Textos Históricos da Revolução

Organização e introdução de Orlando Neves


O 28 do Setembro


Introdução 7

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A passos lentos mas quase sempre irreversíveis, a marcha para a destruição da máquina fascista e do aparato capitalista prosseguia e nela são de grande importância os papéis desempenhados pelos partidos progressistas e, fundamentalmente pelas massas trabalhadoras que, quiçá, tenham, por vezes, cometido erros tácticos mas sempre procuraram adiantar-se ao poder político de modo a um tempo o obrigar a tomar as medidas justas e, após a saída dessas medidas, a apoiá-lo.

A espíritos eivados de anquilosamentos passadistas ou a espíritos avidamente interessados em defender os seus privilégios não podia agradar este ambiente geral do País. As forças da reacção viam com muito maus olhos o crescer da palavra socialismo dentro do espírito das massas trabalhadoras e, com piores olhos ainda, a condescendência que o poder político (o MFA sobretudo) lhes concedia.

Havia, pois, que reagir e procurar inverter completamente o rumo. Já não bastava o golpe palaciano estilo Palma Carlos. Era preciso dar-lhe um aspecto massístico que impressionasse os hesitantes e os temerosos. Spínola toma a rédea dessa tentativa. Quando a 10 de Setembro faz o seu célebre discurso negro, apelando para a maioria silenciosa a fim de que o País não caísse no caos (a fim de que se afastassem comunistas e socialistas de esquerda, se preciso pela força, era o significado autêntico das suas palavras), Spínola carrega no botão que irá detonar a pseudo-grandiosa manifestação de apoio a si, como Presidente da República.

O capitalismo e mais uma vez com ele todos os seus naturais aliados, em especial a social-democracia, tentam o golpe espectacular (e sangrento pois estava previsto o derramamento de sangue para que, em nome da «ordem» e da «autoridade», Spínola assumisse o poder absoluto ao decretar o seu desejado estado de sítio).

Que o golpe falhou mercê da vigilância popular e da pronta resposta do Movimento ó de todos conhecido (e o relatório do 28 de Setembro, que se publica, explica claramente todo o processo).

Os resultados são sobejamente conhecidos. Após algumas hesitações, Spínola renuncia à Presidência da República, alguns generais são afastados e substituídos na Junta e esta, renovada, imediatamente nomeia Costa Gomes para a Presidência.

Crise propriamente dita não chegou a haver pois todo o problema de substituição dos mais altos quadros se resolveu em escassas horas e a população nem teve tempo para se preocupar gravemente com a crise de poder.

Spínola não deixou, porém, de lançar as maiores reservas e provocações no seu nervoso, inesperado e capcioso discurso de renúncia em que o seu regresso, se não 6 explicitamente anunciado, é pelo menos previsível.

O capitalismo perdera mais uma cartada. Ficavam-lhe muitos trunfos ainda na mão e havia de os jogar daí para diante em maior escala. É a partir de então que a sabotagem económica ao processo revolucionário aumenta.

No discurso de posse de Costa Gomes há ainda um certo saudosismo quanto à figura de Spínola, mas há também uma firmeza serena no anunciar da sua oposição ao ex-governador da Guiné. A conhecida característica do general, agora Presidente, de sábio moderador surge claramente neste discurso.

Spínola, a 10 de Setembro — A Senha

Na sequência da minha comunicação ao País, de 27 de Julho passado, foi reconhecida por Portugal a independência política do novo Estado Guiné-Bissau.

Vivemos, pois, uma hora de alto significado: a de cumprimento de uma responsabilidade histórica e, acima de tudo, eminentemente humana, celebrando, na emancipação de uma Pátria, o nascimento de uma Nação em que Portugal se revive.

Neste momento, em que o Mundo se enriquece com o convívio de um novo País de expressão lusa, recordo com emoção todos os Portugueses, e tantos foram, que ao longo de cinco séculos, doaram com o seu sangue, o seu amor, e a sua esperança, algo de si próprios às gentes e terras da Guiné. Mas nesta hora voltada ao futuro, o meu pensamento vai para os Guinéus, cujos anseios bem conheço e cujo ideal de participação efectiva na vida política, económica e social da nação multifacetada que ambicionam ser, se radica, profundamente, nessa expressão democrática de um humanismo africano e que Léopold Senghor chamou negritude.

O acto hoje firmado traduz, assim, a materialização de um ideário consubstanciado na fórmula «A Guiné para os Guinéus», que o País sabe ter sido inspiradora da acção política do meu governo naquele território; governo a que o povo da Guiné aderiu com entusiasmo e o firme propósito de ali se construir, pela via democrática, uma nova sociedade africana verdadeiramente livre e justa — única forma de conduzir com seriedade um processo de descolonização. É que sempre defendi inequivocamente que o acesso dos povos ultramarinos à verdadeira independência não consente a sua entrega a formas antidemocráticas de governação. Impõe-se, por isso, a tal respeito, algumas considerações.

Fizemos, em Portugal, uma revolução para acabar com cinquenta anos de regime de partido único; temos pois a plena consciência do que tal regime representa na opressão de um povo. Não se compreendem, por absurdo, regimes de partido único numa estrutura democrática. Temos de excluir tais regimes da arquitectura política portuguesa, e não poderemos coerentemente admiti-los no nosso processo de descolonização. Por isso, ao transmitir a soberania do novo Estado para o P. A. I. G. C., fazemo-lo na convicção de que aquele Partido saberá honrar as responsabilidades assumidas ao ser-lhe conferido o reconhecimento da representatividade do Povo Guinéu. Confortam-nos, neste aspecto, as afirmações dos responsáveis do novo Estado de que saberão despir-se de ambição própria e não permitirão a alheia. E estou certo de que saberão defender a democracia do país agora nascido contra quaisquer novos colonialismos, preservando e respeitando a pureza de instituições africanas verdadeiramente representativas, e construindo, de facto, uma Guiné eminentemente democrática e progressiva, em clima de perfeita liberdade e justiça social. Porque se assim não for, resultarão não só traídas as esperanças dos Guinéus como ainda frustrados os ideais que presidem à descolonização a que metemos ombros.

Entra assim no contexto das nações um novo Estado de língua portuguesa. Enche-nos de orgulho este renascer de um Povo africano, o qual representa o início de um frutuoso convívio de Portugal no Mundo do século XX e o prelúdio esperançoso de uma comunidade de nações de língua portuguesa em que se consubstancia o mais amplo espírito de portugalidade.

Mas o processo de descolonização não consiste, como alguns levianamente pensam, em transferir pura e simplesmente o Poder para as organizações partidárias que sustentaram a luta armada contra o anterior regime português. E é exactamente na autêntica conceptualização daquele processo que tem de centrar-se a nossa atenção, para que esta hora seja efectivamente digna da História. Ao defendermos a liberdade de opção política e a sua consequente afirmação institucionalizada e representativa; ao pretendermos a estruturação de sociedades em moldes que permitam a implantação de sistemas verdadeiramente anticolonialistas; ao lutarmos pela liberdade de democracia pluripartidária, haverá talvez quem considere essa intransigente tomada de posição como embaraço ao processo de descolonização. Penso, porém, que o que está verdadeiramente em causa para este sector, não é a descolonização em si mas a oportunidade da apropriação do Poder por certas ideologias e os seus correspondentes regimes totalitários. E defender os territórios africanos do risco dessa nova escravidão é uma obrigação de consciência para a qual alerto todos aqueles que militam na ideologia democrática.

Terá assim de distinguir-se entre uma descolonização autêntica e o apressado abandono à satelização por terceiros; isto é, entre uma descolonização autêntica e a entrega das populações dos territórios africanos ao arbítrio de novas ditaduras. E a salvaguarda destes aspectos reclama cuidadosa avaliação dos pressupostos em que se fundamenta o nosso conceito de descolonização, em ordem a que não possamos ser amanhã acusados de haver traído os ideias da autodeterminação, da independência e da democracia.

Ninguém de boa fé poderá, por isso, pensar que a descolonização se consubstancia no facto de a bandeira portuguesa deixar de flutuar em territórios de África. A descolonização só atingirá o seu termo quando estiverem em pleno e eficaz funcionamento instituições democráticas que salvaguardem os interesses de todos os cidadãos. Cabe aos homens que suportaram a luta armada e vão agora assumir as responsabilidades do poder político não vacilar nesta segunda fase de descolonização, agora que satisfizemos o imperativo de parar o derramamento de sangue e a exaustão de recursos humanos e materiais a que a guerra nos conduzia num caminho sem regresso.

E no momento em que, na Guiné, essa nova fase passa para a responsabilidade do PAIGC, resta-me formular votos para que o seu esforço na descolonização da Guiné seja tão honesto como foi o meu, em ordem a que o lema «A Guiné para os Guinéus», a que os africanos daquelas terras tão claramente aderiram, possa, em breve, ser uma inequívoca realidade, no respeito pela liberdade e pela justiça.

Na época que se avizinha de aliciante construção do novo país, afirmo o inabalável propósito de Portugal, correspondido pela República da Guiné-Bissau, estabelecer e desenvolver relações fraternas de cooperação activa, nos domínios social, cultural e económico, na expansão da língua comum, no contacto entre as nossas culturas e no frutuoso intercâmbio de cidadãos, sempre numa base de igualdade e reciprocidade de interesses, e de respeito mútuo pela dignidade e soberania de dois Estados livres e independentes.

Voltar-nos-emos, agora, para a descolonização de outros territórios portugueses. Não creio que valha a pena referir as linhas essenciais do pensamento que nos enforma e que o País sobejamente conhece. Um Governo de transição será em breve instituído em Moçambique e foi já divulgado pela Junta de Salvação Nacional o programa de acção sobre Angola, do qual não nos afastaremos pois temos a certeza de ser o que melhor defende a independência e a democracia naquele território.

Julgo ser este o momento para deixar bem claro que o Presidente da República tem plena consciência do que é e do que não é democracia, do que é e do que não é descolonização. E, como tal, não consentirá que, em nome da liberdade e da democracia, o Povo Português volte a ser escravizado, ou que, em nome desses mesmos princípios, se abandonem milhões de seres humanos ao risco de uma escravidão semelhante àquela de que nos libertámos. Doutro modo não cumpriríamos o Programa do Movimento das Forças Armadas.

Por isso mesmo, nesta hora em que Portugal renasce como país e no mesmo passo entram no Mundo novos países de expressão portuguesa, afigura-se-me pertinente transplantar para o quadro interno onde enfrentamos as mesmas ameaças e os mesmos riscos, as preocupações que nos assiste no processo de descolonização. Não retiramos da era colonial a capacidade para prosperar economicamente, nem os recursos que propiciaram a outras potências o estatuto de nações desenvolvidas e altamente industrializadas. O encontro com a nossa responsabilidade histórica exigirá assim enormes sacrifícios em futuro próximo. Haveremos de aguçar o engenho, explorar e multiplicar recursos, e desenvolver amplamente todas as iniciativas. Isto, se quisermos sobreviver como nação livre e construir a nova sociedade que os Portugueses desejam ser.

Herdámos um país doente. E passada a euforia dos primeiros dias de libertação, temos de constatar que continuamos a atravessar uma grave crise, que nos torna vulneráveis a aventuras extremistas.

Assiste-se ao assalto sistemático dos centros de decisão, públicos e privados, por grupos à margem de toda a ordem jurídica e até institucional. Os processos democráticos de decidir e votar vêm sendo eliminados ou mistificados no procedimento comum, em ordem a permitir a coacção, a ameaça e até a violência dos oportunistas.

O Programa do Movimento das Forças Armadas, por cuja execução o Presidente da República é supremo responsável perante a Nação, é bem claro ao reservar para as instituições democraticamente eleitas a realização das reformas fundamentais da sociedade portuguesa. Mas, apesar disso, encontramo-nos perante um processo de evolução tal que corremos o risco de se criarem situações de facto susceptíveis de radicar futuras situações de direito sem audição do Povo Português. Há que reconhecer, sem margem de dúvida, que as sociedades políticas modernas têm evoluído num sentido de raiz socialista; mas o socialismo não pode entender-se como construído à custa da liberdade e da dignidade humanas. Temos, em todo o Mundo, sobejos exemplos de formulações possíveis desse socialismo para podermos distinguir as que são verdadeiramente democráticas das que são apenas uma forma eufemística da exploração do homem por um Estado totalitário.

Sou dos que aceitam como autenticamente democráticas quaisquer formas de socialismo desde que em liberdade, isto é, desde que enquadradas em regimes de pluralidade de opinião e de responsabilidade do Poder perante a vontade expressa dos cidadãos. O próprio conceito de justiça social que propugno radica-se no respeito pela função social da propriedade e pela justa repartição da riqueza. E essa justiça social jamais será alcançada por outra via que não seja a da intervenção socializante do poder do Estado na distribuição dos rendimentos, segundo um leque de opções onde cabem diversos sistemas executivos e diversas orientações desde a via orçamentária, à política fiscal e à orientação da economia, sem prejuízo da participação da iniciativa privada no desenvolvimento nacional. E tem de aceitar-se, democraticamente, que possa haver, dentro desse leque, as correspondentes correntes de opinião com os seus aderentes e simpatizantes.

Deste modo, a construção de qualquer arquitectura política só será legítima se processada pela via harmoniosa das instituições democráticas, isto é, no respeito pela vontade das maiorias, a quem se assegura plena liberdade de opção. Nas sociedades humanas verdadeiramente democráticas, as transformações devem ocorrer sem saltos bruscos nem convulsões, que contêm em si próprias o germe de novas ditaduras, da direita ou da esquerda. A maioria silenciosa do Povo português terá pois de despertar e de se defender activamente dos totalitarismos extremistas que se digladiam na sombra, ser- vindo-se das técnicas bem conhecidas de manipulação de massas para conduzir e condicionar a emotividade e o comportamento de um povo perplexo e confuso por meio século de obscurantismo político. Mas a consentir-se um clima anárquico de reivindicação incontrolada, em nítida ultrapassagem das responsabilidades aos diversos níveis e em clara usurpação de direitos alheios, o País mergulhará no caos económico e social, que só a sectores minoritários poderá aproveitar.

A responsabilidade que assumi perante a Nação impõe uma tomada de posição perante o abuso de liberdade de alguns em denegação flagrante da liberdade de todos. Impõe uma tomada de posição perante a perspectiva de uma depressão económica, a despeito da teorização de soluções de cujos efeitos práticos o País começa a descrer face à crescente crise de desemprego, à alta exagerada do custo de vida, à insegurança civil e social, e casos já verificados de negação da liberdade de trabalho, e, de um modo geral, ao descrédito em que começam a cair as instituições. É chegado o momento de o País acordar para a realidade que somos, para o que queremos ser e para o futuro de anarquia a que nos querem conduzir certos inspiradores políticos. Chegou a hora de se assumirem e de se exigirem responsabilidades, saneando por igual o dirigente inepto ou corrupto, o funcionário venal, o trabalhador parasita e improdutivo, e o político oportunista, autocrático ou demagogo.

O Movimento das Forças Armadas orienta-se para uma autêntica devolução de Portugal a instituições representativas do pensar e do querer dos Portugueses. E não tenhamos dúvidas a este respeito: ou o compreendemos e somos capazes de levar a bom termo o processo de democratização do País, ou nos espera um futuro de miséria, de sangue e de escravidão.

Os regimes extremistas só a extremos podem conduzir. E agora que uma revolução triunfante derrubou o regime fascista, convém recordar que o fascismo é uma filosofia política assente na trilogia «um povo, um partido, um chefe», sintetizando toda uma axiomática limitativa da expressão democrática. E se, como tal, a axiomática fascista tem de banir-se definitivamente, bom será que o Povo Português seja alertado contra todos os regimes que naquela trilogia se inspirem.

O Povo Português tem o direito de exigir que seja mantida intacta a sua liberdade de escolha do regime político que desejar; e tem o direito de exigir que imperem as leis justas e equitativas que garantam a todos o respeito pelas pessoas, pelos bens e pelos legítimos direitos consagrados na ordem jurídica prevalecente. É o Presidente da República o supremo fiel do cumprimento do programa de democratização consagrado pelo Movimento das Forças Armadas, responsabilidade da qual não abdicará, usando os meios constitucionais que lhe foram confiados. Para tanto, far-se-ão cumprir as leis já formuladas, não consentindo no seu flagrante desrespeito; e acelerar-se-á a promulgação de outras leis fundamentais, cujo retardamento se vem reflectindo tão perniciosamente na situação actual.

Não será consentido que a reacção de uma extrema-direita ou o oportunismo de uma extrema-esquerda impeçam a liberdade pela qual lutámos e cuja salvaguarda foi inequivocamente assumida pelo Presidente da República; mas uma liberdade que o seja de facto, onde a livre expressão e os meios legítimos de solução dos conflitos e de participação política se processem de acordo com as regras do jogo democrático. O Presidente da República continuará a ser intransigente defensor da democracia e da verdadeira democratização. Disso poderão estar certos os que manifestam as suas apreensões quanto à evolução política do País; disso poderá estar certo todo o Povo Português.

E no momento em que se ultima o quadro legal da proclamação da independência de um povo, independência que eu próprio comecei a preparar em 1968, formulo votos sinceros, com um misto de emoção e de orgulho, de que os Guinéus continuem na construção de uma Guiné eminentemente livre e democrática, tão livre e democrática quanto desejamos seja também o Portugal de amanhã.

Sequência dos Comunicados

Sanches Osório Pretende Desmobilizar

«O Governo Provisório tem conhecimento que em diversos pontos do País e sobre os acessos a Lisboa estão montadas barricadas para impedir o trânsito de veículos que transportem pessoal que se dirige a Lisboa a fim de tomar parte na manifestação a Sua Excelência o Presidente da República que se realiza hoje 28.

A fim de salvaguardar a paz e a tranquilidade entre os portugueses, essas barricadas devem ser levantadas imediatamente permitindo, assim, o trânsito de veículos.

O Governo Provisório declara que estão asseguradas as condições para que a manifestação a Sua Excelência o Presidente da República decorra com ordem e dignidade.

Os portugueses conscientes do processo de democratização em curso tudo devem fazer para evitar quaisquer confrontos e contramanifestações das quais poderá resultar derramamento de sangue e um clima de guerra civil que só poderá aproveitar os que se opõem à actual situação democrática.

O Governo Provisório reitera o apelo à ordem e à tranquilidade pública e comunica ao País que tomará as medidas que julgar convenientes para restabelecer a ordem.»

O M. F.A. Começa a Levantar o Véu

«Tem-se assistido nos últimos tempos a uma escalada de actividades de indivíduos ligados aos meios mais reaccionários ,os quais, não compreendendo a necessidade histórica do movimento de 25 de Abril, tentam fazer reviver um passado condenado bem claramente pelo povo português e por todo o mundo.

As actividades desenvolvidas vão desde a manobra sediciosa à criação de um estado psicológico emocional, passando pelo tráfico de armas e sabotagem económica.

Com vistas a garantir que a marcha para a nova sociedade democrática, inequivocamente expressa no Programa do M. F. A. não sofra desvios, foram detidos para averiguações algumas dezenas de indivíduos na madrugada de hoje.

A operação mencionada no número anterior, implicou movimentação de forças militares que, como é óbvio, não podia previamente ser anunciada. Tal originou um certo alarme, mas o M. F. A., continuando determinado no cumprimento do seu programa, pede serenidade ao País, garantindo-lhe que se mantém vigilante e capaz de responder a qualquer manobra da reacção.»

Da Presidência da República

«Face à alteração da ordem pública que se verificou durante a madrugada de hoje não julga Sua Excelência o Presidente da República conveniente que se realize a anunciada manifestação na Praça do Império com o fim de evitar possíveis confrontos.»

O M. F. A. Toma Posição Definitiva

«Informa-se o País que a manifestação promovida em nome da autodenominada maioria silenciosa que teria lugar em Belém, hoje às 15 horas, foi cancelada.

Pede-se à população de Lisboa que se mantenha calma, acatando prontamente as instruções e se afaste do local previsto para a concentração.»

O M. F. A. Informa

«Forças militares e militarizadas em estreita colaboração, vão ocupar os locais de piquete.

Comunicado do M. F. A. dirigido especialmente à população da área de Lisboa

Com a finalidade de evitar certos possíveis atritos e proceder ao descongestionamento do trânsito, forças militares e militarizadas vão ocupar os locais onde até agora piquetes populares vêm desenvolvendo acções cuja utilidade, a propósito, se regista com agrado.

Pede-se à população, total confiança nas forças militares e militarizadas que controladas pelo M. F. A. garantem o total respeito pelas vitórias alcançadas no 25 de Abril.

Acatar as indicações dessas forças é de momento o melhor apoio que podem prestar à causa da democracia e à nunca desmentida generosidade da população.»

«O M. F. A. no cumprimento rigoroso do seu programa e na certeza de interpretar os sentimentos profundos do povo português, tomou as medidas necessárias para neutralizar as manobras subversivas que visavam derrubar a ordem democrática instaurada em 25 de Abril.

Na sequência das medidas tomadas o M. F. A. informa que controla completamente a situação. A serenidade e a calma são neste momento a melhor forma da população manifestar a sua confiança na acção desenvolvida pelo M. F. A. no sentido de tornar irreversível a construção da democracia em Portugal.»

«O M. F. A. pede às forças democráticas para promoverem a progressiva retirada dos piquetes dado que a sua manutenção não só já não se justifica como dificulta a acção desenvolvida neste momento pelas F. A. com vista à neutralização completa dos elementos reaccionários que conspiravam contra a ordem democrática.

O M. F. A. reafirma a sua total fidelidade ao povo e a sua disposição de cumprir rigorosamente o seu programa de democratização do País.»

«Está neste momento a decorrer uma reunião entre a Comissão Coordenadora do M. F. A. e a Presidência da República.

Procura-se, em face dos últimos acontecimentos extrair as consequências políticas lógicas da situação de facto criada.

O M. F. A. continua atento e vigilante a todas as manobras reaccionárias venham elas de onde vierem.

Não podem restar dúvidas a ninguém e muito menos ao M. F. A., que o verdadeiro e único inimigo da Democracia e do espírito do 25 de Abril é a reacção e os seus agentes.

Pede-se a toda a população que coopere e confie no poder de decisão dos representantes do M. F. A. intérpretes das aspirações do povo português de que são parte integrante.»

