Lenine Ferido

Leão Trotsky

2 de Setembro de 1918(1)


Primeira Edição: 

Fonte: "Lénine, seguido de um texto de André Breton" de Leão Trotski, Portugal, &etc, 1976.

Tradução de: Elisa Teixeira Pinto.

Transcrito por  José Braz para The Marxists Internet Archive.


Camaradas, é assim que interpreto as fraternas aclamações que acabo de ouvir: hoje, nestas horas dolorosas e nestes dias dificeis, todos sentimos, como se fôssemos irmãos, uma necessidade profunda de nos unir, de nos ligar de mais perto às organizações soviéticas, de nos agrupar mais estreitamente sob a bandeira comunista. Nestes dias e nestas horas cheias de perigos, enquanto o porta-bandeira do proletariado, o nosso, e, podemos dizer, o do mundo inteiro, se encontra estendido flutuando no seu leito de dor contra o terrível espectro da morte, Sentimo-nos mais próximos uns dos outros do que nas horas de vitória...

A notícia do atentado contra o camarada Lenine chegou-nos, a alguns camaradas e a mim, em Svisjsk, na frente de Kasan. Aí, recebíamos golpes, uns vindos da direita, outros da esquerda, outros em pleno rosto. Mas este novo golpe, vindo da retaguarda longínqua, feriu-nos nas costas. Esse golpe traiçoeiro abriu uma nova frente - a mais dolorosa, a mais alarmante no momento actual: a frente onde Vladimir Ilitch luta contra a morte. E quaisquer que sejam ainda as derrotas que possam vir a atingir-nos nesta ou naquela fase da grande batalha - creio firmemente na próxima vitória que obteremos unidos -, para a classe operária da Rússia e do mundo inteiro nenhuma derrota parcial seria tão dolorosa, tão trágica como aquela que nos ameaça, se a batalha travada à cabeceira do nosso dirigente terminar por uma derrota.

Não será difícil imaginar toda a violência de ódio concentrado que esta grande figura suscitou e suscitará em todos os inimigos da classe operária. Pois a natureza agiu bem quando fez incarnar num só homem a imagem do pensamento revolucionário e a energia indomável do proletariado. Essa figura é Vladimir IIitch Lenine.

A galeria dos chefes operários e dos militantes revolucionários é muito numerosa e diversa; muitos de entre nós, que trabalham há já quase trinta anos pela causa da revolução, tiveram a oportunidade de encontrar, em diversos países, tipos muito diferentes do dirigente operário, do representante revolucionário da classe operária. Mas só no nosso camarada Lenine reconhecemos o homem feito para a nossa época de sangue e de ferro.

Atrás de nós ficou a época do desenvolvimento denominado pacífico da sociedade burguesa, durante a qual as oposições de interesses se multiplicavam gradualmente; era então para toda a Europa o período dito da paz armada e o sangue quase que só corria nas colónias onde o capital ganancioso torturava os povos mais atrasados. A Europa gozava a paz sob o regime do militarismo capitalista.

Então se formavam, se definiam os chefes mais representativos do movimento operário europeu. Entre eles conhecemos o maravilhoso dirigente que foi Augusto Bebel, o grande ausente. Ele reflectia, porém, a época de um desenvolvimento progressivo e lento da classe operária. Muito corajoso, dotado de uma energia de ferro, distinguia-se também por uma extrema prudência nos seus movimentos; apalpava o terreno, adoptava uma estratégia de contemporização e de preparação. Exprimiam-se nele um crescimento gradual, uma acumulação molecular das forças do povo operário; o seu pensamento avançava, mas avançava passo a passo, assim como a classe operária alemã, na época da reacção mundial, se elevava aos poucos, libertando-se das trevas e dos preconceitos. A natureza espiritual desse grande Alemão crescia, desenvolvia-se, tornava-se mais forte e mais elevada, mas sempre no mesmo terreno de espera e de preparação. Era assim Augusto Bebel, nos seus pensamentos e métodos, a figura mais bela duma época que se afasta já na eternidade do passado.

A nossa época é feita de uma outra matéria. Todas as oposições que outrora se manifestavam com uma frequência cada vez maior conduziram a uma formidável explosão; dilaceraram a superfície da sociedade burguesa; todas as bases do capitalismo mundial foram abaladas pela terrível carnificina dos povos europeus. Foi esta época que nos desvendou todos os antagonismos de classes, que colocou as massas populares perante a terrível realidade, mostrando-lhes que milhões de homens teriam de perecer devido aos interesses de cínicos oportunistas. Ora, nesse tempo, a história da Europa Ocidental esqueceu, ou não se lembrou, ou foi incapaz de encontrar um chefe, o que é muito compreensível: porque todos aqueles que, na véspera da guerra, gozavam particularmente da confiança dos operários da Europa eram os representantes de ontem e não os de hoje...

