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O Movimento das Forças Armadas que, em 25 de Abril de 1974, pôs termo ao regime ditatorial e fascista então vigorante em Portugal desde há 48 anos, não teve, como é óbvio, apenas causas próximas. É isso, de resto, bem notório nos documentos iniciais (comunicados, proclamações, etc.) em que se faz alusão a expressões do tipo «conscientes de interpretar o sentimento da Nação» e a outras do género. O Movimento dos Oficiais sabia, desde o início, que contaria com o apoio praticamente maciço de toda a população e, ao sabê-lo, provava que tinha consciência do que fora a luta antifascista ao longo de todos esses anos. Nesse facto se pode, portanto, basear mais um apontamento sobre a consistência (se bem que embrionária, cônscia) política dos Jovens capitães que arrancaram com o Movimento.
É, pois, injusta e até contra-revolucionária, a tese de que, na origem do MFA estaria unicamente a defesa de interesses profissionais ou de prestígio, quiçá de classe ou de «elite», embora, como repetidamente tem sido dito, o caso dessas reivindicações tivesse surgido como detonador e aglutinador de vontades e consciências separadas não inteiramente consciencializadas. Mas, os dois documentos que se transcrevem neste capítulo são, quanto a nós, claramente significativos da opção política que o Movimento pretendia para o seu acto revolucionário. Já não se trata, neles se vê, de um mero explanar de considerações mais ou menos técnicas ou profissionais; extravasa-se toda a problemática para a situação política, económica e social do país que claramente se considera, por um lado, desastrada e, por outro, atentória dos seus interesses, a um nível interno e internacional.
Talvez o mais ressaltante destes dois documentos seja afinal o reconhecimeno do tremendo erro histórico em que Portugal vivia, dominado pelo regime policial: uma situação contrária a todo o evoluir da humanidade no que respeita às teorias económicas e sociais (ou seja, o desequilíbrio irrecuperável entre um neocapitalismo, via Marcelo, incipiente e esbracejante, coexistente com uma estrutura feudalista e monopolista legada pela via salazarista) e no que respeita igualmente ao problema colonial. A via democrática que, claramente, estes documentos propõem, deixa evidente uma opção que o é, digamos, em primeira etapa, mas deixa evidente também que essa via irá proporcionar um debate nacional que, eventualmente, poderá pôr em causa a via democrática tradicional ou burguesa, se assim lhe quisermos chamar.
Que os capitães, ainda nestes dois documentos, façam apelo a certo tom elitista (o «prestígio» das Forças Armadas não ó mais talvez que um factor aglutinador que, ao ser jogado democraticamente, eles próprios sabem já que poderá pôr em questão um conceito de Exército ao qual vão buscar esse preceito de prestígio) é pormenor que o devir da História torna quase insignificante. O importante é, de facto, a consciência política que os capitães revelam (e não se esqueça que, se tudo isto pode parecer ingénuo para o mundo, não o era para nós, obscurecidos ao longo de tantos anos) e que os vai levar, como iremos vendo, a uma constante e dialéctica transformação da sua realidade sem que, por isso, se possa considerar que houve alteração dos seus propósitos iniciais. Na verdade, os seus propósitos iniciais continham já as sementes de toda a evolução futura.
O terceiro documento incluído é-o por uma questão puramente documental e porque de, qualquer modo, contém as palavras que foram origem próxima imediata do 25 de Abril.
Desde há meses a esta parte, como é do conhecimento geral, tem vindo a desenvolver-se no seio das Forças Armadas um «movimento de oficiais», cujas origens foram há muito ultrapassadas e assume hoje características, intenções e finalidades que se entendeu oportuno clarificar e definir. O documento agora apresentado à atenção de todos os militares tem como objectivo essencial levá- -los a reflectir criticamente sobre os aspectos fundamentais dos problemas que as Forças Armadas enfrentam — sendo, para tanto, indispensável uma reflexão global, isto é, não dissociando as Forças Armadas da Nação e do momento crítico que o País atravessa — e, em seguida, consolidar a adesão dos que conscientemente chegaram à conclusão de que uma prática coerente com a nossa análise se torna imperiosa e urgente.