«Na reunião realizada entre Sua Ex.* o Presidente da República, o chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas e a Comissão Coordenadora do Programa do Movimento das Forças Armadas foram acordadas medidas concretas para reforçar e garantir a continuação da democratização do País dentro do espírito do Programa do Movimento das Forças Armadas. Foi, ainda, reafirmada a união entre o Movimento das Forças Armadas e o Governo Provisório, presidido pelo brigadeiro Vasco Gonçalves.»

Otelo Saraiva de Carvalho ao País

«O Movimento das Forças Armadas no cumprimento rigoroso do seu Programa e na certeza de interpretar os os sentimentos profundos do Povo Português, de que é parte integrante, tomou as medidas necessárias para neutralizar as manobras reaccionárias que visavam derrubar a ordem democrática instaurada em 25 de Abril.

Na sequência das medidas tomadas o Movimento das Forças Armadas que controla completamente a situação, pede à população e às forças democráticas que cooperem com as forças militares e militarizadas na retirada progressiva dos piquetes, cuja finalidade se regista com agrado mas cuja manutenção não só já não se justifica como dificulta a acção do Movimento das F. A. com vista à neutralização definitiva dos elementos reaccionários que conspiravam contra a democracia.

Pede-se à população total confiança nas forças militares e militarizadas que controladas pelo M. F. A., sob a orientação directa do Comando Operacional do Continente, garantem o respeito pelas vitórias alcançadas em 25 de Abril. A serenidade e a calma são, neste momento, a melhor forma de a população manifestar a sua confiança na acção desenvolvida pelo M. F. A. no sentido de tomar irreversível a construção da Democracia em Portugal. Não podem restar dúvidas a ninguém de que os únicos inimigos da liberdade são os conspiradores reaccionários. Todas as tentativas para desviar noutra direcção as atenções do Movimento das Forças Armadas e das forças patrióticas devem ser interpretadas como manobras de inspiração reaccionária ainda que assumidas inconscientemente.

O Movimento das Forças Armadas tem perfeita consciência de que a falta de informação pode criar estados de incerteza e de ansiedade susceptíveis de serem explorados por agentes provocadores. Contudo, o M. F. A. garante que os destinos do País não serão decididos nas costas do Povo Português. O M. F. A. reafirma a sua fidelidade ao povo e a sua disposição de cumprir rigorosamente o seu programa de democratização do País.»

Vítor Alves

«Na sequência das medidas tomadas para esmagar as forças reaccionárias que pretendiam opor-se ao processo iniciado em 25 de Abril, é possível anunciar ao País que a situação está controlada em todo o território nacional. Para esse «controle» muito contribuiu a unidade entre o M. F. A., o Governo Provisório e as massas populares, unidade que constitui a maior garantia de consolidação das conquistas democráticas do 25 de Abril.

Como já foi referido pelo brigadeiro Otelo Saraiva de Carvalho, as forças do COPCON controlam completamente a situação, pelo que a colaboração dos populares cuja vigilância foi da maior importância, é agora desnecessária. O Governo Provisório reafirma, assim, a sua firme determinação em prosseguir o cumprimento escrupuloso do Programa do M. F. A. dispondo-se a neutralizar definitivamente as forças reaccionárias que tentarem impedir a execução do processo de democratização do País.

Os mentores das manobras da autodenominada «maioria silenciosa» tudo tentaram para convencer a opinião pública de que apoiavam o M. F.A. e o seu Programa. O Governo Provisório admite que muitas das pessoas que se deixaram envolver neste processo o fizeram sem ter consciência de ser vítimas destas manobras.

O Programa do M. F. A. jamais poderá servir de cobertura aos objectivos de minorias desesperadas que a toda a hora se recusam aceitar a democratização do País.

O Governo Provisório manifesta o seu maior apreço ao elevado espírito cívico da população e regista com o maior agrado a geral manifestação de apoio das massas trabalhadoras.»

Vasco Gonçalves

«Eu não vou propriamente fazer um comunicado sobre os acontecimentos dos últimos dias, mas antes tecer algumas considerações sobre eles, a ver se tiramos lições dos momentos que acabamos de viver. Lições essas que são muito importantes para a consolidação e desenvolvimento da democracia em Portugal; lições essas em que está vitalmente interessado o povo português e o Movimento das Forças Armadas.

Nós acabamos de viver um primeiro ataque em forma da reacção ao Movimento do 25 de Abril, que já são clássicos os moldes por que eles são adoptados pela reacção em todas as partes do mundo. Esses moldes consistem em aproveitar da impreparação política das pessoas, dos motivos de interesse nacional, que calam fundo no coração das populações e, em particular, utilizar a emotividade suscitada por esses «slogans», por essas declarações, no sentido de dar a aparência de um grande apoio popular aos desígnios mascarados daqueles que estão interessados precisamente em prejudicar essas massas populares.

Nós tivemos um exemplo recente, em Moçambique, em Lourenço Marques, em que aquela minoria de bandoleiros arrastou muita gente honrada, muitos portugueses honrados de Moçambique, na emotividade que criou nos apelos à Bandeira Nacional, ao Hino Nacional, etc., quer dizer: servem-se abusivamente dos motivos mais caros ao patriota para procurarem obter, conseguir opor-se, aos processos históricos e aos verdadeiras interesses nacionais. Nós sabemos os milhões de contos que custou essa rebelião de Lourenço Marques, as dezenas e dezenas de vidas e as centenas de feridos. Sabemos de populações, de parte da população, que foi motivada por essa gente, que foi enganada por essa gente. Aqueles que menos estão interessados na Pátria, no desenvolvimento nacional, são os que nesse momento mais apelam para essa mesma Pátria, para esse mesmo desenvolvimento nacional, mas junto de camadas muitas vezes pouco esclarecidas, incautas e então em Portugal é relativamente fácil ainda hoje, pois o nosso povo viveu quarenta e oito anos sob uma propaganda sistemática de embrutecimento, é pouco esclarecido e em particular o povo do campo, é tão pouco esclarecido que acredita nessa propaganda insidiosa que se faz a todo o momento contra o Movimento das Forças Armadas, caluniando-nos, acusando-nos de objectivos que nunca tivemos. Chegam a dizer que queremos roubar as casas onde os pobres vivem. Agitam os mesmos papões que agitava o fascismo, durante quarenta e oito anos. E não é de admirar que algum êxito obtenham, porque as ideologias, as mentalidades, forjadas, formadas ao longo de quarenta e oito anos, não se modificam de um dia para o outro.

Desta vez, com uma larga cópia de meios, à mistura com armamento, muito dinheiro, etc., a reacção montou uma manifestação deste tipo. Nós estávamos ao par do que se ia passando, não só por meio dos nossos serviços de informação militares, como também pela larga ajuda que a Imprensa e parte da população mais vigilante, os movimentos democráticos, os partidos democráticos, os partidos políticos, deram neste processo, cimentando assim a unidade que é condição essencial para a consolidação e desenvolvimento da democracia em Portugal, para que o Programa do Movimento das Forças Armadas possa ser posto em prática sem ambiguidades. Essa unidade entre o povo e o Movimento das Forças Armadas, saiu reforçada da prova por que acabamos de passar.

O Movimento das Forças Armadas tomou precauções no sentido de minorizar o mais possível as consequências da tal manifestação. Por outro lado, os sectores democráticos e mais esclarecidos da população também fizeram muito para que essa manifestação não fosse para frente. E não o fizeram por meios violentos. Isto é necessário que todo o País o saiba. Foi através da persuasão, através de uma vigilância verdadeiramente democrática, que se travou o passo à reacção. Não foi através de homens armados, nem de toiros nem de mocadas que foram descobertas as armas nos carros. E a população, consciente do que se estava passando, aceitou também de bom grado essa vigilância no sentido de evitar que a manifestação, tal como estava preparada, levasse a confrontações, a tiros, à violência, que obrigasse à intervenção das Forças Armadas ou das de segurança, e que prejudicasse assim a unidade do povo e das Forças Armadas.

É claro que na sequência destes acontecimentos desenvolveu-se uma crise que está ultrapassada, e da qual saíram mais reforçados o Movimento das Forças Armadas, as forças democráticas e aqueles que estão sinceramente empenhados em levar este País, em paz, em tranquilidade, e sem tiros, para os caminhos da garantia das liberdades cívicas, do progresso social e do progresso económico em que estamos empenhados já muito antes do 25 de Abril. Ao longo da crise que se desenvolveu, todos os esforços foram feitos para evitar tiros entre os portugueses. Isso tem sido uma constante de todas as acções do Movimento das Forças Armadas. Nós não queremos a guerra civil entre os portugueses. Bater-nos-emos sempre com a maior calma, com a maior firmeza, para que isso não aconteça. Por vezes, as pessoas impacientam-se, não compreendem talvez a nossa acção. Será pela prática, pelas consequências que forem observando da nossa acção por aquilo que formos fazendo, que verificarão que o Movimento das Forças Armadas, constituído por gente honrada, por oficiais que puseram acima de tudo o amor da Pátria, e que são o motor, no seio das Forças Armadas, de apoio ao desenvolvimento democrático. Nós procuramos acima de tudo a paz, a tranquilidade, e que não haja mortos entre os portugueses. Fizemos uma revolução cujas consequências ainda estão em pleno desenvolvimento, e podemo-nos orgulhar já de certas realizações que em cinco meses se podem considerar extraordinárias.

Fizemos a paz na Guiné, iniciámos um processo de descolonização em Moçambique. Estamos empenhados em resolver o problema da descolonização de Angola. Julgo que isto são realizações que devem estar presentes na cabeça de todos os portugueses. Os nossos soldados deixaram de caminhar para as colónias como antes. Portugal tem hoje abertos largos caminhos de cooperação com o futuro. Ainda a recente Assembleia das Nações Unidas mostrou o apoio caloroso que temos nos meios que antes nos repudiavam, nos assobiavam e não nos permitiam mesmo o convívio com as outras nações.

... Nós não somos um país poderoso do ponto de vista económico. Não estamos portanto em condições de desenvolver uma política neocolonialista em África. Temos portanto muitas condições para ser aceites pelos povos africanos que dão os seus passos no caminho da independência económica e do progresso social. Estamos portanto em condições de poder forjar com esses povos unidade e desenvolver a cultura em África, de criar em África pátrias de expressão lusíada. Isso não teria sido possível sem o movimento do 25 de Abril, sem o apoio das forças populares a esse movimento. Ora isso é muito importante para que se compreenda que são realizações bastante válidas da nossa revolução. Pois é precisamente no momento em que nos encontramos empenhados nessas realizações que os nossos inimigos procuram destruí-las. Chegam a caluniar-nos e a dizer que vendemos a Guiné e Moçambique aos movimentos de libertação, não percebendo que neste caminho que estamos traçando que encontramos os verdadeiros objectivos da presença de Portugal em África. Que não há talvez exemplo de outro país no mundo que tenha conseguido arrancar para um processo de descolonização como nós arrancámos em Moçambique. É precisamente num momento destes que as forças da reacção se empenham em nos combater. Mas nós, o Movimento das Forças Armadas e as Forças Armadas e o povo português, estamos vigilantes.

Esta crise fortaleceu mais esta unidade, fortaleceu mais as condições de desenvolvimento da democracia em Portugal. E ainda o esclarecimento das nossas posições, de levarmos o Movimento das Forças Armadas a todos os pontos do País, a fim de esclarecer bem os nossos opositores, que se servem precisamente da despolitização do povo português para combaterem o futuro desse povo português, dizendo eles, reaccionários, que são os verdadeiros defensores desse futuro, e não nós. Nós queríamos sobretudo que essa lição fosse tirada: que foi reforçada a unidade entre as Forças Armadas e o povo português, que novos caminhos estão abertos à democracia em Portugal, à realização do nosso programa, do programa do Movimento das Forças Armadas, em que estamos sinceramente empenhados, em que pusemos a nossa honra, e em que abatemos bandeiras para que esse programa vá avante. O programa é isento no sentido em que não serve partidarismos, serve a Nação Portuguesa. Isto não significa qualquer crítica aos partidos. A gente fez o 25 de Abril para que os partidos pudessem viver em liberdade em Portugal. Nós queremos dizer que os militares, os homens das Forças Armadas estão interessados em que seja posto em prática o programa do Movimento das Forças Armadas. Esses homens põem acima de tudo os objectivos do Movimento, e não as inclinações partidárias que possam ter, e que têm direito a ter, como portugueses que são. Mas como militares que são, esses militares sabem que faz parte da servidão militar porem acima de tudo os interessas unitários da sua Pátria e abaterem bandeiras partidárias na presença desses interesses unitários. E os caluniadores do Movimento das Forças Armadas e das Forças Armadas dizem que nós defendemos interesses partidários, o que é profundamente falso. Nós defendemos é os verdadeiros interesses do povo português que estão traduzidos no Programa que elaborámos e que levaremos ao fim contra tudo e contra todos. Poderão ter a certeza que as Forças Armadas estão atentas. Defenderão o seu Programa contra tudo e contra todos. Estão atentas às manobras da reacção. Mas não se podem defender da reacção e não podem combater essas manobras, sem uma unidade íntima com o povo português, a qual saiu alicerçada desta crise.

... Nós queremos dizer ao País que os maus dias estão passados, que melhores dias virão com certeza, que o caminho que traçámos é muito difícil. Todos sabem as condições que herdámos no 25 de Abril. Mas é certo que essas condições não servem para justificar tudo. Temos muito e muito que fazer à nossa frente.

...Temos muito que trabalhar. As tensões sociais que se têm desenvolvido ultimamente de certo modo têm prejudicado a produtividade do nosso país. Mas nós estamos convencidos que essa produtividade pode ser aumentada desde que o povo tenha confiança na revolução do 25 de Abril.

...E daqui mesmo nós exortamos o nosso povo para comemorar esta vitória sobre a reacção. Que o próximo domingo seja um domingo de trabalho nacional. Um domingo em que o povo vá para as oficinas, vá para os campos, vá para as fábricas trabalhar, como manifestação de alegria por esta vitória que obtivemos sobre a reacção.

...Nós estamos convencidos que o povo nos com- prenderá. E que poderá fazer do próximo domingo uma jornada de vitória nacional, de vitória do 25 de Abril. E no trabalho demonstrar que está de facto interessado no progresso da Nação.

...Claro que não pretendemos que esse trabalho e o produto desse trabalho seja entregue ao Governo Provisório, nem ao Movimento das Forças Armadas, pois o produto desse trabalho será para quem trabalhar. Mas também sabemos que o produto prático desse trabalho irá juntar-se ao nosso produto nacional.

...Na realidade, o que pretendemos é que as massas da população trabalhadora, as massas do campo e das cidades, os intelectuais, etc.,, demonstrem ao País essa unidade com as Forças Armadas, alicerçada num trabalho quotidiano. E por isso daqui exortamos a que façamos do próximo domingo uma jornada de trabalho nacional, comemorando a vitória que acabámos de obter.»

O Desenlace: Spínola Demite-se

Senhores conselheiros de Estado. Portugueses:

A deterioração do clima social, económico e político, ultimamente mais acentuado, tem constituído para mim motivo da mais profunda preocupação. Sobre as origens da situação a que chegámos, me tenho debruçado num esforço de análise que sempre se orientou pelos princípios que enformaram o espírito do 25 de Abril.

Esforço de análise a que me obrigaram a minha consciência de português e a minha responsabilidade de Presidente da República, pois assumi perante o País o compromisso de responder pela restauração das liberdades cívicas e pela construção de uma democracia institucional autêntica e nessa tarefa me empenhei com sinceridade inequívoca e férrea determinação.

É dessa análise e da posição que assumo com base nas conclusões alcançadas que desejo informar o Conselho de Estado e o País, para que sobre elas se não teçam observações inexactas nem se deturpe a honestidade das intenções que lhe presidiram. Começarei por afirmar que não é de hoje nem de ontem a minha adesão ao espírito do Movimento das Forças Armadas. Desde a minha nomeação para o cargo de governador da Guiné que sempre expus frontalmente primeiro sem publicidade por dever de ética e depois publicamente a total oposição ao ideário e aos métodos do velho regime. E isso sem rodeios nem eufemismos, antes falando a rude linguagem da verdade que como soldado e como combatente jamais deixei de utilizar. Estive com o Movimento desde a primeira hora, pelo que conheço perfeitamente o seu espírito e as suas intenções a que aderi com uma sinceridade de que ninguém ousará duvidar. E são exactamente esse reconhecimento e essa identificação que me conferem irrecusável autoridade moral para concluir que a origem da situação a que chegámos reside na desvirtuação do ideário do Movimento.

Encontro-me perante a evidência do Programa do Movimento das Forças Armadas estar a evoluir no quadro de uma acção política tendente afinal à sua própria neutralização em verdadeiro clima de inversão de uma moral cívica à margem da qual se torna impossível a prática da democracia e da liberdade. Inversão em que, por fidelidade ao espírito do Movimento e pelo respeito aos compromissos que assumi ao aceitar este cargo não devo nem posso participar. Dois ou três pontos bastarão para o justificar; esteve no espírito do Movimento das Forças Armadas definir concreta e objectivamente uma política ultramarina que conduzisse à paz entre portugueses de todas as raças e credos, objectivos que o anterior regime se revelou totalmente incapaz de atingir. Essa política definimo-la nós ao estabelecer inequivocamente e com geral aceitação dos princípios programáticos do processo de descolonização que o mundo e os homens de sã consciência, reconheceram válidos. Toda essa política e o consequente processo de descolonização foram deturpados numa intenção deliberada de os substituir por medidas antidemocráticas e lesivas dos reais interesses das populações africanas.

Esteve igualmente no espírito do Movimento das Forças Armadas promover a harmonia entre todos os credos políticos, mas essa harmonia jamais será possível, quando, por um lado, os chefes declarados de alguns partidos políticos fazem apelo ao bom-senso, e, por outro lado, os respectivos grupos de acção enveredaram pela via da coacção psicológica, através dos grandes meios de informação, e até da violência, em flagrante negação da liberdade e a pretexto da insinuação caluniosa, logo lançada sobre os seus oponentes.

Esteve no espírito do Movimento das Forças Armadas reservar à Nação, através das suas legítimas instituições democráticas, a definição do perfil da sociedade que os portugueses desejam construir. Mas esse espírito encontra-se claramente ameaçado, se não já de todo comprometido pela sistemática cedência perante a realização larvar de reformas de fundo, que, dia a dia, se vão operando, face ao clima vigente de ausência da lei.

Daí resulta que, no fim de longo período de anemia, a Nação portuguesa se encontrará perante situações irreversíveis, fortemente limitativas do estatuto constitucional que vier a ser escolhido em consenso popular. Tais situações estão, desse modo, retirando ao povo a sua real capacidade para o exercício da soberania.

O Programa do Movimento previa também que a substituição do regime deposto teria de processar-se sem convulsões internas que afectassem a paz, o progresso e o bem-estar do Povo Português. A situação é infelizmente bem diferente. Forjam-se reivindicações, postas nas mãos dos trabalhadores por burgueses e frustrados do velho regime, subitamente titulados também de trabalhadores.

A paz, o progresso e o bem-estar da Nação são comprometidos pela crise económica para que caminhamos aceleradamente, pelo desemprego, pela inflação incontrolada, pela quebra no comércio, pela retenção nos investimentos e pela ineficácia do poder central. Isto, porque quanto se vem fazendo, à sombra do Programa do M. F. A., pouco menos é do que o assalto aos meios de produção. É a reivindicação com base em decisões tomadas a níveis sem competência, na ilegitimidade para o fazer. Enfim, é a inversão das estruturas, à margem da sanção democrática do povo.

Anulam-se as leis do velho regime, antes que novas leis regulem a vida política, social e económica do País. E mesmo algumas das leis já publicadas são impunemente escarnecidas.

Neste clima generalizado de anarquia, em que cada um dita a sua própria lei, a crise e o caos são inevitáveis, em flagrante contradição com os propósitos do Movimento. Várias vezes chamei a atenção do País para as consequências a que tal estado de coisas acabaria por conduzir. E, após profunda e demorada reflexão tomei a nítida consciência de não estarmos a caminhar para o País novo que os portugueses desejam construir. Concluí, assim, ser inviável a construção da democracia, sob este assalto sistemático aos alicerces das estruturas e instituições, por grupos jurídicos cuja essência ideológica ofende o mais elementar conceito de liberdade, em flagrante contradição com o espírito do 25 de Abril. Encontro-me, portanto, perante a impossibilidade de execução fiel do Programa do M. F. A.

O meu sentido de lealdade, inibe-me de trair o Povo a que pertenço e para o qual, sob a bandeira de uma falsa liberdade, estão preparando novas formas de escravidão.

Tenho dedicado toda a minha vida ao serviço da Pátria e não desejo que fique a pesar-me na consciência haver alguma vez traído os meus concidadãos. Nestas condições, e perante a total impossibilidade de, no actual clima, se construir uma democracia autêntica, ao serviço da paz e do progresso do País, renuncio ao cargo de Presidente da República.

Ao dirigir ao Conselho de Estado e ao povo português, esta mensagem de renúncia, desejo reafirmar a minha indestrutível vinculação aos ideais da liberdade e da democracia e a minha inabalável obediência a princípios básicos de ética militar, que me inibem de participar em projectadas estruturas revolucionárias.

E, no momento em que, uma vez mais, o País está na iminência de ver esses ideais comprometidos, lanço o meu último apelo para que cada português conserve a necessária serenidade de espírito, que se mantenha em paz, confie na força do voto secreto, a grande arma democrática dos homens ordeiros e livres e jamais consinta que a sua consciência seja violada.

Termino formulando os mais ardentes votos para que a causa da liberdade e da democracia triunfe de facto sobre quantos delas se vêm apenas servindo e levo comigo o conforto da certeza de tudo haver feito para manter intacto o espírito do 25 de Abril, de que me constituí intransigente defensor e garante.

A Solução: Substituição Imediata

Comunicado da Junta de Salvação Nacional

«Tendo Sua Excelência o General António de Spínola renunciado ao cargo de Presidente da República, a Junta de Salvação Nacional, nos termos do Artigo 5 da Lei 3/74, escolheu para aquele cargo Sua Excelência o General Francisco da Costa Gomes que tomou posse imediatamente perante a mesma Junta de Salvação Nacional.