E quando se iniciou a nova época, os antigos chefes foram incapazes de estar à sua altura: foi o tempo das convulsões terríveis e das batalhas sangrentas.

A História quis então, e não por acaso, criar na Rússia uma figura de um só bloco, uma figura que representasse bem toda a rudeza e a grandeza do nosso tempo. Repito que não foi por acaso.

Em 1847, a Alemanha pouco desenvolvida fez surgir no seu seio Marx, o maior militante do pensamento, que previu e indicou as vias da nova História. Sim, a Alemanha era então um país atrasado, mas era intenção da História incitar os intelectuais alemães a um período de desenvolvimento revolucionário; e o maior dos representantes da inteligência, rico de toda a ciência adquirida, cortou relações com a sociedade burguesa, ergueu-se no terreno do proletariado revolucionário, elaborou um programa do movimento operário uma teoria do desenvolvimento da classe trabalhadora.

A nossa época foi chamada a realizar aquilo que Marx vaticinou. Para isso, tinha necessidade de novos chefes animados do grande espírito do nosso tempo; com efeito, a classe operária, elevando-se finalmente à altura da tarefa que lhe cabia, apercebia-se claramente do cume efevado que lhe era necessário transpor se quisesse salvar a humanidade e não deixá-la apodrecer, como uma carcaça, à beira do grande caminho da História.

Nessa época, foi a Rússia que criou um novo chefe. Tudo o que havia de melhor nos intelectuais revolucionários de outrora, o seu espírito de abnegação, a sua audácia, o seu ódio à opressão, tudo isso se concentrou nessa figura que, no entanto, desde a sua juventude se tinha afastado sem retorno do mundo dos intelectuais, de cuja ligação com a burguesia se apercebia com nitidez, assumindo na sua pessoa todo o sentido e essência do movimento operário. Apoiando-se no jovem proletariado revolucionário da Rússia, utilizando a riqueza da experiência do movimento operário mundial, servindo-se, para actuar, da sua ideologia como de uma alavanca, essa figura ergueu-se no firmamento político em toda a sua grandeza. Trata-se da figura de Lenine, o maior homem da nossa época revolucionária. (Aplausos.)

Eu sei e vós sabei-lo igualmente, camaradas, que o destino da classe operária não depende de indivíduos; isso não significa porém que as individualidades sejam indiferentes à história do nosso movimento e ao progresso da classe operária. O indivíduo não pode modelar a classe operária à sua imagem, nem indicar ao proletariado, conforme as suas preferências, que siga este ou aquele caminho; pode, todavia, contribuir para a realização das tarefas indispensáveis e acelerar o movimento para o objectivo final.

Os críticos de Karl Marx afirmavam que ele tinha previsto a revolução como estando muito mais próxima do que o estava na realidade. Ao que poderia responder-se, com muita razão, que ele se colocara no alto de uma montanha e que, consequentemente, as distâncias lhe tinham parecido mais curtas.

Vladimir Ilitch foi criticado mais de uma vez por diversos militantes, encontrando-me eu entre eles, por parecer ignorar certas causas secundárias, certas circunstâncias acessórias. Devo dizer que, numa época de desenvolvimento "normal", quer dizer  lento, talvez isso tivesse constituído um defeito para um homem político; contudo, o maior privilégio do camarada Lenine, na sua qualidade de chefe de uma nova época, foi o de ver tudo o que era acessório, tudo o que era exterior, tudo o que era secundário recuar e tombar na sua frente, enquanto apenas subsistia o antagonismo essencia, irredutível, das classes sob a forma terrível da guerra civil. Lançando para longe o seu olhar de revolucionário, Lenine tinha o dom de aperceber e de indicar o principal, o essencial, o indispensáve, elevado ao mais alto grau. E aqueles que como eu puderam durante esse período observar de perto o trabalho de Vladimir Ilitch, a actividade do seu pensamento, esses sentiram necessariamente uma admiração sem limites - diria mesmo: sentiram-se transportados pela admiração - perante essa perspicácia, esse pensamento penetrante que rejeita tudo o que é exterior, o fortuito, o superficial, e traça as vias principais e os meios de acção.

A classe operária só aprende a apreciar aqueles de entre os seus chefes que, tendo desbravado o caminho para o seu desenvolvimento, marcham com um passo seguro e perseverante, muito embora os preconceitos do proletariado lhes criem por vezes obstáculos. Aos poderosos dotes de pensador de Vladimir Ilitch vem juntar-se uma vontade inabalável; e, quando reunidas, estas qualidades constituem a índole do verdadeiro chefe revolucionário, corajoso, irresistível no pensamento, inabalável na vontade.

Que felicidade para nós o facto de tudo o que dizemos, ouvimos e lemos nas resoluções sobre Lenine não seja para deplorarmos a sua morte! E, todavia, o perigo foi muito grande... Estamos certos que sobre esta nova e tão próxima frente de batalha, situada num quarto do Kremlin, a vida vencerá e que Vladimir Ilitch voltará em breve para as nossas fileiras.