Todos sabemos e sentimos como no consenso generalizado as Forças Armadas têm sido consideradas o suporte de força de uma estrutura global complexa, polí- tico-económica, para cuja orientação —com passagem pela necessária definição do interesse nacional — o comum dos cidadãos não é chamado a uma participação directa. De facto tem-se a consciência de que tal estrutura não se poderia manter inabalável através dos anos, por maior cuidado que tivesse havido na preparação das organizações policial e judicial, se os seus dirigentes não tivessem a garantia da obediência sem discussão, por parte das Forças Armadas, aos objectivos por eles definidos. Daí o ter-se generalizado o princípio de que compete exclusivamente ao poder político a definição dos grandes objectivos nacionais e às Forças Armadas a missão de os executar sem pôr em causa a sua legitimidade. É o mito da «apoliticidade das Forças Armadas», que transformou os militares, que deveriam ser os guardiões de uma constituição legítima, em meros executores de uma política traçada do alto, a qual tem sido protegida não só com alterações «oportunas» da Constituição, mas também por leis que efectivamente a restringem.
Se, antes de 1961, as F. A. não eram abertamente atingidas no seu prestígio, ou não o eram de forma muito violenta, é porque as crises internas do regime não tinham atingido ainda um grau demasiado agudo. A partir, porém, da queda da Índia, e sobretudo à medida que as guerras em África se iam prolongando, as F. A. descobriam, não sem espanto por parte de muitos militares que pela primeira vez viam claro, o seu divórcio real da Nação. As F. A são então humilhadas, desprestigiadas, apresentadas ao País como responsáveis máximos do desastre.
Estava inventado o «bode expiatório» e criadas as condições para que a Nação deixasse de confiar nas suas F. A. E daí em diante, o desprestígio das Instituições Militares não deixa de aumentar. A guerra de Angola, que entretanto tinha começado, não põe inicialmente aos militares muitos problemas acerca da sua legitimidade. À medida, porém, que o tempo vai passando e a situação se vai dagradando em todos os os seus aspectos (inclusive no militar, como consequência inevitável da inexistência de uma estratégia, adequada à situação africana), à medida que outras frentes da luta armada surgem (Guiné e Moçambique) e o esforço exigido aos militares começa a ser humanamente incomportável, à medida que se toma cada vez mais patente a impossibilidade, por parte das F. A., de atingir os objectivos que lhes são impostos por um Poder que não aceita sequer a evidência de não possuir os meios da sua política, aparece cada vez mais claramente em destaque o desenvolvimento de um processo que tinha tido o seu primeiro episódio visível com a queda da índia; incapaz de se auto-reformar sob pena de morrer (politicamente, entenda-se), o regime aponta intransigentemente para a via unitária como solução do problema ultramarino; como se torna dia a dia mais evidente a inexequibilidade de tal via, as F. A. aparecem cada vez mais aos olhos da Nação como o grande responsável, não só do impasse africano, como da crise geral que atinge o País, e que não é só crise política, como também económica, social e moral.
Alarga-se assim o fosso entre as F. A. e a Nação, aumenta o desprestígio dos militares (os recentes acontecimentos da Beira, em Moçambique, vêm uma vez mais confirmar esta realidade por todos sentida), desprestígio esse que nenhumas medidas conjunturais poderão atenuar.
Não é com aumentos de vencimentos (e este documento demonstra que, apesar de tudo, a consciência dos militares não está à venda), nem com regalias sociais e privilégios de vária ordem, nem sequer com o previsto e anunciado reequipamento das F. A. para a condução da guerra em moldes tecnicamente eficazes (o que, além do mais, é extremamente duvidoso que seja alcançado em tempo útil), não é com medidas apressadas, destinadas a abafar as vozes discordantes e a atenuar o crescente descontentamento dentro das F. A., que o poder político conseguirá colmatar a brecha que se abriu funda e dolorosa na consciência da maioria dos militares. Nem serão nunca essas medidas que restituirão o prestígio já demasiado abalado das F. A., porque o problema não se localiza ao nível da situação de um grupo socioprofissional; o prestígio das Instituições Militares só será alcançado quando as F. A. se identificarem com a Nação, quando entre as F. A. e o Povo houver realmente unidade fundamental quanto aos objectivos a alcançar.