Sua Excelência o Presidente da República, nos termos do Artigo 7 da Lei 3/74 confirmou no seu cargo, o primeiro-ministro brigadeiro Vasco dos Santos Gonçalves.

O Presidente da República dirigirá hoje uma mensagem à Nação.»

Costa Gomes à Nação

«Portugueses:

Ao aceitar o cargo de Presidente da República fi-lo pela convicção de que nenhum português tem o direito de se negar às responsabilidades que lhe sejam exigidas no período difícil que todos fraternalmente teremos que ultrapassar.

Quis o destino que eu suceda no cargo a um grande homem, verdadeiro soldado, ao qual me une meio século da mais fecunda amizade.

Muitos momentos comuns, muitas horas de amargura, muitas noites de vigília cimentaram entre nós sentimentos fraternos tão vincados que sempre ultrapassaram e ultrapassarão naturais diferenças de opiniões e conceitos.

Ninguém poderá negar que a sua última obra «Portugal e o Futuro» foi uma pedra angular no despertar da consciência colectiva de uma Nação desviada dos seus verdadeiros destinos.

Homem do Movimento das Forças Armadas, nunca se desvinculou dessa qualidade e todos contamos com a sua dedicação à causa do Movimento a cujas fileiras continua a pertencer desde as primeiras horas de incerteza.

Profundamente idealista e exigente consigo próprio, o senhor general António de Spínola comunicou ao País a sua decisão de rescindir ao cargo de Presidente da República baseado na sua análise pessoal e subjectiva da situação nacional.

Perante o Conselho de Estado cujos membros bem conhecem os meus esforços continuados para evitar este acto de resignação fiz a devida justiça às suas qualidades de grande amigo e companheiro de armas e o meu desgosto perante a sua decisão.

Ainda perante o Conselho de Estado signifiquei as extensas divergências entre as afirmações de Sua Excelência e a forma como o problema nacional pode ser apreciado.

Não seria cómodo para quem me escuta uma exposição extensa mas não posso eximir-me a focar alguns pontos.

Na descolonização, não houve qualquer desvio ao programa do Movimento das Forças Armadas. Visto que em todos os actos políticos não haveremos de sujeitar-nos a esquemas rígidos preconcebidos, teremos sim de, em respeito pelos grandes princípios, orientar a evolução dos acontecimentos face à constante mutação da conjuntura política enquadrante.

Entendo dever referir que os responsáveis do Governo Português e todos os que têm colaborado no processo de descolonização em curso têm demonstrado inteligência, dedicação e talento. Creio que os resultados obtidos e a obter serão referidos como os melhores que, no momento histórico, seriam possíveis à luz dos interesses dos povos intervenientes.

Quanto ao curso da democratização do País, se nem sempre tem sido possível evitar desvios a quem aprende o caminho da liberdade autêntica, creio que poderemos continuar a perguntar-nos se outra revolução no Mundo soube ser simultaneamente tão profunda e tão pouco marcada por sangue, por dores ou por atentados graves ao civismo.

Há muito a melhorar e a corrigir; pois todos unidos nós o faremos.

Nenhum português que ama o povo a que pertence ignora hoje que o trabalho, a ordem e a unidade são os marcos essenciais que garantem as liberdades democráticas e o respeito pelos direitos fundamentais do homem.

Em política, como em tudo na vida, quem planeia a longo prazo tem menos que se preocupar com o patamar em que se apoia do que com a tendência ascendente a imprimir ao fenómeno.

Estaremos todos unidos para trabalhar e progredir, sempre melhores, sempre mais disciplinados e conscientes do que no dia anterior.

Resta-me agora, perante a Nação, definir algumas linhas mestras do meu pensamento quanto ao nosso futuro imediato.

No plano geral saberemos interpretar as Leis Constitucionais em vigor, onde são essenciais os pontos do Programa do Movimento das Forças Armadas.

Saberemos todos criar as condições sociais que permitam ao povo escolher as suas instituições políticas dentro do conceito basilar de democracia pluralista, único que garante espaço para projecção da verdadeira dimensão da dignidade humana.

No processo de descolonização tudo faremos para respeitar os legítimos interesses das populações locais procurando o justo equilíbrio na criação das condições de fraternidade, de respeito mútuo e de amizade que substituirão laços anteriores historicamente ultrapassados. Timor, São Tomé e Cabo Verde serão problemas diferenciados cuja única constante é a garantia de que a consulta das populações livremente expressa terá papel decisivo no decurso do processo.

Quanto a Moçambique iremos respeitar com merediano rigor os compromissos assumidos nos acordos de Lusaka.

Angola tem as coordenadas fundamentais desta fase do processo já definidas pela Junta de Salvação Nacional a que pertenço e com as quais me identifico plenamente.

Conforme já foi aceite nas Nações Unidas, Macau tem estatuto especial.

Ao entrar agora nos aspectos da política externa, desejo fazer uma referência a um novo país da comunidade internacional, à Guiné-Bissau. Procuraremos desenvolver em termos de respeito e interesses mútuos todos os laços políticos, económicos e culturais, que os dois povos entendam por bem.

Em relação à sociedade internacional continuaremos a garantir o respeito pelos princípios da independência e da igualdade entre os Estados, sem interferências nos assuntos internos de outros países.

Respeitaremos os tratados internacionais em vigor, nomeadamente o da O. T. A. N., bem como os compromissos comerciais ou financeiros a que nos vinculámos.

O espírito da nova Constituição permitir-nos-á reforçar laços com os países amigos, e negociar o estabelecimento de relações diplomáticas e comerciais com todos os países do Mundo.

Os laços históricos facilitar-nos-ão reforçar a Comunidade Luso-Brasileira, renovar as relações com os países do Terceiro Mundo, com os países árabes e outros de que nos encontramos afastados.

Desejaria terminar com uma palavra de tranquilidade.

Deixo-vos a certeza de que as Forças Armadas, militares e militarizadas, se estão integrando rapidamente no espírito novo e vão-se tornando mais aptas a garantir ao Governo Provisório e ao povo o clima de ordem e liberdade por que ansiamos para nos dedicarmos ao trabalho com a certeza de que vamos construir um futuro melhor, mais justo, mais democrático.

O Relatório de 28 de Setembro

Nota Preliminar

A reflexão em torno dos acontecimentos desenrolados nos últimos dias do mês de Setembro de 1974 conduziu-nos à constatação da imperiosidade de informarmos o País com o cuidado que a gravidade dos eventos amplamente justifica.

Cedo se sentiu, porém, a importância de comunicarmos ao público os resultados que se iam apurando através das investigações que a propósito se iniciaram. Um problema, a esse respeito, nos surgia: valeria a pena fazer publicar na imprensa um comunicado imediato, mas logicamente breve, logo que estivessem clarificados com razoável certeza os fins visados pelos instigadores da manobra do 28 de Setembro?

Na impossibilidade de esclarecermos completamente a opinião pública, sempre ávida por conhecer pormenores e não se contentando com uma mera confirmação oficial de muito do que por diversas vias e de várias origens fora já dito — conteúdo lógico desse comunicado imediatooptámos pela prossecução das investigações morosas, mas atentas, que pudessem ser coroadas com uma explicação fundamentada dos factos então sucedidos vertiginosamente e dos quais todos nos apercebemos nesses angustiosos dias de Setembro.

Complementarmente, porém, as dificuldades inerentes a tais averiguações, pela fuga dos principais responsáveis, pela confusão e ineditismo que caracterizaram essas manobras reaccionárias, também a enorme deficiência de meios de actuação dos serviços que foram encarregados da descoberta dos factos, contribuiu grande- mente para que protelássemos a nossa comunicação ao País.

Refira-se ainda que estes serviços, ou melhor, esta Comissão foi criada «Ad Hoc», espontaneamente, estimulada pelo sentimento de responsabilidade dos que lhe deram existência. Sem meios humanos disponíveisde início contou apenas com cinco elementos, chegou a integrar cerca de vinte, ficando há uns meses reduzida somente a seissem meios técnicos utilizáveis, sem organização que o apoiasse, sem legislação que o facilitasse, difícil foi sempre o trabalho desenvolvido por esta Comissão que, no entanto, nunca regateou esforços ou enjeitou qualquer responsabilidade.

Evidente se torna, assim, que toda a nossa boa-vontade e ânimo não bastam para se desmontarem conspirações contra-revolucionárias e para se resolverem todos os problemas a elas subjacentes.

Mas só na prática se descobrem as reais dificuldades e se podem tirar os respectivos ensinamentos.

A dinâmica do processo todos os dias nos coloca perante situações novas que temos de solucionar. Há que compreendê-las, criar estruturas apropriadas e melhorá-las sempre.

O Povo Português, o País, que confia nas suas Forças Armadas, no seu Movimento das Forças Armadas, tem de sentir-se seguro para prosseguir com a Revolução começada em 25 de Abril de 1974.

Os acontecimentos do «11 de Março» vieram novamente demonstrar a necessidade da existência de serviços efectivos de defesa da Revolução que chamem a si a análise das actividades contra-revolucionárias.

Pela nossa parte resta-nos transmitir à população portuguesa os resultados mais relevantes das actividades desenvolvidas e, embora saibamos que para muitos não apresentaremos factos inteiramente desconhecidos, até porque os meandros do «28 de Setembro» foram já largamente comentados em declarações de pessoas directamente intervenientes em alguns desses acontecimentos, julgamos útil fazer a história da manobra que então foi tentada. No fim, cremos que só ficará com dúvidas quem quiseraqueles que recusarem render-se à evidência dos factos que trataremos de apontar.

Assim, neste opúsculo irá confirmar-se, pelos factos reais apresentados e pelas conclusões que as investigações nos motivaram, que por detrás da «pacífica» e «normal» manifestação de apoio ao Sr. Presidente da República se desenvolveu toda uma série de acções tendentes a provocarem um inversão na marcha do processo revolucionário em curso.

Deste modo, e através do que adiante deixaremos escrito, nos dirigimos em primeira linha àqueles que, na sua boa fé, possam ter sido levados a acreditar nos boatos e nas atoardas reaccionárias com que os detractores dos novos parâmetros da vida nacional procuram minimizar e tornear os obstáculos que se erguem para a efectivação da sua campanha contra a democracia, contra a liberdade, contra o Povo português.

Porque a reacção não desiste de subverter esta Revolução portuguesa, porque intenta reagrupar-se para minar os alicerces em que a nova sociedade deve assentar, é urgente desmascarar os seus agentes e os que com ela colaboram, é necessário dissecar claramente o «28 de Setembro», é imprescindível alertar as pessoas para a vigilância patriótica que deve garantir o afastamento definitivo das sobras do fascismo que, no quase meio século ora terminado, obscureceram as mentes do Povo de Portugal.

É ingente que se ganhe consciência de que, na vitória do 28 de Setembro, se avançou um passo importante para a consolidação das conquistas alcançadas.

É inadiável que, pela força da nossa coesão e acção, se feche o campo aos sectores contra-revolucionários, de modo a que, isolados se apercebam da inutilidade das suas tentativas para um regresso abrupto e não desejado ao escorraçado regime depostoe sejam anulados.

Torna-se evidente, porém, que, quando falamos em «acontecimentos do 28 de Setembro» não estamos só a ater-nos aos eventos desenrolados na noite e manhã desse diaassim como o 25 de Abril se ficou devendo a uma série de actos que no seu conjunto possibilitaram o epílogo vitorioso que fez despertar no horizonte português o prenúncio de uma nova fase para a vida nacional, também a análise do «28 de Setembro» se não pode resumir à descrição dos factos passados somente nesse dia, mas antes terá de tomar em consideração todos os antecedentes que lhe estiveram na origem.

Em História, os acontecimentos ficam conhecidos pelas suas ligações a determinadas datas; mas a interpretação do facto histórico deverá contar necessariamente com o estudo das suas causas e dos seus efeitos.

Os motivos genéricos de «28 de Setembro» expô-los-emos sinteticamente numas breves linhas introdutórias. O caminho específico que conduziu às situações vividas nessa ocasião trataremos de o apresentar através dos factos que a seguir enunciaremos. Por último, restar-nos-á tirar as ilações que sem dificuldade ressaltam à vista, mas que se impõe apontar para o correcto entendimento dos objectivos visados e do papel desempenhado pelos intervenientes nesses complexos acontecimentos.

Por conveniência para a percepção exacta do sentido de determinados factos, socorrer-nos-emos de transcrições de alguns documentos surgidos ao longo do tempo. Os sublinhados que se vão encontrar são, contudo, e como é lógico, de nossa responsabilidade e pretendem avivar ideias ou frases de especial relevância.

Que este opúsculo consiga atingir as finalidades que presidiram à sua elaboração!

A COMISSÃO AD-HOC PARA O 28 DE SETEMBRO

I — INTRODUÇÃO

1. Em 25 de Abril deu-se início a um processo que muito legitimamente pode ser entendido como revolucionário, pelas perspectivas que abriu a uma efectiva modificação das bases estruturais — políticas, sociais e económicas — da nação portuguesa.

Mas em 25 de Abril não acabou a revolução. Era impossível — não se transforma num dia a organização de uma sociedade constituída em Estado e cimentada por longos anos de imobilismo. Era ilógico — o Movimento das Forças Armadas sempre pretendeu edificar um Portugal renovado, juntando esforços com o Povo que deverá tomar nas suas mãos os seus problemas e o seu futuro, baseando a sua acção na unidade que constitui a chave essencial das vitórias que vão sendo alcançadas.

Uma revolução não consiste unicamente na mudança de governantes. Vai-se mais fundo. Tem de haver uma completa modificação de estruturas. Ora esta mudança deve ser norteada pelos verdadeiros interesses do Povo e levada à prática com a participação activa das massas populares, na criação de novas condições para a vida que lhes pertence e na defesa das conquistas que se forem concretizando.

Se fosse possível remodelar o corpo, que não a fachada, de determinado país, pela substituição radical dos seus governantes, quantos sacrifícios, quantos sobressaltos não seriam poupados a todos aqueles que preferem refugiar-se no comodismo fácil de se adaptaram a situações diferentes que os venham envolver, em vez de serem eles mesmos os agentes da mudança!

O conhecimento de qualquer processo histórico e, neste caso, da transformação que vivemos, terá de nos dar consciência de que somos seus protagonistas e não simples espectadores.

Em 25 de Abril, contudo, verificou-se uma ruptura entre o poder político e o poder económico. Durante quase meio século andaram juntos. Separaram-se — por acção do Movimento das Forças Armadas, por acção do Povo que há muito vinha manifestando a vontade e lutando para abater as estruturas e os dogmas do fascismo e que de pronto quis para si a nova ordem que se estabelecia.

Consagrou-se o Programa do Movimento das Forças Armadas como lídimo texto constitucional da República Portuguesa. Os seus princípios deveriam passar a orientar a política nacional, visando arrancar as camadas trabalhadoras mais desfavorecidas à exploração a que estavam sujeitas tentando desenvolver este País de modo a que ele pudesse deixar o seu degradante lugar na cauda da Europa. A indesmentível adesão que, desde logo, à sua volta se sentiu por parte das classes sociais a que se dirige e das forças políticas progressistas, provou à evidência quanto ele exprime os desejos de liberdade, de justiça social, de democracia e de paz que a esmagadora maioria da população ansiava ver concretizados.

Só que a aplicação da prática das medidas governamentais que dão execução ao Programa do Movimento das Forças Armadas vai muito naturalmente prejudicar ou destruir situações privilegiadas daqueles poucos que detinham injusta e abusivamente os poderes económico e político, usufruindo dos resultados da exploração da força do trabalho, dominando os órgãos do Estado.

Em 25 de Abril nascia uma nova era para a vida portuguesa.

Mas ter o Governo não significa ter todos os poderes, mesmo quando o exercício do poder político que através dele se faz, conta com a colaboração das Forças Armadas. Existem forças político-económicas (nacionais e internacionais) capazes de tentarem bloquear toda e qualquer iniciativa governamental de renovação, capazes de tentarem impedir qualquer mutação das estruturas que as atinja gravemente nas bases que as suportam. E existem igualmente indivíduos de ideologia reconhecidamente reaccionária que poderão servir para, incansavelmente, denegrir o avanço da liberdade, aterrorizando as massas populares através de acções criminosas com as quais, fomentando uma aparente anarquia, se pretende desacreditar as pessoas e os órgãos que comandam a instauração da nova ordem.

Por isso, um processo com o qual se procure alcançar o estabelecimento de uma nova sociedade sem grandes convulsões, tem de ser progressivo, mas seguro, incisivo, mas escalonado.

Bem se compreende, então, que parar a revolução venha sendo um dos principais objectivos da reacção — porque parar a revolução significa muito simplesmente matar a revolução.

É das verdades contidas em todas estas premissas que os contra-revolucionários têm retirado a orientação a dar às suas acções em defesa dos seus privilégios.

Deste modo se explica, em primeiro lugar, que a reacção interna seja constituída por um leque grande de indivíduos, que vêem deteriorar-se o condicionalismo que os favorecia — e que vão da burguesia latifundiária e tradicionalista aos frustrados do colonialismo, dos empresários monopolistas e da alta finança aos elementos do velho aparelho do Estado fascista (legionários, agentes da ex-PIDE, filiados da ex-ANP, etc.) — os quais não devem ser confundidos com os meros agentes executores das suas manobras. A reacção está por detrás deles — e utiliza-os.

Assim se justificam também todas as sabotagens económicas que têm sido levadas a efeito, pelas dificuldades enormes que criam aos órgãos executivos na sua actividade tendente a modificar a sociedade portuguesa.

Ciente, porém, de que lhe é difícil promover um golpe de força, nas ruas e pelas armas, para fazer voltar Portugal a uma situação semelhante à do anterior regime, enquanto as Forças Armadas se mantiverem coesas, com todos os seus quadros irmanados em torno do ideal que tem dirigido este processo revolucionário português, a reacção ensaiou não se opor frontalmente à revolução — minando-a, embora no campo económico, intentou fazê-la evoluir politicamente a seu favor.

Julgou dispor das condições para concretizar este objectivo. Sabia que nos órgãos de soberania, talvez pelo equívoco que o imprevisto, para alguns, das consequências dos acontecimentos consumados em 25 de Abril permitira, estavam instaladas pessoas de ideologias algo diferentes, apoiadas por forças igualmente distintas e que se vinham afirmando no quotidiano governamental, roubando coesão e, por isso, poder de iniciativa, a órgãos em que deveria reinar o espírito de equipa. Constatava que as diversas correlações de forças só por si eram quase suficientes para fazerem perigar o futuro do processo revolucionário, pelo impasse a que o equilíbrio das facções conservadora e progressista conduzia necessariamente. Anotava as posições e os actos que, individual ou conjugadamente, certas personalidades da cena política iam adoptando.

Apostou nas pessoas que lhe seriam mais favoráveis. Procurou emprestar-lhes o apoio que lhes faltava para que lhes fosse possível travarem o processo começado, afastando os representantes das tendências mais progressistas que têm assento nos órgãos do Estado.

Depois, livre das forças que mais acerrimamente a combatem em nome de uma verdadeira execução do projecto revolucionário que é o Programa do Movimento das Forças Armadas, ser-lhe-ia mais fácil desembaraçar-se daqueles em quem jogara, substituindo-os por figuras de modo nenhum identificadas com o Movimento das Forças Armadas e o seu Programa.

Estaríamos de novo no obscurantismo opressivo terminado em 25 de Abril. Eram estas, em síntese, as finalidades pretendidas com a manobra reaccionária do 28 de Setembro — liquidar todo o processo de democratização e desenvolvimento em curso após o 25 de Abril, retirando dos órgãos de soberania, desde logo, as forças progressistas da esquerda e, depois, os representantes da direita moderada.

A dinâmica do processo tornou-o, contudo, irreversível. A reacção perdeu — e com a derrota, permitiu uma clarificação da situação existente antes do 28 de Setembro e deu azo a que passasse a haver uma maior coerência adentro do poder político.

O Povo, por si, pelos seus sindicatos, pelos partidos políticos que verdadeiramente o representam, soube descobrir a tempo os fins ocultos de uma manobra que se procurava desenvolver sem o seu conhecimento. Interessou-se activamente na defesa das condições já alcançadas para o estabelecimento da democracia, chamando à sua responsabilidade uma missão que as Forças Armadas estavam, por imperativos da defesa da revolução, impedidas de realizar. A sua decidida acção nas estradas do País ajudou a garantir-lhe a vitória num confronto que quase esteve perdido nos corredores do Palácio de Belém.

Foi mais uma hora de júbilo popular.

Os avanços e retrocessos — mais aqueles, menos estes — próprios de qualquer dialéctica revolucionária, demonstram, sem dúvida, que está a proceder-se a uma séria tentativa de realização dos anseios do Povo Português, agora livre e incontestavelmente expressos.

2. Notemos, porém, que em 28 de Setembro não foi a primeira vez que se tentou subverter as conquistas efectuadas. O «28 de Setembro» veio tão só coroar um estudo, uma reorganização que a reacção vinha fazendo — foi a tradução do seu primeiro ataque formal. Assim, já quando da acção do Prof. Palma Carlos se pretendeu abrir o campo a uma marginalização das forças progressistas dos órgãos de Estado. Por outras palavras: tinha-se em vista subalternizar, para o dissolver, o Movimento das Forças Armadas,, afastando-o da chefia da revolução que iniciara.

Para tanto, propunha-se o adiamento das eleições para Novembro de 1976 e a imediata efectivação de um referendo, que não poderia deixar de constituir, na altura, senão um aplauso generalizado ao Presidente da República, para muitos símbolo da revolução e que dessa forma o legitimaria como seu único condutor. Entendia-se ainda ser necessário aprovar um texto constitucional provisório que substituiria o Programa do MFA, o qual, de índole presidencialista, atribuiria, todavia, mais amplos poderes ao primeiro-ministro, aproximando-se da anterior Constituição de 1933.

Começara a verificar-se uma dissincronia entre o general António de Spínola e o Movimento das Forças Armadas, representado pela Comissão Coordenadora do Programa, ou mais propriamente, entre as forças que respectivamente os apoiavam.

Era um golpe que fundamentalmente se desenrolaria nas salas de reuniões, ficando o Povo na ignorância dos factos por não ter intervenção nas discussões decisivas.

Ainda que na ocasião algumas forças se tivessem já manifestado afirmativamente quanto à consumação dessa tentativa, certo é, porém, que elas acabaram por ser vencidas, até porque a reacção que eventualmente as apoiaria continuava receosa e espectante.

