Questões do Modo de Vida

Leon Trotsky

Transcrição autorizada
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Introdução


Quando em 1923 são publicadas As questões do modo de vida, Trotsky é ainda comissário do povo para o exército e a marinha, é ainda o segundo personagem da vida política da Rússia dos sovietes. Quem ignore o que é a situação da Rússia nessa época, pode admirar-se de ver Trotsky dispender tempo com questões na aparência secundárias: comportamento humano na sociedade, alcoolismo, relações familiares, emancipação das mulheres, correcção da linguagem cotidiana, etc. Explicam alguns a atenção que Trotsky dispensou às “pequenas coisas” pelos traços do seu caráter: exactidão e meticulosidade; mas estas explicações não vão até ao fundo da questão. Se em 1923 Trotsky considera necessário por o acento nestes problemas é porque a situação na Rússia pós-capitalista dos primeiros anos da N.E.P. conferiu a estes problemas caráter essencial.

A N.E.P., ou Nova Economia Política, foi adoptada pelo X° Congresso do partido (8-16 de Março de 1921). Surge na sequência do chamado período do “comunismo de guerra”, caracterizado além do mais pelo afundamento quase total das forças produtivas, pela política de requisições forçadas nos campos para permitir a sobrevivência nas cidades, pelo total desaparecimento do sector privado, pequenas ou grandes fábricas, por efeito da fuga dos antigos proprietários. Esta situação conduz à colectivização, com frequência não desejada, de todos os sectores da economia russa. A N.E.P. põe fim à política das requisições. Autoriza a reconstituição do sector privado na indústria e no comércio. Encara a criação de sociedades de economia mista, associando capitais privados estrangeiros a capitais do Estado. Os primeiros resultados desta nova política são positivos. A agricultura desenvolve-se e atinge rapidamente uma produção igual a dois terços da de antes da guerra. As cidades, que grande parte da população tinha abandonado para se refugiar nos campos, começam a renascer. Pela primeira vez após a revolução a produção tende a aumentar. A melhoria das condições de vida torna-se real.

Mas a N.E.P. – economicamente inevitável nas condições que eram as de 1921 – está, ao mesmo tempo, cheia de ameaças para a revolução. Permite o desigual enriquecimento dos camponeses, chegando rapidamente à constituição de uma categoria de camponeses ricos, os “Kulaks”, cujos domínios se vão alargando, e que empregam cada vez mais camponeses pobres, ou “Biedniaks”, como operários assalariados. Nas cidades, assiste-se a uma verdadeira mutação no seio da classe operária. Os quadros operários do antigo partido bolchevique tinham sido dizimados pela guerra civil. O esgotamento físico, as doenças, as missões e os cargos longínquos dispensaram e reduziram esse primeiro núcleo de revolucionários proletários. Constituiu-se uma nova classe operária. Esta, saída do campesinato pobre e desprovida de toda a tradição política proletária, mostra-se por isso particularmente sensível á influência da nova burguesia engendrada pela N.E.P., que rapidamente se apresentará aos olhos das massas como um modelo de “modo de vida” totalmente estranho aos ideais revolucionário. Este modo de vida, com o seu luxo gritante e o seu gosto pelo lucro terá um papel profundamente desmoralizador em todas as camadas sociais desfavorecidas da Rússia dos sovietes e particularmente na classe operária urbana em contacto com os novos burgueses, que são os “Nepmen”, e com os antigos quadros administrativos e técnicos que houve que voltar a utilizar por ter faltado o tempo para formar outros novos.

No plano estritamente econômico, a N.E.P. também não foi um sucesso total. A indústria ligeira, na qual os “privados” investiram de preferência a fazê-lo na industria pesada por os lucros serem naquela mais rápidos, progride mais depressa em detrimento desta última que, no essencial, se manteve como sector do Estado. A alta dos preços dos produtos da indústria ligeira torna-os inacessíveis à grande massa dos camponeses. É a chamada crise “das tesouras”. Depois de se terem alinhado, os preços industriais e os preços agrícolas passam a afastar-se. Esta crise reforça por um lado os fenômenos de autarquia local nos campos; incita as indústrias do Estado, ou “indústrias vermelhas”, a diminuir as suas despesas e a aumentar a sua produtividade, tendo como efeito imediato a estagnação dos salários e o crescimento do desemprego. O desequilíbrio entre os salários e os preços torna-se cada vez mais gritante.