O problema maior do Povo Português, e que em larga medida condiciona todos os outros, é, neste momento, o da guerra em três territórios africanos: Angola, Moçambique e Guiné. A questão é gravíssima e está na base de uma crise geral do regime, já incontrolável pelo Poder. Se está generalizada, tanto no seio das F. A. como na sociedade civil, a ideia de que não é possível obter-se uma vitória pelas armas, tudo é feito para que na opinião pública nacional se enraize a noção de que o poder político traçou já a estratégia adequada e que as F. A. não terão mais que segui-la para que a integridade dos territórios seja garantida. Consequentemente, se a situação se agrava ainda mais, facilmente se adivinha sobre quem recairão as responsabilidades, ao mesmo tempo que o Poder terá criado as condições propícias a um inocente lavar de mãos.
Os militares conscientes sabem, porém, que a solução do problema ultramarino é política e não militar e entendem ser seu dever denunciar os erros de que são vítimas e transformarão as F. A., uma vez mais, em bode expiatório de uma estratégia impossível; uma solução política que salvaguarde a honra e dignidade nacionais, bem como todos os interesses legítimos de portugueses instalados em África, mas que tenha em conta a realidade incontroversa e irreversível da funda aspiração dos povos africanos a govemarem-se por si próprios — o que implica necessariamente fórmulas políticas, jurídicas e diplomáticas extremamente flexíveis e dinâmicas. Esta solução tem de ser encarada com realismo e coragem, pois pensamos que ela corresponde não só aos verdadeiros interesses do Povo Português como ao seu autêntico destino histórico e aos seus mais altos ideais de justiça e de paz. Sabem, no entanto, os mesmos militares conscientes que tal solução jamais será consentida pelo Poder, que a si próprio se arroga o direito de exclusivo em matéria de patriotismo, e se pretende apoiado pela Nação. Contestamos, pois, o exclusivo e o apoio proclamados.
E porque assim pensamos, entendemos necessário, como condição primeira de solução do problema africano, da crise das Forças Armadas e da crise geral do País, que o poder político detenha o máximo da legitimidade, que as suas instituições sejam efectivamente representativas das aspirações e interesses do Povo. Por outras palavras: sem democratização do País não é possível pensar em qualquer solução válida para os gravíssimos problemas que se abatem sobre nós.
Trata-se, portanto, antes de mais e acima de tudo, da obtenção a curto prazo de uma solução para o problema das Instituições no quadro de uma democracia política.
No contexto, consideramos indispensável e urgente que:
Só nestas condições poderão as F. A. ter um mínimo de garantia de que são instrumento da vontade da Nação e que não se encontram ao serviço de qualquer grupo. Então já não lhes será permitido duvidar nem da legitimidade do Poder, nem dos objectivos por este definidos e que tudo farão para cumprir.
Só nestas condições poderão as F. A. alcançar o prestígio que reivindicam, pois só então haverá garantias da necessária unidade entre o povo e as Instituições Militares: na verdade, o Exército só será o «povo em armas» quando entre o Exército e o Povo não existirem quaisquer barreiras, quando o Exército for realmente a incarnação duma vontade colectiva de defesa, duma afirmação insofismável, feita pelo próprio Povo, da segurança e independência nacional.
Camaradas:
O Movimento de Oficiais, em face dos recentes e graves acontecimentos que abalaram a Nação, as F. A. e, em particular, o Exército, não pode deixar de proceder a uma análise, ainda que breve, da situação, e extrair as lições que se impõem.
A história do recente Movimento foi marcada, inicialmente, por um episódio que é já do conhecimento de todos: a transferência súbita e injustificada de quatro camaradas (dois para os Açores, um para a Madeira, o último para Bragança). Instalavam-se em pleno os métodos de terrorismo administrativo já há muito utilizados por pseudochefes militares completamente alheios aos reais problemas das F. A. e a quem apenas interessa defender privilégios, identificando-se com o poder político e económico e abandonando os camaradas mais jovens, os quais parece desprezarem e por todas as formas procuram humilhar. Sabe-se como o Movimento recusou admitir semelhante arbitrariedade e como tal atitude de firmeza provocou reacções a nível de Poder que revelaram, de forma insofismável, a sua intolerância, a sua total incompreensão dos problemas, a sua completa incapacidade, insensatez e cegueira política e administrativa.