Esta vitória permitiu dar dois passos em frente no processo revolucionário em curso: a demissão de certos elementos do elenco governativo, motivada pelo reajustamento de forças e pela sua responsabilidade na tentativa de transgressão aos princípios contidos no Programa e até na sua própria denegação, e a entrada do MFA para o Governo, num nítido avanço da linha progressista defendida pelo Movimento das Forças Armadas e por determinados agrupamentos políticos. Tal avanço consubstanciou-se inclusivamente na nomeação do Brigadeiro Vasco Gonçalves para o cargo de Primeiro-Ministro, em detrimento do Tenente-Coronel Firmino Miguel, personalidade afecta e da confiança do General António de Spínola que chegou a ser dado certo nessa função.

Os contra-revolucionários portugueses e estrangeiros, aliados ou independentes, não puderam valer à linha conservadora que originara esta crise interna do poder, talvez por se encontrarem desorganizados ou por não vislumbrarem ainda uma estratégia eficaz.

No interior do poder, vinha-se evidenciando o confronto entre duas tendências incompatíveis, que era um confronto entre as forças que as motivaram e suportavam, pressionando os seus apaniguados nos órgãos de Estado.

Em 13 de Junho de 1974, o General Spínola promoveu inesperadamente uma reunião na Manutenção Militar com a presença de cerca de trezentos oficiais representantes do Movimento das Forças Armadas. Aí assumiu posições extremamente autocráticas, pretendendo que a sua ética militar pairava acima da política, que o Movimento se restringisse a um papel estritamente militar e que deveria ser deixada a ele, Presidente da República, a direcção da política nacional, quando muito coadjuvado pela Junta de Salvação Nacional.

Plano tão «ambicioso» mereceu uma encenação apropriada, onde não faltou um clima de desgaste nervoso e psicológico e um domínio da situação pela sua figura e pelos processos ditatoriais utilizados.

Constou essa reunião de uma exposição da vida económica nacional, pelo dr. Vasco Vieira de Almeida à qual se seguiu um esboço de panorâmica geral do País, feito pelo dr. Francisco Sá Carneiro, confusa e caótica, humilhante como resultado do 25 de Abril, em que se esqueciam as conquistas até à data alcançadas e sobrevalorizavam-se as dificuldades e entraves existentes. Com tais intervenções ficaram justificadas as pretensões do General Spínola, que não deixou de as apresentar na sequência. Nessa altura também se fez ouvir corajosamente, entre outras, a voz do do então coronel Vasco Gonçalves que rebateu, concretamente, as falsas ideias que ali se pretendiam gerar.

Esta foi a primeira das várias vezes em que se descreveu como caótica a situação da vida económica e social do País para fundamentar a tentativa de concentração de todos os poderes nas mãos do General António de Spínola ou até de declaração do estado de sítio, cujo resultado prático seria semelhante, apresentando-se como alternativa a resignação do Presidente da República.

Por outras tantas vezes não foi aceite a descrição como válida, pelo que foi recusada a satisfação desses desejos.

O conflito entre essas duas tendências — uma conservadora e outra progressista — ia-se, contudo, agudizando.

Nos órgãos de soberania a questão situava-se com clareza no distanciamento entre o Presidente da República e os representantes do Movimento das Forças Armadas.

O espectro do impasse governamental, com as suas nefastas consequências, surgia sombriamente. Havia que afastá-lo, escolhendo.

Chegara mais uma hora fundamental para a revolução. Impunha-se optar: o MFA continuava com as forças conservadoras — finalizaria na sua dissolução e o processo revolucionário esvair-se-ia; o MFA continuava como força progressista — acabaria por assumir um papel dinamizador da política nacional e seria garante da continuação do processo revolucionário.

No fundo colocava-se novamente o problema da interpretação a dar ao Programa do Movimento das Forças Armadas. Tinha de decidir-se de uma vez para sempre quem deveria comandar a revolução, ou seja, quem deveria definir na prática os objectivos preconizados no dito Programa: se o General António de Spínola, conjuntamente com os sectores que o apoiavam, incitando-o, se o Movimento das Forças Armadas, de mãos dadas com o Povo para o qual e com o qual vem desenvolvendo a revolução.

É neste condicionalismo que a reacção se dispõe a actuar, seguindo uma estratégia prévia e ponderadamente delineada e discretamente executada, mas não o suficiente para evitar a sua percepção, — a qual precipitou o final da manobra e fez abortar a tentativa.

A reacção, aliás, vinha já sendo encorajada por factos que indubitavelmente lhe acenavam. Sem a pretensão de se ser exaustivo, refiram-se a título de exemplo, de entre estes factos, as declarações públicas de altos responsáveis pela vida nacional — a célebre carta lida e comentada na televisão e as opiniões então expendidas no Brasil pelo General Galvão de Melo — o imbróglio que envolvia os processos dos agentes da ex-PIDE/DGS, a alteração no comando da descolonização, com os encontros quase secretos em Cabo Verde entre o General Spínola e Mobutu e a vinda a Lisboa de pseudo-representantes de agrupamentos políticos fantoches angolanos, o incidente verbal ocorrido na cerimónia de posse do Comandante da Região Militar de Lisboa entre o General Jaime Silvério Marques e o Brigadeiro Otelo Saraiva de Carvalho, os graves incidentes ocorridos em 7 de Setembro em Moçambique e a tentativa de instauração de violência desenfreada nos muceques de Luanda.

Todos estes foram significativos episódios que a direita ia anotando, comandando, explorando e favorecendo. Neles encontrava a força que a princípio lhe escasseava: deles concluía que talvez nem tudo estivesse ainda perdido.

Até porque o Presidente da República vinha realizando uma série de actos que demonstravam claramente o seu desejo de dominar o maior número possível de unidades militares. Assim se explicam as visitas aos aquartelamentos das tropas especiais (comandos, para-quedistas, fuzileiros), durante as quais sucedem factos da autoria do General António de Spínola, que evidenciam a conclusão acima apresentada.

Por outro lado, também o aumento de operacionalidade do COPCON foi entravado pelo General Jaime Silvério Marques, Chefe do Estado-Maior do Exército, que se recusou a aceitar uma proposta que lhe foi presente e na qual se justificava a supressão de um dos elos da cadeia hierárquica que ligava esse Comando às unidades militares.

Refira-se ainda o boicote de que foi alvo a campanha de dinamização e esclarecimento começada nas unidades militares, na origem do qual estiveram pessoas afectas ao General Spínola, e entre estas, o major de Cavalaria Manuel Soares Monje.

Por tudo isto os contra-revolucionários se foram restabelecendo dos medos-pânicos que os tinham assaltado logo após o 25 de Abril. Por isso se foram organizando. Por isso decidem aproveitar-se do possível — jogando nalguns generais que lhes seriam nitidamente favoráveis, motivando-os no conflito aberto dentro do aparelho de Estado.

Deviam, para tanto, emprestar-lhes publicamente a força que não tinham par que pudessem tomar as atitudes e as posições que vinham pretendendo assumir, ou de lhes fornecer razões concretas para basearem a efectivação dos seus desejos, os quais apontavam sistematicamente no sentido da concentração dos poderes no Presidente da República. Com a ditadura pessoal se orientaria a execução do Programa do Movimento das Forças Armadas num sentido que não seria de forma alguma o progressista e democrático que neste se preceitua.

Mas aqui, os objectivos da reacção e das forças que a apoiavam, coincidiam, identificando-se, na constatação da necessidade de se parar e inverter o processo revolucionário em curso.

Estratégia atenta, que explorava a um tempo certas hesitações na aderência de todas as Forças Armadas ao MFA e o pendor presidencialista do General António de Spínola, ela englobava a realização de uma manifestação pública de apoio, durante a qual ou a partir da qual se procuraria criar, se não resultasse o golpe pacífico, um clima de violência e de instabilidade que desacreditasse por completo o Movimento das Forças Armadas afastado do poder e abalado pela instauração de um novo regime ditatorial, dividido pela existência de forças que ainda seguiriam o General Spínola e de forças que partilhavam dos ideais progressistas.

Estratégia brutal, que não excluía sequer a hipótese de uma guerra civil para a consecução efectiva dos seus objectivos, ela determinou a prática de alguns actos preparatórios que felizmente foram ultrapassados pela evolução dos acontecimentos.

Estratégia cara, que permitiu uma campanha que visava a criação de um ambiente social propício para o êxito da manobra, ela mobilizou importantes recursos financeiros que vieram a ser, contudo, insuficientes para esconderem o reaccionarismo da operação tentada.

São estes, em linhas gerais, os «acontecimentos do 28 de Setembro».

II — OS FACTOS

1. «Nós pertencemos efectivamente a essa maioria silenciosa que deposita toda a sua confiança no Sr. General Spínola. E nas Forças Armadas, cuja reunião com o Povo se dá na pessoa do Presidente da República.

Os desvios do Programa do Movimento das Forças Armadas, os atropelos extremistas cometidos, a confusão de descolonização com abandono precipitado, apontou-os magistralmente V. Ex.- no seu notável discurso. Com igual clarividência delineou V. Ex.ª também os caminhos da dignidade, do pluralismo democrático, da justiça social, do respeito pela vontade popular que devem ser percorridos para a genérica execução do Programa do MFA. A maioria silenciosa vem por esta forma testemunhar a V. Ex.ª o seu integral apoio à determinação do Presidente da República de não consentir atropelos nem desvios — venham de onde vierem, apresentem-se com que rótulo se apresentarem — à autêntica democratização da sociedade portuguesa.

Pode V. Ex.ª agir com inteira firmeza e segurança, que a maioria silenciosa — a nação realestá consigo.»

Este um fragmento do discurso que seria lido ao General António de Spínola, Presidente da República Portuguesa, quando da realização da manifestação planeada para o dia 28 de Setembro de 1974.

«A Grande Manifestação Nacional de Apoio à Inteligência e à Consciência do Povo Português já é, na véspera, um êxito retumbante. Agora já ninguém desconhece, dentro e fora das fronteiras da Pátria, qual é a verdade acerca dos métodos, dos objectivos, das tácticas, da moralidade e do direito que estão a ser postas em prática para dominar o Povo. Conseguiram a incrível proeza de fazer com que a Ditadura passada faça saudades a quem está a sentir e ver a Ditadura presente (...)

A força das armas empurrou a titubeante e cansada ditadura da direita. Compete à força das armas libertar o Povo Português da ditadura da esquerda e honrar a sua espada honrada e livre para assegurar a liberdade (...)

Se os militares não entenderem nem aceitarem isto até às últimas consequências, sem hesitações nem confusões e continuarem a seguir a escola antiga, esperando que a força das armas seja o primeiro instrumento da vitória, o inimigo entrará silencioso nas suas almas e tirar-lhes-á a vontade e as razões de combater na fronteira.

A força das armas só servirá então como adereço de apoteose de uma tragicomédia em que as derrotas são festejadas como vitórias, as vergonhas como glórias, num alucinante carnaval de sentimentos, gestos e direitos em que nada diz aquilo que devia dizer.»

Estas linhas que acabamos de transcrever foram redigidas pela comissão organizadora da manifestação da maioria silenciosa e constavam de um documento dirigido ao então Presidente de República, General António de Spínola, na véspera da anunciada manifestação.

Poderíamos começar por aqui a análise do que foi a reaccionária manobra do 28 de Setembro — concluiríamos, sem dificuldade, sobre quem constituía efectivamente a maioria silenciosa, o que era visado por ela e como pensava consegui-lo.

Não o fazemos, porém. Guardaremos para mais tarde as conclusões a que a longa série de elementos colhidos nos conduzem.

Por agora, detenhamo-nos na enumeração de alguns dos factos mais significativos apurados, após termos procedido à análise de número considerável de documentos e termos apreciado as declarações de detidos e outras pessoas chamadas a depor.

A matéria de que dispomos permite afirmar, desde já, que manobra de tal envergadura fora objecto de preparação consciente e responsável. Com efeito, a partir de fins de Julho, o País começou a assistir a uma ofensiva orquestrada pela extrema direita, que se manifestava nas inscrições provocatórias, na difusão de boatos alar- mistas, numa ampla afixação de cartazes com palavras de ordem reaccionárias e ainda, com especial relevo, através de uma certa imprensa identificada com o seu ideário. Nesta imprensa se destacaram os periódicos «Tempo Novo» (órgão do Partido Liberal), «Tribuna Popular» (órgãos do Partido do Progresso) e «Bandarra», que pretendia apresentar-se como independente para se poder afirmar «imprensa livre».

4. Este último — propriedade da «Editorial Restauração» que meses antes suspendera a publicação de um outro semanário cronicamente deficitário e que também lhe pertencia, «O Debate» — merece uma referência particular, seja pela forma opulenta com que se apresenta, seja pela matéria criminosa com que preenche as suas páginas.

Quanto ao primeiro aspecto — o do financiamento do luxo das edições — refira-se desde já que o Banco Espírito Santo & Comercial de Lisboa aceitou duas livranças de quatrocentos mil escudos, subscritas pelos administradores da editorial.

Este empréstimo justificava-se, uma vez que o movimento da empresa não era de molde a proporcionar-lhe lucros que pudessem cobrir os custos do semanário. Diga-se ainda, a propósito, que dela são accionistas preponderantes Pedro Soares Martinez, Bernardo Mendes de Almeida (Conde de Caria) e Filipe de Bragança.

Quanto ao segundo aspecto — o da matéria escrita, onde se multiplicavam as provocações à população e ao Governo Provisório e tendo como constante a agressão ideológica, realizando assim uma das finalidades da citada ofensiva da extrema-direita, mais exactamente, a preparação de um clima social e psicológico propício ao êxito da manobra.

O autor desses textos é Manuel Múrias, salazarista dos mais convictos, responsável, juntamente com Miguel Freitas da Costa, pela orientação deste periódico, o qual na edição com a data de 28 de Setembro, anunciava implicitamente a vitória sobre as forças democráticas.

5. Além destes três citados jornais, muitos outros colaboraram na propagação do clima contra-revolucionário. Uns, ligando-se directamente a elementos activos de partidos reaccionários e outros, apenas por identificação ideológica.

É curioso citarem-se alguns, para exemplo, sem se esgotar, porém, a sua enumeração. Assim, referimos de Lisboa «A Resistência» e o «Economia e Finanças», de Braga «O Clarim», de Ovar o «João Semana», de Valença do Minho «O Valenciano», de S. Tiago (Seia) o «Mensageiro Paroquial», de Beja o «Jornal do Sul», o «Jornal da Bairrada», o «Vilaverdense», o «Jornal de Famalicão».

Seria longa a lista de publicações que procuravam denegrir a nova ordem portuguesa. Em especial no Minho, encontramos muitas outras que poderíamos abarcar nesta referência. Julgamos desnecessário prolongá-la, pois o teor de muitos outros jornais de província facilmente evidencia o seu reaccionarismo.

6. Os meios de comunicação social eram, aliás, um dos pólos de atenção dos mentores da ofensiva da extrema-direita.

A sua utilização surge na sequência de uma campanha de dinamização política e financeira liderada por um grupo de influentes elementos fascistas que se organizaram para esse fim, entre os quais se destacavam os nomes de: General Kaulza de Arriaga, que assegura o apoio financeiro; Pedro Feytor Pinto, que, perante a «importância dos jornais das vilas», para eles pode fazer uma útil «canalização»; Luís Folhadela de Oliveira, que escreve a um amigo de Vila Nova de Famalicão a comunicar-lhe que «a Rádio Alto-Douro, da Régua, pertence a um tipo fixe que está avançado em idade e quer que se faça barulho» e que «andava a averiguar quem é o titular de uma hipotética licença de estação de rádio para Braga»; Artur Agostinho, de cujos serviços este grupo se procura assegurar.

Diga-se ainda que outro dos propósitos confessados de tal grupo era o lançamento de dois jornais diários — um no Porto e outro em Lisboa; e que o apoio aos periódicos primeiramente mencionados era também ponto assente, em particular depois de, numa reunião efectuada no Algarve em Agosto, com a presença de José Harry de Almeida Araújo e de um indivíduo português da ITT, se ter concluído pela enorme dificuldade em conseguir posição nos capitais das empresas proprietárias de publicações e estações emissoras.

7. A utilização nesta campanha de certos meios de comunicação baseava-se, como é evidente, em três pressupostos:

8. Por outro lado, era imperioso para as forças reaccionárias disfarçarem o seu reagrupamento e as suas actividades. Recorriam, para tanto, à invocação de fachadas partidárias muito próprias, sob as quais pretendiam entrar no jogo democrático, que não aceitavam afinal, mas que no condicionalismo presente lhes poderia servir de via para alcançarem os seus objectivos antidemocráticos.

Por isso, as organizações políticas à sombra das quais se refugiavam nomes altissonantes do fascismo, foram surgindo. Sem preocupações cronológicas, refiramos algumas das que mais directamente se relacionaram com o «28 de Setembro» e caracterizemo-las brevemente:

9. Partido do Progresso / Movimento Federalista Português

A criação do Movimento Federalista Português deu-se logo após o 25 de Abril — e ainda nesse mês — por iniciativa do Professor Fernando Pacheco de Amorim e de outras pessoas.

Surgiu como conjugação de duas tendências ideológicas já existentes no regime fascista. Uma, tinha por base um grupo de militantes que vinha procurando refugiar-se na clandestinidade e que se auto-denominavam «Nacionalistas Revolucionários», actuando sob a capa legal da «Cooperativa Cidadela» (Porto e Coimbra); outra, constituída na sua maior parte por elementos com inclinações monárquicas. A linha-mestra que possibilitou essa união foi a defesa de uma solução federalista para o problema colonial. Para alguns dos seus fundadores, a mítica «evolução na continuidade» de Marcelo Caetano chegou mesmo a merecer, em tempos, a catalogação de «branda» e de «liberal».

A proliferação, contudo, de partidos de direita, desfazendo o sonho unitário que o Movimento Federalista acalentara, obrigou a que, em meados de Julho, se tivesse sentido a necessidade de o transformar em partido, com vista à luta eleitoral. Assim nasceu o Partido do Progresso.

Como dirigentes deste partido citamos, pela sua acção, Fernando Pacheco de Amorim, secretário-geral, Luís de Oliveira Dias, José de Magalhães Valle de Figueiredo e Diogo Miranda Barbosa. Havia ainda outras figuras proeminentes no quadro da organização nacional, designadamente José Miguel de Alarcão Júdice, Luís de Sá Cunha, José Augusto Carneiro de Costa Deitado e Joaquim Miguel Seabra Ferreira (director do «Tribuna Popular»).

Neste periódico, «única voz da maioria silenciosa», se repetiam um por um, todos os motes que pretendiam desacreditar a política seguida pelo Governo Provisório, nessa campanha orquestrada pela extrema-direita, visando a consecução dos seus intentos subvertores do espírito do 25 de Abril.

Por seu turno, um grupo de jovens que haveria de filiar-se no Partido do Progresso, constituiu no Porto um Comité Nacionalista de Acção Revolucionária (CNAR), que não passaria, afinal de uma organização fantasma com o objectivo de, através de pinturas murais com frases ultra-reaccionárias e provocatórias, criar a ilusão da existência de uma organização clandestina da extrema-direita, forte e bem preparada, que desse alento aos saudosos do salazarismo. A inspiração para estas acções proveio e contou com o apoio de Fernando José Montenegro Sollari Allegro, o qual servia de meio para que a sede do Porto suportasse as despesas efectuadas pelo Comité.

De entre os factos relacionados com o Partido do Progresso, destacam-se, desde já, a contratação de um técnico de «marketing» político de nacionalidade americana (custou cerca de uma centena de contas a deslocação de Clifton White ao nosso País) e a existência nas suas instalações de uma longa lista de jornais a contactar e capazes de compensarem «em boa medida, o silêncio eventual da imprensa diária adversa» — seleccionados, «por oferecerem maiores possibilidades de abertura ao ideário federalista e suas implicações», órgãos da imprensa regional cujo passado e presente dos seus responsáveis e escribas não deixa qualquer dúvida. E, para além de pormenorizados mapas do Instituto Geográfico e Cadastral que servem as Forças Armadas e nos quais se assinalavam indicações estratégicas, também vários livros foram sintomaticamente encontrados na sede deste partido — salientam-se: «Discursos de Salazar», «Livro Branco» de Pinochet, «Anti-Marx» de Pequito Rebelo.

A orientação política do Partido do Progresso não permite, pois, enganos a seu respeito — sendo mais um gravame a organização da sua «Comissão Operacional» que adiante será referida, em razão dos métodos e dos meios para ela preconizados.

Com base num estudo encontrado nas suas instalações centrais, pode afirmar-se que o Movimento Federalista se considerava como gozando das simpatias dos meios militares afectos ao General Spínola e que dizia ter igualmente forte implantação no sector dos antigos combatentes, «bastante dispostos a aceitarem e a subscreverem um programa de defesa do Ultramar, de anticomunismo e de reformas sociais ousadas».

Finalmente, nesta breve caracterização do Partido do Progresso, note-se ainda que este teve diversos contactos e ligações com vários movimentos políticos fantoches surgidos nas colónias depois do 25 de Abril, tais como a «Associação Cívica Pró-Angola», a «Frente Nacionalista Angolana», o «Movimento Federalista de Moçambique», a «Liga Popular dos Guinéus» e a «União Democrática de Cabo Verde».

Por outro lado, apurou-se que o Partido do Progresso mantinha relações com organizações fascistas estrangeiras, a saber: «Ordine Nuova», «Europe Action», «Giovane Nazione», com as quais Valle de Figueiredo, antigo aderente do movimento «Jovem Portugal» — organização da extrema-direita que actuava em Coimbra — se correspondia com frequência.

10. Movimento de Acção Portuguesa

Este agrupamento resultou de uma cisão operada num sector da direita portuguesa, cisão essa que foi motivada primordialmente por uma divergência ideológica quanto à problemática colonial.

Assim, parte desse sector compreendeu que a alternativa possível, depois do 25 de Abril, em relação àqueles territórios, ainda poderia ser a tese federalista, perfilhando (ou pseudo-perfilhando) as ideias do General Spínola, expostas no seu livro «Portugal e o Futuro», pelo que se apressou a erguer o Movimento Federalista Português / Partido do Progresso.