Há que ter também em conta a situação internacional. Em 1923, existe na Alemanha uma situação revolucionária explosiva, mas, no fim desse ano, a revolução alemã está esmagada, enquanto que a revolução búlgara de Setembro de 1923 termina em catástrofe. Estes acontecimentos dão-se no seguimento da liquidação da República dos Sovietes na Hungria, em Agosto de 1919, do revés da greve geral italiana m Agosto de 1922 e da subida de Mussolini ao poder em Outubro de 1922. A revolução russa encontra-se isolada no plano internacional. No plano interno, tem que defrontar-se com um perigo que Lenine tinha pressentido logo após Outubro: o ascenso da burocracia. É esse mesmo perigo que Trotsky denunciará na sua carta de 8 de Outubro de 1923 ao Comitê Central, na qual escreve:

A burocratização do aparelho do partido desenvolveu-se em incríveis proporções pelo emprego do método de selecção (dos quadros) pelo secretariado. Criou-se uma larga camada de militantes, com entrada no aparelho governamental do partido, que renunciacompletamente às suas próprias opiniões de partido ou, pelo menos, à sua aberta expressão, como se a hierarquia burocrática fosse o aparelho que cria a opinião do partido e as suas decisões”.

Esta mesma idéia será retomada e expressa a 15 de Outubro de 1923 por uma grupo de 46 militantes, certos dos quais dos mais eminentes dirigentes do partido e veteranos da guerra civil. Essa será a “Carta dos Quarenta e Seis”, na qual será dito:

O regime que foi posto em vigor no partido é absolutamente intolerável. Mata toda a iniciativa no partido, submete-o a um aparelho de funcionários permanente que inegavelmente funciona em período normal mas que inevitavelmente se arrasta em período de crise e ameaça ir para a bancarrota total em face dos sérios acontecimentos que se preparam”.

É este aparelho que esmagará a oposição, levando em 23-26 de Outubro de 1926 à exclusão de Trotsky do “bureau” político, à adopção da “teoria estalinista de construção do socialismo num só país’” e à construção do Estado soviético por métodos burocráticos e autoritários, que Trotsky e os “Quarenta e Seis” tinham denunciado. É em relação a todo este contexto, que apenas podemos esboçar nas linhas que precedem, que se deve ler As questões do modo de vida.

A revolta de Kronstadt tinha sido esmagada enquanto se desenrolava o X Congresso que ia decidir da instauração da N.E.P. Nesse mesmo ano de 1921, o país conhecia diversas insurreições. Com freqüência, como em Kronstadt, há comunistas ao lado dos insurrectos, que, na maioria, ou são camponeses ou são operários recentemente vindos do campo. Já vimos que a guerra civil, as doenças, as diversas tarefas revolucionárias, tinham dizimado a classe operária inicial, aquela que tinha feito Outubro. A vanguarda russa sofreu igualmente o efeito do esgotamento da vaga revolucionária européia do pós-guerra. A Internacional Comunista levou aliás isso em conta ao modificar a sua táctica durante o seu III Congresso (22 de Junho/12 de Julho de 1921), ao, decidir empreender, antes de qualquer nova acção revolucionária de envergadura, a conquista da classe operária internacional.

Também a classe operária russa, saída das mutações pós-revolucionárias, deve – como aliás as insurreições de Kronstadt e outras o mostraram – ser conquistada para as idéias da revolução. As greves “selvagens” dos anos 21 e 22 puseram em evidência o baixo nível de consciência das massas russas privadas da sua vanguarda revolucionária. É preciso, segundo Trotsky empreender com urgência uma acção em produndidade, uma acção cultural no mais amplo sentido do termo, inseparável da acção de educação proletária, para chegar a uma tomada de consciência pelas massas dos objectivos da revolução, a uma transformação dessa consciência, extirpando dela todos os aspectos negativos herdados do regima pré-revolucionário. Esta acção, que será oficialmente designada na Rússia por Pérestroika Byta, ou Reconstrução do modo de vida, constitui o objectivo principal de Trotsky ao escrever As questões do modo de vida. Face a influência desagregadora da N.E.P., a criação de um “homem novo” é uma questão urgente. Face ao ascenso da burocracia, é preciso poder opor-lhe o mais rapidamente possível já não uma massa amorfa e incapaz de tomar em mãos os seus próprios assuntos mas um novo proletariado consciente dos seus interesses como classe. Face ao peso dos hábitos e das tradições nos quais os inimigos da revolução se apóiam: religião, alcoolismo, subordinação das mulheres, é preciso desenvolver nas massas outros valores, propor-lhes outras idéias. É preciso, enfim, tomar consciência de que a construção a longo prazo de uma sociedade exige, para a erguer fora dos métodos burocráticos e autoritários, uma larga participação das massas, passando pelo que então se chamava na Rússia uma “revolução cultural”, da qual a Reconstrução do modo de vida era um dos instrumentos. Ao escrever os artigos que constituem As questões do modo de vida, Trotsky opunha ao esquema estalinista de construção do socialismo, uma outra via. Para ele como para todos os marxistas, não bastava começar por criar em primeiro lugar industria pesada, seguida de uma industria ligeira, assentar as bases econômicas, para que automaticamente e de qualquer modo surjam as superestruturas ideológicas. É esta versão do socialismo que Estaline defenderá nas Questões do Leninismo.

