quatrocentos cossacos... esta média trouxe a calma. Os camponeses declararam que eles esperarão a Assembleia constituinte.» - escreveu a 11 de Outubro, o jornal liberal Russokoie Slovo (A palavra russa). Quatrocentos cossacos, é um argumento incontestável para a Assembleia constituinte! Mas faltavam cossacos e os que existiam hesitavam. Entretanto, o governo era forçado a tomar cada vez mais «medidas decisivas». Durante os primeiros meses, Vermenitchev contou dezassete casos de envios da força armada contra os camponeses; em Julho e em Agosto, trinta e nove casos; em Setembro e Outubro, cento e cinco.
Reprimir o movimento camponês pela força armada, era deitar óleo sobre o fogo. Os soldados, na maior parte dos casos, passavam para lado dos camponeses. Um comissário de distrito da província de Podoslk relata isto: «As organizações militares e mesmo certos contingentes resolvem as questões sociais e económicas, forçam (?) os camponeses a confiscar e cortar lenha e, às vezes, em certos sítios, participam eles próprios às pilhagens... As tropas locais recusam tomar parte na repressão contra essas violências...» Foi assim que a insurreição na aldeia destruiu os últimos vestígios da disciplina. Estava fora de questão, nas condições da guerra camponesa à cabeça da qual se encontravam os operários, que o exército se deixasse levar contra a insurreição nas cidades.
Operários e soldados, os camponeses souberam pela primeira vez algo de novo, não o que os socialistas-revolucionários lhes tinham contado sobre os bolcheviques. As palavras de ordem de Lenine e o seu nome penetraram na aldeia. As queixas cada vez mais frequentes contra os bolcheviques tiveram, todavia, em muitos casos, um carácter de invenção ou de exagero: os proprietários nobres esperavam assim obter ajuda mais seguramente. «No distrito de Ostrovsky, é a anarquia completa no seguimento da propaganda do bolchevismo.» Na província de Ofim: «O membro do comité de cantão Vassilev propaga o programa dos bolchevique e declara abertamente os proprietários nobres sejam enforcados. «Um proprietário da província de Novgorod, Polonnik, procurando «protecção contra a pilhagem», não esquece de acrescentar: «Os comités executivos estão todos cheios de bolcheviques»; o que quer dizer: má gente para os proprietários. «Em Agosto - escreve nas suas Lembranças Zomornie, camponês da província de Simbirsk - operários percorreram as aldeias, fazendo agitação para o partido dos bolcheviques, expondo o seu programa.» O juiz de instrução do distrito de Sebeje abriu um inquérito sobre uma operária do têxtil chegada de Petrogrado, Tatiana Mikhailova, vinte e seis anos, que, na sua aldeia, apelava «ao derrube do governo provisório e vangloriava a táctica de Lenine». Na província de Smolensk, cerca do fim de Agosto, como testemunha o camponês Kotov, «começaram-se a interessar-se sobre Lenine, escutavam a voz de Lenine»... Portanto, nos zemstvos dos cantões os que se elegem são para a maioria imensa socialistas-revolucionários.
O partido bolchevique esforça-se por se aproximar do camponês. No 10 de Setembro, Nevsky reclama do Comité de Petrogrado que se empreenda a publicação de um jornal camponês: «É preciso resolver o assunto de tal maneira que não se passe pelas dificuldades que conheceu a Comuna de Paris, quando o campesinato não compreendeu a capital e Paris não compreendeu o campesinato». O jornal Bednota (Jornal dos Pobres) logo começou a ser publicado. Mas o trabalho do partido no campesinato no sentido próprio continuava insignificante. A força do partido bolchevique não estava nos meios técnicos, nem no aparelho, ela estava na sua justeza política. Tal como as baforadas de ar espalham as sementes, os turbilhões da revolução propagavam as ideias de Lenine.
«Cerca do Setembro - escreve nas suas Lembranças Vorobiev, camponês da província de Tver - nas reuniões, cada vez mais frequentemente e ousadamente se pronunciam já pela defesa dos bolcheviques, não somente os soldados da frente, mas mesmo os camponeses pobres...» «Entre os pobres e certos camponeses médios - como confirma Zomorine, camponês da província de Simbirsk - o nome de Lenine estava em todas as bocas, só se falava de Lenine. «Um camponês de Novgorod, Grigoriev, conta que um socialista-revolucionário, no cantão, tratou os bolcheviques de «ladrões» e de «traidores». Os mujiques gritavam: «Abaixo o cão, apedrejemos-o! Não nos contem histórias! Onde está a terra? Basta! Que nos tragam um bolchevique!» É possível aliás que este episódio - e houve mais que um do mesmo género - se relacione já ao período depois de Outubro: nessas lembranças de camponeses, os factos são fortemente marcados, mas o sentido da cronologia é fraco.