A outra parte (ou resíduo) dessa direita permaneceu agarrada à tese integracionalista de Salazar e Caetano, negando-se à associação, que inicialmente foi proposta, ao Movimento Federalista. Por isso, os indivíduos que estiveram na origem do MAP, Florentino Goulart Nogueira e Rodrigo Emílio Alarcão Ribeiro de Melo, ambos poetas e amigos de José Valle de Figueiredo, resolveram formar um outro grupo político, cuja designação seria Movimento Nacionalista Português, a qual teve de ser alterada em virtude do aparecimento do Partido Nacionalista.

As linhas programáticas do Movimento de Acção Portuguesa (MAP), para além de desenvolverem as ideias integracionistas, eram orientadas num sentido unipartidário, anticomunista e apologista de governos de minorias. A título exemplificativo, transcrevem-se alguns dos pontos básicos do seu programa, onde as características indicadas ressaltam com maior nitidez: — defesa da unidade nacional, como País pluricontinental; — respeito pela verdadeira independência da Pátria, que não se compadece com a imitação servil de modelos estrangeiros; — apologia da autoridade e da ordem; — repúdio do dogma da luta de classes; — condenação do espírito de divisão partidarista; — libertação da cultura, dominada pelo dogmatismo marxista.

Paralelamente à adopção destas linhas ideológicas orientadoras da sua actividade política, o facto de certos ex-legionários constituírem um dos principais campos de recrutamento de elementos para o MAP, se não conclusivo, legitima, contudo, todas as dúvidas que pode levantar.

O Movimento de Acção Portuguesa acabou por se revelar somente como um grupo de perigosos activistas que poderiam inclusive dedicar-se à prática de acções específicas, das quais se não excluíam mesmo os atentados. A sua sede localizava-se na zona da Calçada da Estrela, muito próximo da residência oficial do Primeiro-Ministro em São Bento.

O presidente de honra do MAP era o Professor Guilherme Braga da Cruz, de Coimbra, com quem os fundadores já citados mantinham boas relações. Outros membros desta tenebrosa organização eram: Walter Cândido Ventura, maníaco por armas de fogo, potencialmente perigoso, administrador de posto em Angola, com estágio de «comandos»; Delfim Fuentes Mendes, pertencente ao movimento «Jovem Portugal», nazi fanático, presente numa reunião da comissão organizadora da manifestação dita da «maioria silenciosa»; Vasco Emanuel de Centeno Barata e José Rebordão Esteves Pinto, também activos ex-legionários e antigos colaboradores de Radiotelevisão Portuguesa.

11. Partido Nacionalista Português

Com sede no Porto, este partido, mais do que qualquer outro, patenteava à evidência o seu comprometimento legionário-fascista.

Um dos seus fundadores, Artur Alberto da Silva, convidava do seguinte modo os possíveis simpatizantes, através da carta-convite que transcrevemos:

«Como já deve ser do teu conhecimento, pois foi noticiado pelos jornais diários e até pela Televisão, foi fundado o Partido Nacionalista Português. O nome do Partido é só por si suficiente para que se perceba imediatamente quem somos, como somos e o que queremos.

Nada pudemos fazer no 25 de Abril, pois fomos miseravelmente traídos pelos nossos chefes; mas aqui estamos de novo prontos para a luta, desta vez sem o estorvo daqueles que acabaram por nos vender.

Contamos contigo, pois conhecemos-te bem e sabemos que não te recusarás a continuar a luta que, por circunstâncias alheias à nossa vontade, fomos forçados a interromper em Abril.

Pedimos-te para que, além da tua adesão, procures contactar outros camaradas no sentido de os trazer até nós, dado que não temos quaisquer documentos que nos permitam fazer uma chamada geral.»

A sua ideologia, o seu descaramento, a exclusividade de classe dos seus quadros eram de tal modo aberrantes que, tendo sido desmantelado pouco antes do 28 de Setembro, o próprio Partido do Progresso veio publicamente desmentir qualquer ligação com este partido, não o associando sequer à Frente Democrática Unida (FDU) que se pretendeu instituir pela reunião dos Partidos do Progresso, Trabalhista Democrático Português e Liberal.

12. Movimento Popular Português

A ideia da constituição de uma frente unida de forças de direita que pudesse «dar combate nas eleições» às forças de esquerda era uma das linhas mestras da actuação deste Movimento Popular Português. Nesta base, pretendia que fosse dada existência a uma Frente Democrática Nacional (FDN), que viesse substituir as iniciativas já tentadas de uma Frente Democrática Unida (FDU) e de uma Frente Social Democrata (FSD), a qual englobaria todos os partidos das direitas.

Surgido em Maio de 1974, o MPP envia, no princípio de Julho, uma carta ao Primeiro-Ministro Palma Carlos em que, agradecendo uma audiência que por este lhe tinha sido concedida, adianta os seus «propósitos inequívocos de contribuir com a sua actividade para compenetrar a grande massa silenciosa dos portugueses das suas enormes responsabilidades nesta hora em que é mister para salvação da nossa Pátria no seu todo pluricontinental a criação de uma grande frente unida para combater o avanço das ideias marxistas e para simultaneamente apoiar o Chefe do Estado e o seu Primeiro-Ministro para que possam levar a cabo o programa que nos anunciaram logo após o golpe de Estado de 25 de Abril.»

Da comissão organizadora do MPP fizeram parte o Eng. Adelino Felgueiras Barreto, o Eng. Ângelo Galamba de Oliveira e o Dr. Manuel Braancamp Sobral, presentes na audiência referida.

Outras das orientações que norteavam a actuação do MPP era, respectivamente, o antimarxismo (confundido e identificado com anticomunismo) e o integralismo da Pátria. Estas linhas ressaltam claramente de uma passagem da seguinte carta enviada por um dos seus aderentes:

«... A ideia inicial consistiu em enquadrar todas as forças da direita e centro-direita, num movimento amplo que não se limitava à propaganda de ideias muito específicas, mas que se lançasse numa acção permanente de combate, como meio para atingir a maioria das várias forças da direita e centro com base em dois princípios fundamentais: o anticomunismo e a defesa da Pátria do Minho a Timor».

O antimarxismo foi largamente demonstrado em cartazes extremamente reaccionários que o MPP mandou imprimir e afixar, tarefa para a qual se serviu, no Norte do País, do Partido Nacionalista Português.

A difusão das suas ideias contou ainda com a utilização do Círculo de Estudos Sociais Vector e também da revista «Resistência», na direcção da qual estavam indivíduos intimamente relacionados com o MPP, tais como o Dr. António da Cruz Rodrigues e José Luís Pechirra. Este último, aliás, igualmente esteve na origem de um opúsculo largamente distribuído pelo País e que se intitulava «PCP um Partido Fascista», subscrito pelo pseudónimo José V. Claro.

Tal como a revista «Resistência», o MPP tinha como principais centros de implantação os meios católicos do interior e Norte do País. Nos seus planos de acção se incluía ainda uma campanha nas aldeias a «desmascarar» os cursos de alfabetização.

O MPP colaborou, finalmente, com a manifestação da «Maioria Silenciosa».

13. Partido Liberal

Nascido de uma cisão verificada na Convergência Monárquica, cuja ala mais reaccionária passou a agrupar, o Partido Liberal teve uma existência apagada até Agosto.

Funcionando nas instalações da SINASE — Sociedade de Investigação Aplicada ao Serviço da Empresa, S. A. R. L. — a qual se dedica à prestação de serviços de vária ordem a empresas nacionais e estrangeiras e cuja administração era presidida por António Ávila, que vai aparecer igualmente no Directório e na Comissão Executiva do partido, este agrupamento possuía escasso número de filiados.

Nos finais do mês de Julho, num comício que o Partido Liberal levou a efeito no Teatro São Luís, em Lisboa, fez a sua aparição política pública José Harry de Almeida Araújo — espécie de arquitecto muito rodado nos circuitos sociais da grande-burguesia nacional e internacional, o qual, levando uma vida faustosa suportada com avultados meios, a garantia através de múltiplos expedientes, nomeadamente sucessivos casamentos.

Tendo vivido mais de vinte anos em países estrangeiros, Almeida Araújo estreara-se, por essa altura, nas páginas da imprensa portuguesa, publicando no «Expresso» (27/7/74) um texto virulentamente anticomunista intitulado «Não somos todos camaradas... somos todos portugueses». Foi ele também quem iniciou a campanha de cartazes com dizeres extremamente reaccionários, mandando imprimir grande quantidade a expensas suas, denunciados oportunamente na imprensa diária, designadamente no «Diário de Notícias».

Não se conhece qualquer facto que revele anterior inclinação de Almeida Araújo para activismo político; mas na sequência — pelo menos lógica — da sua intervenção no citado comício, surge no Partido Liberal, acompanhado por António Luís Marques de Figueiredo, Tenente-Coronel da Força Aérea na situação de reserva, propondo-se tomar conta da respectiva direcção.

Rapidamente integrados na Comissão Executiva do partido onde é atribuída formalmente a Almeida Araújo a propaganda e a imprensa e ao Tenente-Coronel Figueiredo a gestão financeira, estes dois elementos vêm emprestar ao agrupamento toda uma nova dinâmica. Despesas consideráveis, na inexistência de qualquer montante significativo obtido pela quotização dos filiados, passam a ser satisfeitas por «apports» aparentemente pessoais do último. Homem de recursos vastos, o Tenente-Coronel-Figueiredo, para além das posições que deteve ou detém noutras empresas, era administrador da «NAVEX» e da «TRÁFEGO E ESTIVA», de que é proprietário em sociedade com o alemão Scheder.

Partido híbrido, sem uma definição clara das suas linhas programáticas, embora norteado por uma orientação fascizante e profundamente antimarxista, pretendendo organizar-se num esquema de empresa de serviços adaptada à legislação referida a partidos para facilitar a adesão de «capacidades alérgicas à política», contando com um Directório Nacional composto por indivíduos relativamente pouco conhecidos, em que se salientavam além dos já mencionados, Gastão Graça da Cunha Ferreira, psicólogo pedagogo, José Cabral, médico, Luís Alberto Vinha Frades, estudante universitário e Osvaldo Eurico Aguiar, advogado, o Partido Liberal viria a ser o centro e o grande coordenador de toda a manobra do «28 de Setembro» nas suas implicações civis.

O Partido Liberal mantinha ainda discretas relações com Duarte Pio de Bragança. Este, numa viagem que fez pela Ásia, África e América em Maio, Junho e Julho de 1974, ao mesmo tempo que ia descobrindo negócios para a SINASE, com a qual estava relacionado, cuidava da promoção externa do Partido Liberal e estabelecia contactos pessoais de natureza mais reservada. Assim, em Cabinda avistou-se com Alexandre Tati e com Tiago Nzita, vice-presidente da FLEC, que convenceu a virem a Lisboa, encarregando Fernando Pacheco de Amorim, dirigente do Partido do Progresso, de lhes marcar uma entrevista com o General Spínola, mas sugerindo igualmente que fosse o Partido Liberal a apresentar tais indivíduos com os seus hóspedes.

14. Temos, portanto, neste ponto, que parte das forças reaccionárias se procuraram aproveitar das liberdades concedidas pelo regime democrático instaurado com o 25 de Abril, organizando-se em partidos.

Mas não só — já em 10 de Julho de 1974, uma delegação representativa do Movimento Federalista Português, do Partido Trabalhista Democrático Português, do Partido Liberal e do Movimento Popular Português foi recebida pelo General Spínola, a quem fez a entrega de um documento em que se definia a sua posição conjunta perante o momento político que se vivia. Nele se podia ler:

«Por circunstâncias resultantes do processo revolucionário subjacente à tentativa de normalização da vida nacional, estão estas correntes sistematicamente isoladas do diálogo com o poder, sendo objecto de um tratamento discriminatório a todos os níveis que supõe o desconhecimento aparente da sua própria existência como movimentos políticos organizados (...). A grande maioria do País tem sido silenciada pela actuação unilateral das forças a quem foi confiada a gestão dos negócios públicos nesta fase transitória. Queremos que essa maioria se torne participante, porque nela residirá fundamentalmente o apoio e a legitimação aos actos do Poder».

15. Foi essa, talvez a primeira ocasião em que se falou de «maioria silenciosa» em Portugal no pos-25 de Abril.

A expressão, ou a ideia que ela contém, viria pouco tempo depois a ser utilizada pelo Presidente da República, General Spínola, numa das suas alocuções, na seguinte passagem:

«Não tenhamos, a tal respeito, qualquer ilusão. Ou a maioria silenciosa deste País acorda e toma a defesa da sua liberdade ou o 25 de Abril terá perdido perante o Mundo, a História e nós mesmos o sentido da gesta heróica de um Povo que se encontrou a si próprio. E com esse desengano se esfumarão as nossas esperanças na democracia».

16. O falhado golpe do «28 de Setembro» viria a aproveitar-se, para a sua organização, de tal ideia.

Com efeito, em 9 de Setembro, numa reunião efectuada em casa de Sousa Machado e conduzida pelo ex-capitão miliciano Francisco Xavier Damiano Bragança Van Uden, ligado ao Partido Liberal por intermédio de Almeida Araújo, fica assente a realização de uma manifestação de apoio à pessoa do Presidente da República, constituindo-se desde logo a comissão que deveria aparecer como organizadora, a qual vem integrar os nomes de António Peixoto da Costa Félix, Manuel João Pinheiro Ramos de Magalhães, José Filipe Homem Rebelo Pinto, António de Sousa Macedo, Manuel Sotto Maior de Sá Coutinho, além do referido Van Uden.

17. No dia seguinte, 10 de Setembro, o General Spínola profere um discurso a propósito do reconhecimento da independência da República da Guiné-Bissau, em que afirma expressamente:

«A maioria silenciosa do Povo Português terá pois de despertar e de se defender activamente dos totalitarismos extremistas que se digladiam na sombra, servindo-se das técnicas bem conhecidas da manipulação de massas para conduzir e condicionar a emotividade e o comportamento de um povo perplexo e confuso por meio século de obscurantismo político. Mas a considerar-se um chefe anárquico com reivindicação incontrolada, em nítida ultrapassagem das responsabilidades aos diversos níveis e em clara usurpação dos direitos alheios, o País mergulhará no caos económico e social, que só a sectores minoritários poderá aproveitar.

A responsabilidade que assumi perante a Nação impõe uma tomada de posição perante o abuso de liberdade de alguns em denegação flagrante da liberdade de todos. Impõe uma tomada de posição perante a perspectiva de uma depressão económica, a despeito da teorização de soluções de cujos efeitos práticos o País começa a descrer face à crescente crise de desemprego, à alta exagerada do custo de vida, à insegurança civil e social, a casos já verificados de negação da liberdade de trabalho, e, de um modo geral, ao descrédito em que começam a cair as instituições. É chegado o momento de o País acordar para a realidade que somos, para o que queremos ser e para o futuro de anarquia a que nos querem conduzir certos inspiradores políticos. Chegou a hora de se assumirem e de se exigirem responsabilidades, saneando por igual o dirigente inepto ou corrupto, o funcionário venal, o trabalhador parasita e improdutivo, e o político oportunista autocrático ou demagogo».

18. Nesse mesmo dia, 10 de Setembro, e nas instalações da SINASE, o Tenente-Coronel Figueiredo, Almeida Araújo e António Ávila reúnem-se com os membros da comissão organizadora da manifestação para distribuição de tarefas.

Francisco Van Uden fica adstrito à segurança, não só para a colagem dos cartazes anunciadores, como também para a própria realização da manifestação.

19. O indivíduo que se começara a salientar nestas reuniões preparatórias, até pelas ideias que apresentava, era o Tenente-coronel Figueiredo.

Ele chegou mesmo a afirmar que

«o senhor General Spínola ia tomar uma decisão e por isso era precisa a manifestação, porque necessitava de apoio, e que seriam ele e Almeida Araújo quem marcaria a respectiva data, pois que teria que ter lugar posteriormente à decisão pretendida».

Fica assim claro, que havia uma ligação íntima entre o General Spínola e a manifestação por intermédio do Tenente-Coronel Figueiredo, estando um dos elementos da comissão organizadora convencido de que «foi metido numa engrenagem que já existia quando da reunião em que se decidiu fazer a manifestação (9 de Setembro), admitindo mesmo que a ideia tenha partido de fora».

20. Entretanto, no seguimento de contactos havidos entre o Tenente-Coronel Figueiredo e o General Kaulza de Arriaga, por expressa indicação deste último, o Coronel de Cavalaria na situação de reserva Fernando José Pereira Marques Cavaleiro é designado para assumir a presidência da comissão organizadora, a cujos membros vem a ser apresentado no dia 13 de Setembro, numa nova reunião que contou com a presença dos elementos citados e de Almeida Araújo.

21. Ora, quando o General Kaulza de Arriaga contactou com o Coronel Cavaleiro para presidir à comissão organizadora da manifestação, este pôs como condição prévia para aceitar tal convite dar conhecimento ao General Spínola e ao General Costa Gomes, dadas as relações de amizade que tinha com ambos.

Nesta base, trocou primeiramente impressões com o General Spínola, a quem expôs a ideia da manifestação e de ser ele o presidente da sua comissão organizadora, tendo deduzido da conversa travada que o Presidente da República concordava com a sua realização.

Dias mais tarde, falou o Coronel Cavaleiro com o General Costa Gomes sobre o mesmo assunto, o qual levantou um série de objecções à sua efectivação.

22. O Partido Liberal esteve, pois, desde a primeira hora, relacionado com a manifestação, em especial pela acção de alguns dos membros do seu Directório.

A preocupação então presente foi tão-só a de colocar à frente da comissão organizadora pessoas que não fossem politicamente marcadas.

23. Com data de 13 de Setembro, esse partido envia uma carta-circular a inúmeras pessoas em que solicita a comparência de todos os que quiserem demonstrar o seu apoio ao Presidente da República, numa manifestação que seria denominada «da maioria silenciosa», a qual deverá

«fazer sentir a sua voz junto de Sua Excelência, para o apoiar firmemente na execução do Programa do Movimento das Forças Armadas entendido de boa fé, como via para a democracia personalista, pluralista e livre que o País esperava e deseja ardentemente.

Cada um, com a plena consciência da importância desta iniciativa deve organizar a sua vida e a sua viagem para estar presente na Grande Manifestação a realizar brevemente em Lisboa e que será oportunamente anunciada».

24. No entanto, só no dia 19 de Setembro o Partido Liberal emite um comunicado público em que, simuladamente, vem responder ao apelo para a grande manifestação nacional, afirmando ter tido dela conhecimento nesse próprio dia através de um cartaz que a anunciava.

Desse modo, e porque

«o senhor Presidente da República, em escorreito português, não deixa a mais pequena dúvida de que está disposto a assumir as pesadas e graves responsabilidades de um momento critico na vida da Pátria (...), é essencial que o Senhor Presidente da República saiba — e que todos saibam que sabe — que as suas palavras não ficaram solitárias num monólogo com as paredes de um palácio distante, mas que entraram vivas e escaldantes no coração de todos os portugueses».

25. A organização do Partido Liberal estava já, na realidade, a ser utilizada para a preparação da manifestação, quer no que respeita a meios materiais, quer no que respeita a meios humanos. É por isso que funcionários desse partido são destacados para diversas zonas do País com a missão de colaborarem naquela preparação.

26. O espírito que presidia a toda esta actividade está bem patente no seguinte passo de uma carta trocada entre dois dos membros do Directório do Partido Liberal, mais precisamente de José Cabral para Gastão Cunha Ferreira:

«... Temos de começar a preparar uma marcha silenciosa e desarmada sobre todas as cidades (Lisboa ou Porto) em que facilmente se manipulam as massas populares com vinte ou trinta mil ululantes, gritando o que não lhes convém, seja pasta Pepso-dent (?)„ seja o regime comunista. Não aceitamos manipulações publicitárias do mercado político ou comercial (...)

No Norte (acima do Douro) há boas reservas que é preciso explorar. Estamos ao rubro! Não nos abandonem! Estamos dispostos a morrer de fome ou passar fome e muitas privações, mas não estamos dispostos a suportar a incrível grilheta do comunismo».

27. A cobertura financeira da manifestação não oferecia, para as pessoas a ela directamente ligadas, qualquer dificuldade, havendo sempre, contudo, o cuidado de manter em segredo o nome dos verdadeiros financiadores.

28. A propósito, relatamos um facto que bem demonstra a afirmação que acabamos de expender.

Verificando-se a falta de dinheiro para a organização da manifestação, em particular no que se relacionava com a propaganda (cartazes, panfletos e sua distribuição, publicidade nos jornais e na televisão), cujos gastos estavam previstos num orçamento de cerca de dois mil contos, o General Kaulza de Arriaga estabeleceu com o Tenente-Coronel Figueiredo, no final de uma das reuniões preparatórias em que o problema foi levantado, contactarem com certas pessoas para o conseguirem. E efectivamente, em menos de 48 horas apareceu na SINASE uma livrança do montante de mil e quinhentos contos sacada sobre o Banco Espírito Santo & Comercial de Lisboa que Manuel Magalhães, da comissão organizadora, parente da família Espírito Santo e funcionário superior desse Banco, pediu a um dos outros organizadores para assinar.

Perante a recusa deste, foi-lhe respondido que não havia problemas e que a assinatura era simples pró-forma, alvitrando-se que era esse o modo de alguém contribuir financeiramente para a manifestação, sem que se viesse a saber de imediato o seu nome.

29. São, portanto, o General Kaulza de Arriaga e o Tenente-Coronel Figueiredo que garantem o aparecimento dos fundos.

30. Sempre num clima de completa despreocupação financeira, e para além dos factos acima referenciados, que comprovam sem dificuldade esta ideia, pagam-se sessenta mil escudos pela simples concepção do cartaz anunciador da manifestação, planeia-se o aluguer de cinquenta avionetas para a distribuição de milhões de panfletos, algumas das quais chegaram a cumprir a sua missão, fretam-se táxis aéreos para a deslocação de elementos afectos à organização, pois se pretende manter secretas algumas das conversações que entre eles se desenrolem, transfere-se para o Porto, por intermédio ainda do Banco Espírito Santos & Comercial de Lisboa, a quantia de setecentos e cinquenta mil escudos com vista à sinalização do aluguer de mil camionetas do Norte do País para o transporte gratuito de pessoas para a manifestação.