Se, como já afirmei, camaradas, Lenine incarna o pensamento corajoso e a vontade revolucionária da classe operária, poder-se-á ver uma espécie de símbolo no facto de nestas horas dolorosas em que a classe operária da Rússia, empregando todas as suas forças, combate nas frentes exteriores os Checoslovacos, os guardas brancos, os mercenários da Inglaterra e da França - o nosso chefe resistir aos ferimentos, defender-se contra a morte que queriam infligir-lhe os agentes desses mesmos guardas brancos, desses Checoslovacos, desses mercenários da Inglaterra e da França. Existe, entre estas circunstâncias, um elo interior. Existe, nestes acontecimentos, uma profunda correspondência histórica. É verdade sentirmos e vermos todos, na nossa luta na frente checoslovaca, anglo-francesa, na frente contra os guardas brancos, sentirmos com toda a certeza aumentarem as nossas forças dia a dia, hora a hora (Aplausos) - posso afirmá-lo como testemunha ocular, pois volto do teatro de operações - sim, cada dia estamos mais fortes, seremos mais fortes amanhã do que o éramos ontem e depois de amanhã mais fortes do que no dia anterior - e não duvido estar próximo o dia em que poderemos dizer que Kasan, Simbirsk, Samara, Oufa e outras cidades, momentaneamente ocupadas pelo inimigo, regressarão à nossa família dos Sovietes. Esperamos também que o restabelecimento de Lenine já não tarde muito.

Neste momento preciso, a bela imagem do chefe ferido, fora de combate durante algum tempo, eleva-se perante nós e impõe-se aos nossos olhares. Sabemos que não nos abandonou nem por um minuto, pois, mesmo abatido pelas balas traiçoeiras, ele nos exorta, nos chama e nos convida a avançar. Não vi um único camarada, um único operário honesto cujos braços tenham caído com desânimo perante a notícia do pérfido atentado; vi, contudo, dezenas de outros que cerravam os punhos, que procuravam apoderar-se de armas; ouvi centenas e milhares de homens jurar vingança implacável aos inimigos de classe do proletariado. Inútil contar-vos quais foram os sentimentos dos militantes conscientes, combatendo na frente de batalha, ao saberem que Lenine jazia, ferido por duas balas. Ninguém ousaria afirmar que Lenine, devido ao seu carácter, não tenha a resistência do metal; o inimigo quis que até na sua carne houvesse metal; isso fará com que seja ainda mais amado pela classe operária da Rússia.

Ignoro se as nossas palavras, se o bater dos nossos corações serão ouvidos à cabeceira do camarada Lenine; não duvido porém que ele tenha a certeza de que estamos com ele. Atormentado pela fébre, ele sabe contudo que, à semelhança do seu, os nossos corações batem dupla, triplamente mais forte. Agora, todos compreendemos mais claramente do que nunca que somos membros duma mesma familia comunista soviética. Jamais nos pareceu tão secundária a vida individual deste ou daquele de entre nós num momento em que está em perigo a existência do maior homem do nosso tempo. Qualquer imbecil pode disparar sobre Lenine e perfurar-lhe o crânio; mas seria difícil encontrar de novo uma cabeça tão bela, e a própria natureza não poderia reconstituir a sua obra com uma tão grande facilidade.

Mas não, em breve se levantará para pensar, para criar, para combater ao nosso lado. Quanto a nós, prometemos ao nosso chefe bem-amado mantermo-nos fiéis à bandeira da revolução comunista, enquanto o pensamento subsistir em nós, enquanto o sangue fizer vibrar os nossos corações. lutaremos até à última gota de sangue, até ao nosso último sopro, contra os inimigos da classe operária. (Prolongadas salvas de palmas). (2)


Notas:

(1) Discurso na sessão do Comité Executivo Central pan-russo, em 2 de Setembro de 1918. (retornar ao texto)

(2) A propósito destas páginas e do texto seguinte, ver Isaac DEUTSCHER, O profeta desarmado (Oxford University Press, 1959; ed. françesa Juillard, 1964. tomo 2 da biografia em três volumes de Trotski por Deutscher): "Krupskaia escrevia (numa carta dirigida a Trotski, pouco depois da mortte de Lenine) que, pouco tempo antes da sua morte, Lenine relera o retrato que Trotski dele tinha feito, mostrando-se visivelmente emocionado, em particular pelo paralelo entre Marx e a sua pessoa; ela queria que Trotski tivesse a certeza que Lenine conservara por ele, até ao fim, a mesma amizade que sentira aquando do seu primeiro encontro em Londres". (pág, 189), (Nota de Marguerite Bonnet). (retornar ao texto)

Inclusão 06/02/2003