Um soldado, Tchinenov, que tinha trazido de casa, na província de Orel, uma mala cheia de literatura bolchevique, foi mal acolhido na aldeia natal: ouro alemão, pensava-se. Mas em Outubro, «a célula do cantão tinha até setecentos membros, muitos fuzis e marchava sempre na defesa do poder soviético». O bolchevique Vratchev conta como os camponeses da província exclusivamente agrícola de Voroneje, «tinham voltado da asfixia socialista-revolucionária, começaram a se interessar ao nosso partido, graças a isso nós já tivemos um bom número de células de aldeia e de cantão, assinantes dos nossos jornais, e recebemos numerosos mujiques no pequeno local do nosso Comité». Na província de Smolensk, segundo as lembranças de Ivanov. «os bolcheviques eram muito raros nas aldeias, havia muito poucos nos distritos, os jornais bolcheviques não existiam, panfletos foram distribuidos muito raramente... E todavia, mais se aproximava de Outubro, mais a aldeia se voltava para os bolcheviques...»
«Nos distritos onde, até Outubro, havia uma influência bolchevique nos sovietes - escreve o mesmo Ivanov - a ira do vandalismo contra as propriedades dos nobres ou não se manifestavam, ou davam provas de um fraco grau.» O caso, todavia, não se apresentava a esse respeito por todo o lado da mesma maneira. «As reivindicações dos bolcheviques exigiam a devolução de terras aos camponeses - conta, por exemplo Tadeusz - eram particularmente logo adaptadas pela massa dos camponeses do distrito de Mohilev que assaltavam as propriedades, incendiavam algumas, apoderavam-se dos prados, das madeiras.» Não há, em suma, contradição entre estes testemunhos. A agitação geral dos bolcheviques alimentava incontestavelmente a guerra civil nos campos. Mas, onde os bolcheviques conseguiam enraizar-se mais solidamente, eles esforçavam-se, naturalmente sem enfraquecer o avanço camponês, em ordenar e limitar os estragos.
A questão agrária não se colocava isoladamente. O camponês estava esgotado, sobretudo no último período da guerra, como vendedor mas também como comprador: tomavam-lhe o trigo e os preços fixados pelo Estado, os produtos da indústria tornavam-se cada vez menos acessíveis. O problema das relações económicas entre o campo e a cidade que deve tornar-se a seguir, sob a denominação das «tesouras», o problema central da economia soviética, apresentava-se já sob um aspecto ameaçador. Os bolcheviques diziam ao camponês: os sovietes devem tomar o poder, e devolver a terra, acabar com a guerra, desmobilizar a indústria, estabelecer o controlo operário sobre a produção, regularizar as relações dos preços entre os produtos industriais e os produtos agrícolas. Mesmo se a resposta era sumária, ela marcava a via. «A barreira entre nós e o campesinato - dizia Trotsky, no 10 de Outubro, na conferência dos comités de fábrica - são os sovietistas do género Avksentiev. É necessário quebrar esta barreira. É preciso explicar no campo que todos os esforços do operário para ajudar o camponês fornecendo à aldeia as máquinas agrícolas deixam de ter resultado enquanto não for estabelecido o controlo operário sobre a produção organizada.» Foi neste espírito que a conferência publicou um manifesto dirigido aos Camponeses.
Os operários de Petrogrado tinham criado entretanto nas fábricas comissões especiais que colectavam metais, artigos de sucata e limalhas de ferro para as colocar à disposição de um centro especial: do operário ao camponês. Os restos serviam para o fabrico de muito simples instrumentos agrícolas e peças sobressalentes. Esta primeira intervenção operária segundo um plano de produção, ainda pouco considerável pelo seu volume, onde predominavam as intenções de agitação sobre os fins económicos, deslumbrava, todavia, a perspectiva de um futuro próximo. Assustado pela intrusão dos bolcheviques no domínio sagrado da aldeia, o Comité executivo camponês tentou de captar a nova iniciativa. Mas, no terreno da cidade, rivalizar com os bolcheviques estava já acima das forças dos conciliadores cansados que, mesmo no campo, perdiam pé.