31. Se outros factos não tivéssemos para concluirmos do envolvimento da administração do Banco Espírito Santo & Comercial de Lisboa nos financiamentos para fins políticos e, neste caso, para o «28 de Setembro», a pormenorização do modo como se processou esta transferência de fundos para o Porto facilmente atesta esta acusação.

Assim, no dia 19 de Setembro é aberta no Porto uma conta colectiva a favor de Carlos Bettencourt, Artur Armando Camarate dos Santos e Silvino Castro Moreira, do Secretariado Regional do Norte do Partido Liberal, através de uma ordem telefónica dada pela sede de Lisboa, no valor da setecentos e cinquenta mil escudos.

O BESCL, no Porto, credita tal montante aos três indivíduos em epígrafe, sem a necessária correspondência a débito.

Só quatro dias depois, em 23 de Setembro, segue um telex da sede que dava como ordenante daquele crédito o Coronel Cavaleiro, da comissão organizadora da manifestação.

Menos de uma hora decorrida, novo telex altera o nome do ordenante para Jorge de Melo e Faro Maldonado Passanha.

O lançamento deste telex de setecentos e cinquenta contos, feito no dia 23 de Setembro, e que já tinha sido creditado em 19 desse mês, só é debitado no dia 26, ou seja, sete dias depois do crédito.

Ora, só no dia 25 de Setembro o citado Jorge Passanha e Manuel Henrique Bacelar Sousa Machado abriram conta colectiva na sede do BESCL, sendo apresentados pelo Presidente do Conselho de Administração, Manuel Ricardo Espírito Santo Silva; e logo nesse dia foram passados sem cobertura, desta conta, dois cheques que somavam trezentos e vinte e cinco mil escudos. (Relacionemo-los com a compra de bilhetes para a tourada que adiante referenciaremos).

Se juntarmos ao montante referido o valor da transferência para o Porto no dia 26 e ainda mais dois cheques que somaram cento e trinta contos e um pagamento de três contos, verificamos que esta conta de Lisboa atingiu o saldo devedor de Esc. 1 208 000$00.

Por seu turno, a conta aberta no Porto foi imediatamente movimentada, sendo os setecentos e cinquenta contos rapidamente distribuídos entre os dias 20 e 27 de Setembro, pela passagem de vários cheques, o mais significativo dos quais é de quatrocentos e cinquenta contos a favor de Luís Filipe Gama Lobo Xavier, de Guimarães, com que deveria sinalizar as camionetas do Minho.

Estes factos provam, pois, de forma iniludível, o envolvimento da Administração do Banco Espírito Santo & Comercial de Lisboa nesta operação irregular que só é possível com a sua conivência.

32. José Manuel Espírito Santo Silva também nos aparece envolvido nas operações relacionadas com uma outra conta semelhante aberta a favor de alguns elementos do Partido do Progresso; e o Dr. Carlos de Melo Espírito Santo igualmente surge relacionado com outro negócio bancário em que interveio José Harry de Almeida Araújo.

33. Vastos meios de transporte, absolutamente desproporcionais ao número de pessoas mobilizáveis, são assim garantidos por todo o País para data que só posteriormente seria marcada.

A ideologia subjacente a tão grandiosa encenação ficará talvez clarificada se notarmos os termos em que estava redigido um dos panfletos espalhados por uma das avionetas, neste caso sobre Eivas, no dia 18.

«O Presidente da República apelou para o apoio da maioria silenciosa a fim de fazer regressar a execução do programa do MFA ao seu sentido nacional e democrático. Dentro de dias terá lugar uma grandiosa manifestação de apoio. Para o efeito, serão postos à disposição gratuitamente, todos os meios de transporte colectivos».

34. Continuemos. Como já ficou dito, Francisco Van Uden, membro da Comissão Organizadora vai encarregar-se da propaganda e ainda de diversos aspectos eufemisticamente chamados de «segurança» da manifestação.

Sob a sua direcção, mas coadjuvado por João de Oliveira Costa Braga, cantor de fados também ligado a Almeida Araújo, numerosos frequentadores das «boites» de Lisboa e Cascais, filhos-família, «play-boys», aristocratas e terratenentes em decadência ou recém-desmobilizados, vão distribuir-se por equipas que preenchem noites e madrugadas a colar cartazes. Van Uden organiza sucessivas reuniões nocturnas, constitui brigadas, equipa-as de armamento variado, encaminha-as pelas várias zonas de Lisboa e da «Linha» — um pequeno exército de caceteiros, filhos da burguesia e adventícios, toma corpo e movimenta-se sob a chefia deste ex-capitão miliciano, para colar e proteger a colagem dos cartazes, e gera incidentes na via pública.

35. No Porto, e do mesmo modo, o Partido Liberal vai constituir o eixo da organização da manifestação.

Por sua iniciativa, são travados contactos com elementos locais do Partido do Progresso e com outros conhecidos agentes reaccionários. Pessoas e estruturas que haviam funcionado para a preparação do Congresso dos Antigos Combatentes são mobilizados para a manifestação.

36. O desenvolvimento destes preparativos é afectado, unicamente, pela ausência de uma data conhecida com razoável antecedência para a realização da manifestação.

Chamados à atenção para os inconvenientes derivados desse facto, os elementos da comissão organizadora e do Partido Liberal limitam-se a garantir constantemente e em termos peremptórios o êxito da operação e que «tudo correrá bem».

37. Paralelamente, o Partido do Progresso compromete-se a fornecer uma centena de indivíduos que se serviriam da sua força física e da violência para a criação de um clima de insegurança, previsto eventualmente para o bom final da manobra em curso.

Na sede deste partido confirmou-se a existência de alguns «cocktails Molotov» já preparados e de muitas outras garrafas vazias destinadas ao mesmo fim, de dezenas de capacetes, de barras e correntes de ferro.

38. O Partido do Progresso, aliás, tinha uma secção intitulada «Comissão Operacional», dependente do Secretariado Geral (José Valle de Figueiredo), que integrava células estabelecidas por regiões e coordenadas pelos serviços centrais. Visava essa «Comissão» evitar o desmantelamento das estruturas do partido, mas dispunha de militantes destinados à prática de acções específicas enquadradas por respectivos grupos de apoio.

39. Também várias pessoas foram movimentadas no sentido de obterem número considerável de armas de guerra.

Algumas delas, Júlio António Cayolla Bonneville, Henrique Manuel Nogueira Nunes, Maria Júlia Loureiro Rebelo (Jardim) e Rui António David Reis e Sousa, contactadas para tal fim pelo já referido João Braga, encetaram, ainda em Agosto, diligências necessárias para o efeito.

Simplesmente, um oficial do Movimento das Forças Armadas conseguiu infiltrar-se nesta rede de tráfico de armas e, na sexta-feira, dia 27, é abordado para que consiga, para essa mesma noite, sem falta, uma centena de armas automáticas e quinhentas mil munições. A pessoa que com ele trata do assunto assevera-lhe que o seu grupo já tem alguns milhares de armas compradas, mas que ainda não estão preparadas para entrega. As armas para essa noite são, contudo, indispensáveis.

Acontece, porém, que a situação geral se deteriora, se precipita e não é possível estabelecer uma operação que, na pista deste tráfico ilícito, conduza de imediato até à cúpula; mesmo assim, são detidos os indivíduos citados, depois de ter ficado assente ficticiamente o fornecimento desse armamento numa garagem particular da zona da Avenida Infante Santo, em Lisboa.

40. Essas armas, se tivessem sido obtidas, destinar-se-iam à provocação de incidentes que justificassem a assumpção de plenos poderes pelo Presidente da República, numa declaração de estado de sítio, em manobra semelhante nas suas consequências, que não na sua origem, àquela que posteriormente foi tentada no dia 29 em Belém pela descrição alarmista dos incidentes ocorridos com a GNR na margem sul do Tejo e que adiante trataremos de apontar.

41. De qualquer modo, a verdade é que muitas das pessoas que acabam por se encaminhar para Lisboa com intenção de tomarem parte na projectada «manifestação da maioria silenciosa» o fazem armadas.

Nas entradas de Lisboa, nas barragens que quase só fiscalizavam os automóveis que se dirigiam a esta cidade, foram apreendidas:

Não se diga, pois, que a maior parte das armas transportadas se destinavam a caçadas... O conhecimento do facto de haver barragens nas estradas seria desde logo um primeiro dado que tornava suspeito o detentor de qualquer arma.

42. Facto de relevo nestas barragens foi a tentativa de forçar a entrada em Lisboa pela Ponte 25 de Abril, por parte de Manuel Gião Toscano Rico, acompanhado pelo Comandante da TAP, Borja e Meneses e por uma outra pessoa do sexo feminino, o que obrigou a patrulha militar aí presente a abrir fogo sobre o carro para os deter. Deste incidente saiu ferido Toscano Rico, tendo-lhe sido apreendido um coldre de pistola de guerra, um boxe inglês e bastantes munições de pistola de 9 mm, sendo visto a lançar à água a arma a que a elas pertenciam.

43. Prevendo, talvez, a deflagração duma guerra civil, a instauração de um clima de violência popular nas ruas ou o falhanço da manobra em que estavam envolvidos o certo é que Almeida Araújo, Tenente-Coronel Figueiredo, João Braga e alguns outros, fazem sair do País as respectivas famílias antes do dia 28 de Setembro e refugiam-se nessa noite no Hotel Sheraton, fugindo para o estrangeiro após constatarem que a tentativa contra-revolucionária abortara, esquivando-se, desse modo, à justificação das responsabilidades que lhes são pedidas.

44. Refira-se ainda que, durante a sua estadia no Hotel Sheraton, Almeida Araújo telefona para casa de dois membros da família Espírito Santos; e que é para o Hotel Sheraton que o Coronel Cavaleiro telefona várias vezes ao longo da noite de 27 para 28 para se informar do evoluir da situação, recebendo como resposta de Almeida Araújo e do Tenente-Coronel Figueiredo que «tudo está a correr bem».

45. Dificilmente se explicará também a razão por que, se a manifestação era somente uma demonstração de apoio ao General Spínola, muitos dos membros da comissão organizadora procuraram ocultar a sua verdadeira morada, indicando oficialmente locais de residência inexistentes ou que, de facto, não habitavam. Ou será que eles tinham consciência de que algo de mais grave se encobria por detrás dela e que lhes transmitia o receio de se identificarem correctamente?

46. Finalmente, a data da manifestação só vem a ser fixada com quatro dias de antecedência, depois de uma viagem que, por indicação do Tenente-Coronel Figueiredo, Almeida Araújo efectuou a Paris ao encontro de J. F. Gall.

Não nos esqueçamos, todavia , de que, tendo a preparação da manifestação começado há muito, e tendo ela sido anunciada sem indicação do dia da sua realização, este pormenor do pouco tempo que separou a sua comunicação ao Governo Civil e ao público em geral do dia para que estava programada, logo nos indica que ela não era tão inocente como alguns sectores reaccionários pretenderam apresentá-la.

47. Mas, publicidade, lógico foi que algumas forças e individualidades políticas se apressassem ou a denunciá-la — como o fizeram todos aqueles que viam na manifestação um perigo real para a democratização da vida portuguesa — ou a apoiá-la — como sucedeu com os partidos da Democracia Cristã (PDQ, o Trabalhista Democrático Português (PTDP) e o do Progresso (PP), este tendo decidido fazê-lo só na véspera.

48. O «apoio» público ao General Spínola vinha já sendo patenteado, contudo, em acontecimentos que a seu tempo ocorreram.

Com este sentido se interpreta o caloroso acolhimento dispensado ao então Presidente da República, aquando da sua presença no Concurso Hípico de Lisboa, pelos indivíduos que o rodearam e que, do mesmo passo, votaram ao esquecimento o General Costa Gomes, também presente.

Foi aí igualmente que o General Galvão de Melo, aparecendo trajado de cavaleiro, comunicou aos organizadores da manifestação que poderiam utilizar o seu nome para garantia da sua efectivação.

Os campos, as intenções, se já não o vinham sendo, esboçavam-se então nitidamente.

49. Na quinta-feira, dia 26, efectua-se a tourada do Campo Pequeno, promovida pela Liga dos Combatentes. Como é do conhecimento geral, nela se desenrolam incidentes bem reveladores do espírito da maioria dos espectadores, ao aplaudirem entusiasticamente o Presidente da República e ao vaiarem o Primeiro-Ministro e o MFA.

A tourada constituiu uma certa forma de ensaio para a manifestação que teria lugar dois dias depois, pretendendo o Partido do Progresso, designadamente, transformá-la num comício de experiência e de dinamização. Aliás, num panfleto assinado pela comissão organizadora da manifestação, e que chegou a ser espalhado nas ruas, inclusive da cidade do Porto, tal ideia é indubitavelmente expressa nos tendenciosos termos que reproduzimos:

«Ontem, 5.5 feira, à saída da praça de touros do Campo Pequeno, onde Spínola foi delirantemente ovacionado aos gritos de Portugal e Spínola, um pequeno mas atrevido grupo manifestou-se em contrário, bradando MORTE A SPÍNOLA.

Estão definidos os campos.

Realizou-se ontem o acto da nossa grande manifestação».

Apesar da posição em que os manifestantes colocavam a pessoa do Primeiro-Ministro e o MFA no seu conjunto, através das palavras de ordem gritadas no intervalo e no final, manifestantes esses que tinham obtido bilhetes de ingresso gratuitamente por intermédio de pessoas ligadas à manifestação da maioria silenciosa — e entre estas, Sousa Machado, que comprara cerca de trezentos contos de bilhetes e que foi apresentado ao General Spínola no intervalo do espectáculo — o Presidente da República assistiu à tourada até final.

Que estas iniciativas se relacionavam intimamente com a projectada manifestação do 28 de Setembro, prova-o igualmente o anúncio que lhe foi feito pela instalação sonora do recinto, propaganda que fora autorizada pelo Presidente da Liga e pelo General Galvão de Melo e que se fez imediatamente após a mostragem do cartaz da manifestação pelo cavaleiro João José Zoio.

Desmascarava-se pouco a pouco a face da maioria silenciosa.

Associando este facto aos acontecimentos vividos no interior da Praça, natural foi que um grande número de pessoas se tivesse concentrado no exterior, intentando promover uma contra-manifestação. O reaccionarismo de muitos dos assistentes, posto em confronto com as camadas progressistas do Povo, teria que causar, como causou, alguma agitação popular, que obrigou à intervenção de forças militarizadas.

Era, efectivamente, «o primeiro acto da grande manifestação».

50. O Governo Provisório, entretanto, fora informado pelo Ministro Sanches Osório, de que o Presidente da República havia revelado o desejo de que a manifestação se realizasse e de que o Governo, se quisesse proibi-la, não poderia de forma alguma invocar o seu nome.

Dadas as circunstâncias, tal atitude surgia como incompreensível.

A Comissão Coordenadora do Programa do Movimento das Forças Armadas, na posse de elementos indiciadores de que «algo» de grave se preparava a coberto da manifestação alerta o General Spínola, através de dois dos seus elementos que propositadamente se deslocaram a Belém, de que com ela se procurava criar um clima propício da declaração do estado de sítio.

Mas não só: a Comissão Coordenadora comunica-lhe ainda uma informação oriunda de um destacado membro da organização, que a transmitira a pessoa digna de crédito, que «por agora pretendemos que o General Spínola decrete o estado de sítio; mas ele só lá vai estar oito a dez dias, pois será substituído pelo General Kaulza de Arriaga».

51. O General Spínola, no entanto, continuava a não dar crédito a estes avisos, pois em sua opinião nada de anormal se passava.

52. Sanches Osório viria ainda a afirmar que o Presidente da República dizia haver a intenção de boicotar a manifestação de apoio a ele mesmo por parte de Comissão Coordenadora do Programa, «aliada ao Partido Comunista Português, pois todos os seus membros eram comunistas».

O General Spínola desmentiria mais tarde esta imputação — mas o que é facto é que ele acabava por considerar o Governo como comunista e, por outro lado, afastara-se gradualmente do MFA, não convocando há bastante tempo, por exemplo, a Comissão Coordenadora do Programa e personalidades como o Brigadeiro Saraiva de Carvalho com quem, e como era lógico, deveria ter assuntos a tratar.

53. Na sexta-feira, dia 27, é esquematizada no COPCON uma vasta operação, cuja efectivação fora decidida dias antes, a qual visava a prisão de antigos e activos elementos da ex-Legião Portuguesa, mas que abrangeria igualmente a detenção, em consequência das averiguações prosseguidas pela 2.ª Divisão do Estado-Maior General das Forças Armadas, de outros indivíduos suspeitos de estarem ligados à manobra projectada e também de alguns importantes fascistas do anterior regime.

De tal operação foi dado conhecimento prévio ao General Costa Gomes, atendendo às suas funções de Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas e Comandante do COPCON.

54. O General Galvão de Melo, por seu turno, envia entrementes para a imprensa, por intermédio do Ministério da Comunicação Social, uma nota que saiu publicada num só jornal e gravara um comunicado que deveria ser transmitido pela Emissora Nacional, em que afirmava apoiar a manifestação.

Os membros da Comissão Coordenadora e o Primeiro-Ministro são, todavia, unânimes em julgar que este comunicado não convém ser radiofundido, o que de facto acaba por não suceder por decisão dos mesmos.

O General Galvão de Melo diria posteriormente que tal comunicado fora elaborado de acordo com o General Spínola.

55. O Governo Provisório faz então saber ao Presidente da República que não concordava com a manifestação, dado o carácter de que esta se revestia.

Em consequência, o Presidente da República convoca uma reunião do Conselho de Ministros para o fim da tarde, em Belém, durante a qual expõe ainda outra vez, a sua visão catastrófica da realidade portuguesa.

Terminada esta reunião, o General Spínola chama privadamente o Brigadeiro Vasco Gonçalves para lhe comunicar que recebera informações que referiam a montagem de barricadas em todo o País nas linhas de acesso a Lisboa e que por tal motivo pedira a comparência do General Costa Gomes para ponderarem a decisão a tomar.

56. Os sindicatos e alguns agrupamentos políticos tinham, de facto, convocado os seus filiados e simpatizantes através das estações de rádio, com intenção de se defenderem de qualquer manobra reaccionária que parecia querer tentar-se.

57. O Coronel Cavaleiro, que como ficou dito, é o presidente da comissão organizadora da manifestação, contacta, ainda na tarde de sexta-feira, o Tenente-Coronel Almeida Bruno e o Capitão Ramos.

58. Atingimos assim, nesta cronologia de factos que vimos apontando, a noite de sexta para sábado em que, coincidindo com o dealbar do dia 28 de Setembro, se viveram horas de extraordinária tensão e emoção, não só no Palácio de Belém, mas também nas ruas de Lisboa, nas estradas do País, nas casas de todos aqueles que aguardavam notícias sobre a evolução da situação.

59. O Primeiro-Ministro é requisitado para o Gabinete do Presidente da República, onde estavam reunidos os membros da Junta de Salvação Nacional, notando-se somente a ausência do Almirante Pinheiro de Azevedo, que só mais tarde comparece em Belém.

Aí, o General Galvão de Melo insurge-se violentamente contra o Brigadeiro Vasco Gonçalves por não ter sido autorizada a divulgação do comunicado que tinha gravado; pelo seu lado acodem activamente os generais Jaime Silvério Marques e Diogo Neto, originando-se um conflito insultuoso e desonesto para com o Primeiro-Ministro, que provoca o abandono intempestivo da sala por parte deste.

60. Noutra dependência do Palácio, Sanches Osório elabora um documento no qual acusa o Primeiro-Ministro de ter impulsionado os Partidos a montarem as barricadas e provoca nova altercação com o Brigadeiro Vasco Gonçalves quando lhe lança verbalmente esta grave acusação. Os generais Jaime Silvério Marques e Diogo Neto intervêm uma vez mais e exigem que o Brigadeiro Vasco Gonçalves se demita do cargo de Primeiro-Ministro, alegando também que era ele o causador da alteração da ordem pública.

Estas calúnias são vivamente repelidas em razão da sua falsidade, pelo que é rejeitado igualmente o pedido de demissão.

O General Spínola, já de posse de um manuscrito de teor idêntico, vem afirmar que essas eram as informações que tinha.

61. De novo se reúnem os membros da Junta de Salvação Nacional presentes com o Primeiro-Ministro. Paira nas suas mentes o espectro da guerra civil, pela divisão que se poderia operar no seio das Forças Armadas, divisão que o próprio General Spínola parecia não desejar, mas a que se poderia chegar pela radicalização de posições.

Decide-se então fazer uma comunicação ao País. Sanches Osório fica encarregado de redigir o texto a ser lido por ele na rádio. Fá-lo, porém, num estilo reaccionário e provocatório, com termos autoritários e impopulares, que apenas iria agudizar a tensão existente no País, podendo até suscitar o início de confrontações que agravariam extraordinariamente a situação e favoreceriam os desígnios do General Spínola, dos militares e civis a ele afectos e da reacção em geral.

É o Brigadeiro Vasco Gonçalves quem, apercebendo-se disso, acaba por se ocupar da redacção desse comunicado, ciente, tal como o General Costa Gomes, de que os seus efeitos práticos desmobilizadores serão limitados. Assim surge o documento que vem a ser lido na Emissora Nacional por Sanches Osório na madrugada do dia 28 de Setembro. Nele se expunha a certo passo:

«A fim de salvaguardar a paz e a tranquilidade entre os portugueses, essas barricadas devem ser levantadas imediatamente, permitindo, assim, o trânsito de veículos»

Se outros efeitos não teve, este comunicado serviu para, de momento, serenar os ânimos entre os membros da Junta de Salvação Nacional, o que na altura era muito importante com vista a evitar-se uma possível guerra civil.

62. De facto, a iminência de uma guerra civil foi um perigo sentido.

Nessa noite, a Comissão Coordenadora do Programa reúne-se em São Bento. O Major Melo Antunes fornece indicações sobre a situação que então se vivia em Belém, bem como sobre o que aí se passara nas últimas horas.

Feito um contacto telefónico com o Brigadeiro Saraiva de Carvalho, que entretanto fora igualmente convocado para Belém, de imediato se supõe que ele estava detido, sob vigilância, suspeita que também era partilhada no COPCON.