Isto mesmo foi abertamente sentido por todos, alguns dias mais tarde quando assistiram, indignados, à manifestação feita por generais que se diziam representar as F. A. e que nada mais representavam senão a si próprios e à sua falta de coragem cívica e moral. Ao pretenderem hipotecar as F. A., esses oficiais generais revelavam a sua fraqueza, a sua falta de visão a todos os níveis, o desprezo em que tinham os sentimentos e as aspirações da esmagadora maioria dos militares. Participaram numa farsa que, iniciada com um discurso do Presidente do Conselho a uma assembleia que carece de legitimidade, e continuada com uma moção aclamada mas não discutida, viria a culminar com a sua afrontosa representação. Apenas os generais Costa Gomes e Spínola e o contra-almirante Bagulho se recusaram a participar em semelhante espectáculo! Para eles vão, desde já, as nossas homenagens. A sua atitude é inteiramente apoiada pelo Movimento.
Não será ousado adiantar que aquela inqualificável manifestação foi a causa imediata dos acontecimentos mais recentes, que levaram alguns camaradas, generosos e abnegados, sem dúvida, mas excessivamente impacientes, a tentarem resolver a situação de modo imediato. Afirmamos, desde já, a nossa solidariedade activa para com os camaradas presos, que não nos cansaremos de defender seja em que circunstâncias for. A sua causa é a nossa, embora possamos criticar a sua impaciência. Todavia, a acção que desencadearam não foi inútil. Ela serviu para despertar a consciência de alguns que porventura ainda hesitassem. Serviu para definir com clareza os campos em presença, donde se tiram lições preciosas para o futuro próximo. Serviu para revelar, de uma forma brutal, as contradições em que se debate o Exército e — como este é «o espelho da Nação» — a crise geral do País. Serviu, enfim, para evidenciar os métodos a que recorrem os nossos «chefes», a sua total ausência de escrúpulos e as alianças a que recorrem para tentarem esmagar e paralisar aquilo que é já irreversível. Em particular, sob este último aspecto, compete-nos denunciar a intromissão da P. I. D. E./D. G. S. (a qual foi directamente accionada pelos ministro e subsecretário de Estado do Exército), prendendo camaradas e, pelo menos num caso, forçando a entrada a pontapé, cerca das cinco horas da manhã, na casa de um camarada, maltratando, física, moral e psiquicamente a mulher e filhos deste e efectuando uma busca domiciliária sem mandado legal. Esta interferência da polícia política é intolerável, representa um repugnante atentado aos nossos já mais que violados direitos, e não podemos permitir que tais factos se repitam, sob pena de se generalizarem e de perdermos, por completo, a nossa mais do que abalada dignidade e
o frágil prestígio que nos resta. Mas não se ficaram por aqui os nossos «chefes». Chamaram a G. N. R., que enviaram contra os nossos camaradas do R. I. 5, confiando ainda àquela corporação a tarefa inadmissível e ultrajante de cercar a Academia Militar! Por sua vez, a Legião Portuguesa, revelando a existência de um aparelho militar e policial operante, colaborou com a D. G. S. e a F. N. R., chegando a participar no seguimento das forças do R. I. 5 que regressavam às Caldas da Rainha. Será, porventura, ocasião de esperar que o Governo e os «chefes militares» tenham finalmente encontrado na Legião Portuguesa, na G. N. R. e na D. G. S. os valorosos combatentes de que carecem para prosseguir em África a sua política ultramarina?!
Camaradas dos três ramos das Forças Armadas: o episódio da marcha do R. I. 5 sobre Lisboa, articulado aos acontecimentos que imediatamente o antecederam, permite-nos prosseguir o nosso Movimento com mais segurança e realismo.
Confiamos, desde já, no vosso espírito de camaradagem e na vossa solidariedade para com os camaradas presos (cerca de 200, entre oficiais do Q. P. e do Q. C., sargentos, cabos milicianos e praças), que deram uma primeira prova real, ao País e às F. A., de que não estamos dispostos a tolerar tal estado de coisas.
Apelamos finalmente para que se mantenham firmes em relação aos já anunciados objectivos do Movimento. É necessário mantermos a coesão e reforçarmos as nossas estruturas, conscientes de que, se soubermos ser coerentes e lúcidos, em breve alcançaremos o que nos propusemos.
a) Leitura da estrofe do poema: Grândola, Vila Morena.
Grândola, vila morena
Terra da fraternidade
O povo é quem mais ordena
Dentro de ti, ó cidade.
b) Transmissão da canção do mesmo nome, interpretada por José Afonso.
Grupo, Data-Hora: 25.03.00 h, ABR 74
Senha, contra-senha: CORAGEM — PELA VITÓRIA
SECRETO — Folha 1 de uma folha.
Inclusão | 02/04/2019 |