O eco da agitação dos bolcheviques «acordou a tal ponto os camponeses pobres - escrevia Vorobiev, camponês da província de Tver - que se pode dizer nitidamente: se Outubro não se produziu em Outubro, ele teria lugar em Novembro.» Esta característica muito colorida da força política do bolchevismo não está de forma nenhuma em contradição com o facto da fraqueza da sua organização. Foi somente através de tão vivas desproporções que a revolução fez caminho. Foi precisamente por isso, diga-se de passagem, que o seu movimento não se pode inserir nos quadros de uma democracia formal. Para que a revolução agrária pudesse realizar-se, em Outubro ou em Novembro, só restava ao campesinato nada mais que utilizar o tecido cada vez mais gasto do mesmo partido socialista-revolucionário. Os seus elementos de esquerda agrupavam-se apressados e em desordem sob a pressão do levantamento camponês, tomando por trás os bolcheviques e rivalizavam com eles. No decorrer dos meses que seguiram, a mudança política do campesinato produziu-se principalmente sob a bandeira remendada dos socialistas-revolucionários de esquerda: esse partido efémero tornou-se uma forma reflectida, uma forma instável do bolchevismo rural, uma ponte provisória entre a guerra camponesa e a insurreição proletária.
A revolução agrária tinha necessidade dos seus próprios órgãos locais. Como se apresentavam eles? Nas aldeias haviam organizações de diferentes tipos: organizações do Estado como os comités executivos de cantão, comités agrários e os de abastecimento; organizações sociais tails como os sovietes; organizações puramente políticas, tais como os partidos; enfim órgãos de administração autónomos, representados pelos zemstvos de cantão. Os sovietes dos camponeses ainda não se tinham desenvolvido senão nos limites administrativos das províncias, parcialmente nos distritos; existiam poucos sovietes de cantão. Os zemstvos de cantão eram dificilmente assimilados. Em contra-partida, os comités agrários e os comités executivos, que tinham sido concebidos como órgãos do Estado, tornavam-se, estranho que isso possa parecer à primeira vista, órgãos da revolução camponesa.
O comité agrário principal compunha-se de funcionários, de proprietários, de professores, de agrónomos diplomados, de políticos socialistas-revolucionários, aos quais se misturavam camponeses duvidosos, era em suma um travão central para a revolução agrária. Os Comités de província não deixavam de aplicar a política governamental. Os comités de distrito oscilavam entre os camponeses e as autoridades. Em contra-partida, os comités de cantão, eleitos pelos camponeses e trabalhadores do lugar, sob os olhos da aldeia, tornavam-se os instrumentos do movimento agrário. Esta circunstância que os membros dos comités pretendiam habitualmente pertencer aos socialistas-revolucionários não mudava nada ao assunto: eles alinhavam-se sobre a cabana do mujique, mas não acertavam com a mansão do nobre. Os camponeses apreciavam particularmente o carácter público de seus comités agrários, vendo aí uma sorte de autorização para a guerra civil.
«Os camponeses diziam que fora do comité de cantão, eles não reconheciam ninguém - declarou desde de Maio um dos chefes da milícia do distrito de Saransk - mas todos os comités de distrito e das cidades trabalhavam para servir os proprietários de terras.» Segundo o comissário de Nijni-Novgorod, «as tentativas faites por certos comité de cantão para lutar contra o arbítrio dos camponeses nos seus actos se terminavam quase sempre por fiascos e ocasionava a destituição de toda a equipa...» «Os comités eram sempre - segundo Denissov, camponês da província de Pskov - do lado do movimento de camponeses contra os proprietários, visto que seus eleito representavam a parte mais revolucionária do campesinato e os soldados da frente.»
Nos comités de distrito e sobretudo nas capitais de província, era a intelliguentsia dos funcionários que dirigia, esforçavam-se em manter as relações pacíficas com os proprietários nobres. «Os camponeses viram - escreveu Iorkov, camponês da província de Moscovo - que era sempre a mesma pele, mas voltada pelo avesso, o mesmo poder, mas sob outro nome.» «Observou-se - escreve o comissário de Kursk - uma tendência... a fazer novas eleições para os comités de distrito que aplicavam com intransigência as decisões do governo provisório.» Todavia, era difícil para o camponês em alcançar o comité de distrito: a ligação política das aldeias e dos cantões era assegurada pelos socialistas-revolucionários, de forma que os camponeses eram obrigados em agir por intermediário do partido cuja principal missão era meter de avesso a velha pele.