Note-se, em parêntesis, que nessas primeiras horas do dia 28 de Setembro, no exterior não se sabia exactamente o que se desenrolava no Palácio de Belém, onde estavam alguns dos elementos do Movimento das Forças Armadas mais altamente colocados, em conjunto com inúmeras pessoas da confiança do General Spínola.

Mas não era só em relação ao Brigadeiro Saraiva de Carvalho que se suspeita da sua prisão; também as condições da presença do Primeiro-Ministro Vasco Gonçalves, do Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas Costa Gomes e do Chefe do Estado- Maior da Armada Pinheiro do Azevedo levantavam sérias dúvidas.

Pensa-se, por isso, que estaria em curso uma tentativa de golpe de Estado promovida pelo General Spínola.

63. Durante a tarde tinha-se decidido montar segurança reforçada à Penitenciária, onde estavam detidos os agentes da ex- PIDE/DGS e deslocar forças do COPCON para a defesa das instalações da Radiotelevisão Portuguesa, da Emissora Nacional, do Rádio Clube Português e das antenas de Monsanto.

Por ordem da Presidência da República, contudo, encerram-se de madrugada as emissões normais das estações de rádio e procede-se à substituição das forças de segurança das suas instalações, operação de que se encarrega o Tenente-Coronel Firmino Miguel, as quais ficam cometidas à Guarda Nacional Republicana e à Polícia de Segurança Pública. Pára-quedistas vindos de Tancos fazem guarda ao Palácio de Belém. Por outro lado, suspende-se igualmente a saída dos jornais do dia seguinte.

64. Quando na Presidência da República se conhece a notícia de que o Regimento de Artilharia Ligeira Número Um (RAL 1) tinha ocupado com obuses a RTP, é em seguida dada ordem pelo General Silvério Marques para o Regimento de Cavalaria Sete sair com os seus blindados ligeiros para proteger o Palácio de Belém, transgredindo-se o circuito normal da hierarquia militar, pois a ordem deveria passar ou ser dada pelo Comandante da Região Militar de Lisboa.

65. O General Spínola comunica entretanto ao Brigadeiro Saraiva de Carvalho que lhe retira o comando das forças do COPCON, o qual passará a ser exercido directamente do Palácio pelo General Costa Gomes, decisão à qual o Comandante-Adjunto do COPCON se não opõe, até porque o General Costa Gomes é o efectivo Comandante do COPCON.

66. Mas, como se aproxima a hora marcada para o início da operação programada (atrás referida no n.º 53), há que desencadeá-la; e, porque é o Brigadeiro Saraiva de Carvalho quem está dentro da sua organização, tenta ir para o Forte do Alto Duque, donde teria de ser comandada.

Quando se prepara para deixar Belém, por duas vezes é travado; quando pode fazê-lo, com a autorização que nunca fora negada pelo General Costa Gomes, vai acompanhado por pessoas ligadas ao General Spínola, nomeadamente pelo Tenente-Coronel Firmino Miguel, o que suscita viva reacção por parte dos elementos do COPCON e da Comissão Coordenadora do Programa que o aguardavam.

67. Entretanto, o Tenente-Coronel Engrácia Antunes telefona de Belém para algumas Regiões Militares e Unidades Militares do País, tentando que as mesmas passem a obedecer na ocasião ao Chefe do Estado-Maior do Exército Jaime Silvério Marques, o que causa certa confusão aos respectivos comandantes, pois estavam vinculados ao COPCON. A tentativa, porém, não resulta pois a Comissão Coordenadora já os contactara e pusera ao corrente do que se passava.

68. Por determinação expressa do General Jaime Silvério Marques, viaturas da Brigada de Trânsito da GNR, cujo Segundo-Comandante era o Tenente- Coronel Vasco Pinto Simas, da confiança do General Spínola, estacionam nas paradas de alguns aquartelamentos; a que se localiza no Regimento de Cavalaria Sete tem o seu rádio sintonizado para Belém, para o Tenente-Coronel Xavier de Brito e funciona como posto central das informações que eventualmente chegariam sobre a movimentação de forças militares.

69. O Tenente-Coronel Xavier de Brito, Comandante do Regimento de Cavalaria da GNR de Braço de Prata, manda a certa altura deslocar um destacamento da sua Unidade para Monsanto, acompanhado por um técnico que soubesse impedir o funcionamento das antenas e destruí-las, se necessário fosse.

Nos estúdios do Lumiar, cerca das 3 horas da manhã, compareceram o Major Eanes que, segundo depoimentos de pessoas que o ouviram, afirma «não estar ali na qualidade de director de programas (cargo que efectivamente ocupava), mas de representante do Presidente da República», colocando a Televisão sob tutela militar. Qualquer actividade que fosse empreendida teria que contar ou com a sua autorização, ou com a sua ordem, exclusivamente.

Por seu turno, o Capitão Andrade e Sousa, Comandante da força da GNR que ocupa as antenas da RTP, define, já de manhã, qual o circuito hierárquico que se devia seguir para as pôr em funcionamento: o Major Eanes deverá pôr-se em contacto com o Ministro Sanches Osório, que dará ordens para o Comando Geral da GNR, o qual as transmitirá ao dito Capitão Andrade e Sousa, que permitirá a sua execução depois de novo contacto com o Major Eanes.

70. À Comissão Coordenadora do Programa e ao COPCON chegam notícias desencontradas sobre o possível envio de forças do General Spínola para dominarem esse Comando.

71. Mas gradualmente, e enquanto o General Costa Gomes, o Almirante Pinheiro de Azevedo e o Brigadeiro Otelo Saraiva de Carvalho estavam retidos em Belém, no exterior faz-se o estudo da situação e confirma-se o controlo do poder militar pelo MFA, possibilitando-se até que a operação que visava as detenções já referidas fosse desencadeada na hora prevista.

Por determinação de algumas unidades chegou mesmo a estar iminente o avanço de forças militares Sobre Belém, com o qual pretendiam libertar as individualidades do Movimento que lá estavam. Tal acção foi contudo evitada, até pela própria evolução da situação. Não deixou, no entanto, de ser necessário que a Comissão Coordenadora enviasse para Belém um ultimato para a saída do Brigadeiro Otelo Saraiva de Carvalho, o que veio a concretizar-se de imediato.

72. A divisão das Forças Armadas foi portanto um facto que se intentou consumar. A viabilidade da guerra civil existiu. Não se concretizou, porém, porque o Movimento das Forças Armadas foi muito mais amplo do que certos comandos indecisos.

Foi a fidelidade da grande maioria das forças militares ao Programa do MFA e aos seus representantes, que motivou a involução dos acontecimentos no Palácio de Belém, pelo convencimento de que, se daí fosse dada alguma ordem, a grande maioria das unidades não obedeceriam.

73. Falhava, pois, uma manobra que as emissoras estrangeiras, de posse de mensagens de agências noticiosas, chegaram a anunciar como golpe de Estado do Presidente Spínola.

74. Esclareça-se ainda outro ponto: ouve-se dizer, num desses «slogans» reaccionários postos a circular e que pretendem desacreditar o Movimento das Forças Armadas, que as barricadas do 28 de Setembro foram uma vergonha, porque com elas se verificou o exercício do poder popular numa acção que, a pertencer a alguém, deveria ser ao poder militar. Nada mais tendencioso!

No COPCON tinha-se de facto, estudado dois dias antes um plano para uma vasta operação do tipo «auto-stop», exactamente com o objectivo com que foram montadas as barragens populares, ou seja, controlar as pessoas que, talvez em grande número, anormalmente, afluiriam a Lisboa e vistoriar os veículos que convergissem sobre a cidade.

Este plano não foi autorizado superiormente e mais tarde não foi posto em prática, com a urgência requerida, porque às unidades do MFA tiveram que ser confiadas outras missões, imperiosas para garantir a defesa da revolução.

As barragens, porém, mais uma vez evidenciaram a generosidade do Povo Português consciente na defesa das conquistas alcançadas e foram indubitavelmente preciosas para a segurança do processo em curso, pela demonstração de adesão que delas resultou e pela força que vieram transmitir ao Movimento das Forças Armadas, que não se sentiu, desse modo, sozinho, na luta que se travou contra os subvertores da Revolução.

75. Passara a noite das indecisões. O equilíbrio precário que se vinha mantendo até 27 de Setembro rompia-se a favor do Movimento das Forças Armadas, que controlava de novo, vitorioso, a situação do País.

Era a altura para aproveitar o sucesso, garantindo o avanço do processo revolucionário.

Logo no fim da madrugada surge aos ouvintes da Emissora Nacional um comunicado da Comissão Coordenadora do Programa, através do qual se percebe quem detém o controlo dos acontecimentos.

76. Em consequência, e correspondendo a uma proposta da iniciativa da Comissão Coordenadora do Programa e do Brigadeiro Saraiva de Carvalho elaborada no princípio da manhã de sábado, dia 28, à qual vêm dar a sua concordância o Primeiro-Ministro e os Ministros Militares, fica acordado numa reunião em São Bento, que contou com a presença de todos os elementos referidos à excepção do Comandante-Adjunto do COPCON, propor-se ao Presidente da República uma plataforma de entendimento, que salvaguardasse a unidade das Forças Armadas e a consolidação do processo democrático.

Esta plataforma seria viável a partir da aceitação pelo General Spínola das seguintes bases:

  1. Demissão imediata dos cargos que ocupavam na Junta de Salvação Nacional dos Generais Galvão de Melo, Jaime Silvério Marques e Diogo Neto;
  2. Demissão imediata do cargo de Ministro da Comunicação Social do Major Sanches Osório e atribuição desta pasta ao Primeiro-Ministro; e
  3. Confinação da actividade do General Spínola à sua esfera de Presidente da República, não interferindo nas acções da competência do Governo Provisório e do Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas.

77. Entretanto, e antes da tentativa da concretização daquela plataforma, a Presidência da República emite um comunicado em que declara ser inconveniente a realização da manifestação.

É, contudo, o MFA quem anuncia, poucos minutos volvidos, a proibição terminante da manifestação.

78. Com a finalidade de comunicar ao General Spínola os termos da colaboração, o Primeiro-Ministro, cerca do meio-dia de sábado, desloca-se a Belém, sendo recebido numa audiência que não demora mais do que cinco minutos. A Junta de Salvação Nacional estava reunida. O Brigadeiro Vasco Gonçalves deverá, assim, comparecer posteriormente, no fim da tarde.

Com o mesmo objectivo se encaminha para o Palácio de Belém a Comissão Coordenadora do Programa, onde espera algum tempo para ser atendida pelo Presidente da República. Tal não se vem a verificar, contudo, pois passado esse tempo, a Comissão Coordenadora quando tem conhecimento de que o Primeiro-Ministro já tinha sido recebido brevemente e de que na conversa então travada o General Spínola o advertira «nem pensasse em propor o que fora decidido em São Bento», resolve, de imediato, anular a entrevista.

79. Na reunião do final da tarde entre o Presidente da República e o Primeiro-Ministro, a que assiste também o General Costa Gomes, o General Spínola repete a exposição sobre a sua visão catastrófica da vida portuguesa, nos precisos termos em que o fizera, na reunião do Conselho de Ministros do dia anterior, em Belém.

Salienta a incompatibilidade de pontos de vista sobre o assunto entre ele e o Brigadeiro Vasco Gonçalves. Termina, sugerindo a demissão do Primeiro-Ministro.

O Brigadeiro Vasco Gonçalves responde com a plataforma de entendimento atrás apresentada.

O General Spínola não a aceita, propondo então entregar o Poder ao General Costa Gomes e afirmando que fica a aguardar uma resposta até à manhã seguinte.

80. No decurso desta audiência, porém, dois factos chegam ao conhecimento dos presentes e que bem devem ter pesado na decisão do Presidente da República:

  1. O Brigadeiro Passos Esmeriz, Comandante da Região Militar do Porto, comunica dessa cidade que acaba de assistir a uma manifestação ordeira que reunira um número de pessoas muito aproximado do verificado no Primeiro de Maio e da qual saíra uma comissão que o procurara para lhe afirmar a unidade do Povo com o MFA;
  2. Um dos capitães que ocupara o Rádio Clube Português em 25 de Abril, responsabiliza-se pela reabertura dessa estação emissora, diante da qual se aglomeravam mais de um milhar de pessoas na maior ordem. O Presidente da República vê-se, por isso, constrangido a consentir, embora contra vontade, no recomeço de actividade do RCP.

81. Na sequência daquela reunião, a Comissão Coordenadora do Programa e a Junta de Salvação Nacional são convocados para o dia seguinte, domingo, de manhã, no Palácio de Belém, devendo-se seguir uma reunião do Conselho de Estado.

Antes, porém, na noite de sábado, o General Costa Gomes encontra-se, na sua residência, com os membros da Comissão Coordenadora, Ministros Militares e Comandante-Adjunto do COPCON, ficando acordado que na manhã seguinte, na reunião convocada para domingo, a Comissão Coordenadora exporia à Junta de Salvação Nacional e ao Presidente da República, novamente a plataforma de conciliação.

82. Posto, na reunião de domingo, o problema de que da plataforma dependia o futuro da composição da JSN (pois quer aceitasse ou não a plataforma alguns membros tinham resolvido pedir a sua demissão), o General Spínola acaba por propor a dissolução da JSN, sem substituição, o que significava a passagem integral do poder constitucional, criado pelo MFA, para o Presidente da República.

A Comissão Coordenadora do Programa, por seu turno, entrega ao General Spínola um documento, assinado por todos os seus membros, no qual se comunica que o MFA havia decidido retirar o mandato aos Generais Silvério Marques, Diogo Neto e Galvão de Melo e, por consequência, esses membros, presentes na reunião, não poderiam pronunciar-se na discussão sobre a dissolução do órgão máximo criado pelo MFA.

83. Imediatamente a seguir a esta decisão, e de forma mais imprevista e mais alarmante, entra na sala o Tenente-Coronel Firmino Miguel para informar de que Postos da GNR da margem sul do Tejo estavam a ser assaltados por civis.

O Presidente da República interrompe, de imediato, a reunião e, falando de caos e invocando o cumprimento de um pró-forma legal estabelecido para a tomada de graves decisões em situações de emergência para a vida nacional, convoca o Conselho de Estado cujos membros aguardavam numa sala próxima, e comunica que vai implantar o estado de sítio.

84. A Comissão Coordenadora do Programa, ciente de que se General Spínola tentasse accionar algumas forças militares da sua confiança o MFA se encontraria preparado para qualquer confronto mesmo militar, na defesa dos princípios que orientaram o 25 de Abril o que poderia originar consequências extremamente graves para o País, propõe que o General Costa Gomes averigue os factos invocados.

O General Spínola pretende uma decisão imediata e insiste na declaração de estado de sítio, protelando a saída do General Costa Gomes e chamando o Brigadeiro Pedro Cardoso, Chefe da 2.ª Divisão do Estado-Maior General das Forças Armadas, para se pronunciar sobre a situação, o qual não faz mais do que uma análise vaga do ambiente político, social e económico do País e declara que nada sabe sobre os acontecimentos que naquele momento decorrem em Portugal.

85. Perante nova insistência, o General Costa Gomes e um elemento da Comissão Coordenadora vão tentar informar-se da veracidade e da gravidade das notícias recentes — e regressam com a conclusão de que não havia razão para o alarme suscitado, pois um incidente de pequena monta, motivado por uns poucos populares, fora prontamente sanado na vila da Moita.

Uma vez mais, e agora também com a concordância dos membros civis do Conselho de Estado, se recusa a satisfação do pedido de declaração do estado de sítio.

86. Por imposição da Comissão Coordenadora do Programa volta-se à anterior reunião desta com a Junta de Salvação Nacional para discussão da plataforma conciliatória.

Os Generais Galvão de Melo e Jaime Silvério Marques já não assistem; o General Diogo Neto está presente durante algum tempo e vem a retirar-se, sem ter intervido.

87. Na reunião que decorreu com a maior franqueza e abertura, o Presidente da República acorda na demissão dos três Generais supracitados e são incumbidos os Generais Spínola e Costa Gomes de procederem ao estudo de uma institucionalização, sob o ponto de vista militar, do Movimento das Forças Armadas.

88. No início da noite, porém, o General António de Spínola, depois de no termo da reunião descrita ter julgado ultrapassado o conturbado período de incerteza pelo entendimento a que se tinha chegado, comunica ao Primeiro-Ministro a sua decisão de se demitir do cargo que desempenhava.

Pela sexta vez toma esta atitude, pelo que, embora o condicionalismo de momento fosse muito mais grave do que nas anteriores, se chega a acreditar numa possível reconsideração da sua decisão.

O General Costa Gomes, que se havia mantido no gabinete do Presidente da República, tenta ainda mostrar-lhe os inconvenientes que adviriam para o País se persistisse a sua renúncia. A resposta que obteve foi contudo, de que a decisão tomada era irrevogável.

O General Costa Gomes pede, então, ao General Spínola para o fazer de maneira a minimizar todo os malefícios que se anteviam, especialmente no modo como viria a apresentar o problema à Nação.

O General Spínola promete fazer um discurso inócuo e simples.

89. O discurso do General Spínola deixou, contudo, pelo seu conteúdo e em face da promessa feita ao General Costa Gomes, todos os membros do Conselho de Estado surpreendidos e admirados, obrigando o General Costa Gomes a uma imediata rejeição da análise do discurso sobre a situação do País.

O General Spínola assim renuncia — não sem que, simultaneamente, tivesse manifestado a intenção de lançar o pânico no plano interno e fazer recair sobre Portugal o peso da reacção internacional, apresentando uma descrição da situação do País que não correspondia, de modo algum, à realidade e chegando mesmo a insinuar que o Movimento das Forças Armadas traía o seu programa — foi o discurso do dia 30 de Setembro.

90. Desse discurso, para que mais facilmente se torne perceptível o que adiante diremos, transcrevemos:

«(...) Encontro-me perante a evidência de o Programa do Movimento das Forças Armadas estar a evoluir no quadro de uma acção política tendente, afinal, à sua própria neutralização, em verdadeiro clima de inversão de uma moral cívica à margem da qual se torna impossível a prática da democracia e da liberdade. Inversão em que, por fidelidade ao espírito do Movimento e pelo respeito aos compromissos que assumi ao aceitar este cargo, não devo nem posso participar (...).

O Programa do Movimento previa também que a substituição do regime deposto teria de processar-se sem convulsões internas que afectassem a paz, o progresso e o bem-estar do Povo Português. A situação é, infelizmente, bem diferente. Forjam-se reivindicações, postas nas mãos dos trabalhadores por burgueses frustrados do velho regime, subitamente titulados também de trabalhadores. A paz o progresso e o bem-estar da Nação são comprometidos pela crise económica para que caminhamos aceleradamente, pelo desemprego, pela inflação incontrolada, pela quebra no comércio,4 pela retracção dos investimentos e pela ineficácia do poder central. Isto porque, quanto se vem fazendo à sombra do Programa do Movimento das Forças Armadas, pouco menos é do que o assalto aos meios de produção; é a reivindicação com base em decisões tomadas a níveis sem competência nem legitimidade para o fazer; enfim, é a inversão das estruturas, à margem da sanção democrática do Povo. Anulam-se as leis do velho regime antes que novas leis regulem a vida política, social e económica do País e mesmo algumas das leis já publicadas são impunemente escarnecidas. Neste clima generalizado de anarquia, em que cada um dita a sua própria lei, a crise e o caos são inevitáveis, em flagrante contradição com os propósitos do Movimento (...).

Concluí assim ser inviável a construção da democracia sobre este assalto sistemático aos alicerces das estruturas e instituições por grupos políticos cuja essência ideológica ofende o mais elementar conceito de liberdade, em flagrante desvirtuação do espírito do 25 de Abril. Encontro-me, portanto, perante a impossibilidade de execução fiel do Programa do Movimento das Forças Armadas. O meu sentimento de lealdade inibe-me de trair o Povo a que pertenço e para o qual, sob a bandeira duma falsa liberdade, se estão preparando novas formas de escravidão (...).

Ao dirigir ao Conselho de Estado e ao Povo Português esta mensagem de renúncia, desejo reafirmar a minha indestrutível vinculação aos ideais da liberdade e da democracia e a minha inabalável obediência a princípios básicos de ética militar, que me inibe de participar em projectadas estruturas revolucionários (...).

III — CONCLUSÕES

1. Ficou já expressa a ideia de que o «28 de Setembro» veio tão só coroar um estudo, uma reorganização que a reacção vinha fazendo com vista à paralisação do processo revolucionário que Portugal tem vivido desde o 25 de Abril e à sua possível inversão.

O «28 de Setembro» constitui, portanto, uma tentativa nesse sentido — mas significou igualmente o primeiro ataque formal aos novos parâmetros da vida nacional.

Muitas especulações foram feitas, contudo, sobre estes acontecimentos, nos dias que se lhes seguiram, não só através da Imprensa como pelos mais variados boatos e ideias fantasiosas o que gerou, na altura, certa confusão sobre os factos ocorridos.

Não pode haver dúvidas de que, apoiando-se, todavia, ideologicamente no anticomunismo, a linha ofensiva da reacção apontava, de facto, para a liquidação de todo o processo de democratização e de descolonização em curso depois do 25 de Abril, desejava atingir os partidos e organizações antifascistas, pretendia o afastamento das forças progressistas e, dentro destas, a neutralização do Movimento das Forças Armadas e o derrube do Governo Provisório, porque da acção de todos eles dimana efectivamente a grande e real ameaça às suas injustas situações de privilégio.

Não era, pois, por mero acaso, que a propaganda abertamente reaccionária, que preparava o campo para a realização da manifestação da «maioria silenciosa», acusava o MFA e o Governo Provisório de desvios do Programa do Movimento das Forças Armadas.

Não foi por qualquer capricho que a reacção apostou no General António de Spínola e nas personalidades que o acolitavam.

A interpretação dos acontecimentos históricos não deve ficar-se pela contemplação das aparências — antes exige um aprofundamento na análise das causas que os explicam e os determinam.

Por isso, na apresentação dos factos que originaram o «28 de Setembro», terá de tomar-se em consideração que a reacção tem das situações políticas um visão muito concreta e muito circunscrita. E, pesando embora as potencialidades e os desejos contra-revolucionários dos caciquezinhos de um lugarejo recôndito no interior do país, que vê a sua importância ser posta em causa pela democratização da vida nacional, o certo é que as forças mais indómitas são aquelas que auguriam o fim do seu poderio económico com o evoluir do processo revolucionário. São aquelas que se sentem fortemente atingidas pela independência das nossas antigas ! colónias. São aquelas que não podem aceitar nacionalizações de empresas ou expropriações por utilidade social dos seus latifúndios. São aqueles que recusam submeter-se às novas condições que não admitem o luxo e o parasitismo.