Para Trotsky, é ao mesmo tempo que devem ser edificadas as bases econômicas e as relações sociais inseparáveis do novo modo de produção.

Esta vontade de agir, simultaneamente, sobre as bases econômicas e sobre as relações de produção, logo sobre o modo de vida, é característica do período pré-estalinista, do período dos anos 20. Os escritores, poetas e artistas reagrupados no seio do L.E.F. (Frente de Esquerda da Arte, definem o “byt” (o modo de vida) como sua “nova frente”. Aos seus olhos, a arte deve tornar-se um instrumento de transformação social, incitando à prática de novas relações sociais. Para eles, ao contrário daqueles que lhes sucederão durante o período do “realismo socialista” estalino-idanovista, não se trata de representar, por exemplo, uma sociedade ideal liberta de todo o conflito e povoado por heróis do trabalho, por mães-heroínas, por famílias sem problemas, por brigadas de elite, seguindo com entusiasmo e sem discutir as directivas do representante infalível do Partido. Trata-se de utilizar a literatura, a poesia, a arte, o desenho, a arquitetura, para agir directamente sobre o comportamento humano e o transformar.

Essas preocupações são em particular evidentes no domínio do habitat. Se a arquitetura, o urbanismo, a implantação territorial dos estabelecimentos humanos do passado dão a imagem da sociedade abatida e reflectem as antigas relações sociais, então uma nova arquitetura e um novo urbanismo à escala de todo o território devem ser imaginados de modo a permitir a expansão das novas relações sociais, a ajudar à sua transformação, prefigurando o futuro. Mais tarde, pelo fim dos anos 20, já quando demasiado tarde, dirigentes políticos como You Larine, economistas como L. Sabsovitch, sociólogos como M. Okhitovitch e arquitectos como M. La. Guinzburg, irão propor formas concretas de uma nova implantação socialista da humanidade à escola de todo o território. Tentarão definir o que Sabsovitch chamará o “novo modo de vida socialista”, baseado na coletivização de funções até então delineadas no seio da célula familiar, facilitando a libertação das mulheres das penosas obrigações domésticas e favorecendo também largas permutas e contactos sociais. Para isso, partirão das primeiras experiências sobre o tema “viver diferentemente” realizadas no seio das massas no princípio dos anos 20 e que Trotsky descreve no capítulo intitulado “Da antiga à nova família”.

É acerca dessas primeiras experiências de vida colectiva que Trotsky disse que deviam constituir os “germens da vida nova”. (Rostki novi jyzni). É também a partir dessas primeiras experiências que os arquitectos e os urbanistas imaginarão mais tarde as “casas comunais” e os esquemas descentralizados de um novo habitat socialista. Trotsky demonstrou que e essa “vida nova”, que é objecto fundamental do socialismo, só pode ser edificada tendo em conta a relação dialéctica que existe entre o desenvolvimento das forças produtivas e aquilo que chama a “esfera da moral”. (Capítulo: Hábitos e Costumes).