A frieza estupidificante à primeira vista do campesinato diante dos sovietes de Março tinha na realidade causas profundas. Um soviete representa não uma organização especial como um comité agrário, mas uma organização universal da revolução. Mas, no domínio da política geral, o camponês não podia fazer um passo sem direcção. Toda a questão era saber donde viria a direcção. Os sovietes camponeses de província e distrito se constituíam sobre a iniciativa e, numa medida considerável, com os recursos da cooperação, não como órgãos da revolução camponesa, mas como instrumentos de uma tutela conservadora sobre o campesinato. A aldeia suportava sobre ela própria os sovietes dos socialistas-revolucionários de direita como um escudo contra o poder. Mas, em casa, ela preferia os comités agrários.
Para impedir a aldeia de se fechar no mesmo círculo «de interesses puramente rurais», o governo apressava-se a criar zemstvos democráticos. Isso já devia forçar o mujique a prevenir-se. Eram frequentemente obrigados a impor eleições. «Houve casos de ilegalidade - relata o comissário de Penza - no seguimento as eleições foram anuladas.» Na província de Minsk, os camponeses prenderam o presidente da comissão eleitoral de cantão, o príncipe Droutsky-Kiogbestsky, acusando-o de ter falsificado as listas: os mujiques tinham dificuldades em se entenderem com o príncipe sobre a solução democrática de um desacordo secular. O comissário do distrito Bugulminsky relata: «As eleições aos zemstvos de cantão no distrito não foram regulares... A composição dos eleitos é exclusivamente camponesa, nota-se o afastamento dos intelectuais do lugar, sobretudo dos proprietários de terras.» Sob este aspecto, os zemstovos não se distinguiam nada dos comités. «Por consideração dos intelectuais e particularmente dos proprietários de terras - escreve e lamenta-se, o comissário da província de Minsk - a atitude da massa camponesa é negativa». Num jornal de Mohilev, datado do 23 de Setembro, pode ler-se: «O trabalho dos intelectuais nos campos comporta riscos se não se promete em ajudar categóricamente a devolução imediata de terras aos camponeses.» Aí onde um acordo, e mesmo um entendimento entre as principais classes se torna impossível, o chão desliza para as instituições da democracia. O estado nado-morto dos zemstvos de cantão fazia prever sem erro o afundamento da Assembleia constituinte.
«Entre campesinato daqui - declarava o comissário de Nijni-Novgorod - a convicção fez-se que todas as leis civis perderam a força e que todas as relações de direito devem ser agora resolvidas pelas organizações camponesas.» Dispondo da milícia no lugar, os comités de cantão proclamavam leis locais, estabelecendo os preços do aluguel, resolviam os salários, colocavam nos domínios dos gerentes, controlavam a terra, os terrenos de pasto, os bosques, o materia, confiscavam as armas nas casas dos proprietários, procediam a buscas e prisões. A voz dos séculos e a experiência nova da revolução diziam igualmente ao mujique que a questão da terra era uma questão de força. Para uma revolução agrária, era preciso ter os órgãos de uma ditadura camponesa. O mujique não conhecia ainda essa palavra de origem latina. Mas o mujique sabia o que queria. A «anarquia» que se queixavam os proprietários, os comissários liberais e os políticos conciliadores, era na realidade a primeira etapa de uma ditadura revolucionária nos cantões.
A necessidade em criar órgãos particulares, puramente camponeses, para a revolução agrária, tinha sido apoiada por Lenine desde dos acontecimentos de 1905-1906: «Os comités revolucionários camponeses - ele demonstrava no congresso do partido em Estocolmo - dão a via única pela qual pode caminhar o movimento camponês.» O mujique não lia Lenine. Mas, em contra-partida, Lenine lia bem no pensamento do mujique.