Dizendo isto, porém, não se nega que os contra-revolucionários não aspirem ao reapossamento do poder político — mas o fundamental que eles perseguem é não perderem as suas posições económicas e sociais.

Assim se compreende que a reacção se manifeste muito mais intensamente contra uma política firme e corajosa de democratização económica do que contra as medidas governamentais que possibilitem apenas a democracia política — ainda que as duas apareçam interligadas na transformação das estruturas de um Estado. Ou, por outras palavras, assim se justifica que ela não possa deixar de se opor à execução dos princípios que enformaram o 25 de Abril, e que, abrindo reais perspectivas para o prossecução das coordenadas referidas, a vão necessariamente atacar.

Nos acontecimentos do «28 de eStembro» assistimos, pois, a uma terrível ironia — a de ver os piores inimigos do processo revolucionário em curso, do Programa do Movimento das Forças Armadas e das iniciativas que o aplicam na prática, arvorarem-se em arautos e defensores da pureza de todo este processo.

2. A pedra de toque de todos os acontecimentos do «28 de Setembro» foi, portanto, a tentativa de realização de uma manifestação dita «de apoio ao Presidente da República».

Pareceria, pelos motivos aparentes invocados para ela, pelos nomes dos elementos que integravam a sua comissão organizadora, relativamente desconhecidos e descomprometidos politicamente, que se estaria perante um gesto normal e espontâneo de um certo grupo de indivíduos que apelava para os seus concidadãos com a finalidade de, conjuntamente, demonstrarem ao Presidente da República, General António de Spínola, que grande sector da população portuguesa — a «maioria silenciosa» — o avalizava numa via presidencialista ou mesmo ditatorial para a política nacional.

A verdade é que a ideologia do General António de Spínola não permitiria caso se instalasse o poder pessoal, amplas mudanças estruturais em relação ao período fascista da História portuguesa.

Não eram as soluções neocolonialistas, de algum modo defendidas no livro «Portugal e o Futuro», não eram os conceitos de democracia pluralista, os quais possibilitaram que os agrupamentos mais antidemocráticos reivindicassem junto do Presidente da República a sua audição quanto à condução dos destinos da Pátria, não era a oposição a reformas de fundo, indubitavelmente queridas pelo Povo Português — que provara já prescindir, para a sua imediata concretização do protocolo sufragista da consulta popular — entre outras que permitiriam supor a perfeita identificação do General António de Spínola com o ideário progressista do Movimento das Forcas Armadas expresso no seu Programa.

No entanto, o General Spínola era quase unanimemente aceite como Presidente da República. Com ele poderiam estar preenchidos os requisitos para a unidade das Forças Armadas, imprescindível para o avanço revolucionário. Com ele também se admitiria, ainda que com maiores reservas, a unidade nacional. Bastava, para isso, que as suas atitudes não se orientassem, por legalismos extremos conservadores e antipopulares, por constantes interferências nos assuntos do Governo Provisório e das Forças Armadas, por íntimas relações com o capitalismo interno e com o imperialismo estrangeiro, pela aceitação implícita em nome da democracia de anti- democratas que queriam «colaborar» no seu estabelecimento — e que tornavam duvidosa a sua participação activa e coerente num processo revolucionário.

A sua quase obsessão em conseguir o poder pessoal, animada por sentimentos de personalidade carismática, as tentativas que empreendeu nesse sentido ao longo do seu mandato, a aversão às correntes de forças políticas mais progressistas, o seu distanciamento dos representantes do Movimento das Forças Armadas, estavam a torná-lo suspeito perante todos aqueles que — e não se pode desmentir que constituem a esmagadora maioria dos portugueses — desejam ardentemente, ansiosamente, construir uma sociedade nova em Portugal.

Por outro lado, facilmente se notava por detrás da manifestação toda uma campanha intencional de preparação psicológica das massas populacionais menos esclarecidas, com vista ao bom acolhimento por estas medidas que se saldassem pela instauração, num primeiro momento, do poder pessoal do General Spínola, fundamentado em argumentos como os que vieram a ser expostos no seu discurso de renúncia.

A manifestação, aliás, aparecia ainda na sequência das manobras capitalistas tendentes a criar a instabilidade económica e social através da sabotagem e da instigação, que de modo algum podiam ser entendidas apenas como «reivindicações postas nas mãos dos trabalhadores por burgueses frustrados do velho regime, subitamente também titulados de trabalhadores», como inculcavam as palavras do General Spínola.

As massas populacionais que se pretendia atrair a Lisboa no 28 de Setembro mais não vinham do que para emprestar uma fachada pública às acções que seriam empreendidas no Palácio de Belém.

A enormidade dos recursos mobilizados para a manifestação, seja dos meios técnicos, seja dos meios humanos, seja dos meios propagandísticos, fazia pressupor que grandes interesses financeiros jogavam no seu êxito, que não era certamente e só uma demonstração de apoio ao Presidente da República. A gratuitidade das passagens, os subsídios, as avionetas, os milhares de camionetas previstos indiciavam que algum golpe se preparava.

O envolvimento na sombra da manifestação de alguns nomes conhecidos do fascismo garantia que não era propriamente no sentido que o Povo desejava, que se ia fazer a consagração do Programa do Movimento das Forças Armadas e legitimar o General Spínola como seu único e fiel intérprete.

A reactivação de certos partidos políticos que agrupavam na sua maior parte militantes fascistas e antigos colaboradores da PIDE e Legião Portuguesa, e mesmo indivíduos que no seu passado se tinham chegado a opor a Marcelo Caetano porque se situavam, nas teses que defendiam, mais à direita deste, causava algum alarme em todos os que não abdicavam da tarefa de salvaguardar as conquistas alcançadas.

Eram igualmente notadas as visitas que o General Spínola, a partir de Julho, efectuara a unidades específicas das Forças Armadas, numa missão que competiria com propriedade ao Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas e não ao Presidente da República, cuja acção deveria ser mais política do que propriamente militar, e a reabilitação que fizera de certos oficiais da reserva e da sua confiança, a quem tinha colocado em determinados postos de comando.

Por tudo isso, a manifestação da «maioria silenciosa», se outros dados mais concretos não houvesse, surgia como altamente suspeita.

3. Mas era possível dispor de dados mais concretos.

Os acontecimentos ocorridos no Concurso Hípico de Lisboa, o reaccionarismo patenteado na tourada do Campo Pequeno, o conhecimento da «Comissão Operacional» do Partido do Progresso, a descoberta da rede tráfico de armas, a recusa em dar satisfação à proposta do COPCON, que previa o aumento da sua operacionalidade, foram elementos que não passaram despercebidos. A informação, digna de crédito, de que a reacção pretendia na primeira fase da manobra a declaração do estado de sítio, que implicava a concentração de poderes no Presidente da República, era outro dos indícios de que algo de grave se iria desenrolar.

4. De qualquer modo, porém, o General Spínola tinha ainda um papel importante a desempenhar. Ele estava no centro de todo o processo.

Impulsionador da manifestação para dela tirar proveito pesosal?

Ou alvo passivo de uma manobra que dele se pretendia utilizar? Analisem-se os factos que apresentamos.

Uma pergunta naturalmente surgirá: — poderia o General Spínola proibir a manifestação? De facto, é indesmentível que a resposta tem de ser afirmativa.

Mas seria lógica tal proibição?

Considerando a sua maneira de ser — entenda-se por coerência própria — e atendendo às suas ambições — diga-se por estratégia política — o General Spínola não devia interditar a sua realização.

Porque era legal.

Porque lhe era dirigida.

Porque se afirmava em nome da uma «maioria coercivamente silenciada pela esquerda», corroborando deste modo ideias que ele mesmo partilhava.

Porque era uma expressão publica das direitas que vinha contrabalançar as inúmeras manifestações das esquerdas, possibilitando que o General Spínola actuasse em consequência como árbitro entre as facções.

Porque ocasionaria inevitavelmente uma radicalização de posições a nível de rua e nos órgãos do Estado que serviria ao Presidente da República para justificar irrecusavelmente a declaração do estado de sítio.

E, finalmente, porque o General Spínola com ela estava relacionado ainda antes do seu anúncio público.

As forças reaccionárias, incentivando e apoiando por todas as formas a continuação dos preparativos para a manifestação, apostavam no General Spínola com o seu acordo, para que ele parasse o processo revolucionário com o qual se sabia ele não pactuava — como, aliás, o veio afirmar no seu discurso de renúncia, dizendo que se sentia inibido de «participar em projectadas estruturas revolucionárias».

Mas apostavam igualmente nos Generais Jaime Silvério Marques (que o próprio General Spínola quis substituir pouco depois do 25 de Abril, não se tendo concretizado o intento porque entraria um elementos da confiança do MFA, o que já não agradava ao Presidente da República), Galvão de Melo, cujas declarações públicas exemplificavam aquilo que as direitas gostariam de poder dizer com grande audiência, e Diogo Neto, que não raras vezes alinhava com os Generais citados.

Daqui se conclui que a Junta de Salvação Nacional tinha uma composição de maioria conservadora, o que, bem entendido, pode significar alguma coisa — e que não era esquecido pelo observador interessado no facto.

Apostavam também na fidelidade de alguns comandos militares afectos ao General Spínola e que poderiam ser influentes, caso estalasse uma guerra civil em consequência da assumpção de plenos poderes.

Não excluía as achegas que, no Governo Provisório, poderiam emprestar o Tenente-Coronel Firmino Miguel e o Major Sanches Osório, ambos da confiança pessoal do General Spínola.

O Presidente da República era, pois, a esperança que raiava para a reacção, com vista à involução do processo em curso que a atingia gravemente.

5. Era a esperança — e não quis traí-la.

Ao não denunciar com antecedência a manifestação, pesassem embora os avisos que recebera e que deixavam perceber os seus fins ocultos.

Ao permanecer no Campo Pequeno face à reaccionária atitude aos espectadores, avalizando com a sua presença e a sua passividade, o histerismo fascista com que se insultou e vaiou o Primeiro-Ministro Vasco Gonçalves e o Movimento das Forças Armadas.

Ao não tomar posição reprovatória ou, ao menos, de inquirição, perante o documento redigido por Sanches Osório e suas causas, no qual se acusava o Primeiro-Ministro de ser o impulsionador das barricadas.

Ao reter em Belém personalidades do MFA.

Ao admitir a hipótese de guerra civil, tentando captar forças militares para o seu campo.

Ao empreender providências para assegurar sozinho o controlo informativo do País.

Ao não proibir formalmente a manifestação, mesmo no sábado, dia 28 de Setembro, pois o comunicado da Presidência da República se limitou tão-só a considerá-la inconveniente.

Ao usar, no seu discurso de renúncia, os argumentos já utilizados pelos reaccionários para convocarem a manifestação.

Ao fazer insinuações de que o Movimento das Forças Armadas desvirtuara o seu Programa, não lhe dando uma execução correcta.

Ao sugerir que o MFA traía o Povo, tomando medidas contrárias à vontade popular.

Ao deixar implícito que o caos político e económico seria devido às lutas dos trabalhadores.

6. É evidente, porém, que nos acontecimentos históricos, os intervenientes não aparecem isolados. Há sempre forças que os apoiam — o que, apoiando-os, os determinam e os incentivam.

Em «28 de Setembro», o General Spínola não agiu sozinho. Por detrás dele já apontámos as famílias Bragança e Espírito Santo, o Conde de Caria, o General Kaulza de Arriaga, Pedro Feytor Pinto, os Profs. Pacheco de Amorim, Guilherme Braga da Cruz e tantos outros menos conhecidos, cujas acções se concertavam na ofensiva que visava subverter as conquistas de 25 de Abril.

Igualmente o amparavam os militares referenciados e certas correntes de opinião alarmadas com o avanço do processo revolucionário encetado, que arriscava ultrapassá-las e submergi-las.

7. Insiste-se, contudo, em afirmar que a manifestação dita «da maioria silenciosa» mais não era do que a encenação necessária para a assumpção de plenos poderes pelo Presidente da República.

Aconteceu, porém, que, enjeitando uma atitude de expectativa e decidindo-se por uma acção de contramanifestação, as forças progressistas portuguesas criaram uma situação em que não era mais possível o golpe palaciano. Ao convocarem para a rua os seus filiados e simpatizantes e todos aqueles verdadeiramente interessados em defender o espírito revolucionário do 25 de Abril, as forças políticas que o fizeram colocavam os órgãos do Poder perante uma situação de facto irreversível. Exigiam, deste modo, uma definição clara de posições a nível governamental.

Os acontecimentos em Belém fizeram correr o risco de uma guerra civil. Mas a unidade do Movimento das Forças Armadas, e, no fundo, a sua identificação com a vontade popular que levara às barricadas, contribuíram de forma eficaz para a vitória sobre a reacção.

São estes três pressupostos que, porque existem, têm facultado o avanço do processo revolucionário. A unidade do Movimento, os anseios do Povo Português e sua determinação, e a associação íntima dos dois membros do binómio Povo/MFA, garantem assim a continuação da via portuguesa para o socialismo.

8. Do Palácio de Belém, da angustiosa noite de sexta-feira, dia 27 de Setembro, para sábado, dia 28, ficou a recordação de lastimáveis cenas e de perigosos equívocos que poderiam ter tingido de sangue uma Revolução que o tem querido evitar a todo o custo e que só se não gerou devido, em parte, à acção relevante desenvolvida pela Comissão Coordenadora do Programa.

Sem se possuírem dados concretos, acusou-se o Brigadeiro Vasco Gonçalves de ser ele o impulsionador das barricadas populares. Sem se certificarem informações tendenciosas, punha-se desse modo em causa uma personalidade do Movimento das Forças Armadas e, complementarmente, o próprio Movimento.

Aliás, a calúnia, a intriga, a desconfiança assentaram arraiais nessa noite em Belém, com vista à consecução de uma manobra predeterminada mas que, aparentemente, não tinha contado com a acção do Povo, a não ser no sentido de acorrer à manifestação. Os contra-revolucionários subestimaram a consciência de um Povo que quer ser livre e que, nas masmorras do fascismo — entendidas no seu significado geral — na repressão policial e na exploração capitalista, aprendeu a distinguir as pessoas que com ele desejam colaborar para a criação de novas condições de vida, daquelas que somente dele se procuram servir para satisfazerem os seus interesses egoístas.

A retenção em Belém de representantes do Movimento das Forças Armadas, aliada à alteração no comando do COPCON, à mudança física do lugar do comando, ao encerramento das emissoras, à suspensão dos jornais, à substituição das forças militares por forças militarizadas na protecção às estações de rádio, à tentativa de captação dos comandos de algumas Regiões Militares e de algumas unidades, à presença anormal de oficiais reconhecidamente favoráveis ao Presidente da República, somavam-se como provas de suspeição quanto às reais intenções do General Spínola.

O controlo da situação que o Presidente da República ensaiou fazer foi-se pouco a pouco esvaindo, até ao seu convencimento de que as suas ideias de poder pessoal não poderiam ganhar consistência face à oposição declarada do Povo esclarecido e do MFA.

A surpresa foram-na as barricadas. A atitude do General Spínola e o cerrar fileiras do Povo e do MFA foram os reflexos de uma situação que evoluiu desde uma fase menos favorável, porque confusa, até ao triunfo da liberdade e das forças que a ela aspiram, da qual resultou uma consequente clarificação de posições.

9. O segundo ponto que se julga dever ser realçado na análise destes acontecimentos do «28 de Setembro» é o da chamada plataforma de entendimento.

Ainda que os dois primeiros tópicos desse documento visassem aquilo que poderá ser encarado como um saneamento dos órgãos governativos — a Junta de Salvação Nacional e o próprio Governo Provisório — de modo a que se obtivesse para estes uma composição que servisse efectivamente o processo revolucionário em curso, afastando os elementos afirmadamente conservadores, a última cláusula atingia o General Spínola naquilo que ele possuía de mais característico — o pendor personalista.

Claramente se propunha ao então Presidente da República aceitar uma competência que o afastava de caminhos presidencialistas ou ditatoriais.

A terminante recusa que ele expendeu quando lhe foi dado conhecimento genérico do teor do documento, apareceu como consequência lógica da sua maneira de ser, que não admitiria ver-se relegado para um tipo de poder partilhado com outros órgãos nos quais não dominasse, poder que era esvaziado de acção executiva e, em relação às forças militares, destituído de efectivo comando operacional.

A aceitação que mais tarde veio a dar à proposta surgia assim como incoerente se tomarmos em consideração a sua personalidade; mas nunca é de pôr de parte a influência que a sede de mando exerce sobre as pessoas — e talvez que o General Spínola preferisse continuar dentro do Poder, ainda que não como seu único detentor, do que se ver definitivamente marginalizado da política nacional pelos efeitos da sua recusa.

A verdade da sua ideologia, veio, todavia, à tona dos acontecimentos e a renúncia apunha o ponto final a um mandato recheado de contradições — aquilo que poderá ser denominado «conluio do silêncio».

Ultrapassado pelos factos e pelo evoluir da situação, desarmado pela vontade do Povo e pela unidade das Forças Armadas, cujas acções assentam na sua interpenetração profunda, ao General António de Spínola nada mais restava do que abdicar. Era ainda um I acto da sua exclusiva responsabilidade. Era ainda uma oportunidade de manifestar com grande audiência as suas ideias. Não quis perdê-la. Mas que, para sua má sorte — e para a daqueles que com ele colaboraram — havia de ficar assinalada por um discurso que repetiu os motes da direita reaccionária e que foi perpassado por um sintoma implícito de ressentimento pelos motivos que o determinavam.

10. E que dizer da mácula que recaiu sobre os mentores da manobra ao ser descoberta a rede de tráfico ilícito de armas e a enorme quantidade de armamento que mãos criminosas queriam fazer entrar em Lisboa no dia da manifestação.

Já se escreveu que estas armas possibilitariam incidentes que conduzissem à fundamentação do pedido de estado de sítio, pela imperiosidade de um poder forte e concentrado que pudesse controlar a violência popular. Seria esta a pureza que se reivindicava para a execução do Programa do Movimento das Forças Armadas?

11. Faça-se, finalmente, o resumo geral dos «acontecimentos do 28 de Setembro».

A convocação da manifestação. Com ela se pretendia emprestar ao General Spínola a força pública que lhe faltava para que pudesse tomar a «decisão» em que estava interessado, ou seja, proclamar o poder pessoal, afastar as forças progressistas que o ensombravam e neutralizar o Movimento das Forças Armadas que o limitava. Não se excluía, para o efeito, a campanha que se orquestrou e que visava a instauração de um clima de instabilidade social e política — campanha e clima que proporcionariam o ambiente favorável a uma forçosa aceitação do pedido de declaração do estado de sítio.

A «grande manifestação popular» na qual se ouviriam discursos empolados de um pretenso patriotismo, referendaria a assumpção de plenos poderes. Estariam então atingidos, na sua primeira fase, os objectivos da manobra planeada.

Gorando-se as perspectivas de realização da manifestação — e numa solução de recurso — processa-se ao longo de parte da noite de 27 para 28 de Setembro uma tentativa de golpe militar da iniciativa do General Spínola e das pessoas que o suportavam. Igualmente abortou tal tentativa.

Na mesma linha, isto é, na continuidade de acção tendente à declaração do estado de sítio, a ideia de dissolução da Junta de Salvação Nacional, a concretizar-se, facultaria a obtenção do resultado pretendido, pois, como ficou dito, desaparecendo a Junta, extinguia-se o órgão que estava especialmente encarregado de vigiar pelo cumprimento do Programa do Movimento das Forças Armadas, competência que reverteria, na circunstância, para o Presidente da República, o qual concentraria em si todos os poderes.

Mas o que o Movimento propunha não era a dissolução da Junta de Salvação Nacional, mas tão-só a alteração da sua composição. Foi o que efectivamente veio a ser aprovado.

O alarmismo que rodeou a informação sobre o assalto a Postos da Guarda Nacional Republicana na margem sul do Tejo, a imediata suspensão da reunião que entretanto decorria em Belém, a convocação simultânea do Conselho de Estado, cujos membros tinham sido previamente chamados ao Palácio, atestam a predeterminação que presidira a mais esta tentativa, corroborados, aliás, pelos métodos que dirigiram a reunião desse Conselho de Estado. Outra manobra falhava.

A renúncia do General António de Spínola que manifestou, uma vez mais, a reconhecida obsessão do ex-Presidente da República. As palavras então proferidas evidenciaram, sem dúvida, uma ultima tentativa de lançar o pânico na população pela apresentação de uma situação portuguesa que não correspondia de modo algum a realidade. Desejou-se criar pela via oral a instabilidade que fracassara pela via prática. Aspirou-se a um regresso majestático como recurso para a salvação nacional. Foi a derrota final do «28 de Setembro».

12. Os «acontecimentos de 28 de Setembro» constituíram, portanto, uma complexa manobra reaccionária contra a evolução progressista da vida do Povo Português, evolução que é fundamentada numa orientação política cujo apoio maciço é evidente por parte da população.

A unidade e a identificação do Povo e do Movimento das Forças Armadas conseguiram o primeiro grande triunfo na consolidação da democratização da vida portuguesa no avanço do processo revolucionário iniciado em 25 de Abril.

Não se esqueça, porém, que as forças antidemocráticas, não só nacionais como também internacionais, empenhadas em desvirtuar a profunda renovação da nossa vida colectiva — a que aspiramos — não se podem considerar definitivamente controladas.

Por isso se exige um permanente alerta e uma constante atenção a tais manobras!

Os acontecimentos de 11 de Março podem assim ser compreendidos como a continuação lógica do «28 de Setembro», como mais um momento do grande combate que a reacção empreendeu contra o Povo Português. Combate que o Movimento das Forças Armadas, os partidos políticos progressistas e o Povo Português na sua generalidade vão ganhando luta a luta.

A UNIDADE, FORÇA E DETERMINAÇÃO são os imprescindíveis factores da vitória final da REVOLUÇÃO.

continua>>>


Inclusão 02/04/2019