As novas relações de produção e as novas relações entre os homens e entre os sexos, que constituem o fundamentos das verdadeiras “experiências sociais” realizadas durante os anos 20, ilustram um aspecto mal conhecido mas essencial da ditadura do proletariado, não apenas como “conceito” mas como prática social viva que toca todos os aspectos da vida quotidiana das massas. É através do alargamento e generalização dessas experiências que se podia esperar atingir novas formas de funcionamento democrático da sociedade, com as próprias massas a ocuparem-se dos seus problemas ao nível da fábrica, da exploração agrícola, da “escola comum”, do bairro, da região. Estariam então melhor preparados para se oporem vitoriosamente às

poderosas forças que desviam o Estado soviético do seu caminho (...e que) emanam dum aparelho que nos é fundamentalmente estranho e que representa uma mescla de sobrevivências burguesas e tzaristas “coberta apenas de um verniz soviético” que (14) mergulha o país na opressão”. (Lenine, Obras Completas, tomo 36, PP. 620-623).

A “reconstituição do modo de vida”, se não tivesse sido bloqueada logo após o seu início, teria podido constituir uma arma eficaz na luta contra a burocracia estalinista. Foi para evitar essa catástrofe, que já se perfilava no horizonte, que Trotsky publicou em 1923 As questões do modo de vida.

Na nossa época fala-se muito, em certos grupos e em certas publicações, de “mudar de vida” e de “viver diferentemente” desde já. Aqueles que preferem fugir da sociedade e combatê-la, que se afastam para “viver diferentemente” em efêmeras comunidades constituídas em quintas ou aldeias abandonadas e que por vezes acreditam situar-se na linha da “reconstrução do modo de vida” soviético, hão-de compreender, sem lerem As questões do modo de vida, que nada conseguem. Verão que, para Trotsky, a “Vida Nova” é inseparável da transformação das relações de produção e, portanto, do próprio modo de produção num processo dialéctico global. É precisamente nessa necessária relação dialéctica que se situa a actualidade das idéias avançadas por Trotsky em As questões do modo de vida perante certas concepções contemporâneas que opõem o carro à frente dos bois.

Toda uma geração poderá hoje pensar que é só a partir de Maio de 68 que certas correntes do movimento operário reflectiram sobre os problemas da vida quotidiana: relações ócio/trabalho, condição feminina, família, gestão pelas massas dos equipamentos colectivos, habitações de novo tipo, urbanismo e quadro de vida. Poderá crer que só no fim de toda uma série de etapas: eleições, Programa comum, democracia “avançada”, conducentes a um socialismo indefinido, é que essas questões, conquanto essenciais, poderão ser abordadas. Em As questões do modo de vida, Trotsky mostra que, na Rússia, foi logo no dia imediato ao ato da Revolução que foram encaradas, apesar da miséria material e da impreparação cultura, sob a forma de autênticas “experiências sociais”. Os textos que apresentamos a seguir, que são inéditos, foram escritos há cerca de 50 anos. Seria absurdo buscar neles receitas acabadas para o futuro. A situação da França e hoje poucas relações tem com a da Rússia de antes de 1917, quer se trate do modo de vida ou de outros aspectos. Sabe-se hoje que se a libertação das mulheres passa pela sua libertação econômica, essa é decerto uma medida necessária mas não suficiente. Também os problemas da família, da habitação, etc., se apresentam hoje em termos diferentes daqueles em que Trotsky os colocava em 1923. Contudo, as abordagens por ele desenvolvidas podem ainda permitir evitar certo número de erros, alguns dos quais já foram cometidos e outros podem sê-lo ainda. E é essencial lembrar hoje que após a revolução e a tomada do poder pela classe operária, sem deixar de encarar as etapas ligadas às possibilidades materiais e culturais, o poder soviético pôs na ordem do dia não apenas a elevação decalcada do modelo burguês, não apenas a colectivização dos meios de produção e de troca mas o que então se chamava “reconstrução do modo de vida” inclusivamente nos seu detalhes aparentemente mais insignificantes e mais íntimos.

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Estes textos foram traduzidos por Joelle Aubert-Yong com base na 2ª edição das Questões do modo de vida, publicada em Moscovo em 1923 pelas edições do Estado (Gosizdat). Em 15 de Janeiro de 1925 Trotsky demitia-se das suas funções de comissário do povo para o exército e a marinha; em 23-26 de Outubro de 1928 seria excluído do bureau político; em 15 de Novembro de 1927 seria excluído do partido; em 16 de Janeiro de 1928 seria deportado para Alma-Ata; seria expulso da URSS em 10 de Fevereiro de 1929 e assassinado em Coyoacan (México) em 20 de Agosto de 1940.

Anatole Kopp


Inclusão 21/06/2009
Última alteração 15/12/2010