A aldeia muda de atitude em relação dos sovietes somente próximo do outono, quando os próprios sovietes modificam o seu curso político. Os sovietes bolchevistas e socialistas-revolucionários de esquerda nas capitais de distrito ou de província não retêm mais os camponeses - ao contrário, eles empurram-os para a frente. Se, nos primeiros meses, a aldeia tinha procurado nos sovietes dos conciliadores um disfarce legal para chegar logo ao conflito aberto com eles, agora ele começava a encontrar pela primeira vez nos sovietes revolucionários uma verdadeira direcção. Camponeses da província de Saratov escreviam em Setembro: «O poder deve passar em toda a Rússia para as mãos... dos sovietes de deputados operários, camponeses e soldados. Será mais seguro.» É somente próximo do outono que o campesinato começa a ligar-se o seu próprio programa agrário à palavra de ordem do poder para os sovietes. Mas aqui ainda ele não sabe quem dirigirá esses sovietes e como.
Os sarilhos agrários tinham na Rússia a sua grande tradição, o seu programa simples mas claro, seus mártires e seus heróis em diversos lugares. A experiência grandiosa de 1905 não passou sem deixar traços mesmo na aldeia. A isso é preciso acrescentar a acção das seitas religiosas que uniam milhões de camponeses. Conheci - escreve um autor bem informado - muitos camponeses que acolheram... A Revolução de Outubro como a absoluta realização de suas esperanças religiosas.» De todos os levantamentos camponeses conhecidos na história, o movimento do campesinato russo em 1917 foi sem dúvida o mais fecundado pelas ideias políticas. Se, todavia, ele se mostra incapaz de criar uma direcção autónoma e de tomar o poder nas suas mãos, as causas deviam-se à natureza orgânica de uma economia isolada, mesquinha e rotineira: esgotando toda a seiva do mujique, esta economia não o indemnizava em lhe assegurando a capacidade de generalizar.
A liberdade política do camponês significa, na prática, a liberdade de escolher entre os diversos partidos das cidades. Mas essa escolha não se faz à priori. Pelo seu levantamento, o campesinato levou os bolcheviques para o poder. Mas é somente após ter conquistado o poder que os bolcheviques poderão conquistar o campesinato, transformando a revolução agrária numa lei do Estado operário.
Um grupo de eruditos, sob a direcção de Iakovlev, estabeleceu uma classificação extremamente preciosa de documentos que caracterizam a evolução do movimento agrário de Fevereiro a Outubro. Adoptando como base a cifra 100 para exprimir o número dos manifestantes desorganizados para cada mês, esses eruditos calcularam que os conflitos «organizados» tinham subido em Abril a 33, em Junho a 86, em Julho a 120. Isso foi o o momento de maior desenvolvimento das organizações socialistas-revolucionárias no campo. Em Agosto, sobre 100 conflitos não organizados, só 62 foram organizados e, em Outubro, um total de 14. Desse número, extremamente instrutivo mesmo se muito convencional, Iakovlev deduziu o inesperado todavia: se, antes de Agosto, o movimento tornou-se cada vez mais «organizado», ele tomou no outono, cada vez mais, o carácter de uma «força elementar». Um outro pesquisador, Vernenitchev, chegou à mesma conclusão: «A redução da percentagem do movimento organizado no período onde subiu a corrente na véspera de Outubro testemunha a natureza elementar do movimento no decurso desses meses. «Se opormos o elementar ao consciente, como a cegueira à vista - e isso representa a única anti-tese científica - era preciso chegar à conclusão que o estado de consciência do movimento camponês até Agosto subiu, mas logo começou a cair, para desaparecer completamente no momento da insurreição de Outubro. É o que os nossos eruditos não queriam evidentemente dizer. Se se pensar na questão, não é difícil compreender que, por exemplo, as eleições rurais para a Assembleia constituinte, apesar da sua aparente «organização», tinham um carácter infinitamente mais «elementar» - isto é não ponderado, gregário, cego - que a marcha «não organizada» dos camponeses contra os proprietários nobres, na qual cada um dos rurais sabia exactamente o que queria.
No início do outono, o campesinato rompia não com a sua opinião consciente para se lançar na força elementar, mas com a direcção dos conciliadores para chegar à guerra civil. A decadência do estado de organização teve em suma um carácter superficial: as organizações de conciliadores caíam; mas o que elas deixavam atrás delas ajudava a partida para uma via nova que se efectuava sob a direcção imediata dos elementos mais revolucionários: soldados, marinheiros, operários. Chegando a actos decisivos, os camponeses convocavam frequentemente uma assembleia geral e mesmo cuidavam de fazer assinar a sua decisão tomada por todos os habitantes da aldeia. «Durante o período de outono do movimento camponês, por vezes devastador - escreve Chestakov, terceiro erudito - muitas vezes aparece sobre a cena a velha assembleia comunal (skhod) dos camponeses. É pelo skod que o campesinato partilha os bens apreendidos, pelo skod que ela leva a negociações com os proprietários e os mestres da propriedade, com os comissários de distrito e diferentes pacificadores...»
Porquê desapareciam da cena os comités de cantão que conduziram directamente os camponeses à guerra civil? Sobre isso, não temos indicações claramente documentadas. Mas a explicação surge por ela própria. A revolução desgasta muito rapidamente os seus órgãos e as suas armas. Já pelo facto que os comités agrários dirigiam por medidas meio pacíficas, eles deviam encontrar-se pouco susceptíveis em assaltar directamente. A causa geral é completada pelas causas particulares, mas que não deixam por isso de ter menos peso. Comprometendo-se na via de uma guerra aberta com os proprietários, os camponeses sabiam muito bem o que os ameaçava em caso de derrota. Mais que um comité agrário, já sob Kerensky, tinha sido preso. Descentralizar as responsabilidades tornava-se uma exigência absoluta da táctica. Para isso a forma mais utilizável, era o mir (comuna rural). No mesmo sentido agia, sem dúvida, a habitual desconfiança dos camponeses em relação uns aos outros: tratava-se agora de confiscar e de partilhar os bens dos proprietários, cada um queria participar pessoalmente à operação, não confiando a ninguém os seus direitos. É assim que a crescente gravação da luta levava à eliminação temporária dos órgãos representativos da democracia camponesa primitiva, sob os aspectos do skod e das sentenças do mir.
Grandes aberrações na definição do carácter do movimento camponês devem parecer particularmente inesperadas sob a pluma dos eruditos bolchevistas. Mas não se pode esquecer que se trata de bolcheviques de nova formação. A burocratização do pensamento leva inevitavelmente a uma sobre-estimação das formas que o campesinato dava de si próprio. O funcionário instruido, a seguir ao professor liberal, considera os processos sociais do ponto de vista administrativo. Na qualidade de comissário do povo para a Agricultura, Iakovlev manifestou mais tarde a mesma atitude sumária de burocrata em relação ao campesinato, mas, já num domínio infinitamente mais largo e carregado de responsabilidades, precisamente na aplicação da «colectivização generalizada». O superficial na teoria se vinga terrivelmente quando se trata de uma prática de grande envergadura!
Mas, antes os erros da colectivização generalizada, resta ainda treze anos. Por enquanto, não se trata senão da expropriação de terras dos proprietários. Há cento e trinta e quatro mil proprietários que tremem ainda sobre os seus oitenta milhões de acres. Os mais ameaçados são os da cimeira, os trinta mil mestres da antiga Rússia que possuem setenta milhões de acres, mais de dois mil acres em média por cabeça. Um membro da nobreza, Boborykine, escreva a Rodzianko: «Sou proprietários e não posso meter na cabeça que sou privado da minha terra, sobretudo com o objectivo o mais inverossímil: por uma experiência das doctrinas socialistas». Mas a revolução tem justamente por tarefa de realizar o que não entra na cabeça dos dirigentes.
Os proprietários mais perspicazes não podem, todavia, dispensar-se de ver que eles não manterão as suas propriedades. Eles já não se esforçam mais em conservá-las: mais depressa eles se desembaraçam delas, melhor. A Assembleia constituinte parece-lhes antes de tudo como um grande Tribunal de Contas, onde o Estado os indemnizará não somente pela terra, mas também pelas suas tribulações.
Os camponeses proprietários aderiam a esse programa do lado esquerda. Eles estavam bastante inclinados em acabar com a nobreza parasitária, mas temiam fazer estremecer a concepção da própria propriedade da terra. O Estado é bastante rico - declaravam eles no seu congresso — para pagar aos proprietários alguns doze biliões de rublos. Na qualidade de «camponeses», eles contavam tirar proveito das condições vantajosas da terra dos proprietários nobres que teria sido paga por conta do povo.
Os proprietários compreendiam que a importância das indemnizações era um valor político que seria determinado pela relação de forças no momento de resolver as contas. Até ao fim de Agosto, restava a esperança que a Assembleia constituinte, convocada à maneira de Kornilov, faria passar a linha de reforma agrária entre Rodzianko e Miliokov.
A queda de Kornilov significava que as classes possuidoras tinham perdido o jogo.
No decorrer de Setembro e Outubro, os proprietários esperam a solução, como um doente incurável espera a morte. Outono é a época da política dos mujiques. As colheitas estão feitas, as ilusões dissipadas, a paciência perdida. É preciso acabar com isso! O movimento transborda, estende-se a todas as regiões, apaga as particularidades locais, arrasta as camadas da aldeia, barre todas as considerações de legalidade de de prudência, torna-se ofensivo, exasperado, feroz, enraivecido, toma como arma o ferro e o fogo, o revolver e a granada, queima e destrói as mansões, expulsa os proprietários, limpa a terra, aqui e ali, rega de sangue.
Eles morrem, os ninhos de senhores cantados por Puchkine, por Turguenieve e por Tolstoi. A velha Rússia evapora-se em fumo. A imprensa liberal junta as lamentações, os gemidos, sobre as destruições de jardins à inglesa, quadros pintados na época da servidão, bibliotecas patrimoniais, Panteões de Tambov, cavalos de corrida, velhas gravuras, bois de raça. Os historiadores burgueses tentam lançar sobre os bolcheviques a responsabilidade do «vandalismo» dos camponeses exercendo suas represálias contra a «cultura dos nobres». Na realidade, o mujique russo acabava uma obra empreendida muitos séculos antes da aparição dos bolcheviques. Ele preenchia a sua tarefa histórica de progresso com os únicos meios que estavam à sua disposição: pela barbarie revolucionária ele desenraizava a barbarie medieval. Aliás, nem ele próprio, nem os seus avós nunca tinham conhecido a clemência ou a indulgência.
Quando os feudais ganharam às revoltas camponesas, quatro séculos e meio antes da libertação dos camponeses franceses, um velho monje escrevia na sua crónica: «Eles fizeram tanto mal ao país que não havia necessidade da chegada dos ingleses para devastar o reino; os ingleses não teriam podido fazer o que fizeram os nobres da França.» Só a burguesia, em Maio de 1871, ultrapassou e atrocidades a nobreza francesa. Os camponeses russos, graças à direcção dos operários, os operários russos, graças ao apoio dos camponeses, escaparam a esta dupla lição dos defensores da cultura e da humanidade.
As relações recíprocas entre as classes essenciais da Rússia encontraram sua reprodução nos campos. Tal como os operários e os soldados se tinham batido contra a monarquia, a despeito dos planos da burguesia, os camponeses pobres foram os mais ousados a levantarem-se contra os proprietários, sem dar ouvidos aos avisos do kulaque. Tal como os conciliadores acreditavam que na revolução não se instalaria senão a partir do momento onde Miliokov a reconheceria, o camponês de condição média, olhando à direita e à esquerda, imaginava-se que a assinatura do kulaque legalizava as confiscações. Tal como enfim a burguesia hostil à revolução não hesitou a atribuir o poder, os kulaques que se tinham oposto às devastações, não renunciaram a tirar proveito. O poder entre as mãos do burguês, tal como os bens do proprietário entre as mãos do kulaque, não foi retido muito tempo: nos dois caos, em virtude de causas análogas.
A potência da revolução democrático-agrária, essencialmente burguesa, exprimiu-se pelo feito que ela ultrapassou por um certo tempo os antagonismos de classe na aldeia: o operário agrícola pilhava o proprietário, ajudado nisso pelo kulaque. Os séculos XVII, XVIII e XIX da história russa tinham subido sobre os ombros do século XX e tinham-lhe feito tocar terra. A fraqueza da revolução burguesa atrasada se traduziu nisto que a guerra camponesa não levava os revolucionários burgueses para a frente, mas, pelo contrário, os enviou definitivamente para o campo da reacção: Tseretelli, prisioneiro ainda na véspera, protegia as terras dos proprietários nobres contra a anarquia! Rejeitada pela burguesia, a revolução camponesa juntava-se ao proletariado industrial. Por aí mesmo, o século XX não somente se libertava dos séculos precedentes que se tinham abatido sobre ele, mas, sobre os seus ombros, levantava-se a uma nova altura histórica. Para que os camponês pudesse limpar a terra e retirar as barreiras, o operário devia colocar-se à cabeça do Estado: tal é a mais simples formula da Revolução de Outubro.
Inclusão | 17/09/2012 |
Última alteração | 14/04/2014 |